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LUIZ FERNANDO COELHO TEORIA CRITICA DO DIREITO EDIÇÃO - REVISTA, ATUALIZADA E AMPLIADACoelho, Luiz Fernando. C672 Teoria crítica do direito / Luiz Fernando - 3. ed. rev., atual. e ampl. - Belo Hrizonte: Del Rey, 2003. 626 p. - 15,5 22,5 cm ISBN 85-7308-562-2 1. Filosofia do direito. I. Título. CDD: CDU: 340.12 Bibliotecária responsável: Maria da Conceição Araújo CRB 6/1236 Editor: Arnaldo Oliveira Conselho Editorial: Antônio Augusto Cançado Trindade Antonio Augusto Junho Anastasia Ariosvaldo de Campos Pires Aroldo Plínio Gonçalves Carlos Alberto Penna R. de Carvalho Celso Magalhães Pinto Edelberto Augusto Gomes Lima Eugênio Pacelli de Oliveira Hermes Vilchez Guerrero José Edgard Penna Amorim Pereira Misabel Abreu Machado Derzi Plínio Salgado Rodrigo da Cunha Pereira Sérgio Leilis Santiago Diagramação: Know-how Editoração Eletrônica Revisão: Fabrício Silva Nascimento Copyright 2003 by LIVRARIA DEL REY EDITORA LTDA. www.delreyonline.com.br Administração Rua Aimorés, 612 - Loja 01 - Funcionários Belo Horizonte - MG CEP 30140-070 Tel.: (31) 3273-2066 - Fax: (31) 3273-2031 delrey@delreyonline.com.br Lojas Rua Goitacases, 71 - Lojas 20/24 - Centro Belo Horizonte - MG - CEP 30190-909 Tel.: (31) 3274-3340 -- Fax: (31) 3213-6840 goitacases@delreyonline.com.br Av. do Contorno, 4355 - São Lucas Belo Horizonte - MG - CEP 30110-090 Tel.: (31) 3284-6665 - Fax: (31) 3284-1545 Editor Tel.: (31) 3284-9770 delrey@net.em.com.br Editora em BH Rua Aimorés, 612 - Loja 01 - Funcionários Belo Horizonte - MG - CEP 30140-070 Televendas: 0800-314633 Telefax: (31) 3273-1602 editora@delreyonline.com.br Editora em SP Rua Santo Amaro, 582 - Centro São Paulo - SP - CEP 01315-000 Televendas: 0800-7722213 - Telefax: (11) 3101-9775 delreysp@uol.com.br Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, sejam quais forem os meios empregados, sem a permissão, por escrito, da Editora. Impresso no Brasil Printed in Brazil Material com direitos autoraisSUMÁRIO UMA UM TESTEMUNHO XI PREFÁCIO À TERCEIRA EDIÇÃO XV INTRODUÇÃO TÍTULOI OPENSAMENTO CRÍTICO CAPÍTULO I PRELIMINAR METODOLÓGICO 21 1. O problema do conhecimento 21 2. O pensamento dialético 32 3. A dialética da participação 40 4. As categorias críticas 46 CAPÍTULO II As VERTENTES DO PENSAMENTO CRÍTICO (1) 53 1. O contexto interdisciplinar 53 2. O referencial epistemológico 55 3. referencial 66 4. O referencial psicanalítico 71 CAPÍTULO III As VERTENTES DO PENSAMENTO CRÍTICO (II) 87 1. O referencial fenomenológico 87 xxi Material.com direitos autorais2. O referencial sociológico 96 3. A filosofia marxiana e a teoria crítica da sociedade 103 CAPÍTULO IV CRÍTICA SOCIAL E CATEGORIAS 111 1. As categorias do pensamento crítico 111 2. A sociedade 112 3. A ideologia 117 4. A alienação 138 5. A práxis 143 6. Conclusão preliminar 154 TÍTULO II PENSAMENTO CRÍTICO NO DIREITO CAPÍTULO V O SABER JURÍDICO 159 1. As dimensões do saber jurídico 159 2. A epistemologia jurídica 163 3. A lógica jurídica 165 4. A ciência do direito: dogmática, zetética e crítica 172 5. A dimensão crítica do saber jurídico 189 CAPÍTULO VI REFERENCIAL DA DOGMÁTICA JURÍDICA 195 1. A crítica positivista e a concepção dogmática do direito 195 2. conceito do direito 208 3. A lei ea norma 213 4. direito, a moral e as normas sociais 217 5. A relação jurídica e os conceitos jurídicos fundamentais 226 6. O direito positivo 231 CAPÍTULO VII O REFERENCIAL DA FILOSOFIA DO DIREITO 245 1. A jusfilosofia tradicional: legitimação e libertação 245 xxii Material com direitos autorais2. O normativismo como referencial ontológico 258 3. Rumo ao normativismo concreto: o institucionalismo júridico 263 4. O direito como construção social 274 5. O direito como linguagem 278 6. A síntese culturalista: egologismo e tridimensionalismo 283 7. Visão de conjunto 297 CAPÍTULO VIII O PENSAMENTO CRÍTICO NO DIREITO 299 1. Crise de direito e crítica social 299 2. O pensamento crítico europeu 308 3. O movimento critical