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___________________________________________________________________ CURSO DO PROF. DAMÁSIO A DISTÂNCIA MÓDULO I FORMAÇÃO HUMANÍSTICA Filosofia do Direito __________________________________________________________________ Rua da Glória, 195 – Liberdade – São Paulo – SP – CEP 01510-001 Tel./Fax: (11) 3164-6624 – www.damasio.com.br 3 SUMÁRIO 1. FILOSOFIA E DIREITO NA GRÉCIA ARCAICA ............................... 5 1.1. Introdução ................................................................................ 5 1.2. Justiça: origem ......................................................................... 6 1.3. Hesíodo e justiça ...................................................................... 6 1.3.1. Justiça e trabalho ............................................................. 7 1.3.2. Diké e Hybris .................................................................... 8 1.3.3. Mito das raças .................................................................. 8 1.3.3.1. Raça de ferro ..................................................... 10 2. SÍMBOLO E DIREITO .................................................................... 10 3. FILOSOFIA E DIREITO NA GRÉCIA CLÁSSICA: OS SOFISTAS E SÓCRATES .................................................................................. 12 3.1. Os sofistas .............................................................................. 12 3.1.1. Arte retórica ................................................................... 13 3.1.2. Retórica dos sofistas ...................................................... 13 3.1.3. Divergências insuperáveis ............................................. 14 3.2. Sócrates (470-399 a. C.) ........................................................ 15 3.2.1. Ironia socrática ............................................................... 16 3.2.2. Autonomia da razão ....................................................... 17 3.2.3 Lei e dever ...................................................................... 18 Exercícios ............................................................................................. 19 4 5 FORMAÇÃO HUMANÍSTICA Filosofia do Direito Vitor Frederico Kümpel 1. FILOSOFIA E DIREITO NA GRÉCIA ARCAICA 1.1. Introdução O Direito, como diz Ferraz Jr. (1995, p. 21), nos introduz em um mundo misterioso e fantástico de piedade e impiedade, de sublimação e de perversão, pois o Direito pode ser sentido como uma prática virtuosa que serve ao bom julgamento, mas também usado para propósitos ocultos ou inconfessáveis. O Direito contém, ao mesmo tempo, as filosofias da obediência e da revolta, serve para expressar e produzir a aceitação da situação existente, mas aparece também como sustentação moral da indignação e da rebelião. Compreender o Direito é compreender uma parte de nós mesmos. É saber por que obedecemos, por que mandamos, por que nos indignamos, por que aspiramos mudar em nome de ideais, por que, em nome de ideais, conservamos as coisas como estão. Ser livre é estar no Direito e, no entanto, o Direito também nos oprime e nos tira a liberdade. O Direito, assim, de um lado, nos protege do poder arbitrário exercido à margem de toda regulamentação, dá oportunidades iguais e ampara os desfavorecidos. Por outro lado, é também um instrumento manipulável que frustra as aspirações dos menos privilegiados e permite o uso de técnicas de controle e dominação que, pela sua complexidade, são acessíveis apenas a uns poucos especialistas. O Direito nos introduz num mundo de piedade e impiedade, de sublimação e de perversão. Entre os gregos, a existência humana encontra-se inserida nesse mundo misterioso de trevas e de luz simbolizado pelos deuses mitológicos Apolo e Dionísio ou Diké e Hybris. Apolo (Diké) e Dionísio (Hybris) simbolizam duas forças ou impulsos antitéticos, aos quais corresponde a dupla face da experiência grega no mundo. Apolo e Diké simbolizam a justa medida, a temperança, a prudência, a precisão dos limites. Dionísio e Hybris simbolizam a desmedida, o tenebroso, a transgressão de todos os limites. Enfim, o Direito é um mistério, o mistério do princípio e do fim da sociabilidade humana, que se encontra inserida nesse mundo fantástico do monstruoso (dionisíaco) e do sublime (apolíneo). É esse mistério que os primeiros filósofos têm a pretensão de desvendar. 