Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 UNIVERSIDADE POTIGUAR- UnP PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO E AÇÃO COMUNITÁRIA CURSO DE LETRAS GIOVANNIA ELAINE SANTOS DA SILVA NAYANNE KATELINE PEREIRA LOPES DE ALMEIDA A SUBVERSÃO DO IMAGINÁRIO LITERÁRIO E HISTÓRICO-SOCIAL NO ROMANCE ÚRSULA, DE MARIA FIRMINA DOS REIS NATAL 2013 2 GIOVANNIA ELAINE SANTOS DA SILVA NAYANNE KATELINE PEREIRA LOPES DE ALMEIDA A SUBVERSÃO DO IMAGINÁRIO LITERÁRIO E HISTÓRICO-SOCIAL NO ROMANCE ÚRSULA, DE MARIA FIRMINA DOS REIS Trabalho de conclusão de Curso apresentado à Universidade Potiguar – UnP, como parte dos requisitos para obtenção do título de graduada em Letras – Português e suas respectivas literaturas. ORIENTADORA: Profa. Esp. Luciana Medeiros Lucena NATAL 2013 3 GIOVANNIA ELAINE SANTOS DA SILVA NAYANNE KATELINE PEREIRA LOPES DE ALMEIDA A SUBVERSÃO DO IMAGINÁRIO LITERÁRIO E HISTÓRICO-SOCIAL NO ROMANCE ÚRSULA, DE MARIA FIRMINA DOS REIS Trabalho de conclusão de Curso apresentado à Universidade Potiguar – UnP, como parte dos requisitos para obtenção do título de graduada em Letras – Português e suas respectivas literaturas. Aprovado em: ___/___/2013. BANCA EXAMINADORA ____________________________________ Profa. Esp. Luciana Medeiros Lucena Orientador Universidade Potiguar – UnP ____________________________________ Profa. Dra. Célia Maria Medeiros Barbosa da Silva Universidade Potiguar – UnP _____________________________________ Profa. Ms. Fabiola Barreto Gonçalves Universidade Federal do Rio Grande do Norte 4 Dedicamos à profa. Dra. Ana Santana Souza de Fontes Pereira, por nos ter apresentado o romance Úrsula. 5 AGRADECIMENTOS A Deus, pois sem Ele essa conquista não seria possível. Aos professores que me acompanharam desde o início da minha formação. Destaco aqui, em ordem cronológica, a profa. Maria da Conceição C. de M. G. Matos Flores que, sempre com seu amor pela literatura, fez-me amar mais essa área; a profa. Ana Santana Souza de Fontes Pereira, por ter apresentado o romance Úrsula; e a profa. Luciana Medeiros Lucena pela orientação, pelas enriquecedoras observações e sugestões, pelo carinho e respeito sempre. Gostaria de expressar minha profunda gratidão aos meus colegas de curso que durante esses anos não somente me acompanharam academicamente, mas se tornaram meus amigos e partilharam momentos da minha vida: Érica, Juliana, Valdete, Raquell, Polliana, Kleber, Milena, Vanessa Lins e Mayre Janne. Em especial a minha parceira nessa empreitada de construção do TCC: Nayanne; como ela mesma disse “não me imaginaria escrevendo com outra pessoa.” Não poderia deixar de agradecer à minha família, a base de tudo que sou hoje. Minha mãe Elita, pelo apoio. Meu irmão, amado e incentivador, Emanoel (sem você eu não teria galgado nem o primeiro degrau desse curso). Minha irmã, Emmanuela, linda, batalhadora e forte, que mesmo a distância está sempre ao meu lado (saudades constantes). Minha tia Beta, por me ouvir tantas vezes, em altos e baixos. Meu pai, Geraldo, que sei que se orgulha muito de mim. Às minhas amigas, mais que especiais, Ghislaine e Fabíola, irmãs que a vida me deu. A todos os amigos que, de alguma forma, contribuíram para meu crescimento, tanto intelectual quanto pessoal. Giovannia Elaine 6 AGRADECIMENTOS A Deus, “Porque nele eu vivo, nele eu movo e nele eu existo” Ao meu esposo, pela compreensão, carinho, atenção e amor que me dedicou durante todo período acadêmico e, principalmente, durante a produção do TCC. Aos meus pais e a minha irmã, por compreenderem minha ausência durante esta fase do curso e pelo grande amor que me dedicam. À professora Ana Santana, que nos fez conhecer o livro Úrsula e a temática da literatura afro-brasileira. À minha orientadora Luciana Medeiros Lucena, pela atenção e por ter acreditado em nosso projeto desde o início. À minha amiguinha Giovannia Elaine, por termos juntas desempenhado um trabalho tão bom de escrever e pesquisar. A todos os meus professores, que me transmitiram tantos conhecimentos relevantes neste período de graduação. E a todos que direta ou indiretamente cooperaram para que o meu sonho se tornasse realidade. Às vezes são pequenos gestos ou palavras que fazem a diferença quando estamos em um momento tão importante da nossa vida, que é a nossa formação acadêmica, e principalmente durante o processo de escrita do nosso TCC. Meus sinceros agradecimentos e que Deus abençoe a todos. Nayanne Kateline 7 A literatura nos oferece a oportunidade de apreensão de um imaginário construído acerca do sujeito negro na sociedade brasileira. Mesmo como fenômeno específico, percebemos um discurso literário que, coincidentemente, ao construir seus personagens negros, o faz sob a mesma ótica do pensamento e das relações raciais brasileiras, do Brasil colônia à contemporaneidade. Conceição Evaristo 8 RESUMO O presente estudo, a subversão do imaginário literário e histórico-social no romance Úrsula, de Maria Firmina dos reis, é uma análise do livro Úrsula, publicado em 1859. Nesse estudo, será abordada a subversão do imaginário literário e histórico-social presente na obra, em que a autora utiliza uma abordagem intimista e comprometida sobre a condição do negro, em nosso país, no século XIX. Por meio de pesquisas bibliográficas, foi possível identificar que na literatura, especificamente do século XIX, no Brasil, o imaginário histórico-social presente era o dos negros bestializados, sensualizados, marginalizados e desprezados, reflexo da sociedade burguesa e escravocrata, da qual fazia parte a maioria dos escritores brasileiros. No decurso da análise, serão apresentados o debate e a comparação da representação do negro nesse romance com a representação do negro implícita nos romances do mesmo período. Em contrapartida, será mostrado o posicionamento antiescravista da autora, bem como o seu lugar na literatura afro-brasileira. Para isso, tomaremos como embasamento teórico principal os estudos de Eduardo de Assis Duarte (2011) e Algemira de Macedo Mendes (2006). Desse modo, percebe-se que a história não foge das representações românticas do período, no entanto, a subversão do imaginário literário e histórico-social no romance ocorre de maneira sutil nas falas das personagens negras e na maneira como essas mesmas personagens são caracterizadas e se portam na história. Palavras-chave: Subversão. Imaginário literário e histórico-social. Literatura afro- brasileira. 9 ABSTRACT The present study, the subversion of the imaginary literary and socio-historical novel Ursula, Maria Firmina dos Reis, and an analysis of the book Ursula which was published in 1859. In this study will be focused on the subversion of the imaginary literary and socio-historical present in the work, in which the author uses an intimate and committed approach on the condition of thenegro in our country in the nineteenth century. Via bibliographical researches literature, it was identified, specifically in the century XIX, in Brazil, the historical-social imaginary present was of blacks disgusted, outcast and despised, as result of a bourgeois and slavery society, from where were most of the Brazilian writers. In the course of the analysis, were showed a discussion and made a comparison of the representation of the negro in this novel with the implicit representation of the black novels from the same period. In contrast, will be shown the antislavery positioning of the author, as well as her place in the Afro-Brazilian literature. For this, we have as theoretical foundation Eduardo de Assis Duarte (2011) and Algemira de Macedo Mendes (2006) studies. In this sense, it was seen this story does not escape from the representations of the romantic period, however, the subversion of the imaginary literary and the historical- social aspects in this novel reveal author’s position into the subtle in the discourse of black characters, their appearance and behavior. Keywords: Subversion. Imaginary and social-historic literacy. Afro-Brazilian literature. 10 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 10 2 UM ROMANCE INTIMISTA ............................................................................... 12 2.1 ENREDO ...........................................................................................................13 2.2 O ROMANCE ÚRSULA E SUAS VERTENTES .............................................. 19 3 A SUBVERSÃO DO IMAGINÁRIO LITERÁRIO ................................................ 21 3.1 A VISÃO LIBERTADORA DAS PALAVRAS ................................................. 24 3.2 LIBERDADE SUPRIMIDA DE CONCEITOS................................................. 33 4 HISTÓRIA DE UM PAÍS ESCRAVO .................................................................. 37 4.1 O SOCIAL E O LITERÁRIO DO SÉCULO XIX ............................................. 41 4.1.1 A educação ................................................................................................. 41 4.1.2 A literatura .................................................................................................. 44 4.1.3 O Maranhão ................................................................................................. 48 4.2 MÃOS ATADAS, PENSAMENTOS SOLTOS .................................................. 