legal studies 315 4. pensamento crítico ibero-americano 317 5. O direito alternativo 325 TÍTULO III A TEORIA CRÍTICA DO DIREITO CAPÍTULO IX O DIREITO COMO IDEOLOGIA 341 1. A ideologia do direito 341 2. A ideologia do Estado 360 3. Os princípios gerais de direito 375 4. Os pressupostos ideológicos da dogmática jurídica 390 CAPÍTULO X A UNICIDADE DO DIREITO 409 1. A concepção monista e estatal do direito 409 2. A concepção pluralista e social do direito 422 3. Pluralismo jurídico e libertação 441 CAPÍTULO XI A RACIONALIDADE DO DIREITO 449 1. O positivo racional 449 2. A racionalidade normativa 462 xxiii Material com direitos autorais3.A racionalidade ordenamental 469 4. A racionalidade decisional 477 5. As lacunas do direito 481 6. Razão jurídica e ideologia 493 CAPÍTULO XII A LEGITIMIDADE DO DIREITO (1) 503 1. princípio jurídico da legitimidade 503 2. Legitimidade e metajurídica 510 3. A alienação jurídica 519 CAPÍTULO XIII A LEGITIMIDADE DO DIREITO (II) 537 1. Legitimidade e trabalho 537 2. Legitimidade e processo 544 3. Legitimidade e libertação 560 REFLEXÕES FINAIS 567 BIBLIOGRAFIA 577 xxiv Material com direitos autoraisINTRODUÇÃO A partir da afirmação do direito como sistema científi- co, o discurso legitimador da ordem social passou a contar com novo fator de persuasão: a hipostasiação da ordem jurí- dica e de seus elementos estruturais, pela auto-elevação ao status de ordem conceitual, ela mesma capaz de se autolegi- timar enquanto objeto de teorização pretensamente científi- ca. Na medida em que a sociedade moderna se cristalizava em suas estruturas jurídico-políticas, essa ordem-objeto, pela sua força autolegitimadora, catalizava o labor teórico da ciência e da filosofia do direito como fim em si, além e acima da ordem social concreta, cumprindo um papel ideológico de pre- servação e reprodução dessa mesma ordem. Esse quadro teórico da ciência jurídica se achava envol- vido pelo estatuto que o senso comum atribuía a todas as ciências sociais e à própria filosofia, o qual as levava a pros- crever de sua respectiva problemática a realidade social, subs- tituída em sua objetividade pelos conceitos que, embora ela- borados a partir da história, passavam à condição de a-histo- ricidade e, muito mais, de fundantes da experiência histórica. Se é verdade que o estatuto tradicional das ciências so- ciais e da filosofia se desvaneceu ante o repensar de sua fun- ção atual - repensar que as situa entre o absoluto niilismo epistêmico e a total redução ao plano político - não é menos verdade que o direito, nos diferentes planos em que ocorre enquanto experiência social, pouco ou nada se deixou pene- trar pela ordem renovadora; hei-lo, no plano empírico da vida Material com direitos autorais2 TEORIA CRÍTICA DO DIREITO jurídica, a servir como instrumento de dominação: a história do direito é a história do poder; e no plano da teoria, a repe- tir com novas roupagens retóricas mesmo discurso legitimador de suas próprias elaborações, cristalizadas em conceitos hi- postáticos, por isso mesmo, pressupostos enquanto objeto de um conhecimento que pretende cientificidade: a história da filosofia do direito é a retórica da legitimação. Repensar o direito é tarefa que se impõe, a fim de su- perar o anacronismo que o caracteriza quando comparado às outras ciências sociais. Mas comporta ele um tal projeto? Poderia o direito, como objeto de conhecimento científico, suportar o estatuto dimanado daquele repensar de sua função social atual sem destruir-se no plano teórico? Reconheço que as possibilidades de teorização assim concebidas são extremamente limitadas e, também, que a lite- ratura filosófico-jurídica, recentemente publicada, tem trata- do exaustivamente dos aspectos epistemológicos do tema, preocupando-se com a superação dos paradigmas tradicio- nais da ciência Mas deve-se igualmente reconhecer que a epistemologia é somente um limiar, não passa de bons propósitos e eficiente indicador de certo caminho a seguir, o qual ainda não foi