Prévia do material em texto
Oriental Psicologia GUSTAV JUNG)mem deixou de ser microcosmos, e sua alma já não é mais a ciência a A filosofia crítica da ciência tornou-se, a "scintilla" consubstancial ou uma centelha da "anima mun- por assim dizer, negativa ou, em outras di" (alma do mundo). palavras, materialista partindo justamente de um julga- 760 Por essa razão, a psicologia trata todas as pretensões e mento errôneo. Consideramos a matéria uma realidade tan- afirmações metafísicas como fenômenos espirituais, conside- gível e Entretanto, esta matéria é uma noção rando-as como enunciados acerca do espírito e sua estrutura absolutamente metafísica, hipostasiada por cérebros não-crí- que, em última análise, decorre de certas disposições incons- ticos. A matéria é uma hipótese. Quando se fala em "maté- cientes. A psicologia não os considera possuidores de valor ria", está criando, no fundo, um símbolo de algo que absoluto, nem também lhes reconhece a capacidade de ex- escapa ao conhecimento, e que tanto pode ser espírito pressar uma verdade metafísica. Não temos meios intelec- como qualquer outra coisa; pode ser inclusive próprio tuais que nos permitam verificar se uma tal colocação é cor- Deus. A crença religiosa, por outro lado, recusa a aban- DAS reta ou O que sabemos unicamente é que não há donar sua concepção do Contradizendo as palavras nem a certeza nem a possibilidade de demonstrar a validade de Cristo, os crentes tentam permanecer crianças. Agarram- de um postulado metafísico como, por exemplo, de um se ao mundo da infância. Um teólogo famoso confessa, em espírito universal. Mesmo que a inteligência nos garanta a sua autobiografia, que Jesus era seu bom amigo "desde a existência de um. espírito universal, temos a convicção de infância". Tesus é, precisamente, exemplo elucidativo de que ela estabelece apenas uma afirmação. Não acreditamos uma pessoa que pregava algo bem diverso da religião de que tal afirmação demonstre a existência de um espírito uni- seus pais, Mas não parece que o imitatio Christi comporte versal. Não. há argumento contra essa consideração, mas não sacrifício espiritual e psíquico que Ele próprio teve de ofe- há também certeza em relação à validade de nossa conclusão. recer no início de sua trajetória, e sem qual jamais ter-se-ia Ou, em outras palavras: é igualmente possível que nosso es- tornado um redentor. pírito não seja mais do que a manifestação de um espírito conflito surgido entre ciência e religião no fundo 763 universal; mas também quanto a isto não temos a possibi- não passa de um mal-entendido entre as duas. O materialis- lidade de saber se, de fato, é assim, ou não. Por isso, a psi- mo científico introduziu apenas uma nova hipótese, e isso cologia acha que espírito não pode constatar nem demons- constitui um pecado intelectual. Ele deu um nome novo ao trar que ultrapassa esses limites. princípio supremo da realidade, pensando, com isso, haver 761 Portanto, ao reconhecermos os limites de nosso espíri- criado algo inédito e destruído algo antigo. Designar to, estamos mostrando nosso bom senso. Admito que cons- princípio do ser como Deus, matéria, energia, ou quer titui um sacrifício despedir-se do mundo maravilhoso no qual que seja, nada cria de novo. Troca-se apenas de símbolo. vivem e se movimentam seres produzidos pelo nosso espírito. materialista é um metafísico malgré crente, por outro Trata-se do mundo do primitivo, onde até mesmo objetos lado, procura manter-se em um estado primitivo sem vida são dotados de uma força vital, salvadora e mágica, por motivos meramente sentimentais. Não se mostra dispos- mediante a qual esses objetos tornam-se parte integrante de to a abandonar a relação infantil primitiva com as ima- nós mesmos. Mais cedo ou mais tarde tivemos de compreen- gens criadas pelo espírito. Prefere continuar gozando da der que seu poder, no fundo, era nosso próprio poder, e segurança e da confiança que oferece um mundo em que que seu significado era uma projeção de nós mesmos. A teo- pais poderosos, responsáveis e bondosos exercem a vigilân- ria do conhecimento constitui apenas último passo dado, cia. A fé implica, potencialmente, um sacrificium intellectus ao sairmos .da juventude da humanidade, ou seja, daquele (desde que intelecto exista para ser sacrificado), mas nunca mundo em que figuras criadas pelo nosso espírito povoavam um sacrifício dos sentimentos. Assim, os crentes perma- um céu e um inferno metafísicos. necem em estado infantil, em vez de se tornarem crian- 762 Apesar da crítica da teoria do conhecimento, ças, e não encontram a sua vida, porque não a perdem. permanecemos presos à concepção de que um órgão de fé Acresce ainda que a fé entra em choque com a ciência, rece- capacita o homem a conhecer a Deus. Foi assim que Oci- bendo desse modo a sua recompensa, pois se nega a tomar dente desenvolveu a nova enfermidade de um conflito entre parte na aventura espiritual de nossa época. 