53 4.2 ESCRAVIDÃO E RELIGIÃO ......................................................................... 58 4.3.1 Escravidão ................................................................................................... 58 4.3.2 Religião ........................................................................................................ 66 5. MARIA FIRMINA NA LITERATURA AFRO-BRASILEIRA ............................... 72 5.1 A TEMÁTICA ................................................................................................... 74 5.2 A AUTORIA ..................................................................................................... 75 5.3 O PONTO DE VISTA ...................................................................................... 76 5.4 A LINGUAGEM ............................................................................................... 78 5.5 O PÚBLICO ..................................................................................................... 79 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 81 REFERÊNCIAS 11 1 INTRODUÇÃO A literatura não é um fiel retrato da sociedade em que é produzida. Apesar disso, o discurso literário não fica imune ao meio em que foi criado. Sendo assim, é possível perceber presente na literatura brasileira a imagem do negro construída com características estereotipadas, animalescas e que são, nitidamente, reflexo da sociedade escravocrata do século XIX. Diferentemente do que acontecia nos romances publicados no mesmo período, o romance Úrsula, escrito por Maria Firmina dos Reis no século XIX, dá uma abordagem diferenciada em sua obra em relação ao negro colocando-o em igualdade com o branco e abordando também a questão da escravidão vivida à época. Ou seja, ela subverte o que havia presente na literatura de seus contemporâneos. A subversão do imaginário literário e histórico-social presente no romance Úrsula, tema desse estudo, é perceptível a partir de uma leitura mais acurada e crítica do romance citado, o qual trata de uma trágica história de amor entre dois jovens: a pura e simples Úrsula e o nobre bacharel Tancredo. Nessa obra, o que dá o tom de subversão são pequenos detalhes que fazem a diferença no romance. De maneira sutilizada pela autora, a subversão está nas falas das personagens negras (preta Susana, Túlio e Antero) e na maneira como elas mesmas são caracterizadas e se portam na história. Este estudo, dentro do tema proposto, tem como objetivos destacar o posicionamento da autora em relação à instituição escravidão, e isso em plena sociedade escravocrata, machista e preconceituosa. Para isso, será descrito o imaginário construído acerca do negro, na sociedade do século XIX, e que estava implícito na literatura. Serão citadas ainda as características que diferem Úrsula dos demais romances do período. Desse modo, será reafirmada a importância do romance para a literatura afro-brasileira. O estudo, de caráter teórico, foi feito através de uma leitura minuciosa da obra, o romance Úrsula. Foram lidos, ainda, além do romance objeto deste estudo, os livros As vítimas-algozes – Quadros da escravidão (1869) de Joaquim Manoel de Macedo e A escrava Isaura (1875) de Bernardo Guimarães, publicados no mesmo período de Úrsula, os quais serviram como paralelo para a análise. 12 Para desenvolver o estudo do tema proposto, realizou-se um levantamento bibliográfico de fontes, críticas, artigos sobre a autora e o romance em questão. Em especial, os estudos de Eduardo de Assis Duarte (2011) que trouxerem à lume a autora e suas obras que ficaram por muito tempo silenciadas. O presente estudo está divido da seguinte forma: os capítulos 2 e 3 são dedicados à análise direta do romance em seus detalhes e peculiaridades que o fazem diferenciar-se entre os do mesmo período. No capítulo 4, serão explanados os aspectos histórico, social e literário do Brasil do século XIX, situando também a escravidão e a religião do período, como também estabelecendo uma ligação com o Maranhão da época. O capítulo 5 trará uma abordagem da definição da literatura afro-brasileira e o lugar em que Maria Firmina dos Reis se insere. 13 2 UM ROMANCE INTIMISTA “O romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, insere-se na moldura do folhetim do século XIX” (MENDES, 2006, p. 44) e o que se destaca no romance é o contexto da escravidão que segundo Duarte “tematiza o assunto negro a partir de uma perspectiva interna e comprometida politicamente em recuperar e narrar a condição do ser negro em nosso país” (DUARTE apud ALBERTO, 2009, p. 1). Mesmo assim a obra passou por um longo período de invisibilidade e só em 1975 veio a público através da edição fac-similar preparada por Horácio de Almeida. Antes de ser abordado o romance, será tratada a biografia da autora para entendermos em quecondições ela escreveu a obra. Maria Firmina dos Reis nasceu em 11 de outubro de 1825, no bairro de São Pantaleão, na Ilha de São Luís, capital da província do Maranhão. Filha de João Pedro Esteves e Leonor Felipa dos Reis, ficou órfã de mãe e não conheceu o pai. Era extremamente pobre e era parente distante do escritor maranhense Francisco Sotero dos Reis, por parte de mãe, “a quem deve sua cultura, como afirma em diversos poemas” (LOBO apud DUARTE, 2004, p. 265-266). Menina bastarda e mulata vivendo em um contexto de extrema segregação racial e social, aos cinco anos teve de se mudar para a vila de São José de Guimarães, no município de Viamão. Viveu grande parte da vida com uma tia materna mais abastada. Autodidata, sua instrução fez-se por meio de muitas leituras – lia e escrevia francês fluentemente. Exerceu a profissão de professora primária, tendo sido aprovada em primeiro lugar para a vaga do concurso público estadual em 1847 para mestra régia. Aposentou-se em 1881. Um ano antes da aposentadoria, fundou a primeira escola mista no Maranhão, tendo esta funcionado até 1890. Além disso, a escritora foi presença constante na imprensa local, publicando poesias, ficção, crônicas e até enigmas e charadas. Também criou o Hino à libertação dos escravos. Trouxe a público dois romances: Gupeva, em 1861, de temática indianista, e Úrsula, em 1859, no qual aborda a escravidão a partir do ponto de vista do outro. Solteira, cega e pobre, faleceu em 11 de novembro de 1917, aos 92 anos, na companhia de Leude Guimarães, um de seus filhos de criação. Voltando ao romance Úrsula, o tempo e o espaço são indeterminados, porém a história está contextualizada no ambiente rural do Maranhão e se passa à 14 época em que foi escrita e publicada, 1859. Também há um capítulo (XV) que se passa em um convento, provavelmente na capital, já que o nome e a localização são suprimidos pela autora, identificando-o apenas como Convento de ***1. A técnica utilizada para a construção do romance é a de encaixe de narrativas, nas quais as personagens contam suas vidas. A narrativa é em terceira pessoa, o narrador é um observador que se posiciona com intenções oniscientes. As personagens são: 1º grupo: Úrsula e Tancredo de***, protagonistas; Fernando P... (o comendador), antagonista; 2º grupo – secundários: Túlio, Susana e Antero, os negros escravos; Luísa B..., mãe de Úrsula; os pais de Tancredo; Adelaide, ex-noiva de Tancredo; e o padre F..., capelão da fazenda de Fernando P.... O ponto de vista é declaradamente antiescravista, apoiado enfaticamente nos conceitos religiosos e amenizado no discurso social. A obra é composta por um prólogo, vinte capítulos e epílogo, que serão descritos em resumo a seguir: No Prólogo Maria Firmina dos Reis (2004, p. 13) diz que seu romance é “mesquinho e humilde” e “que passará entre o indiferentismo glacial de uns e o riso mofador de outros, e ainda assim o dou a lume”, nota-se que ela reconhece a sua condição de mulher, vista como inferior ao homem e, por isso, o seu livro poderia ser desprezado, mas com essa atitude de humildade espera ter seu romance aceito. 2.1 ENREDO O primeiro capítulo é intitulado “Duas almas generosas”, no qual o narrador descreve o universo da narrativa e apresenta as personagens Tancredo e Túlio. Tancredo sofre uma grave queda de cavalo e ali fica desacordado até que “nesse comenos alguém despontou longe [...] porque seus passos para ali se dirigiam, como se a Providência os guiasse!” (REIS, 2004, p. 21). Este alguém era Túlio, o jovem escravo que fica comovido com a situação do cavaleiro e ajuda-o a recobrar 1 No romance Úrsula, a autora optou por não revelar o sobrenome das personagens, nem dos ambientes. Em vez disso, ela fez uso de reticências (Luisa B..., por exemplo) ou de asteriscos (Convento de ***) para representar esses nomes. Em capítulo posterior, trataremos desse aspecto. 