6 1.2. Justiça: origem Ao longo do período homérico e nos primeiros tempos do período arcaico vigorava, na sociedade grega, um Direito de caráter divino, cujas leis (costumes) teriam sido reveladas pelos deuses aos antepassados que as transferiram para as gerações seguintes. Homero fala desse Direito quando diz que Zeus dava aos senhores patriarcais “cetro e themis”. Themis etimologicamente significa “lei”. Os senhores patriarcais julgavam de acordo com a lei, proveniente de Zeus. Themis personificava um Direito que justificava tanto as relações de poder, que os senhores patriarcais exerciam em seus domínios, como as regras costumeiras estabelecidas pelos antepassados e que se consolidaram com as gerações seguintes. Sófocles também fala desse Direito divino, por meio da personagem Antígona, na peça teatral (tragédia) que leva o mesmo nome. É nesse Direito que Antígona fundamenta sua pretensão, quando diz que dar sepultura ao irmão é um dever sagrado, fixado “nas leis não escritas e imutáveis dos deuses”. Do mesmo modo, no diálogo com sua irmã Ismênia, afirma que é preciso “respeitar o costume sagrado”, “não desprezar as leis divinas”, para não ser “acusada de não cumprir o piedoso dever”. A tragédia escrita por Sófocles desenvolve-se contrapondo, de um lado, Antígona, que quer dar sepultura ao irmão com fundamento no dever sagrado da piedade, estampado “nas leis não escritas e imutáveis dos deuses” e, de outro lado, Creonte, o tirano, que exige “obediência total às normas do seu decreto, sejam elas justas ou não”. A tragédia expõe o princípio dionisíaco, o dilaceramento, o lado cruel e sombrio dos humanos, a luta sem trégua dos contrários. A filosofia expõe o princípio apolíneo, a luminosidade, o lado sereno e perfeito dos humanos, a harmonia dos contrários. Para Nietzsche (apud Chauí, 1998, p. 23-25), enquanto os filósofos pré-socráticos colocam em destaque essa dualidade ou antítese insuperável entre o dionisíaco (a fúria dos contrários e da desordem) e o apolíneo (o desejo de harmonia e ordem), os filósofos Sócrates, Platão e Aristóteles aniquilam essa dualidade ao colocar em destaque apenas o princípio apolíneo. Alguns historiadores da filosofia reconhecem a existência de uma continuidade entre mito e filosofia. Os poemas de Hesíodo representariam essa passagem do pensamento mitológico para o pensamento racional, porque neles se encontra o modelo geral que será seguido pelos filósofos pré-socráticos. 1.3. Hesíodo e justiça Hesíodo (século VIII a.C.) relata, no poema O trabalho e os dias, a disputa jurídica entre ele e seu irmão Perses e as atividades dos Juízes, os senhores aristocráticos de sua própria comunidade (demos) que arbitravam as pequenas disputas do povo da região e aceitavam suborno para favorecer uma das partes. Procura convencer seu irmão de que Zeus ampara a justiça, ainda que os Juízes a espezinhem. Faz sérias advertências sobre os perigos da desmedida e suas consequênciasdesastrosas, não só para o indivíduo 7 mas para toda comunidade. Essa ousada inovação estabelece a luta pelos próprios direitos contra as usurpações e a venalidade dos aristocratas que decidem as disputas jurídicas. Hesíodo acredita que a justiça divina não permitirá que o mal triunfe sobre o bem. Assim, assistindo à momentânea vitória da injustiça, o poeta crê na intervenção de Zeus a favor da justiça: Agora que então nem eu próprio seja um justo entre os homens, nem o meu filho, pois que é mal ser um homem justo se o que é mais injusto tem maior justiça. Mas eu ainda não creio que Zeus de sábios conselhos há de permitir isso (Erga, v. 270-273 apud Barros, 1999, p. 42). 