9 8764 Qualquer pensador honesto é obrigado a reconhecer a resultado da crítica da teoria do conhecimento, conduziu-o insegurança de todas as posturas metafísicas, em especial a logicamente à crítica psicológica. Essa espécie de crítica não insegurança de qualquer conhecimento através da fé. É tam- goza de muita aceitação entre os filósofos, que consideram bém obrigado a reconhecer a natureza insustentável de quais- intelecto filosófico como um instrumento da filosofia per- quer afirmações metafísicas e admitir que não existe uma feito e livre de preconceitos. Entretanto, intelecto é uma possibilidade de provar que a inteligência humana é capaz função que depende da psique individual e é determinado de arrancar-se a si mesma do tremedal, puxando-se pelos por condições subjetivas, para não mencionarmos as influên- próprios cabelos. Por isso é muito duvidoso saber se espí- cias do meio Na realidade já nos habituamos de rito humano tem condições de provar a existência de algo tal modo com essa concepção que "espírito" perdeu seu transcendental. caráter universal. Tornou-se uma grandeza mais ou menos 765 materialismo é uma reação metafísica contra a intui- humanizada, sem qualquer vestígio do aspecto cósmico ou ção súbita de que o conhecimento é uma faculdade espiritual metafísico de outrora; quando era considerado anima ratio- ou uma quando seus limites ultrapassam os da nalis. espírito é considerado, hoje, como algo subjetivo ou esfera humana. Essa reação era na medida em até mesmo arbitrário. Depois que ficou demonstrado que que homem de formação filosófica mediana não en- as universais hipostasiadas de outrora eram princípios carar a hipóstase que daí resultaria necessariamente. Não espirituais, passamos a compreender melhor que toda a nossa percebia que a não passava de outro nome utilizado experiência da chamada realidade é psíquica: cada pensa- para designar princípio supremo da existência. Inversamen- mento, cada sentimento e cada ato de percepção são forma- te, a atitude de fé mostra-nos como as pessoas resistem em dos de imagens psíquicas, e mundo existe na medida acolher a crítica filosófica. Mostra-nos também como é gran- em que formos capazes de produzir sua imagem. Recebemos de temor de terem de abandonar a segurança da infância de tal modo a impressão profunda de nosso cativeiro e de para se lançarem a um mundo e desconhecido, confinamento na psique, que propensos a admi- mundo regido por forças para as quais homem é indife- tir na psique a existência de coisas que desconhecemos e a rente. nada se altera nos dois casos: que denominamos "o inconsciente" homem e ambiente que cerca permanecem idênticos. A amplitude aparentemente universal e metafísica do 767 homem precisa apenas tomar consciência de que está conti- espírito foi reduzida assim a um estreito círculo da cons- do na sua própria psique e que nem mesmo em estado de ciência reflexa individual, que se acha profundamente mar- demência poderá ultrapassar estes limites. Também deve re- cada por sua subjetividade quase sem limites e pela tendên- conhecer que a forma de manifestação de seu mundo ou de cia infantil e arcaica à projeção e à ilusão desenfreadas. seus deuses depende, em grande parte, de sua própria cons- Muitos pensadores científicos sacrificaram, inclusive, suas tituição espiritual. inclinações religiosas e filosóficas, receosos de cair num sub- 766 Como já frisei anteriormente, a estrutura do espírito é jetivismo incontrolado. Para compensar a perda de um mun- responsável sobretudo por nossas afirmações a respeito de do que pulsava com nosso sangue e respirava com nosso objetos metafísicos. Também ficamos sabendo que intelecto sopro, alimentamos um entusiasmo pelos fatos concretos, não é um ens per se ou uma faculdade espiritual indepen- por montanhas de fatos que indivíduo jamais conseguirá dente, mas uma função psíquica, e, como tal, depende da abarcar com um só olhar. Afagamos a doce esperança de que psique como um todo. Um enunciado filosófico é produto esse acúmulo aleatório venha um dia a formar um todo pleno de uma determinada personalidade que vive numa época de sentido. Mas ninguém tem certeza disso, porque nenhum determinada e num determinado lugar. Não é fruto de um cérebro humano é capaz de abranger a gigantesca soma final processo puramente lógico e Sob este aspecto, desse saber produzido em massa. Os fatos nos submergem, enunciado filosófico é antes de tudo subjetivo. Que ele seja e quem ousa especular deve pagar por isso com má cons- válido ou não, subjetivamente, depende do maior ou menor ciência e não sem razão, pois não tarda a tropeçar nos número de pessoas que pensem do mesmo modo. isola- fatos mento do homem no interior de sua própria psique, como Para a psicologia ocidental, espírito é uma função da 768 10 11psique. É a mentalidade de um indivíduo. Na esfera da fi- Alguns identificam a "vida" com a psique. Mas só uma losofia ainda é possível encontrar um espírito universal e minoria inexpressiva considera fenômeno psíquico uma ca- impessoal que parece representar um resquício da "alma" tegoria do ser enquanto tal, tirando daí as humana primitiva. Essa maneira de interpretar a concepção lógicas. verdade, é uma contradição considerar que a ocidental talvez pareça um tanto drástica, mas no meu en- categoria do ser, umas das condições essenciais de todo tender não está muito distante da verdade. Em todo caso, existente, ou seja, da psique, seja real apenas pela metade. é essa a impressão que temos quando a comparamos com a Na verdade, ser psíquico é a única categoria. do ser da mentalidade oriental. No Oriente, espírito é um princípio qual temos um conhecimento direto e imediato, pois nenhu- a existência do ser em ao passo que no Oci- ma coisa pode ser conhecida sem apresentar-se como ima- dente chegamos a conclusão de que o espírito é a gem psíquica. A existência psíquica é a única que pode ser essencial para conhecimento e, por isso, também para a demonstrada diretamente. Se mundo não assume a forma existência do mundo enquanto representação e idéia. No de uma imagem psíquica, é como se exis- Oriente não existe um conflito entre a ciência e a religião, tisse. Este é um fato de que Ocidente não se deu plena- porque a ciência não se baseia na paixão pelos fatos, do mente conta, com raras como, por exemplo, a fi- mesmo modo que a religião não se baseia apenas na fé. losofia de Schopenhauer. Mas Schopenhauer como se sabe que existe é um conhecimento religioso e uma religião cog- foi influenciado pelo budismo e pelos Upanishads. noscitiva Entre nós, homem é infinitamente Até mesmo um conhecimento superficial é suficiente 770 pequeno, enquanto