trilhado. Daí que a repetição ou aprofun- damento da problemática epistemológica relacionada com direito pouco ou nada acrescentará à tarefa que se me afigu- MACHADO NETO, Antônio Luís. Teoria da ciência jurídica. São Paulo: Sarai- va, 1975; REALE, Miguel. direito como experiência. São Paulo: Saraiva, 1968; Tércio Sampaio. A ciência do direito. São Paulo: Atlas, 1977; Maria Helena. A ciência do São Paulo: Resenha Universi- tária, 1975; WARAT, Luis Alberto. A pureza do poder: uma análise crítica da teoria jurídica. Florianópolis: UFSC, 1983; RAFFO, Júlio C. Introdução ao co- jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1983. Roberto J. La naturaleza del conocimiento jurídico. Buenos Aires: Cooperadora de Derecho y Ciencias Sociales, 1973; GUIBOURG, Ricardo A.; GHIGLIANI, Alejandro Ricardo V. Introducción al conocimiento Buenos Aires: Astra, 1984. KALINOWSKI, Georges. Querelle de la science normative. Paris: 1969. HESPANHA, Antonio M. Panorama histórico da cultura jurídica européia. Publicações Europa-América, 1997. Material com direitos autoraisINTRODUÇÃO 3 ra fundamental, no contexto de renovação das teorias do so- cial a que se assiste no presente. O que se impõe é adiante, sair dessa ante-sala epistemológica para construir as novas formas de conhecimento, aptas a pensar e repensar jus como algo integrado no concreto ao qual direta ou indireta- mente se refere, e também repensá-lo como algo compromis- sado com a transformação desse concreto. Seguindo a direção apontada pelo historicismo alemão do século XIX, uma teoria geral do direito somente seria possível dentro do paradigma analítico da ciência, o qual tem por modelo a lógica tradicional e a matemática. O momento culminante dessa elaboração é o purismo metodológico de Hans Kelsen, o qual, para isso, foi levado a renunciar ao momento ôntico do direito como forma de experiência social, embora o autor a definisse como uma teoria geral do direi- to positivo. Essa renúncia veio a ser um motivo de desquali- ficação da teoria kelseniana como propriamente jurídica, per- manecendo circunscrita à lógica do direito. Essa interpretação, proposta pelos juristas do egologismo existencial argentino, abre o caminho para nova perspectiva de elaboração teórica do direito que, sem recair no sociologismo extremado, procurasse dar-se conta da concreção de seu ob- jeto, ou seja, uma teoria jurídica não abstrata. As aproximações teóricas nesse sentido podem também ser registradas no contexto do movimento realista escandi- navo, cuja meta foi justamente equacionar os fundamentos do direito como ciência Outra tentativa não menos ex- pressiva é a da escola analítica anglo-americana, cujo em- pirismo revela, entretanto, um estruturalismo metodológico que descaracteriza suas elaborações como teoria voltada para o 2 ROSS, Alf. Hacia una ciencia realista del Trad. de Julio Barboza. 2. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1968. MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Sobre a crise dos paradigmas e a questão do direito Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, ano 30, n. 30, 1998; Idem: A ciência do direito: conceito, objeto, método. Rio de Janeiro:Forense 1982. Material com direitos autorais4 TEORIA CRÍTICA DO DIREITO concreto. Penso poder aproximar dessa mesma metodologia, que ostenta muito do funcionalismo anglo-americano, as re- centes pesquisas tendentes a definir modelos lógicos para as ciências jurídicas, como as operadas por Aarnio4 e as elaboradas pela escola analítica de Buenos bem como pelo atual movimento de renovação das teorias jurídi- cas em face do avanço da informática na experiência profis- sional dos Não me parece que essas tentativas tenham ido muito além da simples revelação de alguns dados particularmente importantes no contexto da experiência histórico-social do direito. Nenhum desses modelos, relevantes sem dúvida para amostragem das conexões internas do fenômeno jurídico, de suas relações estruturais e articulações interdisciplinares, conta da efetiva participação dos atores jurídicos na construção de seu objeto e, principalmente, do alcance político-social da atuação dos juristas profissionais, que se articula com a dimensão propriamente jurídica do objeto, quando esses juristas atuam como sujeitos de uma práxis transformadora do direito e da sociedade. Fica evidenciado então um impasse metodológico: a impossibilidade de construir, dentro dos paradigmas positivistas 3 HART, Herbert L. A. El concepto del derecho. Trad. de Genaro R. 2. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1977. 4 AARNIO, Aulis. Denkweisen der Rechtswissenschaft. Wien, 1979. 5 Jerzy. Una base semantica per la teoria dell' interpretazio- ne giuridicas. In: Analisi del linguaggio. Milano: Ed. de Communità, 1976, 347-373. 6 VERNENGO, Roberto José. Curso de teoria general del 2. ed. Buenos Aires: Cooperadora de Derecho y Ciencias Sociales, 1976. Idem, La interpretación literal de la ley. 2. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1994. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do Trad. de José 2. ed. Lisboa: Fun- dação Calouste Gulbenkian, 1989. 7 LOSANO, Mario G. Lições de informática jurídica. São Paulo: Resenha Tribu- tária, 1974. Tb. Antonio E. Nuevas tecnologías, sociedad El impacto de las N.T. de la información. Madrid: Fundesco, 1987. Idem, Manual de informática y derecho. Ariel, 1996. Material com direitos autoraisINTRODUÇÃO 5 tradicionais, um estatuto teórico voltado para a concepção do direito como experiência. Esse impasse torna-se ainda mais agudo quando se percebe que no entendimento comum, não só das pessoas do povo que vivenciam essa experiência, como também entre a maioria dos operadores do direito, os modelos analíticos ou empíricos de saber infirmados pelo posi- tivismo parecem os únicos capazes de resguardar a dignida- de científica das ciências sociais. Daí a opção por um modelo alternativo de ciência jurí- dica que pudesse escapar desse dualismo metodológico; e novo caminho foi trilhado na direção do pensamento dialético, o qual, desenvolvido pelos culturalistas a partir da fenome- nologia e da filosofia existencial, pareceu igualmente apto ao trato metodológico das articulações normo-fático-axiológicas do direito, sem prejuízo às exigências de cientificidade. Essa nova metodologia está na base do culturalismo fenomenológico de e Goldschmidt. 10 Mas o escopo metodológico dessa dialética acabou por limitar-se à descrição dos fatores implicados, reduzin- do-se a saberes retrospectivos e descritivos sem ultrapassar os limites de uma teoria da ciência do direito, vale dizer, sem adentrar à objetividade desta teorização. Assim, o culturalismo fenomenológico, sem embargo de constituir a vertente mais expressiva para uma compreensão verdadeira do direito como experiência, acabou por revelar-se inviável para a crítica pros- pectiva e transformadora de seu objeto. É que as teorias ju- rídicas elaboradas pelas diversas manifestações do cultura- lismo dialético envolviam pressupostos idênticos aos ineren- tes aos paradigmas positivistas de caráter empírico ou analí- 8 REALE, Miguel. Fundamentos do 2. ed. São Paulo: RT/Edusp. 1972. Idem, Teoria tridimensional do direito. São Paulo: Saraiva, 1980. 9 COSSIO, Carlos. La teoria egológica del derecho y el concepto jurídico de liberdad. 2. ed. Buenos Aires: 1964. Idem, Teoria de la verdad jurídica. Buenos Aires: Losada, 1954. 10 Werner. Introducción filosófica al derecho. 