1.3.1. Justiça e trabalho Hesíodo elege o trabalho e a justiça como pilares da virtude do homem, que não é aristocrata e tem sua expressão numa posse moderada de bens. O trabalho é celebrado como o único caminho, ainda que difícil, para alcançar a virtude. Para conferir sentido à sua proposta de justiça, apresenta uma descrição do seu mundo, especialmente a vida dos pequenos agricultores. Com isso, revela uma esfera social, totalmente diversa da do mundo dos heróis e da nobreza aristocrática, estampada nos poemas de Homero. Para Hesíodo, a vida dos pequenos agricultores consiste em trabalhar, motivo pelo qual confere ao trabalho um valor inestimável, tanto que o título Os trabalhos e os dias, dado pela posterioridade ao seu poema os Erga, exprime isso perfeitamente. Segundo Jaeger (1995, p. 87), o tema exterior do poema de Hesíodo é o processo que lhe é movido pelo seu irmão Perses que, depois de ter dilapidado a sua parte da herança paterna, insiste em novo pleito. Da primeira vez, conquistou a boa vontade do Juiz por meio de suborno, e com essa atitude levou ampla vantagem na partilha dos bens. Esse fato motivou Hesíodo a denominar os juízes de “devoradores de presentes”, senhores aristocráticos que aceitam subornos para proferir sentenças distorcidas. Com isso, aponta a ambição e o abuso brutal do poder por parte da aristocracia local. A luta entre a força e o Direito que se manifesta no processo não é, evidentemente, um assunto meramente pessoal do poeta. Hesíodo enxerga mais longe, percebe a insatisfação das classes desfavorecidas e expressa essa insatisfação por meio do seu poema. Perses simboliza o agricultor desencaminhado, personagem de um mundo sombrio totalmente dominado pela desmedida. O contraste de Perses é o próprio Hesíodo, que simboliza a imagem do agricultor submisso à justiça e dirigindo-se a Perses, procura inculcar no irmão os princípios que dão ao trabalho o mais alto valor: Procura um prazer justo, dando-te ao trabalho numa medida equilibrada. Os teus celeiros se encherão, assim, com as provisões que cada ano te proporcionar. O trabalho não é vergonhoso; a ociosidade, sim, essa o é. Se labutares, o ocioso te respeitará pelos teus ganhos, aos quais se seguem respeito e consideração. O trabalho é a única coisa justa na tua condição; basta desviares a atenção da 8 cobiça dos bens alheios e dirigi-la para o teu próprio trabalho, cuidando de o manter, como te aconselho (apud Jaeger, 1995, p. 101-102). Hesíodo vê a sua época (idade de ferro) como um mundo confuso e ambíguo, definido pela coexistência dos seus contrários; nele, todo bem tem o seu mal em contrapartida. É um mundo em que coexistem lado a lado, mas em que se opõem: o Direito e a força, a ordem e a desordem, o justo e o injusto. Diké e Hybris, presentes lado a lado, oferecem ao homem duas opções igualmente possíveis, entre as quais lhe é necessário escolher. 1.3.2. Diké e Hybris Diké, no poema, é a deusa que se encarrega de trazer o Direito do céu para a Terra. Sua tarefa, entretanto, é perturbada por Hybris. Para Vernant (1977, p. 11), o poema, especificamente na parte que trata do mito das raças, aponta dois tipos de existência humana, rigorosamente opostos, num dos quais se situa Diké, e em outro apenas Hybris. A narrativa do mito das raças implica um ensinamento que é dirigido mais especificamente a Perses, mas que vale também para os senhores aristocráticos, aqueles cuja função é regulamentar as querelas por arbitragem, e que se reduz à seguinte fórmula: escuta a justiça (diké), não deixes aumentar a desmedida (hybris). A etimologia da palavra diké é originária da linguagem processual antiga e contém uma matriz de igualdade que permanece no pensamento grego através dos tempos. No processo antigo, diz-se que as partes contenciosas dão e recebem diké. O culpado dá diké, uma reparação, indenização ou compensação. O lesado, cujo direito é reconhecido pelo julgamento, recebe diké e o juiz reparte diké. Assim, o conceito de justiça (diké) passa a ser fixado na expressão “dar a cada um o que lhe é devido”. Significa, ao mesmo tempo, o processo, a decisão e a reparação. O significado evolui no sentido de expressar o princípio que garante essa exigência e no qual se pode apoiar quem for prejudicado pela hybris que corresponde à ação contrária ao Direito (Jaeger, 1995, p. 135). Hybris é tudo que ultrapassa a medida, é o excesso, a desmedida e a desordem. Nas pessoas, hybris provoca insolência, soberba, impiedade e presunção. Diké representa o equilíbrio, a medida justa capaz de conter o desequilíbrio provocado pela desmedida e pelo excesso. A oposição diké-hybris constitui o tema central do mito das raças. 