a graça de Deus é No Oriente, pelo para mostrar que existe uma diferença fundamental entre homem é deus e salva-se por si próprio. Os Oriente e Ocidente. Oriente se baseia na realidade psí- deuses do budismo tibetano pertencem à esfera do ilusório quica, isto é, na psique, enquanto condição única e funda- suceder-se das coisas e projeções produzidas pelo espírito, mental da existência. A impressão que se tem é a de que mas nem por isso deixam de ter existência; entre nós, po- esse conhecimento é mais uma manifestação psicológica do rém, uma ilusão continuará sempre uma ilusão, e, como tal, que resultado de um pensamento filosófico. Trata-se de não é coisa alguma. É paradoxal, mas ao mesmo tempo ver- um ponto de vista tipicamente introvertido, ao contrário do dadeiro, o fato de que, para nós, pensamento não possui ponto de vista ocidental, que é tipicamente extrovertido realidade em seu verdadeiro sentido. Nós tratamos como A introversão e a extroversão, como se sabe, são atitudes se fosse nada. Embora pensamento possa ser correto, só temperamentais ou mesmo constitucionais que jamais são admitimos sua existência devido a determinados fatos ex- intencionalmente assumidas em situações normais. Excep- pressos por ele. Podemos inventar certos objetos altamente cionalmente, podem ser desenvolvidas de modo premedita- destrutivos, como por exemplo a bomba atômica, com a do, mas somente em condições muito especiais. A introver- ajuda desses fantásticos produtos de um pensamento que não são é, se assim podemos exprimir-nos, estilo do Oriente, existe na realidade, pois achamos que é totalmente absurdo seja, uma atitude habitual e coletiva ao a admitir-se seriamente a realidade do pensamento em extroversão é estilo do Ocidente No Ocidente, a intro- 769 A "realidade psíquica" é um conceito discutível, da versão é encarada como uma anomalia, um caso patológico mesma forma que a "psique" ou Alguns consi- de alguma forma, inadmissível. Freud identificou-a com derain esses últimos a consciência de seus conteúdos, ao uma atitude auto-erótica do espírito. Ele sustenta a mes- passo que outros admitem a existência de imagens "obs- ma posição negativa da filosofia nazista da Alemanha mo- curas" e "inconscientes". Uns incluem os instintos na esfera filosofia que considera introversão como um do psíquico, ao passo que outros os excluem dela. A grande delito grave contra sentimento comunitário. No Oriente, maioria dos autores considera. a alma resultado de proces- pelo contrário, a extroversão, que cultivamos com tanto ca- SOS bioquímicos ocorridos nas células poucos, a causa da função das células corticais reside na psique. 3 Vejam-se em Psychologische Typen (Tipos psicológicos) as defini- de "extroversão" e "introversão". (Obras completas, vol. VI). 2 Omito, de propósito, Oriente modernizado. 4 Este comentário foi redigido em 1939. 12 13rinho, é considerada um apetite ilusório e enganador, como formas de manifestação se reduzem a ela. É a condição psi- existência no samsara, como o ser mais íntimo da cadeia dos cológica prévia e fundamental que impregna homem orien- nidanas, que atinge seu ponto culminante na soma dos sofri- tal em todas as fases de seu ser, determinando todos os seus mentos do Quem experimentou, na prática, mú- pensamentos, atos e. sentimentos, seja qual for a crença que tuo rebaixamento dos valores entre introvertidos e extro- professe. vertidos dar-se-á conta conflito emocional que existe entre De modo análogo, homem ocidental é cristão, inde-) 772 ponto de vista oriental e ponto de vista ocidental. A pendentemente da à qual pertença. Para ele. a cria discussão acirrada acerca dos universalia, que teve início com tura humana é algo de infinitamente pequeno, um quase Platão, oferece um exemplo instrutivo para quem é versado nada. Acrescente-se a ISSO fato de que como diz Kierke- na história da filosofia da Europa. Não quero examinar aqui gaard, está sempre em falta diante de Deus todas as ramificações do conflito existente entre introver- homem procura conciliar os favores da grande tidos e extrovertidos. Devo, porém, mencionar os aspectos mediante temor, a penitência, as promessas, a submissão religiosos do problema. Ocidente cristão considera ho- a auto-humilhação, as boas obras e os louvores A grande mem inteiramente dependente da graça de Deus ou da Igreja, potência não mas um totaliter aliter, total na sua qualidade de instrumento terreno exclusivo da obra mente outro, absolutamente perfeito e a única rea- da redenção, sancionado por Deus. O Oriente, pelo contrá- lidade Se modificarmos um pouco a fórmula e E rio, sublinha fato de que homem é a única causa efi- em lugar de Deus colocarmos outra grandeza, como, por ciente de sua própria evolução superior; Oriente, com exemplo, mundo, teremos quadro efeito, acredita na "auto-redenção". do homem ocidental zeloso, temente a Deus, piedoso, hu- 771 ponto de vista religioso representa sempre a atitude milde, empreendedor, ávido de acumular apaixo- MATERIAL psicológica e seus preconceitos específicos, mesmo para aque- nada e rapidamente toda a espécie de bens deste-mundo las pessoas que esqueceram a ou que dela nunca como riqueza, saúde, conhecimento, domínio pros- ouviram falar. Em relação à psicologia, Ocidente é cristão peridade pública bem-estar poder conquistas, em todos os sentidos, apesar de tudo. anima naturaliter Quais são os grandes movimentos propulsores de nossa christiana de Tertuliano vale para todo Ocidente, não época? de nos apoderarmos do in mente no sentido religioso, como ele pensava; mas também dinheiro ou dos bens dos outros e de defendermos que no sentido psicológico. A graça provém de uma outra fonte; é nosso. A inteligência se ocupa principalmente em inventar de qualquer modo, ela vem de fora. Qualquer outra