6. ed. Buenos Aires: Depalma, 1983. Material com direitos autorais6 TEORIA CRÍTICA DO DIREITO tico; e tais pressupostos, consubstanciados na preocupação descritiva e retrospectiva em relação a seu objeto, represen- tam sério obstáculo à elaboração de uma teoria crítica, por levarem a considerar o objeto como algo pressuposto e aca- bado que se antepõe ao conhecimento e não que possa ser por ele construído. Tal visão da objetividade científica comprometeu de vez a elaboração teórica do direito dentro de uma teoria crí- tica da sociedade, porquanto eis que sua metodologia já vi- nha comprometida com um objeto cuja realidade ôntica, embora identificada com sua dialeticidade imanente, já era pressu- posta como objeto e, portanto, impunha-se como direito- em-si ao sujeito cognoscente. Aos teóricos do movimento culturalista escapou que a ciência do direito não descreve uma ordem imanente, objetivamente pressuposta, mas a constrói ideologicamente. Isso não obstante, restaram afastados os preconceitos neopositivistas, favorecendo-se a procura de novos modelos de saber, cuja exigência fundamental deveria ser o compro- misso com a verdade real e não com a verdade formal ou mera- mente conjetural dimanada do imaginário da filosofia, da reli- gião e da própria ciência; e é por essa razão que o culturalismo dialético, nas versões privilegiadas da teoria tridimensional do direito de Miguel Reale, da teoria egológica do direito de Car- los Cossio e do trialismo jurídico de Goldschmid, é apresen- tado como o antecedente mais expressivo da teoria crítica do direito no contexto da jusfilosofia. Daí também a importância da epistemologia crítica contemporânea, a qual reforçou ainda mais essa procura dos novos paradigmas, ao evidenciar o caráter falacioso da pretensão de verdade dos modelos positivista e neopositivista. Com as adaptações metodológicas exigidas pelo objetivo central da tese exposta neste livro, procuro elaborar, meto- dicamente, um projeto epistêmico inicial, a partir das ver- tentes consubstanciadas nessa epistemologia, um modelo de saber jurídico que, em vez do escopo descritivo e retros- Material com direitos autoraisINTRODUÇÃO 7 pectivo assimilado pelo senso comum, possa ser construti- e prospectivo, voltado para o direito enquanto produção social específica de uma sociedade em dado momento his- tórico e destinado, ainda que indiretamente, à solução de pro- blemas sociais reais e concretos e não para manter dogmas e doutrinas. Tendo em vista essas reflexões, e respondendo ao de- safio inicial de construção de uma teoria geral do direito con- cebido como concreção experiencial, é que apresento a proposta de uma teoria crítica do direito. Embora conceda alguma prevalência à problemática epis- temológica, a teoria crítica do direito consubstanciada nos tre- ze capítulos que seguem não se exaure na epistemologia jurí- dica. Ela pretende constituir um passo a mais na tarefa a que me propus em outro qual seja, a construção de uma teoria do direito que, sem abdicar de certo rigor na explicitação das hipóteses, conceitos e categorias que constituem o obje- to da tese, isso em homenagem à cientificidade exigida nos trabalhos acadêmicos, assumisse o conteúdo ideológico des- se mesmo objeto e procurasse conciliar tal exigência com um compromisso que se afigura basilar, o estabelecimento de con- dições históricas que propiciem a realização do ser humano em suas potencialidades, como indivíduo e como membro de uma comunidade, e, de maneira mais prosaica, condições para que homem possa ter uma existência digna e realizar o ideal eudemonístico que constitui sua primeira vocação, isto é, para que possa ser feliz neste mundo. Trata-se pois de uma proposta de teorização que, en- volvendo todos os aspectos do problema da juridicidade pas- síveis de tratamento científico, os integre em uma unidade epistêmica apta a a teoria do real jurídico Em outras palavras, trata-se de uma teoria impu- ra, no sentido de que ela se fundamenta em pressuposto 11 COELHO, Luiz Lógica jurídica e interpretação das leis. 2. ed. Riode Janeiro: Forense, 1981, p. 306. Idem, Introdução à crítica do direito, Curitiba: HDV, 1983. Material com direitos autorais8 TEORIA CRÍTICA DO DIREITO ontológico oposto ao do purismo metodológico kelseniano. A teoria que proponho repele a atribuição ao direito de esta- tuto ontológico alheio à ontologia do social, e considera fa- laciosa a redução do fenômeno jurídico às possibilidades ônticas elaboradas a partir dos esquemas lógicos que o