1.3.3. Mito das raças Segundo Vernant (1973, p. 11-35), o mito das raças narrado por Hesíodo contém um ensinamento que é repassado a seu irmão e aos nobres e se resume na fórmula: escuta a justiça, não deixes aumentar a desmedida. O mito das raças conta a história de cinco raças de homens (raça de ouro, de prata, de bronze, dos heróis, de ferro), sendo que cada raça aparece e depois desaparece em 9 determinado período ou idade do mundo (idade do ouro, da prata, do bronze, dos heróis, do ferro). A história começa com os tempos dourados (idade do ouro) até chegar, em linha descendente, aos duros tempos da idade do ferro, quando ocorre a subversão total do Direito. Assim, o mito parece querer opor a um mundo divino (idade do ouro), em que a ordem é imutavelmente fixada por Zeus, um mundo humano (idade do ferro) no qual a desordem se instala e que deve acabar tomando, inteiramente, a direção da injustiça. A história da antiga idade do ouro e da sua crescente degenerescência, nos tempos subsequentes, procura mostrar que os homens apresentavam, originariamente, um comportamento quase perfeito, e viviam sem trabalho nem dor. Na idade do ferro, em que o poeta lamenta ser forçado a viver, domina apenas o direito do mais forte e nela só prosperam malfeitores e corruptos. Esse quadro de uma humanidade destinada a uma queda fatal e irreversível, provocada por suas próprias ações, deveria ser apropriado para convencer os pequenos agricultores (personificados no seu irmão Perses) e os nobres aristocratas (personificados naqueles que arbitram as disputas judiciais), sobre as virtudes da Diké e os perigos da Hybris. Da idade do ouro para a idade da prata, a decadência ocorre no momento em que o homem esquece ser descendente de Zeus e, sem temer os deuses, trai a função simbolizada pelo seu cetro ao se afastar dos caminhos retos da justiça. Na idade da prata, o homem abandona todos os sentimentos religiosos, jurídicos e morais e se deixa dominar pela louca desmedida. Sob o domínio de Hybris, a cidade conhece apenas calamidade, destruição e fome. A soberania piedosa da idade do ouro é substituída pela soberania ímpia da idade da prata, ou seja, à figura do rei respeitoso opõe-se a do rei entregue à corrupção. Essa noção se projeta nos demaisplanos das demais raças. O que caracteriza e arruína o homem da idade de prata é a sua louca desmedida. Esta o leva a renegar os deveres jurídicos e religiosos, motivo pelo qual a raça de prata é a única cujos erros excitam a ira divina e que Zeus aniquila como castigo pela sua impiedade. Após a raça de prata surge a raça de bronze, constituída por guerreiros e dominada por uma hybris exclusivamente militar. Hesíodo passa do plano jurídico-religioso ao das manifestações da violência, da força bruta e do terror que a personagem do guerreiro inspira. Os homens da raça de bronze são dedicados apenas à guerra, motivo pelo qual Hesíodo não faz menção à justiça (sentenças certas ou erradas) nem ao culto em honra dos deuses (piedade ou impiedade). Os homens da raça de bronze não são aniquilados por Zeus, mas sucumbem à guerra, uns sob os golpes dos outros. Esses guerreiros não recebem nenhuma honraria, se perdem no anonimato da morte. O mito dos homens da idade de bronze mostra que os homens não devem apelar jamais para o Direito do mais forte. Após a raça de bronze, surge a raça dos heróis, também constituída por guerreiros. Mas, diferentemente dos homens da raça de bronze, os homens da raça dos heróis são mais justos e ao mesmo tempo mais valorosos militarmente. A Diké dos heróis se situa no mesmo plano militar que a hybris dos homens de bronze. À desmedida (hybris) do guerreiro da raça de bronze, opõe-se o guerreiro justo que, reconhecendo os seus limites, aceita submeter-se à ordem superior da justiça (diké). Pelo favor de Zeus os heróis, 10 guerreiros justos, são transportados para um lugar, onde levam por toda a eternidade uma vida semelhante à dos deuses. 