perspec- "ismos" adequados para ocultar seus verdadeiros motivos tiva é pura heresia. Assim perfeitamente que ou para conquistar maior número possível de presas. Não a alma humana tenha complexos de inferioridade Quem pretendo descrever que sucederia a um oriental caso esque- ousa pensar em uma relação entre a alma e a idéia de Deus cesse do ideal de Buda. Não quero colocar, assim, tão des- é logo acusado de psicologismo ou suspeito de misticismo lealmente, e para nossa vantagem, preconceito ocidental. doentio pelo contrário tolera, compassivamente Mas não posso deixar de propor a questão de saber se seria esses graus "inferiores" em que o homem .se possível ou mesmo conveniente para ambos os lados imitar ocupa com pecado devido a sua ignorância cega a respeito ponto de vista do outro. A diferença entre ambos é tão do carma, ou atormenta a sua imaginação com uma crença grande que a imitação se torna impossível, e muito mais em deuses absolutos, que se ele olhar um pouco mais ainda a oportunidade de fazer. Não se pode misturar fogo fundamente, perceberá que não passam de véus ilusórios com água. A posição oriental idiotiza homem e OR tecidos pelo seu próprio espírito. Por isso, a psique é ele- vice-versa. Não se pode ser ao mesmo bom cristão mento mais importante, é sopro que tudo penetra, ou seja, e seu próprio redentor, do mesmo modo como não se pode a natureza de Buda; é espírito de Buda, Uno, Dharma- ser ao mesmo tempo um budista e adorar a Deus. Muito Toda vida jorra da psique e todas as suas diferentes 6 Rudolf Otto, Das Heilige, 1918, 28; cf. também: Das Gefühl des 5 12, Nidâna-samyutta. Überweltlichen, 1932, P. 212 e 15 14mais lógico é admitir conflito, pois, se existe realmente uma pode tratar-se de uma solução irracional. Oriente parece tão claro, ou a capacidade de auto- 773 Por inevitável desígnio do destino, homem ocidental libertação própria da mentalidade introvertida. tomou conhecimento da maneira de pensar do oriental. É Esse aspecto do espírito é, por assim dizer, desconhe- 774 inútil querer depreciar essa maneira de pensar ou construir cido no Ocidente, embora seja componente mais impor- pontes falsas ou enganadoras por sobre abismos. Em vez tante do inconsciente. Muitas pessoas negam de a exis- de aprender de cor as técnicas espirituais do Oriente e tência do inconsciente ou afirmam que ele é constituído querer imitá-las, numa atitude forçada, de maneira crista apenas pelos instintos ou por conteúdos recalcados ou esque- Christi muito mais importante seria pro- cidos que antes formavam parte da consciência. Podemos curar ver se não existe no inconsciente uma tendencia intro- admitir com toda a que a expressão oriental vertida que se assemelhe ao princípio espiritual básico do correspondente ao termo "mind" se aproxima bastante do Oriente. Aí, sim; estaríamos em condições de evoluir, com nosso ao passo que termo é esperança, em nosso próprio terreno e com nossos próprios mais ou menos idêntico à consciência reflexa. Para nós, métodos. Se nos apropriarmos diretamente dessas coisas do ocidentais, a consciência reflexa é impensável sem um eu. Oriente, teremos de ceder nossa capacidade ocidental de Ela se equipara à relação dos conteúdos com eu. Se este E com isso estaríamos confirmando, mais uma não existe, estará faltando alguém que possa se tornar que tudo que vem de fora onde devemos consciente de alguma coisa. eu, portanto, é indispensável buscá-lo é bombeá-lo para nossas almas estéreis A meu para processo de conscientização. espírito oriental, pelo ver, teremos aprendido alguma coisa com Oriente no dia contrário, não sente dificuldade em conceber uma consciên- em que entendermos que nossa alma possui em riquezas cia sem eu. Admite que a existência é capaz de estender-se suficientes que nos dispensam de fecundá-la com elementos além do estágio do eu. eu chega mesmo a desaparecer tomados de fora, e quando nos sentirmos capazes de desen- nesse estado "superior". Semelhante, estado espiritual per- volver-nos por nossos próprios meios, com ou sem a graça maneceria inconsciente para nós, pois simplesmente não ha- veria uma testemunha que presenciasse. Não ponho em de Deus. Mas não entregar-nos a essa tarefa am- dúvida. a existência de espirituais que transcendam biciosa sem antes aprender a agir sem arrogância espiritual a consciência. Mas a consciência reflexa diminui de inten- sem uma segurança blasfema. A atitude oriental fere os sidade à medida que referido estado a ultrapassa. Não valores especificamente cristãos, e não adianta ignorar isso. consigo imaginar um estado espiritual que não se ache Se quisermos que nossa atitude seja honesta, isto é, radicada cionado com um sujeito, isto é, com um eu. espírito não em nossa própria história, é preciso apropriar-nos dessa pode subtrair-se a ele. O eu, por exemplo, não pode ser atitude, com plena consciência dos valores cristãos e cons- privado da sua percepção corporal. Pelo contrário, enquanto cientes do conflito que existe entre esses valores e a atitude essa capacidade existir, deverá haver alguém que seja su- introvertida do Oriente. É a partir de dentro que devemos jeito de percepção. É só de forma e indireta que atingir os valores orientais e procurá-los dentro de nós mes- consciência de que existe um inconsciente. Entre mos, e não a partir de fora. Devemos procurá-los em nós os doentes mentais, podemos observar manifestações de frag- mesmos, nosso inconsciente então, descobriremos mentos do inconsciente pessoal que se desligaram da cons- ciência reflexa do paciente. Mas não temos prova alguma quão grande é temor que temos do inconsciente, e como de que os conteúdos inconscientes se achem em relação com são violentas as É justamente por causa um centro inconsciente, análogo ao eu. Pelo contrário, exis- dessas resistências que pomos