15 os sentidos porque “as almas generosas são sempre irmãs”. Túlio leva Tancredo para a casa de sua senhora (Luísa B..., mãe de Úrsula) e nesse capítulo é apresentada ao leitor a positividade moral do texto, representada nas duas personagens. No segundo capítulo, “O delírio”, Tancredo, já na casa de Luisa B... é acometido por delírios e fala por meio de “palavras entrecortadas, gemidos, e gesticulações desordenadas” sobre Adelaide, ora com amor, ora com ódio, sem deixar claro quem ela é. Ouvindo essas declarações imprecisas, Úrsula fica angustiada porque no seu coração já tinha brotado o amor pelo mancebo. No terceiro capítulo, “A declaração de amor”, Tancredo, aos poucos, recobra as forças e atribui sua melhora aos cuidados do jovem negro e da formosa donzela. Tancredo alforria Túlio e preparava-se para seguir a sua viagem. Angustiada pela futura ausência de Tancredo e Túlio, Úrsula vai para o lugar que ela considera seu refúgio de reflexões e é surpreendida por Tancredo que lhe declara o seu amor e, nesse momento, ela pede explicações sobre quem é Adelaide. Do quarto ao sétimo capítulo, Tancredo conta para Úrsula a história da sua vida até o dia em que sofreu o acidente e conheceu Túlio. Fala que se separou da mãe durante muito tempo para estudar Direito e que no seu retorno conheceu Adelaide (parente de sua mãe), apaixonou-se por ela e quis desposá-la, mas que o seu pai não aceitava a união dos dois. Quando o pai resolveu aceitar o casamento de Tancredo, colocou algumas condições: ele teria de passar um ano longe da sua mãe e de Adelaide e só voltar quando pudesse entregar-lhe uma ordem para assumir a chefia na comarca de***. Tancredo ausenta-se acreditando na promessa do pai de cuidar da sua mãe e de sua amada. Nesse ínterim, seu único alento eram as cartas recebidas de Adelaide que, com o tempo, cessaram de chegar. Tancredo adoece e vai tratar-se em outra cidade e quando volta fica sabendo, por meio de uma carta, que a sua mãe morreu. Quando finalmente chega à sua casa, encontra Adelaide como esposa do seu pai e grande é a fúria de Tancredo contra ele. Foi sobre essa situação que ele estava pensando quando sofreu o acidente no início do livro. No oitavo capítulo, “Luísa B...”, Úrsula e Tancredo contam a Luísa B... que se amam e querem se casar. Ouvindo isso, emocionada, Luísa vai relatar todo o seu infortúnio desde sua relação fraternal com Fernando P... até o seu casamento com Paulo B..., noivo que seu irmão considerou inferior e o matou. Depois disso, 16 comprou as dívidas da família de Luísa para tornar-se proprietário da irmã e da sobrinha. No nono capítulo, “A preta Susana”, Tancredo e Túlio estão com todos os preparativos da viagem prontos. Nesse momento, aparece a velha escrava Susana “que lhe serviu de mãe” e tem uma conversa com o jovem negro sobre o que realmente é ser livre e diz: “Tu, tu livre, ah não me iludas!” (REIS, 2004, p. 114). E é durante essa conversa que é resgatada a narrativa da história de Susana, dos tempos que era livre na África até o dia em que foi capturada pelos “bárbaros” e a sua trajetória do seu país até o Brasil, no “cemitério” cotidiano do porão do navio negreiro. No capítulo X, “A mata”, depois que Tancredo parte com Túlio, Úrsula vai à mata refletir, e ouve um tiro de “arcabuz” disparado bem junto dela e logo depois um homem estranho aparece e fica contemplando sua beleza. Quando tenta ir embora, é abordada pelo caçador que implora: “Em nome de vossa mãe, não fujas, Úrsula” (REIS, 2004, p. 126). Perturbada com aquele homem que sabe seu nome e que ela não conhece, tenta mais uma vez sair dali e ele diz-lhe que a ama.No capítulo XI, “O derradeiro adeus”, Úrsula fica perturbada com o que aconteceu na mata e considera que houve um presságio. Após alguns dias, um escravo vem trazer uma carta de Fernando P... para Luísa B... dizendo que eles iriam se ver e avisa que ele logo chegará. Logo depois, ele chega na casa delas e Úrsula o reconhece como o homem da mata que é também o seu tio. Desesperada pela repulsa e terror que sente por aquele homem que foi o responsável por todo o infortúnio de sua família, incluindo o assassinato de seu pai, ela sai sem rumo e só volta para casa ao ser chamada pela preta Susana avisando que sua mãe está morrendo. No capítulo XII, “Foge”, Luísa pede à filha que fuja. Úrsula conta-lhe que o conheceu na mata, que ele se declarou para ela. Sua mãe diz-lhe que Fernando foi à cidade de*** buscar um sacerdote para realizar a união entre ele e Úrsula. Ela reluta mas sua mãe insiste pra que ela fuja e tema a cólera de Fernando, sobretudo tema e repila seu amor desenfreado e libidinoso. Nesse instante, Luísa B... morre nos braços da filha e na manhã seguinte é enterrada no cemitério Santa Cruz. No capítulo XIII, “O cemitério de Santa Cruz”, Úrsula “desatinada por tantas dores, depois de vagar incerta no caminho que queria seguir” (REIS, 2004, p. 155), 17 chega ao cemitério e de joelhos beija a terra úmida do túmulo em que se encerravam os restos de sua mãe. Não suportando a dor e a saudade, desmaia. É, então, encontrada por Túlio e Tancredo, este a acorda e juntos oram pelo descanso eterno de Luísa B.... No capítulo XIV, “O regresso”, é explicado como Tancredo e Túlio souberam que Úrsula estava no cemitério. Na volta deles, Túlio conta a Tancredo os sofrimentos que ele e sua mãe viveram quando eram escravos de Fernando P..., o comendador, e que seus sofrimentos foram aliviados quando foi morar com Luísa B..., mesmo tendo sido separado de sua mãe biológica. Túlio chora desconsertado, com as lembranças. Ao chegarem à casa de Luísa B..., Susana comunica-lhes da morte da matriarca, da visita do comendador e de suas intenções para com Úrsula, a qual está no cemitério Santa Cruz onde eles a encontram. No capítulo XV, “O convento de ***”, há um retorno ao momento de oração no cemitério para poder prosseguir na narrativa. Úrsula pede para que fujam, Tancredo fica assustado, mas obedece. Eles conversam e ela por alguns instantes esquece seus infortúnios e fica feliz. No alvorecer do dia seguinte, Tancredo leva Úrsula para o convento de Nossa Senhora da ***, na cidade de ***. Lá, pede que as virgens, dedicadas ao Deus do Calvário, cuidem dela até a realização do casamento deles. No capítulo XVI, “O comendador Fernando P...”, aparece logo no início a figura do padre. Fernando retorna da cidade pronto para ser tutor ou marido de sua sobrinha, caso encontrasse Luísa morta. Por isso, passa em sua fazenda e procura o capelão. Não o encontrando, segue na direção da saída, quando o encontra no caminho e recebe a notícia da morte de sua irmã, Luísa B... Diante do exposto, ele sai desesperado à procura de Úrsula. Chegando à fazenda de sua irmã, encontra a preta Susana, que lhe informa que Úrsula não está, que foi ao cemitério orar. Desesperado, ele segue em direção ao cemitério e não encontrando Úrsula, seu coração se enche de ódio e sentimento de vingança pela velha escrava, que em sua certeza o ludibriou. Desse modo, Fernando retorna a sua fazenda e manda o feitor buscar a escrava Susana. Ele se nega, é demitido e corre para avisar a escrava que fuja. No entanto, ele já a encontra vindo escoltada por dois negros e acompanhada pelo padre. Susana nega-se a fugir justificando que os inocentes não fogem. O comendador providencia o cativeiro, e a escrava em menos de dez minutos chega. 18 Por várias vezes o comendador aplica-lhe castigos para que ela revele o paradeiro de Úrsula, mas todas as vezes ela nega veementemente, nem mesmo quando acorrentada a pão e água, preferia morrer a denunciar sua senhora. No entanto, um dos escravos chega e revela ao comendador o paradeiro de Úrsula. Ele lança seu ódio sobre a velha escrava e, apesar de o padre tentar interceder por Susana, não é ouvido e é repreendido por Fernando que vocifera palavras de ódio e vingança a Úrsula. No capítulo XVII, “Túlio”, são narrados os últimos momentos que antecedem a cerimônia de casamento de Tancredo e Úrsula e a captura de Túlio pelos escravos do comendador. Antes de Tancredo ir ao encontro de Úrsula, para que no convento de *** seja realizado o casamento, procura Túlio e não o encontra, o que o deixa surpreso. Ele manda procurá-lo e, não o encontrando, segue com amigos para o convento. No convento, o jovem advogado fica emocionado ao ver sua noiva acompanhada pelas jovens religiosas, trajando “um simples vestido de seda preto”. Enquanto a cerimônia se realizava, Túlio sofria com os castigos do comendador para descobrir a verdade sobre Úrsula e Tancredo, sempre vigiado por um velho escravo, de nome Antero, responsável por qualquer tentativa de fuga de Túlio. Por fim, o sacerdote dá a bênção, e o casal recebe as felicitações dos amigos que os acompanharam. No capítulo XVIII, “A dedicação”, Antero, escravo do comendador, cuida da vigilância de Túlio, em uma casa abandonada, cumprindo fielmente as ordens de seu senhor. Túlio, em sua prisão, porta-se com certa resignação. Muito abatido, sofre com os maus tratos, pensa todo o tempo em seus amigos e em como fugir dali. Na ocasião, Antero reclama da secura da garganta, Túlio, aproveitando a saída do comendador, oferece dinheiro ao velho para comprar bebida. Antero aceita, compra a cachaça e passa a beber freneticamente, cai ao chão e Túlio, antes de fugir, prepara um estratagema para o velho escravo não ser culpado por sua fuga. Túlio, já livre, corre ao encontro dos noivos e de longe avista um coche que está partindo a trote largo, e outro, parado. Por isso, ele corre para que dê tempo de avisar aos noivos, porém, ao aproximar-se, é atingido por dois tiros. Nesse instante, Tancredo sai ao encontro de Túlio e é cercado pelo bando do comendador, Úrsula ainda grita, pedindo clemência ao tio e desmaia. Após essa cena de súplica, cai aos pés de