1.3.3.1. Raça de ferro A principal característica dos homens da raça de ferro é a de serem constrangidos a trabalhar a terra para produzir alimentos. A idade de ferro é também o mundo das doenças, da velhice e da morte. O mito, tanto de Prometeu como de Pandora, relata a mesma história: a miséria humana na idade do ferro. O homem é compelido não apenas a se cansar no trabalho da terra para obter alimento, mas também a sofrer a cada dia angústia e, ao mesmo tempo, ter alguma esperança na expectativa de um amanhã incerto. Na idade do ferro, o bem e o mal estão, não apenas misturados, mas solidários, indissolúveis. A raça de ferro conhece, assim, uma existência ambígua e ambivalente. Hesíodo indica que Pandora é a origem de todos os sofrimentos que os homens de ferro suportam: fadiga, miséria, enfermidades, angústias. Se a mulher não tivesse erguido a tampa do jarro em que estavam encerrados os males do mundo, os homens teriam continuado a viver, como antes, ao abrigo dos sofrimentos, do labor penoso e das doenças dolorosas que trazem a morte. Mas os males se dispersaram pelo mundo, entretanto subsiste a esperança, pois a vida não é totalmente sombria e os homens encontram ainda o bem misturado ao mal. Hesíodo colocou a justiça numa posição de destaque, fez do direito o núcleo de suas preocupações. Isso certamente ocorreu em virtude dos novos problemas apresentados ao pequeno agricultor daquela época, e que o incitaram a repensar no conteúdo dos velhos mitos para um rejuvenescer dos sentidos. 2. SÍMBOLO E DIREITO Ferraz Jr. (1995, p. 32) anota que o Direito sempre teve como grande símbolo uma balança, com dois pratos colocados no mesmo nível, em posição perfeita, tanto na horizontal quanto na vertical. No símbolo grego, a balança é segurada pela deusa Diké. Na mão esquerda de Diké está a balança com os dois pratos, sem o fiel no meio; na mão direita, a deusa segura uma espada e com os olhos abertos, declara existir o justo quando os pratos estiverem em equilíbrio (íson, donde vem a palavra isonomia). O justo significa o que é visto como igual. A ideia de justiça na cultura grega adquire a concepção de fonte de igualdade. Ao contrário da deusa romana (Iustitia) que tem os olhos vendados, Diké mantém os olhos bem abertos. Esse fato tem um significado simbólico. Para os antigos, os dois sentidos mais intelectuais são a visão e a audição. A visão simboliza a contemplação e a especulação, o saber puro; a audição implica o valorativo, as coisas práticas, o saber agir, a prudência. Diké com os olhos abertos aponta para uma concepção mais abstrata, que 11 precede em importância o saber prático. Além disso, o fato de Diké carregar uma espada mostra que os gregos conectam o conhecimento do direito com a força (bia) necessária para executá-lo. O equilíbrio e a harmonia necessários entre Direito (diké) e força (bia) deve prevalecer na cidade. Os símbolos (balança e espada) simbolizam algo mais que os próprios símbolos, pois fornecem um relato do mundo e as regras para atuar nele, porque: a) simboliza a justiça como igualdade e retidão; b) relata a existência de um poder (Diké) que diz o Direito e está acima das partes para executá-lo; e c) estabelece que justiça é igualdade, reciprocidade e também ordem pacificadora (pratos em equilíbrio) e, ainda, vingança e castigo (espada na mão). A balança e a espada simbolizam dois modelos de retribuição ou de reparação do status quo violado: a) a balança simboliza um modelo horizontal: visa à equiparação de uma pretensão e de uma contraprestação; e b) a espada simboliza um modelo vertical: uma hierarquia a ser protegida e mantida, retribui agressivamente uma ameaça agressiva. Esses dois modelos podem aparecer numa mesma regra. Nesse sentido, diz Chilon, um dos Sete Sábios: “concilia-te com quem te infringiu um dano, vinga-te de quem te ofendeu”. Hesíodo, sem abdicar do elemento religioso (Diké), constrói um modelo jurídico em que estabelece que as desgraças e os conflitos que atingem a cidade são consequências advindas do comportamento dos homens e não dos deuses. A partir de Hesíodo começa a ser traçado, em contraste com a hybris do rico, o ideal de temperança, de proporção e de justa medida. Nada em excesso passa a ser a fórmula de uma nova sabedoria. O homem virtuoso é prudente, justo e