em dúvida aquilo que para tem bons motivos que nos fazem ver que tal estado nem RESTS sequer é provável. "Quem não possui Deus desta maneira, mas tem necessidade de O fato. de Oriente colocar de Tado eu com tanta 775 buscá-lo todo não possui Deus de maneira e então é fácil que algo perturbe." Meister Eckeharts Schriften und Pre- facilidade parece indicar a existência de um pensamento digten. por H. Büttner, 1909, II, 8. que não podemos identificar com nosso No Oriente, eu desempenha certamente um papel menos ego- 16 17cêntrico que entre nós; seus conteúdos parecem estar rela- gem previamente existente ou ao conceito mediante o qual cionados com um sujeito apenas superficialmente, e os esta- objeto é "compreendido". A psique não é uma não-enti- dos que pressupõem um eu debilitado parecem ser os mais dade, desprovida de qualquer qualidade. Ela consiste num importantes. A impressão que se tem, igualmente, é de que sistema definido, constituído de determinadas condições e a hataioga serve, antes de tudo, para extinguir eu pelo que reage de maneira específica. Qualquer representação domínio de seus impulsos não domesticados. Não há a me- nova, seja ela uma apreensão ou uma idéia espontânea, nor dúvida de que as formas superiores da ioga, ao procurar desperta associações que derivam do tesouro da atingir samadhi, têm como finalidade alcançar um estado Estas se projetam imediatamente na consciência e produzem espiritual em que eu se ache praticamente dissolvido. A a imagem complexa de uma impressão, embora este fato consciência reflexa, no sentido empregado por nós, é con- já constitua, em si, uma espécie de interpretação. Designa siderado algo inferior, isto um estado de avidya (igno- a disposição inconsciente, da qual depende a qualidade da rância), ao passo que aquilo que denominamos de "pano impressão, a que dou nome de "fator subjetivo". Este de fundo obscuro da consciência reflexa" é entendido, no merece qualificativo de subjetivo porque é quase impos- Oriente, como consciência reflexa "superior" nosso con- sível que uma primeira impressão seja objetiva. Em geral ceito de "inconsciente coletivo" seria, portanto, equiva- é preciso antes um exaustivo processo de verificação, lente europeu do bodhi, espírito iluminado. e comparação para que se possa moderar e ajustar as reações 776 Dessas considerações podemos concluir que a forma imediatas do fator subjetivo. oriental de "sublimação" consiste em retirar centro de Apesar da propensão da atitude extrovertida a designar 777 gravidade psíquico da consciência do eu, que ocupa uma fator subjetivo como "apenas subjetivo", a proeminência posição intermédia entre o corpo e os processos ideais da atribuída a esse fator não indica, necessariamente, um subje- psique. As camadas semifisiológicas inferiores da psique são tivismo de caráter pessoal. A psique e sua natureza são bas- dominadas pela prática da ascese, isto é, pela "exercitação", tante reais. Como já assinalei, elas convertem até mesmo os e, assim, mantidas sob controle. Não são negadas ou repri- objetos materiais em imagens psíquicas. Não captam as ondas midas diretamente por um esforço supremo da vontade, sonoras em si, mas tom: não captam os comprimentos das como acontece comumente no processo de sublimação oci- ondas luminosas, mas as cores. O ser é tal qual vemos e dental. Pelo contrário, poder-se-ia mesmo dizer que as cama- entendemos. Existe um número infinito de coisas que podem das psíquicas inferiores são ajustadas e configuradas pela prá- ser vistas, sentidas e entendidas das mais diversas manei- tica paciente da hataioga, até chegarem ao ponto de não ras. Abstração feita dos preconceitos puramente pessoais, a perturbarem mais desenvolvimento da consciência "supe- psique assimila fatos exteriores de maneira própria, que, em rior". Esse processo singular parece ser estimulado pela última análise, se baseia nas leis ou formas circunstância de que o eu e seus apetites são represados da apercepção. Essas formas não sofrem alteração, embora pelo fato de o Oriente atribuir maior importância ao "fator recebam designações diferentes em épocas diferentes ou em A atitude introvertida caracteriza-se, em geral, partes diferentes do mundo. Ao nível primitivo, homem pelos dados a priori da apercepção. Como se sabe, a aper- teme os magos e feiticeiros. Modernamente, observamos os cepção é constituída de duas fases: a primeira é a apreensão micróbios com igual medo. No primeiro caso, todos acredi- do objeto, e a segunda, a assimilação da apreensão à ima- tam em espíritos; no segundo, acredita-se em vitaminas. Antigamente, as pessoas eram possuídas do hoje 8 A psicologia do Ocidente não classifica conteúdos dessa maneira, elas são, e não por idéias, etc. isto é, como julgamentos da consciência que distinguem entre a idéia fator subjetivo é constituído, em última análise, pelas 778 de "superior" e de "inferior". Parece que. Oriente a exis- formas eternas da atividade psíquica. Por isso, todo aquele tência de condições subumanas, uma verdadeira "subcons- que confia no fator subjetivo está se apoiando na realidade ciência" que compreende 05 instintos e psiquismos dos pressupostos psíquicos. Se, agindo assim, ele consegue mas é classificada de "consciência superior" 9 Psycologische Typen, 1950, 511 e Ges. Werke, vol. 6, 406 estender a sua consciência para as profundezas, de sorte a poder tocar as leis fundamentais da vida psíquica, estará em e 18 19condições de entrar na posse da verdade que promana natu- ralmente da psique, se esta não for, então, perturbada pelo quer outro movimento a partir de 622 d.c. comunismo mundo exterior não-psíquico. Em qualquer caso, essa verdade tem a pretensão de instaurar paraíso na terra. Estamos, de fato, mais protegidos contra as más colheitas e epidemias compensará a