Fernando. Tancredo, vendo a esposa desmaiada aos pés do comendador, abaixa-se, toma-a em seus braços e a beija pela última vez. Fernando 19 sente-se afrontado, os dois brigam e o comendador crava-lhe no peito um punhal. Úrsula, ao despertar, joga-se sobre seu amado e ouve-lhe o último suspiro. No capítulo XIX, “O despertar”, Fernando P... já não sabe mais o que sente, pois parece que seu amor perdera-se e ele já não sonhava com vingança. Após algumas noites do ocorrido, Úrsula dorme um sono agitado, nem a dor, que despedaça sua alma a tinha arrancado desse doloroso torpor. O comendador a contempla, ajoelhado ao pé de sua cama, numa atitude de desespero, mas a adora como uma santa, sem tocá-la. Ele tenta acordá-la. Ela abre os olhos e solta um grito fulminante que o faz estremecer de angústia. Com isso, Fernando P... reconhece que estava sendo punido, pois a presença e o estado mental de Úrsula o matavam aos poucos. No capítulo XX, “A louca”, o sacerdote faz uma retrospectiva dos crimes que o comendador cometera. Fernando P... ouve cabisbaixo e só reage quando o padre o aconselha. Pede ao sacerdote que o leve até o quarto da donzela, mas, no limiar da porta, não se atreve a entrar. Úrsula sorri debilmente. Com a cena, Fernando P... fecha os olhos, agarrando-se à porta para não cair. Úrsula repetia palavras insistentemente. Assim passou seus últimos instantes, sempre falando com Tancredo comose ele ali estivesse ou repetindo as últimas palavras ditas ao comendador antes de Tancredo morrer. O sacerdote acena para o comendador, que assiste a tudo imóvel e pálido, e pede que se ajoelhem aos pés da infeliz louca, que entregava a alma ao criador. Úrsula, no transe eterno, cruza as mãos sobre o peito, suspira e morre. No Epílogo, dois anos se passaram dos acontecimentos narrados. Na província, ninguém lembra mais das mortes e atrocidades cometidas por Fernando P... O único que poderia testemunhar calou-se. Sabe-se que o comendador Fernando P. termina seus dias em um convento de Carmelitas, sem que ninguém conhecesse seu passado. Adota o nome de Frei Luis de Santa Úrsula e, somente na hora da extrema-unção, revela a sua identidade. No delírio de morte, pede perdão de seus pecados. Igual fim tem Adelaide, mesmo tendo casado novamente após a morte de seu marido, vive infeliz e tomada pela culpa. 2.2 O ROMANCE ÚRSULA E SUAS VERTENTES 20 Para fins desta pesquisa, realizou-se um levantamento bibliográfico de fontes – críticas e análises sobre o romance e a autora em estudo –, documentos em bibliotecas, arquivos públicos e acervos eletrônicos. Desse modo, foram encontrados diversos artigos científicos, publicações em anais de congressos e encontros, publicações em revistas, dissertações de mestrado e tese de doutorado. Nesse sentido, as investigações e análises feitas que tematizam o romance e/ou a autora dirigem-se para diversos aspectos: a imagem do negro; a construção do negro; a figura da preta Susana; gênero, representação e literatura; história; estética e ideologia; gênero e etnicidade; afro-brasilidade; abolicionismo. As primeiras publicações de estudos a respeito do romance e da autora só começaram a ser feitos e publicados praticamente dois séculos depois de sua publicação, já nos anos 2000. Isso por causa da invisibilidade em que a obra esteve durante muitos anos, e somente após a recuperação da obra da escritora, em 1973, em pesquisas de José Nascimento Moraes Filho e com a publicação da edição fac- similar de Úrsula em 1975, preparada por Horácio de Almeida, é que Maria Firmina e seu romance Úrsula começaram a ser objetos de estudo de alguns pesquisadores. Um dos estudiosos que deu e dá maior visibilidade a Maria Firmina e sua obra é o pesquisador, professor aposentado da UFMG, Dr. Eduardo de Assis Duarte que, mantendo vínculo voluntário com a UFMG, atua como professor colaborador do Programa de Pós-graduação em Letras e coordena o grupo de pesquisa Afrodescendências na Literatura Brasileira (CNPq2) e o literafro, Portal da Literatura Afro-brasileira, com informações biobibliográficas, críticas e excertos de mais de 100 autores, entre eles, Maria Firmina dos Reis. No artigo de Eduardo de Assis Duarte (2004) – Maria Firmina dos Reis e os primórdios da ficção Afro-brasileira –, ele traz uma análise do livro Úrsula, no qual prevalece a afirmação de que pela primeira vez na literatura brasileira há a voz dos escravizados no discurso do outro. Desse modo, ele qualifica Úrsula como uma desconstrução, não apenas da primazia do abolicionismo branco, masculino e senhorial, mas também como “o primeiro romance abolicionista da literatura brasileira”, e como “o primeiro romance da literatura afro-brasileira” (DUARTE, 2004, p. 279), já que Maria Firmina é afrodescendente. Ele mostra ainda como o romance 2 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. 21 tematiza o assunto negro a partir de uma perspectiva interna em que mostra verdadeiramente a condição do negro em nosso país. As colocações de Eduardo de Assis Duarte são comprovadas com uma leitura mais acurada do romance, já que muitas das ideias que ele atesta não são perceptíveis em uma primeira leitura. No artigo de Algemira de Macedo Mendes (2008) – Maria Firmina dos Reis: um marco na literatura afro-brasileira do século XIX – a autora faz um breve passeio sobre a literatura maranhense antes de Maria Firmina e analisa Úrsula, mostrando que os escritos, às vezes ultrarromânticos, característica do estilo da época em que Maria Firmina viveu, considerados, à primeira vista, tolos e açucarados, mencionam assuntos negados por seus contemporâneos e revela a veia abolicionista articulada com o contexto das relações econômicas, sociais e culturais da época. A articulação a que Algemira de Macedo Mendes se refere é a postura política abolicionista em defesa dos escravos em contraponto ao posicionamento passivo da sociedade ante a escravidão. O que fica mais uma vez reafirmada é a representação real de afro-brasileiros conscientes de sua condição enquanto indivíduo, já que à época esse direto lhes era negado. Atualmente, a obra instiga diversas áreas de estudo, pois trata de temas como a escravidão, a mulher afrodescendente, o sistema escravocrata brasileiro, propiciando um leque de temas. Por ter tratado tantos assuntos diferentes em sua obra, e de um ponto de vista diferente de seus contemporâneos, e pelos anos de silêncio literário em que a obra e a autora ficaram envoltas, ainda há muito que ser investigado e estudado. 22 3 A SUBVERSÃO DO IMAGINÁRIO LITERÁRIO Um romance brasileiro, no ano de 1859, escrito por uma mulher aos 35 anos, autoditada, professora, mulata, pobre, maranhense cujo enredo do livro tratava sobre a história de um casal apaixonado vivendo numa sociedade aristocrata que se utilizava do trabalho escravo para realizações de diversas atividades pesadas. Esses mesmos escravos não eram vistos, pela grande parte da população, como seres humanos, mas, no romance, tiveram a oportunidade de se expressar. Desse modo, a autora traz uma contribuição inovadora para a época. Entretanto, a denúncia de Maria Firmina talvez não tenha sido percebida pelos seus leitores na época, embora o lançamento do seu livro tenha uma certa importância para a sociedade local, inclusive a imprensa da época fez menção, como podemos constatar por meio do jornal A moderação, de 11 de agosto de 1860, o qual trazia a seguinte notícia: Úrsula – Acha-se à venda na Tipografia do progresso, este romance original brasileiro, produção da exma. Sra. D. Maria Firmina dos Reis, professora pública em Guimarães. Saudamos a nossa comprovinciana pelo seu ensaio que revela de sua parte bastante ilustração; e, com mais vagar emitiremos a nossa opinião, que desde já afiançamos não será desfavorável à nossa distinta comprovinciana ( MORAIS FILHO apud MENDES, 2006, p. 39). A “visibilidade” (já que na época o maior meio de comunicação era a imprensa escrita, ou seja, o jornal) que o romance firminiano obteve no período de sua publicação não se prolongou muito, tendo em vista que o livro Úrsula ficou na escuridão até o ano de 1975, quando Horácio de Almeida preparou a edição fac- similar. Portanto, mesmo a imprensa local noticiando, para alguns leitores, e indicando onde se achava à venda, o romance era apenas mais um sobre uma história de amor que não teve um final feliz. Foi com ousadia que Maria Firmina dos Reis escreveu esse romance numa sociedade machista, aristocrática, preconceituosa e conservadora no estado do Maranhão, porém, ainda assim, no prólogo do livro ela demonstra que é conhecedora da situação inferior na qual as mulheres viviam e diz: “Sei que pouco vale este romance, porque escrito por mulher e mulher brasileira” (REIS, 2004, p.13), de modo que o trouxe a lume e não se intimidou por ser de educação humilde. 