moderado, sabe controlar seus impulsos e paixões. Passando a ser o ideal ético do homem que pratica a phrónesis, que constitui a mais alta qualidade moral a se opor aos excessos e à desmedida. Em todos os planos da vida social, ocorre uma transformação decisiva que marca a história do Direito da polis: a desmedida perverte os homens nas suas relações recíprocas. Chega um momento em que a cidade rejeita as atitudes tendentes a exaltar o prestígio mediante a riqueza. Com as reformas legislativas de Sólon são tidos como descomedimento: a ostentação, o luxo, a suntuosidade. Por isso, essas práticas são rejeitadas porque, acusando as desigualdades sociais e o sentimento de distância entre os indivíduos, suscitam a inveja e colocam em risco a cidade, dividindo-a contra si mesma. 12 Assim, o esforço de renovação atua nos planos jurídico, econômico e político, sempre visando restringir e fixar um limite à ambição, mediante regras gerais que possam ser aplicadas igualmente a todos os cidadãos. Contribui nesse esforço uma norma superior, diké, que aspira a igualdade e a harmonia de uma cidade unida. 3. FILOSOFIA E DIREITO NA GRÉCIA CLÁSSICA: OS SOFISTAS E SÓCRATES 3.1. Os sofistas Os sofistas (Jaeger, 1995, p. 335; Chauí, 1998, p. 122; Hadot, 1999) são mestres que ensinam uma arte e as suas respectivas técnicas. São eruditos, possuem um saber enciclopédico em relação ao objeto do seu ensinamento; além disso, sabem escolher e apresentar seus temas de maneira atraente. Entendem que não é apenas a técnica do discurso que persuade, mas também o seu conteúdo que seduz um auditório; porisso se interessam pela cultura geral. Ensinam as “artes úteis aos homens”, utilizando uma arte especial, a retórica, que permite obter a atenção e a benevolência do auditório ao qual se dirigem. Ensinam a arte de argumentar e persuadir, decisiva para o exercício da cidadania política numa ordem democrática. A arte ou técnica de argumentar e persuadir surge e se desenvolve na polis, uma organização política onde as questões de interesse geral são submetidas e resolvidas na conclusão de um debate, um combate de argumentos cujo teatro é a praça pública (ágora), lugar de reunião antes de ser um mercado. Nessa sociedade, os que se medem pela palavra formam um grupo de iguais. Conforme Vernant (1977, p. 33), o que implica o sistema da polis é a preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder. A palavra ou discurso torna-se o instrumento político por excelência, a chave de toda a autoridade, o meio de comando e de domínio sobre outrem. Na polis democrática os discursos e argumentos dos cidadãos passam a ter um caráter nitidamente persuasivo, na medida em que apelam para uma escolha, uma decisão deliberada. A virtude (areté) não se sustenta mais na tradição, mas na atuação política, que consiste em exprimir publicamente o pensamento, e em participar de debates que requerem decisões aprovadas pela maioria. A virtude política passa a ser vista, sobretudo, como aptidão intelectual para a oratória. Essa situação favorece os filósofos sofistas, tornando-os responsáveis pela formação da elite política na arte de persuadir. Os sofistas aparecem para atender às necessidades de uma nova educação política, que consiste na formação de homens para atuar na polis democrática. O ideal de excelência e mérito passa a ser o cidadão como bom orador. Nesse sentido os sofistas dão uma valiosa contribuição ao fixar a arte retórica e suas técnicas persuasivas (oratória e eloquência) como fundamentais para a formação educacional da juventude. A retórica e suas técnicas de argumentar e persuadir está voltada para o discurso dirigido a um público numeroso e por isso os seus instrumentos técnicos são apropriados aos discursos longos e contínuos que não preveem a interrupção dos ouvintes. Discursos desse tipo são os discursos políticos e jurídicos. 