soma dos conhecimentos que podem ser adqui- ridos através da pesquisa do mundo exterior. Nós, do Oci- do que contra nossa miserável inferioridade espiritual, que dente, acreditamos que uma verdade só é convincente quan- parece oferecer tão pouca resistência às epidemias psíquicas. Ocidente é também extrovertido em sua atitude reli- 779 do pode ser constatada através de fatos externos. Acredita- mos nas observações e nas pesquisas mais exatas possíveis giosa. Hoje em dia soa como uma ofensa afirmar que da natureza. Nossa verdade deve concordar com compor- cristianismo possui um caráter hostil, ou pelo menos uma tamento do mundo exterior, pois, do contrário, essa verdade de indiferença em relação ao mundo e suas alegrias. será meramente subjetiva. Da mesma forma que Oriente Pelo contrário, bom cristão é um cidadão jovial, um ho- desvia olhar da dança da pracrite (physis, natureza) e das mem de negócios empreendedor, um excelente soldado, múltiplas formas aparentes da maya, assim também Oci- melhor em todas as profissões. Os ben's profanos são consi- dente tem medo do inconsciente e de suas fantasias O derados, muitas vezes, uma recompensa especial ao compor- Oriente, no entanto, sabe muito bem haver-se com mundo, tamento cristão, e adjetivo supersubstantialis 10 apesar de sua atitude introvertida; Ocidente também sabe do padre-nosso, que se referia ao pão, foi abandonado há agir com a psique e suas exigências, apesar de sua extro- muito tempo, pois pão real é, evidentemente, muito mais versão. Ele possui uma instituição, a Igreja, que confere importante. Nada mais lógico, portanto, que uma extrover- expressão à psique humana mediante seus ritos e dogmas. são tão ampla não pudesse conceder ao homem uma alma As ciências naturais e a técnica não são também, de modo que encerrasse em si algo que não proviesse exteriormente algum, invenções puramente ocidentais. Seus equivalentes do conhecimento humano, ou que não fosse produzido pela orientais, parecem um pouco fora de moda, ou mesmo pri- graça divina. Sob esse ponto de vista, a afirmação de que mitivos, mas que temos para apresentar no tocante ao homem traz em si a possibilidade da auto-redenção é uma blasfêmia manifesta. Em nossa religião não há nada que conhecimento espiritual e à técnica psicológica deve parecer a idéia de uma força de autolibertação do espírito. tão atrasado comparado à ioga, como a astrologia e a me- Existe, entretanto, uma forma bastante moderna de psico- dicina orientais comparadas às ciências do Ocidente. Não logia a psicologia dita analítica ou complexa segundo quero negar a eficácia da Igreja mas se compararmos os exercícios de Inácio de Loyola com a ioga, compreende- a qual há a possibilidade de que, no inconsciente, ocorram determinados processos que compensem, com seu simbo- remos que quero dizer. Existe uma diferença, e uma dife- lismo, as deficiências e os desnorteamentos da atitude cons- rença muito grande. Passar diretamente desse nível para a ciente. Quando as compensações inconscientes se tornam ioga oriental é tão inoportuno quanto a súbita transforma- ção dos asiáticos em europeus pela metade. Os benefícios conscientes por meio da técnica analítica, provocam uma da civilização ocidental parecem-me duvidosos, e semelhante mudança tão grande na atitude consciente que podemos falar de um novo nível de consciência. Mas método não reparo tenho a fazer também quanto à adoção da mentali- dade oriental por parte do Ocidente. Mas esses mundos é capaz de produzir processo propriamente dito da com- antitéticos se defrontaram. Oriente está em pleno pro- pensação inconsciente. Este depende inteiramente da psique cesso de transformação; foi seriamente perturbado, e pertur- inconsciente ou da "graça divina". nome pouco importa. bado do modo mais profundo e prenhe de Mas processo inconsciente em si quase nunca atinge a cons- Até mesmo os métodos mais eficazes da arte bélica euro- ciência sem a ajuda da técnica. Quando é trazido à tona, péia foram imitados, com sucesso, pelo Oriente. Quanto a revela conteúdos que formam um contraste notável com a nós, a dificuldade parece mais de ordem psicológica. Nossa orientação geral das idéias e dos sentimentos conscientes. fatalidade são as ideologias, que correspondem ao Anticristo Se assim não fosse, tais conteúdos não teriam efeito com- há tanto tempo esperado: nacional-socialismo (nazismo) 10 se assemelha tanto a um movimento religioso quanto qual- termo "substantialis" não corresponde ao verdadeiro (correto) sentido de como mostraram pesquisas posteriores. 20 21pensatório. Mas primeiro resultado, em geral, é um con- transcendente. Para os detalhes, devo remeter leitor à bi- flito, pois a atitude consciente opõe resistência à penetração bliografia das notas de rodapé. Mas não pude deixar de de tendências aparentemente incompatíveis e estranhas. É chamar a atenção para essas observações e para esses moti- nas esquizofrenias que se vêem os exemplos mais espanto- vos de ordem psicológica, porque eles nos indicam cami- SOS de semelhantes intrusões de conteúdos totalmente estra- nho de acesso àquele espírito com qual nosso texto se nhos e inaceitáveis. Nesses casos, trata-se, naturalmente, de relaciona. Trata-se do espírito gerador de imagens da matriz deformações e aberrações patológicas, e com simples co- de todas aquelas formas fundamentais que conferem à aper- nhecimento do material moral é possível constatar a seme- cepção caráter próprio. Essas formas são exclusivas lhança do esquema na base desses Aliás, da psique inconsciente. Constituem seus elementos estrutu- são nossas próprias imagens que podem ser encontradas na rais, e só elas podem explicar por que certos motivos mito- mitologia e em outras formas arcaicas de pensamento. lógicos surgem com maior ou menor por toda 780 Em