23 Se Firmina foi corajosa ao escrever seuromance, caberia também ao seu público leitor entender as críticas contra o regime da escravidão que tem grande destaque no livro, porque a história de amor entre a pura e inocente Úrsula e o bacharel Tancredo é apenas o pano de fundo da narrativa que na verdade quer evidenciar os sofrimentos e amarguras dos escravos, dando-lhes vez de falarem e serem vistos como seres humanos. Entende-se, então, que o romance Úrsula deve ser lido observando as entrelinhas. Entretanto, quem seria o público leitor de romances na época da publicação de Úrsula que é considerado o primeiro livro escrito por mulher no Brasil? O romance romântico brasileiro dirigia-se a um público mais restrito do que o atual: eram moços e moças provindos das classes altas, e, excepcionalmente, médias; eram profissionais liberais da corte ou dispersos pelas províncias: eram, enfim, um tipo de leitor à procura de entretenimento, que não percebia muito bem a diferença de grau entre um Macedo e um Alencar urbano (BOSI, 1994, p.128). Portanto, eram essas as pessoas que iriam ler um romance escrito por uma mulher que aparentemente era adocicado e romanesco como os demais, mas que tinha imbuído em suas páginas um discurso abolicionista que criticava fortemente a forma como a sociedade estava articulada naquela época. Contudo, o trecho acima diz que esses leitores estavam em busca de entretenimento e, por isso, não estavam muito atentos às denúncias presentes nas entrelinhas do livro, ou seja, não percebiam que a linda história de amor que não teve final feliz era apenas um pretexto para que o assunto de maior importância do livro, que eram as ideias abolicionistas, viesse à tona e fosse abordado sem causar tanta estranheza. Conhecendo a estrutura da sociedade do seu tempo em que o negro não era visto como ser humano, que tinha terra natal, família, história, cultura e sentimentos, que a sociedade escravocrata e patriarcal o concebia apenas como animal capaz apenas de fazer serviços braçais e pesados, Maria Firmina resolveu dar voz aos desprezados e oprimidos em Úrsula e permitiu que eles falassem das suas angústias e sofrimentos no desenrolar do romance. Maria Firmina permite ainda que os escravos, vistos até então só como vítimas de um sistema opressor, dominante e agressivo, contem suas memórias de uma época em que podiam gozar a liberdade no seu país e que foram felizes com a sua família (caso da preta Susana, capítulo IX); lembrem-se de forma nostálgica da 24 África, onde a festa do fetiche permitia que durante um dia na semana não se trabalhasse, sendo um dia apenas de diversão em que brincavam e bebiam, (como fala Antero) (REIS, 2004). E ainda Firmina coloca como parâmetro de elevação moral o jovem escravo Túlio, que tem sua liberdade comprada por Tancredo depois de salvá-lo, mas que recebeu de Susana conselhos em que ele não seria livre num país em que os negros eram escravos. A subversão de valores e do imaginário literário presente no romance Úrsula é que os negros são vistos na obra como pessoas portadoras de sentimentos e emoções, capazes de expressarem suas vontades e principalmente os escravos em destaque (Antero, Túlio e Susana) estão totalmente fora dos estereótipos vistos na literatura da mesma época. Nesse sentido, o que Maria Firmina faz é deixar que a África apareça como o lugar em que eles foram capturados e também como seu lugar de origem. Há neles uma reivindicação estética e outra ideológica de visibilidade literária, humana e social. Muito diferentemente das narrativas tradicionais que abordaram o negro no século XIX no Brasil, no romance Úrsula há originalidade expressiva, por eles (os negros) aparecerem ligados à identidade africana e não apenas como mercadoria ou escravo sofredor das imposições escravocratas (NASCIMENTO, 2009, p. 105). A escritora é original e arrojada ao subverter a imagem construída sobre o negro ao longo dos anos no Brasil e apresentá-lo de uma forma diferente da que era usual na época. A citação acima é bem clara a respeito da ideia da identidade africana, o que foi um fato inovador. Desse modo, o negro foi retratado como afrodescendente e visto também pelas suas particularidades, individualidades como ser humano que tem valores morais, espirituais, afetivos e que não é animalesco, e que não foi criado exclusivamente para a escravidão. Primorosamente, a autora contextualiza a questão da África, a forma como foram capturados brutalmente e a maneira como eram felizes antes de serem escravos no Brasil. Esses detalhes não eram vistos nas produções literárias brasileiras desse período. Interessante mesmo é a questão do local de origem da África visto como lugar onde eram felizes e aqui, no Brasil, para eles, era sinônimo de frustração, amarguras e tristezas. O escravo, para Maria Firmina dos Reis, possui individualidade, não é passivo diante da escravidão, mas argumenta contra ela e tem coragem para falar 25 que só na África conheceu a liberdade e lembra-se da sua terra natal com saudosismo e nostalgia. Por meio de sua obra, Firmina conseguiu superar todas as barreiras que existiam na sociedade estratificada à qual pertencia, entre homens e mulheres, brancos e negros, pobres e ricos, legítimos e bastardos, livres e escravos, dominador e dominado, e assim fazer com que o seu discurso abolicionista fosse ouvido e assim vê, depois de alguns anos, a concretização dele com a abolição dos escravos em decorrência da lei Áurea, em 13 de maio de 1888, porque como está escrito “dia virá em que os homens reconheçam que são todos iguais” (REIS, 2004, p. 28). 3.1 A VISÃO LIBERTADORA DAS PALAVRAS Encontramos a definição de palavra como “manifestação verbal ou escrita; faculdade de expressar ideias por meio de sons articulados” (FERREIRA, 2000, p. 509). Ao longo da História, muitas pessoas utilizaram a palavra como instrumento de divulgação, manifestação e expressão de ideais. Com Maria Firmina dos Reis não foi diferente, ela utilizou as palavras, em um discurso sutil, para manifestar na escrita as suas ideias e expressar a sua visão quanto à escravidão. Nessa perspectiva, escreveu um romance em que não há peripécias no enredo e que a sua heroína Úrsula não é diferente das outras heroínas dos romances do século XIX, pois ela é descrita com o ideal de beleza das moças do período romântico e “enlouquece em consequência das atrocidades que sofre: é raptada após assistir o assassinato do noivo à porta da igreja” (ZOLIN, 2009, p. 231). A própria autora apresenta as seguintes características de Úrsula: Úrsula, a mimosa filha de Luíza B..., [...] Bela como o primeiro raio de sol [...] Era ela tão caridosa... tão bela... e tanta compaixão lhe inspirava o sofrimento alheio, que lágrimas de tristeza e de sincero pesar se lhe escaparam dos olhos, negros, formosos, e melancólicos. [...] Úrsula era ingênua e singela em todas as suas ações (REIS, 2004, p. 32-33). 26 Seguindo o padrão das obras do período e mesmo não diferindo no tema em relação a outros romances, essa história serviu como pano de fundo para que a autora apontasse: “[...] o caminho do romance romântico como atitude política de denúncia de injustiças há séculos presentes na sociedade patriarcal brasileira e que tinha no escravo, no índio e na mulher suas principais vítimas” (MENDES, 2006, p. 44). Nesse sentido, só se pode entender que atitude política de denúncia e injustiças há no romance de Maria Firmina, em especial relacionada ao escravo, quando se estabelece uma relação com o período Histórico que o Brasil vivia. E, segundo Figueira (2005), a escravidão no Brasil começou após a chegada deCabral, em que portugueses e franceses escravizaram o nativo (o índio) e, paralela a esta, a escravidão dos negros com a vinda dos africanos a partir de 1550. Em 1570, a Coroa proibiu a escravização dos índios, os quais também contavam com a proteção dos jesuítas que tencionavam catequizá-los. Então os colonizadores passaram a recorrer cada vez mais à mão de obra africana. Foi no decorrer do século XVI, com a colonização da América, que o tráfico tornou-se mais intenso, e a partir do ano de 1570 chegavam cerca de dois mil cativos africanos à colônia portuguesa por ano. Com a conquista da América, o tráfico negreiro através do Atlântico chegaria a 11.313.000 escravos, entre os séculos XVI e XIX. Em 1859, ano de publicação do romance Úrsula, o Brasil vivia ainda o período da escravidão, que só seria abolida em 13 de maio de 1888 com a assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel. Nessa década, o Brasil passava por um período de crescimento e modernização e mesmo assim ainda se mantinha como exceção no mundo, junto a Cuba e Porto Rico, manchando a sua História com a cadeia da escravidão. Dentro desse cenário social e político brasileiro foi que Maria Firmina dos Reis escreveu o seu romance romântico e desenvolveu o seu enredo. É no desenrolar da história de Firmina que vemos como as palavras libertaram o negro escravo, dentro do romance, da visão estereotipada da época. Nessa obra, a autora dá às personagens negras corpo e voz, diferentemente de outros romances do período, ela individualiza e não os estereotipa, não os coloca como escravos em geral, apenas vítimas da escravidão e por ela marginalizadas. Elas são movimentadas mais do ponto de vista externo, mas em alguns momentos 27 expressam atitudes e sentimentos marcantes, como a narração da velha preta Susana (REIS, 2004, capítulo IX, p. 111 a 119), em que a personagem expressa sentimentos internos profundos de tristeza e saudades da África. Quanto aos exemplos da postura de falar dos escravos, em geral ou de maneira estereotipada, há em várias obras do período, porém serão aqui abordadas as duas