antecedem como experiência. Se for necessário, todavia, estabelecer um conceito de direito, seja para objetivos didáticos, seja para resguardar um mínimo de coerência em relação aos critérios do senso comum, prefiro defini-lo nos quadros de um realismo volta- do para o ser social, de que o fenômeno jurídico é somente um aspecto que não pode desligar-se da totalidade à qual pertence. É portanto fundamental para entendimento da teoria crítica do direito que se repila a persistente atribuição ao fenômeno jurídico do estatuto de um direito-em-si. Quando aludo ao repensar das ciências sociais e da pró- pria filosofia, em face da nova problemática a que o pensa- mento jurídico tradicional permanece alheio, tenho em men- te o horizonte da ação social, da participação consciente na tarefa, que é de todos, de construção e reconstrução de um mundo humano; essa práxis representa, com efeito, o deno- minador comum das questões que vieram impedir que a teo- ria do social caísse no vazio. A esse novo estatuto repugna a separação entre a teoria e a experiência, não mais considera- das como entidades separadas no plano teórico, mas como termos de uma relação que reflete uma dialeticidade imanente, eis que ambas já não suportam a atribuição de estatuto ontológico estanque, como realidades em si, mas apenas o estatuto de princípios da única realidade: o ser humano individual e so- cial, cuja ontologia, esta sim, pode servir de fundamento a qual- quer teorização. Em outras palavras, a questão ontológica da juridicidade é um falso problema que a tradicional filosofia do direito renova em retórica sempre mais sofisticada. Falso, porque elide a questão ontológica real, que é a da sociedade, em que o direito não é um ser, mas um conjunto ideológico de prin- cípios daquela realidade social construída pelos indivíduos Material com direitos autoraisINTRODUÇÃO 9 e pelos povos, no processo histórico em permanente trans- formação. E falso ainda porque as tentativas de captar a juridicidade como algo-em-si acabam por ubiquar-se no plano retórico da legitimação da ordem social, recuperando-se o velho princípio socrático de que a obediência às leis é uma necessidade ôntica e não um princípio de ação. Fica portanto estabelecida importante distinção: a ten- tativa de elaborar uma teoria realista do direito no quadro teórico ora definido situa-se como uma teoria crítica, mas não a rigor como um realismo jurídico. Se a expressão rea- lismo alude à realidade do direito entendida como objeto que está aí, o qual atua como condicionante das teorias jurí- dicas, há que renunciar a esta pretensão. Os diversos realismos constituíram evidentemente im- portantes marcos na elaboração de uma teoria crítica do di- reito, mas não me parece que tenham eles se ocupado da problemática social, absortos que estavam com as aparên- cias ideológicas dessa realidade. O psicologismo judicial da escola realista estadunidense, empirismo sociológico dos realistas escandinavos, o realismo analítico da escola de Oxford, o nominalismo pragmático dos filósofos da linguagem jurídi- ca, bem como outras aproximações setoriais a uma concep- ção do direito enquanto revelação do próprio histórico-so- cial, não fizeram mais do que estruturar conceitualmente os aspectos estanques que mais lhes pareciam vinculados ao fe- nômeno da juridicidade. Mas mantendo a separação algo ma- niqueísta entre teoria e experiência, filosofia e ciência, indi- vidual e social, racional e emocional, sem oferecer resposta adequada aos problemas que a insuficiência do pensamento jurídico tradicional suscitava quando confrontado com a rea- lidade histórica. Qual então o sentido e alcance da postura crítica preco- nizada nestas páginas? Ao evitar-se a desnecessária rotulação de realismo, resta porém outro nível de separação, a que ocorre entre as teorias jurídicas críticas e as não-críticas, mas tão-somente em decor- rência da necessidade de estabelecer um referencial apto a Material com direitos autorais10 TEORIA