circunstâncias normais, qualquer conflito impele a parte, mesmo onde a migração é improvável como de psique a agir no sentido de chegar a uma solução transmissão. Os sonhos, os fantasmas e as psicoses produ- ria. Via de regra vale dizer, no Ocidente ponto zem imagens que se identificam aparentemente, em todos de vista consciente é que decide de forma arbitrária contra o os aspectos, com os motivos mitológicos de que as pessoas inconsciente, porque tudo quanto procede do interior do implicadas não tinham conhecimento algum, mesmo indire- homem é, por preconceito, considerado algo inferior ou não tamente, graças a expressões de uso corrente ou por meio inteiramente correto. Mas nos casos aqui todos da linguagem simbólica da Não há dúvida de que os estudiosos concordam em que os conteúdos aparente- tanto a psicopatologia da esquizofrenia quanto a psicologia mente incompatíveis e ininteligíveis não devem ser recalca- do inconsciente revelam a presença de material arcaico. Seja dos de novo, e que é preciso também aceitar e suportar o qual for a estrutura do inconsciente, uma coisa é inteira- conflito. Em um primeiro momento, parece impossível qual- mente certa: ele contém determinado de mo- quer solução, e esse fato deve ser suportado com tivos ou formas de caráter arcaico que, no fundo, se iden- A estase assim verificada "constela" inconsciente ou, tificam com as idéias fundamentais da mitologia e formas em outras palavras, protelamento consciente provoca uma análogas de pensamento. nova reação compensatória no inconsciente. Essa reação, que Pelo fato de inconsciente a matriz espiritual, ele 782 se manifesta geralmente nos sonhos, é levada, então, ao traz consigo a marca indelével do criador. É o lugar onde plano da realização consciente. A se vê, desse se dá nascimento das formas de pensamento, como o é modo, confrontada com um novo aspecto da psique, e isso também o espírito universal, sob ponto de vista do nosso suscita um novo problema, ou modifica inesperadamente os texto. Como não podemos atribuir uma forma definida ao dados do problema já existente. Esse modo. de proceder inconsciente, a afirmação oriental segundo a qual espírito dura até momento em que conflito original é resolvido de maneira satisfatória. Todo esse processo é chamado universal não tem forma é arupaloka; mesmo sendo lugar "função Trata-se, ao mesmo tempo, de de origem de todas as formas, parece justificar-se sob um processo e de um método. A produção de compensações ponto de vista psicológico. Como as formas do inconsciente inconscientes é um processo espontâneo, ao passo que a rea- lização consciente é um método. A função é chamada "trans- 12 Muitas pessoas acham que essas afirmações não merecem crédito; mas, ou não a psicologia do homem primitivo, ou nada cendente" porque favorece a passagem de uma constituição sabem a respeito dos resultados das pesquisas psicológicas. Em psíquica para outra, a mútua confrontação dos obra Symbole der Wandlung (Simbolos de encon- opostos. tram-se observações específicas, como também em und 781 Esta é uma descrição bastante esquemática da função Alchemie, e ainda em J. Nelken, Analytische, Beobachtungen über Phantasien eines Schizophrenen, 1912, D. 504 e S. Spielrein, Über den psychologischen Inhalt eines Falles von Schizophrenie, 11 Veja-se as definições em Psychologische Typen (Tipos psicológi- 1912, P. 329 e C. A. Meier, des kol- cos), no "verbete lektiven 22 23não estão ligadas nenhuma época determinada e, por isso, SOS. Mas, como já indiquei acima, não é tão fácil realizar parecem eternas, causam-nos a impressão singular e única a ambiciosa pretensão de autolibertação, pois as compensa- de intemporalidade quando se realizam no plano da cons- ções inconscientes não podem ser provocadas ciência. Podemos constatar a mesma coisa na psicologia do te; talvez seja preciso esperar que elas sejam produzidas. primitivo: a palavra australiana por exemplo, Também não se pode mudar caráter peculiar da compen- significa, ao mesmo tempo, "sonho", "país dos espíritos" sação: est non est ela é ou simplesmente não é. É e "tempo" no qual os seus antepassados vivem e continua- estranho que a filosofia oriental parece não ter prestado rão a viver. É, segundo dizem, "tempo em que não há atenção a esse fator de suma importância, E é precisamente tempo". Isso nos parece uma concretização e uma projeção tal fato que justifica psicologicamente ponto de vista oci- manifestas do inconsciente, com todas as suas características dental. Parece que a psique ocidental tem um conhecimento suas manifestações oníricas, suas formas originais de pen- intuitivo da dependência do homem em relação a um poder samento e sua intemporalidade. obscuro que deve cooperar para tudo corra bem. Onde 783 Por isso é que atitude introvertida, na qual a e quando o inconsciente não coopera, homem se vê em- tônica recai no fator subjetivo (o pano de fundo da cons- baraçado até mesmo em suas atitudes costumeiras. Em tal ciência) e não no mundo exterior (o mundo da consciência), situação, pode tratar-se de uma falha da memória, da ação provoca necessariamente as manifestações características do ou do interesse coordenados, e da concentração; e essa falha inconsciente, ou seja, as formas arcaicas de pensamento im- pode dar origem a inconvenientes sérios ou eventualmente pregnadas de sentimentos "ancestrais" ou "históricos", e também a um acidente fatal que pode levar à ruína tanto também do sentimento de indeterminação, de intemporali- profissional como moral. Antigamente, em tais casos, os dade e de unidade. sentimento peculiar de unidade é uma homens diziam que os deuses haviam sido inclementes; hoje experiência típica que ocorre em todas as formas de misti- falamos de neurose. Sua causa, nós a procuramos na falta cismo, e é provenha da