mais conhecidas: As vítimas-algozes – Quadros da escravidão (1869) de Joaquim Manoel de Macedo (1820-1881) e A escrava Isaura (1875) de Bernardo Guimarães (1825-1884). Em As vítimas-algozes, na introdução, o autor fala da escravidão como “árvore venenosa plantada no Brasil pelos primeiros colonizadores, fonte de desmoralização, de vícios e de crimes” (MACEDO, 2010, p. 17), e já coloca a condição do escravo como desmoralizado, viciado e criminoso, retratando os negros de maneira estereotipada e marginalizando-os, como no trecho do capítulo VIII da história Simeão, o crioulo3, primeira do livro: Mas no entanto Simeão era mais do que nunca ingrato e perverso. Não condeneis o crioulo; condenai a escravidão. O crioulo pode ser bom, há de ser bom amamentado, educado, regenerado pela liberdade. O escravo é necessariamente mau e inimigo de seu senhor. A madre-fera escravidão faz perversos, e vos cerca de inimigos (MACEDO, 2010, p. 40, grifos nossos). O negro é colocado pelo autor como era visto pelo branco burguês, racista e escravocrata da sociedade do século XIX: por ser escravo é perverso, ingrato, degenerado, brutal, corrupto, dado aos vícios e a embriaguez, desavergonhado nas palavras e nas ações, características de um “perfeito escravo” (MACEDO, 2010, p. 33). Ainda que em alguns trechos do livro o autor realmente humanize o negro, na maior parte das histórias está presente a depreciação da imagem deste, até involuntária ou inconscientemente, e a visão branco-burguesa-escravocrata. Macedo (2010) não se limita a essas descrições citadas acima, de cunho preconceituoso e racista, embora ele cresse que estivesse sendo ativamente antiescravista. Na conclusão da primeira história, Simeão, o crioulo, ele diz: Pois eu vos digo que Simeão, se não fosse escravo, poderia não ter sido nem ingrato, nem perverso. [...] Entre os escravos a ingratidão e a perversidade fazem a regra; e o que não é ingrato nem perverso 3 Crioulos, chamavam aos afrodescendentes nascidos na América e chamavam negros aos nascidos na África. 28 entra apenas na exceção. [...] E a escravidão degrada, deprava, e torna o homem capaz dos mais medonhos crimes. [...] Se quereis matar Simeão, acabar com Simeão, matai a mãe do crime, acabai com a escravidão (MACEDO, 2010, p. 74, grifos nossos). Macedo enfatiza, assim, nas entrelinhas, que nem ele percebeu a maldade e ingratidão crônicas presentes no homem negro, como os brancos escravistas assim acreditavam. Na segunda e terceira histórias, Macedo (2010) continua a desfiar o seu terço de preconceitos da visão do homem branco e escravista. Na segunda história, Pai-Raiol, o feiticeiro, ele diz: “o feitiço, como a sífilis, veio d’África” (MACEDO, 2010, p. 78) e prossegue: E sempre que puserdes a mão em um desses feiticeiros, encontrareis nele um negro escravo... ou algum seu iniciado. E tomai sentido e precauções: o escravo, não nos cansaremos de repetir, é antes de tudo natural inimigo de seu senhor; e o escravo que é feiticeiro, sabe matar (MACEDO, 2010, p. 83). O autor, na tentativa de um discurso antiescravista, permanece nessa visão racista e, na terceira história, Lucinda, a mucama, ele diz que “a escravidão influi sempre de perto ou de longe maleficamente sobre a vida das donzelas, perturbando e envenenando a educação dessas pobres vítimas” (MACEDO, 2010, p. 161). E para descrever que influência maléfica é essa, ele detalha o convívio da mucama com a senhora-moça: A mucama escrava se recomenda pois à menina, e ganha toda a sua confiança pela importância delicada, e até certo ponto confidencial, do mister que desempenha no toucador4; a mucama, embora escrava, é ainda mais do que o padre confessor e do médico da donzela: porque o padre confessor conhece-lhe apenas a alma, o médico ainda nos casos mais graves de alteração da saúde conhece-lhe imperfeitamente o corpo enfermo, e a mucama conhece- lhe a alma tanto como o padre, e o corpo muito mais do que o médico. [...] Alguns minutos apenas em cada dia, uma escrava, e de sobra uma só, a sua mucama que com uma palavra, o gesto, o elogio, a lisonja, a indiscrição, a petulância, e a protérvia5 dos seus vícios, dos vícios próprios da sua miserável condição de escrava, comprometerá, arruinará o grande empenho do vosso amor, plantará no coração de vossa filha a ciência do mal, muito antes do prazo em que o mundo lha devia ensinar (MACEDO, 2010, p. 161-162). 4 Móvel encimado por um espelho, e que serve a quem se penteia (FERREIRA, 2000, p. 678). 5 Insolência. Ibid. (2000, p. 564) 29 É, portanto, notório como o autor demoniza a mucama, colocando-a como responsável pelos pecados e maldades que a senhora-moça venha a cometer. Ficou evidente, nesses trechos citados das três histórias da obra de Joaquim Manoel de Macedo, que ele “apenas reforça o estereótipo do escravo como um ser despido de humanidade, receptáculo da maldade, da crueldade e da maledicência” (RUFFATO, 2009, p. 12). Já em A escrava Isaura (1875), de Bernardo Guimarães, percebemos que o tema escravidão mobilizou o escritor, porém na tentativa de fazer campanha antiescravista ele criou uma protagonista que é “uma personagem que em tudo seguia o padrão de beleza das heroínas importadas da França” (RUFFATO, 2009, p. 12). A personagem principal, que dá nome ao livro, é descrita da mesma maneira que as jovens idealizadas da sociedade da sua época, bem ao “gosto burguês”: Branca(mesmo sendo filha de uma mulata com um português), de cabelos pretos e ondulados, olhos escuros, linda, ingênua, pura, meiga, de beleza suprema, angelical, de alma nobre, pés e traços mimosos; uma típica “moçoila casadoira”: [...] uma bela e nobre figura de moça. As linhas do perfil desenham distintamente entre o ébano da caixa do piano e as bastas madeixas ainda mais negras do que ele. São tão puras e suaves essas linhas que fascinam os olhos, enlevam a mente, e paralisam toda análise. A tez é como o marfim do teclado, alva que não deslumbra, embaçada por uma nuança delicada, que não sabereis dizer se é leve palidez ou cor-de-rosa desmaiada. O colo donoso e do mais puro lavor sustenta com graça inefável o busto maravilhoso [...] Na fronte calma e lisa como mármore polido, a luz do ocaso esbatia um róseo e suave reflexo (GUIMARÃES, cap. I, p. 9-10). O autor ainda desmerece as outras escravas colocando-as numa posição de inferioridade se comparada à exaltação em alto grau de intensidade em que ele coloca as características físicas e morais de Isaura. Parte disso pode ser também visto no capítulo XII quando Isaura é mandada a fiar e tecer lã e algodão num “salão toscamente construído, sem forro nem assoalho, destinado ao trabalho das escravas” (GUIMARÃES, 2010, p. 41): Cônscia de sua condição, Isaura procurava ser humilde como qualquer outra escrava, porque a despeito de sua rara beleza e dos dotes de seu espírito, os fumos da vaidade não lhe intumesciam o coração, nem turvavam-lhe a luz de seu natural bom senso. Não obstante, porém, toda essa modéstia e humildade transluzia-lhe, 30 mesmo a despeito dela, no olhar, na linguagem e nas maneiras, certa dignidade e orgulho nativo, proveniente talvez da consciência de sua superioridade, e ela sem o querer sobressaía entre as outras, bela e donosa, pela correção e nobreza dos traços fisionômicos e por certa distinção nos gestos e ademanes6. Ninguém diria que era uma escrava, que trabalhava entre as companheiras, e a tomaria antes por uma senhora moça, que, por desenfado, fiava entre as escravas. Parecia a garça-real, alçando o colo garboso e altaneiro, entre uma chusma de pássaros vulgares (GUIMARÃES, 2010, p. 45, grifos nossos). O autor coloca Isaura como garça-real e as outras escravas, negras, crioulas e mulatas, como “chusma de pássaros vulgares”. Isaura chama a atenção em meio as outras justamente pela sua beleza nos padrões branco-burguês. Embora a proposição do autor tivesse sido o discurso antiescravista, ele errou na dose de sua protagonista, exaltando-a demais em suas características totalmente brancas e nobres, em contraposição às características e à origem dos outros escravos, colocadas por ele como “ralés” (GUIMARÃES, 2010, p. 42). Isaura é colocada como vítima, não pela condição de um ser humano escravizado, porém por ser injustamente condenada à escravidão e não poder fazer parte da sociedade, dos saraus, das festas, escondendo seus dotes, não só físicos, mas da educação erudita que recebeu de sua senhora, dando a entender, implicitamente, que se ela fosse negra e sem dotes físicos poderia continuar escrava. A obra citada de Bernardo Guimarães, A escrava Isaura, teve êxito no período de sua publicação justamente por agradar à sociedade da época. Um século depois fez grande sucesso após ganhar uma adaptação para a televisão, no ano de 1976, na Rede Globo, no horário das 18h, tendo como protagonista a atriz Lucélia Santos que, devido ao grande sucesso da personagem Isaura, ganhou muitos prêmios no exterior. O autor da adaptação para a televisão, Gilberto Braga7, afirmou8 que a sugestão para adaptar o romance de Bernardo Guimarães partiu de sua professora de português dos tempos de ginásio e que quando ele leu ficou certo de que aquela história era perfeita para uma novela. 6 Acenos, gestos, sinais. Trejeitos (FERREIRA, 2000, p. 15). 