CRÍTICA DO DIREITO abranger a variedade de significados que a palavra crítica suscita. Embora seja um significante que se ressente de certo desgaste, algo como simples modismo decorrente da abertu- ra política ocorrida recentemente nos países designados emer- gentes, longamente dominados por ditaduras refiro-me em especial à América Latina a crítica não se exaure no mero compromisso com a verdade, no sentido de oposição do cer- to/científico ao errado/ideológico, a partir de sua própria mas envolve um compromisso mais profundo com a denúncia histórica. E assim, o critério que possibilita a dis- tinção, no que tange à filosofia do direito, vem a ser a articu- lação dos vários planos em que se manifesta a teoria jurídica com os aspectos também articulados do histórico, político, econômico etc., que constituem o concreto histórico, o que desde logo evoca uma interdisciplinariedade, mas dentro de um compromisso com a sociedade e seus problemas reais, visando solucioná-los. O projeto basilar de uma teoria crítica do direito trata, em suma, de pensar o direito em função da dialeticidade do social, mas envolvendo um compromisso ético e político muito mais profundo do que o simples acatamento às leis e às insti- tuições que através dela se consolidaram, o que transcende em muito o quadro de uma teoria do direito positivo. Além disso, muito mais do que uma interdisciplinariedade do saber jurídico articulado com os diversos planos das ciências da sociedade, a teoria crítica se constitui numa transdisciplinarie- dade, isto, em função de sua própria lógica dialética. Este quadro teórico inicial pode, não obstante, ser leva- do a efeito segundo os paradigmas epistêmicos tradicionais, em que a imbricação entre a teoria e a experiência conduziu a uma teorização retrospectiva e descritiva daquelas articula- ções. É o caso das teorias que ubiquam o direito no contexto determinado pelas relações de produção, na esteira da famo- sa alusão de Marx à evidência de que a consciência é deter- 12 CHAUI, Marilena. Crítica e ideologia. In: discurso competente e outras falas. São Paulo: Brasiliense, 1981. Material com direitos autoraisINTRODUÇÃO 11 minada pelo ser social do Essa perspectiva marxiana abre a via para uma dialética do entendida como o repensar do real a partir do real e não das idéias as quais a ele se referem ou que o pretendem representar, mas não muda o paradigma da separação entre a teoria e a práxis. Ainda que de modo frágil, é o início de uma via para a busca de um compromisso com a verdade que deflui da própria realidade social. Isso é bastante compreensível em face da atual crise das ciências sociais, tanto no plano teórico quanto no que se reve- la na experiência dos socialismos reais, em relação aos quais se procurou a alternativa da chamada terceira via. A crítica marxista do direito e do Estado, por isso mesmo, ou se man- tém no vestíbulo da epistemologia das ciências sociais, ou se restringe aos aspectos descritivos do real histórico característi- da sociedade burguesa e do modo de produção capitalista. É sintomático que pensadores marxistas notáveis mani- festem perplexidade ante a escassa produção teórica do mar- xismo voltada para o pensamento Apesar dos insu- ficientes desenvolvimentos analíticos do programa de Engels 13 Citação extraída do "Prefácio" à obra de MARX. Para a crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1982, p. 25. (Coleção Os Economistas) 14 Além de outros autores que serão citados adiante, convém lembrar como exem- plos de produção teórica no contexto de um pensamento filosófico marxista: MICHEL, Marx et la société juridique. Paris: 1983. Tb. MO- NET, Philippe: Philip. Law and society in transition toward res- ponsive law. London: Harper Torchbooks, 1978. Tb. EDELMAN, Bernard. La légalisation de la classe Paris: Christian Bourgois, 1978, t. I. "l'entreprise". Tb. Perry. A crise do introdução a um debate contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1984. Tb. CORRÊAS, Óscar. Crítica