contaminação geral de vitaminas, nos distúrbios glandulares ou sexuais, ou no dos conteúdos que se fortalecem com a debilitação da cons- excesso de trabalho. Se cessa de repente a cooperação do ciência reflexa (abaissement du mental). A mistura inconsciente, que jamais consideramos inteiramente na- quase sem limites das imagens nos sonhos e também nos tural, então se trata de uma situação gravíssima. produtos dos enfermos mentais nos atesta sua origem in- Comparativamente a outras raças como, por exem- 785 consciente. Ao contrário da distinção e da diferença bem plo, a chinesa parece que ponto fraco do é claras das formas no plano da consciência, os conteúdos in- o equilíbrio espiritual ou para dizê-lo grosseiramente conscientes são extremamente indeterminados, e é por isso cérebro. É compreensível que queiramos distanciar-nos que podem misturar-se com facilidade. Se começássemos a máximo possível de nossas fraquezas, fato este que explica imaginar um estado em que nada fosse claro, certamente aquela espécie de extroversão com que se procura dominar perceberíamos todo como uno. Por isso não é muito im- meio ambiente. A extroversão caminha paralelamente à provável que a sensação singular de unidade do conheci- desconfiança em relação ao homem interior, quando, de algu- mento subliminar do complexo universal derive do incons- ma forma, não nos damos conta dela. Além disso, todos nós ciente. tendemos a subestimar aquilo que tememos. Nossa con- 784 Graças à função transcendente temos não só acesso ao vicção absoluta de que nibit est in intellectus quod non antea uno", como aprendemos igualmente a entender as tuerit in sensu de que no intelecto não se encontra nada razões pelas quais Oriente acredita na possibilidade da que não tenha sido apreendido, primeiramente, pelos senti- autolibertação. Parece-me justo falar-se em "autolibertação" dos, que constitui a divisa da extroversão ocidental, deve se se consegue modificar o estado psíquico mediante a in- ter um fundamento semelhante. Mas, como frisamos ante- trospecção e a realização consciente das compensações in- riormente, essa extroversão se justifica psicologicamente pela conscientes e, assim, chegar à solução dos conflitos doloro- razão essencial de que a compensação inconsciente escapa ao controle humano. Sei que a ioga se orgulha de poder 13 L. La mythologie primitive, 1935, P. 23 e controlar até mesmo os processos inconscientes, de sorte 24 25que nada há na psique que não seja dirigido por uma cons- da natureza ou seu próprio grande experimento, acha-se ciência suprema. Não duvido, absolutamente, de que um autorizado a semelhantes empreendimentos, se for capaz de tal fato seja mais ou menos possível, mas só com uma suportá-los. Sem unilateralidade, espírito humano não po- condição: de que o indivíduo se identifique com incons- deria desenvolver-se em seu caráter diferenciado. Mas creio ciente. Essa identidade é equivalente oriental de nossa que não faz mal tentarmos compreender ambos os lados. idolatria ocidental da objetividade absoluta, da orientação A tendência extrovertida do Ocidente e a tendência 787 maquinal para um determinado fim, para uma idéia ou obje- introvertida do Oriente possuem um objetivo comum muito to, mesmo com risco de perder todo vestígio de vida importante: ambos fazem esforços desesperados por vencer interior. Do ponto de vista oriental, esta objetividade é apa- aquilo que a vida tem de natural. É a afirmação do espírito vorante, é sinônimo da identidade completa com samsara; sobre a matéria, opus contra naturam, indício da juven- para Ocidente, pelo contrário, samadhi outra coisa não tude do homem, que se delicia toda a vida a usar da mais é senão um estado onírico sem importância. No Oriente, poderosa das armas jamais inventadas pela natureza: es- homem interior sempre exerceu sobre homem exterior pírito consciente. O entardecer da humanidade, que se situa um poder de tal natureza que mundo nunca teve oportu- ainda num futuro longínquo, pode suscitar num ideal dife- nidade de separá-lo de suas raízes profundas. No Ocidente, rente. Com o passar do tempo talvez nem sequer se sonhe pelo contrário, homem exterior sempre esteve de tal modo mais com conquistas. no primeiro plano que se alienou de sua essência mais ínti- ma. O espírito único, a unidade, a indeterminação e a eter- nidade se achavam sempre unidas no Deus uno. homem tornou-se pequeno, um nada, e fundamentalmente sempre imerso num estado de má consciência. 786 Creio que através de minha exposição tornou-se claro que esses dois pontos de vista, embora se contradigam mu- tuamente, têm um fundamento psicológico. Ambos são uni- laterais, porque não levam em conta os fatores que não se ajustam à sua atitude típica. primeiro subestima mundo da consciência reflexa; segundo, mundo do espírito uno. O resultado é que ambos, com sua atitude extrema, perdem metade do universo; sua vida se acha- separada da realidade total, tornando-se facilmente artificial e desumana. O Oci- dente tem a mania da "objetividade", seja a atitude ascética do cientista ou a atitude do corretor da Bolsa que esbanja a beleza e a universalidade da vida em troca de um obje- tivo mais ou menos ideal. No Oriente, que se procura é a sabedoria, a paz, desprendimento e imobilidade de uma psique que foi conduzida de volta às suas origens obscuras e deixou para trás todas as preocupações e alegrias da vida, tal como ela é e provavelmente será. Não é de admirar que essa unilateralidade; em ambos os lados, assuma formas muito semelhantes às do monaquismo. É ela que garante ao eremita, ao homem santo, ao monge ou ao cientista uma concentração tranqüila e sem distúrbios sobre um determi- nado objetivo. Nada tenho a objetar contra semelhante uni- lateralidade. É evidente que homem, grande experimento 26