7 Autor de novelas desde 1973, na Rede Globo. 8 Trecho retirado de “No memorial Globo de dramaturgia”. Disponível em <http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,GYN0-5273-224258,00.html>. Acesso em 29 març. 2013. 31 No final de 1985, a novela Escrava Isaura já havia sido vendida a 27 países. Mesmo 40 anos após sua estreia, ainda está na lista das novelas mais comercializadas no exterior; já foi exibida sete vezes na França, cinco na Alemanha e três na Suíça e chegou a países africanos como Congo, Gabão, Gana e Zimbábue. Entre dezembro de 1979 e janeiro de 1980, a novela foi reapresentada num compacto de 30 capítulos, reeditados por Ubiratan Martins. A partir de setembro de 1982, foi ao ar dentro do programa TV Mulher. Em 1990, a reprise de Escrava Isaura encerrou o Festival 25 Anos da TV Globo. Todo esse grande êxito, no Brasil e no exterior, foi responsável pelo sucesso de venda da versão da obra de Bernardo Guimarães para o chinês. As obras descritas acima foram citadas para que seja perceptível a diferença na sutileza das palavras de Maria Firmina dos Reis quando manifesta as suas ideias sem ofender os leitores do século XIX. O narrador porta-se sem radicalismo, buscando a harmonia, mas revelando a situação do escravo como a maior injustiça perante Deus e os homens. Ao ler Úrsula o leitor depara-se com uma tênue diferença que, numa primeira leitura, poderá passar despercebida: a maneira como ela coloca as personagens negras na trama. No romance, as personagens protagonistas são brancas, e as negras são todas secundárias, mas muito significativas, já que através delas são abordadas questões fundamentais, como a problemática da escravidão negra. São as personagens negras e escravas que fazem com que o romance adquira um tom de denúncia, assim como expressa sentimentos de igualdade, fraternidade e liberdade, misturados a resignação e revolta. Enquanto outros autores da literatura do século XIX punham mordaças nas bocas dos negros, Maria Firmina lhes dá voz, para expressarem suas angústias e anseios na terra estranha (MENDES, 2006, p. 98). Ela proclama, dentro de um enredo totalmente receptivo para a época, a sua revolta contra a escravidão. No início do romance, para denunciar a escravidão a autora utiliza-se do discurso do branco que é de cunho religioso: “ama a teu próximo como a ti mesmo –, e deixará de oprimir com tão repreensível injustiça ao seu semelhante!” (REIS, 2004, p. 23). E continua o seu discurso antiescravista através do protagonista Tancredo: [...] dia virá em que os homens reconheçam que são todos iguais. Túlio, meu amigo, avalio a grandeza de dores sem lenitivo, que te borbulha a alma, compreendo a tua amargura... O branco desdenhou a generosidade do negro, e cuspiu sobre a pureza dos seus 32 sentimentos! Sim, acerbo deve ser o seu sofrer, e eles que o não compreendem (REIS, 2004, p. 28). Nessa obra, um branco, nobre, bacharel, coloca-se numa posição de igualdade com um negro escravo chamando-o de meu amigo e reconhecendo a pureza dos sentimentos deste. Em uma atitude surpreendente, ele fala palavras de gratidão, o que poderia não ocorrer na época, já que Tancredo como homem branco e nobre poderia exigir de Túlio, negro e escravo, que ele o ajudasse por obrigação de posição social. Antes disso, o jovem negro escravo, Túlio, respondendo ao questionamento de Tancredo sobre sua condição responde-lhe: “A minha condição é a de mísero escravo! Meu senhor – continuou – não me chameis amigo. Calculaste já, sondaste vós a distância que nos separa? Ah! o escravo é tão infeliz!... tão mesquinha, e rasteira é a sua sorte, [...]” (REIS, 2004, p. 27-28). E nesse momento ele é interrompidopor Tancredo que lhe fala palavras de revolta contra a escravidão, abominando-a e reprovando-a. Maria Firmina dos Reis não estereotipa em nenhum momento as suas personagens negras, muito menos as retrata de maneira heroica, ela as humaniza, dá-lhes personalidade, que são suscetíveis a fraquezas, como o escravo Antero (REIS, capítulo XVIII) “cujo maior defeito era a afeição que tinha a todas as bebidas alcoolizadas” (REIS, 2004, p. 205). Mas a personagem negra de maior destaque no romance é a preta Susana que tem um capítulo dedicado a ela: A preta Susana (REIS, capítulo IX). Nesse capítulo, a autora liberta a alma da escrava que passa a assumir o discurso e narra sobre a verdadeira liberdade, além disso, conta ao jovem Túlio, já alforriado por Tancredo, como era sua vida livre na África antes da captura e o traslado até o Brasil no navio negreiro: Liberdade! liberdade... ah! eu a gozei na minha mocidade! [...] ninguém a gozou mais ampla, não houve mulher alguma mais ditosa do que eu. [...] dois homens apareceram, e amarraram-me com cordas. Era uma prisioneira – era uma escrava! Foi embalde que supliquei em nome de minha filha, que me restituíssem a liberdade: os bárbaros sorriam-se das minhas lágrimas, e olhavam-me sem compaixão. [...] a sorte me reservava ainda longos combates. [...] Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. [...] Para caber a mercadoria no porão fomos amarrados em pé e para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais ferozes 33 das nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa. [...] A dor da perda da pátria, dos entes caros, da liberdade foram sufocadas nessa viagem pelo horror constante de tamanhas atrocidades (REIS, 2004, p. 115-117). A preta Susana é, na obra, totalmente humanizada, tem saudades, sofre pela brutalidade com que foi tirada de sua pátria, de seu marido, de sua filha, de seus entes queridos, mas não se tornou embrutecida e nem vingativa como os negros de As vítimas-algozes. Assim, entre a positividade e a bondade do jovem afro-brasileiro Túlio, e a negatividade representada pela decadência do velho africano Antero, alcoolizado, a autora abre caminho para o discurso de Mãe Susana, elo vivo entre a memória ancestral e a consciência da subordinação (MACEDO, 2006, p. 104). Nessa perspectiva, o discurso da velha escrava preta Susana é pioneiro no Brasil, já que “só vamos encontrar semelhante no cotejo das memórias de Mahommah Gardo Baquaqua” (MENDES, 2006, p. 113), as quais estão dispostas no diário de “um africano escravizado no Brasil, e sua passagem para a condição de homem livre, nos Estados Unidos” (EVARISTO, 2009, p. 36). O diário de Baquaqua foi publicado em 21 de agosto de 1854, em Detroit – EUA. Desse modo, o-romance Úrsula, publicado em 1859, acaba conversando com esse diário em vários aspectos, em especial sobre as descrições do navio negreiro. Baquaqua diz: Fomos arremessados, nus, porão adentro, homens apinhados de lado e as mulheres do outro. [...] Oh! a repugnância e a imundície daquele lugar horrível nunca serão apagados de minha memória. [...] sofríamos muito por falta de água, que nos era negada na medida de nossas necessidades (BAQUAQUA, 2009, p. 208-209). Foi citada apenas essa passagem para mostrar um pequeno trecho em que a autobiografia de Baquaqua conversa diretamente com as lembranças da preta Susana. Quanto à Maria Firmina, embora tenha se definido “de educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens ilustrados, [...] com uma instrução misérrima, apenas conhecendo a língua de seus pais, e pouco lida” (REIS, 2004, p. 13), escreveu de maneira perspicaz e conseguiu sutilizar o que realmente havia por trás do enredo de seu romance romântico, tanto que não foi realmente reconhecida e 34 muito menos percebida a intencionalidade de suas palavras em Úrsula, como pode ser verificado em uma publicação da imprensa da época: “É pena que o acanhamento mui desculpável da novela escrita não desse todo o desenvolvimento a algumas cenas tocantes, como as da escravidão, que tanto pecam pelo modo abreviado com que são escritas” (MORAIS FILHO apud MENDES, 2006, p. 39, grifos do autor). Ela soube utilizar as palavras certas, no enredo certo e com os ideais de liberdade intrínsecos na sua narrativa, sendo muito bem aceita à época de sua publicação, antecipando em seu discurso antiescravagista “o Castro Alves poeta dos escravos (cuja produção vai de 1876 a 1883), o Joaquim Manoel de Macedo de Vítimas-algozes (1869) e o Bernardo Guimarães da virtuosa Escrava Isaura (1875)” (DUARTE, 2009, p. 6), que eram reconhecidos como defensores da abolição, e sendo a pioneira na prosa romântica brasileira de cunho abolicionista. 