13 3.1.1. Arte retórica Perelman e Tyteca (1996, p. 1-16) confirmam que a retórica antiga tinha como objeto, acima de tudo, a arte de falar em público de modo persuasivo; refere-se, pois, ao uso da linguagem falada, do discurso perante um grupo, com o intuito de obter ou aumentar a adesão deste às teses apresentadas. Segundo esses autores, argumentação opõe-se à demonstração. A teoria da demonstração utiliza sistemas axiomáticos com deduções coercivas, funda-se, portanto, na ideia de evidência, concebida como força ou prova diante da qual todo o pensamento contrário tem de ceder. Contra a evidência, dizem, não há argumentos. A demonstração liga-se aos raciocínios lógico-formais, como são os raciocínios matemáticos. Em contraposição, a teoria da argumentação desenvolve-se a partir da ideia segundo a qual nem toda prova é concebível como redução à evidência, mas requer técnicas capazes de provocar ou acrescer a adesão dos espíritos às teses que se apresentam ao seu descortínio. A argumentação refere-se a raciocínios persuasivos, como são os raciocínios jurídicos, cuja validade é restrita a auditórios particulares, não pretendendo adquirir a universalidade da demonstração. O campo da argumentação, donde sobressai a retórica, é o do verossímil, do plausível, do provável que escapa à certeza do cálculo. Já no âmbito da demonstração não haveria necessidade da retórica tendo em vista que não se delibera diante do necessário e não se argumenta contra a evidência. 3.1.2. Retórica dos sofistas Guthrie (apud Chauí, 1998, p. 128) faz o seguinte comentário a respeito da retórica dos sofistas: “A retórica ensina, em primeiro lugar, que o que conta não é o fato em si, mas o que dele aparece, aquilo que pode persuadir os homens. É a arte do logos que não é somente discurso e raciocínio, mas também aparência ou opinião, na medida em que estas se opõem aos fatos, e sua finalidade é a persuasão”. Nessa trilha, os sofistas procuraram mostrar o poder da técnica retórica no terreno filosófico, induzindo o auditório a ver que aquele que domina a palavra é capaz de fazer plausíveis afirmações paradoxais. “O discurso, para os sofistas, era, por isso, um jogo. Descobriram a dificuldade de se estabelecer uma linha divisória entre verdade (alethéia) e opinião (doxa), e proclamaram a divergência insuperável das opiniões” (Ferraz JR., 1995, p. 324). A retórica sofística não tem, portanto, a pretensão de apreender o objeto como ele é em si mesmo ou por natureza, simplesmente seleciona argumentos e definições que não leva em conta essa pretensão, mas que se fundamenta no objeto como ele aparece e como ele pode ser útil. Como se trata da arte de persuadir, a retórica opera com opiniões contrárias, servindo-se ou apoiando-se na dialética, a arte da discussão. Os sofistas são os primeiros a sistematizar a técnica dos discursos duplos, isto é, o método de enxergar as coisas “pelos dois lados”, quer para atacá-las, quer para defendê-las. Por isso insistem no 14 conflito que opõe a natureza (physis) às convenções humanas (nomos). Desse modo imprimem mais vigor na arte de discutir, aproximando a retórica da dialética. Na discussão para persuadir, o fundamental é a aptidão para proferir palavras decisivas e bem fundamentadas. Numa democracia como a ateniense, cujo destino dependia em grande parte da atuação de oradores, a arte da persuasão por meio da palavra manipulada com eficácia, usando recursos retóricos, era fator imprescindível para o desempenho relevante na polis. Assim, a educação dos que pretendiam projetar-se na política era baseada nas técnicas da arte retórica: oratória e eloquência. No tempo dos sofistas, e graças a eles, os debates judiciais (agon), que são uma espécie de luta entre rivais que se medem pela palavra, ganham novas dimensões, posto que a argumentação lógica da prova, introduzida pela retórica, vai substituindo, na oratória jurídica, as antigas provas jurídicas de testemunhas, juramentos e torturas. Aliás, Aristóteles e depois Crisipo, quando tratam da retórica, destacam três tipos de discursos retóricos, dentre eles o discurso judiciário, que recebe o mesmo destaque conferido ao discurso deliberativo. 