3.2 LIBERDADE SUPRIMIDA DE CONCEITOS Uma das particularidades de Úrsula é o não uso dos sobrenomes nas personagens, todas são identificadas apenas pelos seus primeiros nomes (nomes próprios ou prenomes) acompanhados de uma letra e reticências ou três asteriscos: Úrsula e Tancredo de***, protagonistas; Fernando P..., antagonista; Túlio, Susana e Antero, os negros escravos; Luísa B..., mãe de Úrsula; os pais de Tancredo; Adelaide, ex-noiva de Tancredo; e o padre F..., capelão da fazenda de Fernando P.... Isso não deve ser visto como falta de criatividade da autora, mas como algo totalmente pensado para o propósito do romance. Pensar sobre a supressão de sobrenomes em um romance escrito em meados do século XIX em que tão importantes eram as identificações com os laços familiares – e o sobrenome como elemento de reconhecimento da família à qual pertencia o indivíduo, identificando-o no meio social, além de conduzir, através dos tempos, à reputação do grupo familiar – é no mínimo motivo de análise mais apurada. O nome próprio ou prenome distingue cada indivíduo, é por meio dele que o indivíduo é conhecido e reconhecido, permitindo que seja individualizado em meio a 35 muitos outros. Desde a antiguidade, nos primórdios das civilizações, Hebreus e Gregos eram identificados por um só nome, equivalente ao prenome nos dia de hoje, “Tal prática, todavia, foi sendo superada em virtude do crescimento populacional, que acabou impondo a adoção de nomes complementares para evitar a homonímia9 e alcançar uma identificação efetiva” (SIQUEIRA, 2010, p. 14). Com isso, foram acrescidos os sobrenomes ou patronímicos que “é elemento a compor o nome civil que identifica a família a que pertence o indivíduo” e “que este deve ser correlato dos apelidos de família dos genitores” (SIQUEIRA, 2010, p. 22). As regras que visavam à proteção dos sobrenomes foram evoluindo ao longo do tempo e só alcançaram importância no final do século XIX, quando passou a ser entendido como Direto da Personalidade. Porém, em um primeiro momento não era obrigatório, servia apenas para evitar possíveis homonímias. A noção de obrigatoriedade do apelido de família no Brasil se confunde com as tradições reinóis10, trazidas pelos colonizadores portugueses, então afeitos à ideia de que a incorporação de sobrenomes importaria em demonstração de importância do grupo familiar, denotando bem-nascença (SIQUEIRA, 2010, p. 22). A citação acima demonstra que em meados do século XIX, período da publicação de Úrsula, os sobrenomes gozavam de grande importância na sociedade, o que se pode inferir com isso é que foi proposital a escolha de Maria Firmina em identificar as suas personagens apenas pelo prenome ou nome próprio e deixar o sobrenome incógnito. Como o nome humaniza e o sobrenome “traz consigo a função de identificaro indivíduo no meio social, além de conduzir através dos tempos a reputação do grupo familiar” (SIQUEIRA, 2010, p. 22), pode-se dizer que a autora suprimiu por escolha própria os sobrenomes até dos protagonistas, colocando-os, assim, em igual posição das demais personagens, principalmente dos escravos a quem ela quis humanizar e personalizar em sua obra. Isso torna-se mais claro em alguns momentos do romance, por exemplo: 9 São palavras (nesse caso, nomes) que têm a mesma pronúncia, e às vezes a mesma grafia, mas significação diferente (CEGALA, 2008, p. 311). 10 Reinóis – plural de reinol: natural do reino; próprio dele; aquele que nasceu em reino (FERREIRA, 2000, p. 593). 36 – Puro é o seu amor, minha pobre mãe! – animou-se a dizer a moça, rubra de pejo – é o esposo que meu coração tem escolhido. – Ele? – perguntou-lhe angustiada a receosa mãe, conchegando-se a si – ele? E sabes tu quem seja? Então o jovem cavaleiro, erguendo-se com dignidade exclamou: – Senhora, eu sou Tancredo de ***. – Tancredo de ***!!!... – exclamaram ao mesmo tempo mãe e filha; e depois um profundo silêncio reinou na câmara. (REIS, 2004, p. 106) Esse momento é de grande importância no romance, pois é quando Tancredo pede Úrsula em casamento à mãe dela, Luísa B..., e revela-se como alguém de um sobrenome ilustre, o que constrange Úrsula e a leva a pensar que ele não mais cumprirá a promessa de casamento feita, já que ele é primo delas, porém de distinto nascimento, diferente dela. O que fica visível é que nem nesse momento de grande importância no romance a autora explicita o sobrenome da personagem, apenas deixa subentendido que é de linhagem nobre. Ainda que os protagonistas do romance sejam brancos, ela não os coloca na posição de superioridade em nenhum momento e isso é visível, também, através do simples gesto de suprimir os sobrenomes e identificar as personagens em todos os momentos da narrativa apenas pelo seu primeiro nome e somente em alguns momentos citar o “sobrenome” com a primeira letra acompanhada de reticências ou três asteriscos. Também se pode entender essa escolha, já que se repete também com os nomes dos lugares – O convento de ***, capítulo XV –, como dando a possibilidade do enredo de seu romance se passar em qualquer lugar da sociedade da época, pois não é determinado o espaço da narrativa, identifica-se apenas contextualizada no ambiente rural do Maranhão e, provavelmente, passa-se à época em que foi escrita e publicada, 1859. Ainda se repete a supressão no capítulo XV e nos seguintes com o nome da cidade em que está situado o convento – cidade de *** – e na demanda do convento – convento de Nossa Senhora da ***. Isso se dá pela “consciência da negritude de Maria Firmina dos Reis” (DUARTE et al, 2011, p. 119) que possibilita uma visão social de oprimida, pois ocupava as camadas subalternas da sociedade brasileira, tendo assim o conhecimento e a percepção de que para alcançar os seus objetivos com a obra, se fazia necessário, além de dar voz e vez as personagens negras, colocá-las no mesmo patamar social das personagens brancas, individualizando-as através do seu nomes próprios (da não existência de sobrenome nos escravos, o que era normal), e 37 também na supressão dos sobrenomes nas personagens brancas, o que diferencia sua obra. Outra razão poderia ser para dar um tom de veracidade à obra, mostrando que a história aconteceu, mas os nomes foram suprimidos porque a história não foi conhecida pela sociedade à época. Tanto que o narrador, no epílogo, mostra que a única testemunha que podia falar sobre o assunto, ou seja, o padre Fernando P... calou-se e que o comendador permaneceu incógnito, utilizando outro nome, Frei Luis de Santa Úrsula, até a ocasião de sua morte. Mesmo tendo confessado seus crimes na hora de sua morte, isso se deu durante a extrema-unção, de modo que o padre que deve ter ouvido o seu relato, nada podia fazer por se tratar de uma confissão. Por isso, a autora pode ter adotado esse posicionamento porque não havia ninguém que pudesse legitimar os fatos narrados, não houve testemunhas que o comprovassem e não seria o narrador que iria revelar esse segredo. Sendo assim, suprimindo os sobrenomes e a indicação dos lugares, a história poderia se passar em qualquer lugar, inclusive no local onde estava o leitor. 38 4 HISTÓRIA DE UM PAÍS ESCRAVO Para compreender o valor e inovação presentes em Úrsula, em que sociedade cresceu sua autora e na qual foi produzida a referida obra, faz-se necessário perpassar a sociedade do século XIX em alguns de seus aspectos históricos, sociais e literários. Com a vinda de D. João VI e a corte real em 22 de janeiro 1808, para o Estado da Bahia, foi que o Brasil realmente passou por mudanças significativas em sua sociedade. A partir de então houve a abertura dos portos brasileiros às nações amigas (28 de janeiro de 1808), a permissão para instalar manufaturas (01 de abril de 1808) e a fundação do Banco do Brasil (12 de outubro de 1808). Depois disso, uma sequência de órgãos foram criados: a Imprensa Régia (1808); a biblioteca (1810) com os 60 mil volumes trazidos por D. João VI; o Jardim Botânico do Rio de Janeiro (1810); o Museu Real (1818); Missão cultural francesa, em que foram “convidados artistas franceses que influenciaram a criação da Escola Nacional de Belas Artes” (ARANHA, 2006, p. 221); Academia Real da Marinha (1808) e Academia Real Militar (1810) que, após 1832, foram anexadas formando uma só instituição de engenharia militar, naval e civil; cursos médico-cirúrgicos (a partir de 1808) na Bahia e no Rio de Janeiro. No entanto, mesmo com essas mudanças, o Brasil continuava como colônia de Portugal e Em 1818, de seus 3.817.900 habitantes, 1.887.900 eram livres (sendo 1.043.000 brancos, 585.500 negros e mestiços e 259.400 índios), e 1.930.000, escravos. Tanto as taxas de fecundidade quanto as de mortalidade (em especial a infantil) eram muito altas. A idade média no momento do casamento era baixa para as mulheres (20 a 21 anos), um pouco mais elevada para os homens (LINHARES et al, 1990, p. 125). Às vésperas de apartar-se de Portugal eram esses os números de que se compunha a estrutura do Brasil colônia, quando em 09 de janeiro de 1822, o chamado dia do “Fico”, começou o processo de independência que só foi proclamada em 07 de setembro do referido ano. A sociedade era composta nas classes mais altas, e de brancos, pelo modelo de “família patriarcal11”, nas classes 11 Estrutura composta de família extensa em que todos (filhos, escravos e “agregados”) dependiam do chefe da família. 39 mais pobres eram frequentes a união livre, sendo muito alta a incidência dos nascimentos ilegítimos que fazia com que os núcleos familiares fossem formados por uma mulher e seus filhos. Além disso, o crescimento demográfico dos pobres livres era grande e a sociedade dominante continuava com sua separação social de base étnica, excluindo os brancos livres (imigrantes, em boa parte), negros e sobretudo os mestiços. Após a proclamação da independência (em 07 de setembro de 1822), D. Pedro I foi coroado o 1º Imperador do Brasil, em 19 de dezembro de 1822, começando então o Primeiro reinado que, após muitas críticas e choques violentos entre partidários de apoio e contra o imperador, chegou ao fim em 07 de abril de 1831 com a renúncia de Pedro I. Dá-se início, a partir daí, a um governo
Compartilhar