3.1.3. Divergências insuperáveis Conforme Jaeger (1995, p. 376), Eurípides, em As fenícias, fundamenta o princípio da igualdade no domínio de uma lei que se manifesta constantemente na natureza e à qual nem o próprio homem consegue escapar. Contudo, aqueles que criticam o princípio da igualdade recorrem aos mesmos fundamentos para demonstrar que a natureza não é regida pela isonomia, mas pela lei do mais forte. Nos diálogos platônicos, essa possibilidade de retirar da natureza concepções contrárias ou contraditórias aparece de forma muito límpida e indubitável nas falas dos personagens sofistas. No Górgias, por exemplo, Calicles, um discípulo dos sofistas, diz: Desde a meninice que tratamos como leões os melhores e mais poderosos de nós: oprimimo-los, enganamo-los e subjugamo-los, ao dizer-lhes que devem contentar-se em ser iguais aos outros e que é isto o nobre e o justo. Quando, porém, surge um homem de natureza realmente poderosa, sacode tudo isto, rompe as cadeias e liberta-se, calcando aos pés todo o nosso amontoado de letras e sortilégios, as nossas artes mágicas e as nossas leis contra a natureza; ele, o escravo, levanta-se e aparece como senhor nosso: é entãoque brilha em todo o seu esplendor o direito da natureza (Platão apud Jaeger, 1995, p. 378). Temos assim, de um lado, o direito natural (physis) dos mais fortes; e, de outro lado, a convenção (nomos) dos mais fracos. Os mais fracos criam nomos com o claro sentido de delimitar o direito natural dos mais fortes. Calicles aponta a desigualdade natural dos homens e a contrapõe à igualdade dos homens na convenção. 15 No diálogo Protágoras, o sofista Hípias de Élis, diz: “Senhores, todos quantos aqui estais presentes, sois a meus olhos semelhantes, parentes e concidadãos, não pela lei, mas pela natureza. Segundo a natureza, o semelhante é parente do semelhante; mas a lei, tirano dos homens, força a muitas coisas contra a natureza” (Platão apud Jaeger, 1995, p. 378). Aqui a situação é outra. Hípias aponta a igualdade natural dos homens e a contrapõe à desigualdade dos homens na convenção. Essas duas passagens mostram a contraposição entre o “justo por natureza” e o “justo por convenção”. Os sofistas, pelo que se pode perceber nesses trechos dos diálogos platônicos, não são exatamente contrários ao Direito Natural, simplesmente demonstram que as leis da polis são fruto de convenções humanas, podendo ser ou não conforme a natureza. Se as leis são por convenção, elas são o resultado de opiniões (doxa) que se impõem a partir de um debate, daí a vantagem das técnicas ou artes persuasivas, que são objeto do ensino dos sofistas. Com os sofistas, a lei por natureza, um direito transcendente ao homem (Themis, Diké), é posta em dúvida. Afinal, como anuncia Protágoras, “o homem é a medida de todas as coisas”; “dos deuses, não sei se existem ou não existem; pois grandes são os obstáculos a esse conhecimento, tanto a obscuridade da coisa, quanto a brevidade da vida humana”. A polis e suas leis, na concepção dos sofistas, não passam de uma convenção (nomos), fruto do resultado da discussão e deliberação dos cidadãos, por isso mesmo, variável no tempo e no espaço, porque sempre é possível opor persuasivamente a um argumento qualquer um argumento contrário ou tornar mais forte a razão mais fraca (Ferraz Jr., 1995, p. 325). Segundo Perelman (1999, p. 552), existem dois limites para a aplicação da retórica. Um diz respeito à ausência de liberdade política, que: “é aquele em que a tese, apresentando-se como arbitrária e não invocando razão alguma em seu favor, reclama a submissão a um poder coercivo, que se impõe pela força bruta, sem buscar a adesão das mentes”. Outro diz respeito à ausência de liberdade da vontade: que é aquele em que a tese se impõe pela evidência e não necessita argumentar. Assim, quando “a verdade se impõe de uma maneira coerciva ou quando a evidência não deixa liberdade alguma à vontade, é supérflua qualquer retórica”. 3.2. Sócrates (470-399 a. C.) Não há escritos de Sócrates, sua filosofia é exposta pelos discípulos, especialmente Platão e Xenofante. Em virtude disso, há muitas discussões a respeito do seu verdadeiro pensamento ou da interpretação mais correta da sua filosofia. Conforme anotações de Chauí (1994, p. 138), na obra de Xenofonte, As Memoráveis, percebe-se que Sócrates preocupa-se com três coisas: a) com a virtude identificada ao saber: só o ignorante é injusto ou vicioso; b) com a utilidade do bem: o bem é a justiça; e
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