del derecho moderno. (ezbozo). Puebla: Universidad Autónoma de Puebla, 1985. Tb. MIAILLE, Michel. lareprésentation. Fasc. 3. Montpellier: CERTE, 1985. Tb. HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. MIAILLE, Raison et légitimité. Paris: Payot, 1978. Tb. GUERRA FILHO, Willis S. Introdução à filosofia e à epistemologia jurídica. Porto Alegre: Livrariado Advogado, 1999; e, especialmente sobre a fundamentação de regras ético-sociais na ambientação do Estado mo- Jürgen. Pensamento estudos filosóficos. Trad. de Flávio Beno Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, Material com direitos autorais12 TEORIA CRÍTICA DO DIREITO referente à comuna de Paris, não se elaborou, até agora, um modelo político alternativo adequado aos socialismos de gê- nese marxista, ou que responda ao grande dilema da história contemporânea sobre as possibilidades reais de um socialis- mo O mesmo pode ser dito da produção teórica voltada para direito. Considerando-se que a tradição jurídica dos países socialistas é basilarmente romanista, que seu Estado segue modelo histórico do Estado moderno, e que a legi- timidade de suas leis procura fundamentar-se tão racional- mente quanto no resto do mundo ocidental, ainda que suas fontes possam inspirar-se em ideais socialistas, é natural que as escassas de elaboração de teorias jurídi- cas, no âmbito da filosofia marxista, pequem pela falta de originalidade e limitem-se à crítica do direito burguês. Tudo isso agravado pela dogmatização dos princípios marxistas, cerceando-se a liberdade do pensamento criativo e provo- cando uma tendência generalizada ao desprezo da tradição jusfilosófica do ocidente, sob pretexto de que se trata de um mundo burguês. Nesse sentido é que Gramsci, quando atribuía o êxito da persistência histórica dos modelos jurídico-políticos do capitalismo à elaboração teórica que os ampara, cuja tradi- ção milenar a crítica marxista não pode ignorar. Talvez uma produção mais livre e mais preocupada com os fundamen- tos científicos dos modelos jurídicos e políticos do socialis- mo tivesse podido contribuir para evitar os erros históricos do estalinismo, da nova classe e da 17 15 BOBBIO, Qual socialismo? Trad. de Iza de Salles Trezza. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. 16 E. A teoria geral do direito e Trad. de Soveral Martins. Coimbra: Centelha, 1977. Tb. MUSSI, Ricardo. As raízes marxistas da Escola de Frankfurt. In: A Escola de Frankfurt no Curitiba: Edibej, 1997. Tb. Klaus. Introducción a la teoria del derecho. Trad. de Enrique Bacigalupo. Madrid: Civitas, 1984, p. 111. 17 VOLENSKI, Michel. La nomenklatura, les privilégiés en URSS. Paris: Belfond, Material com direitos autoraisINTRODUÇÃO 13 Penso assim, que uma teoria crítica do direito deve além da simples denúncia das contradições sociais, do mero estudo da manipulação a que estão sujeitas as estruturas ciais em proveito de grupos privilegiados, da desmistificação das aparências e fantasmas que os estamentos dominantes pro- curam incutir no inconsciente dos cidadãos, para elidir-lhes a opressão social a que estão sujeitos; mas indicar o caminho da superação dessa realidade cruel do mundo neo, contribuir para a elaboração de novas categorias aptas a pensar prospectivamente que é melhor para homem e para a sociedade, bem como engajar-se na participação po- lítica por elas conscientemente informada. Com isso, a filoso- fia do direito assume sua dimensão política sem reduzir-se a uma filosofia política estanque, superando outra antinomia que se manifesta no saber jurídico acumulado: a separação entre a teoria dogmática do direito e a política jurídica, a qual reflete a separação quase abissal entre o saber jurídico, a ex- periência profissional do jurista e a práxis relacionada com fenômeno social da juridicidade. Essa dimensão transdisciplinar extravasa os modelos tra- dicionais, inclusive os paradigmas influenciados pela feno- menologia, presentes na poderosa tradição culturalista ibero- americana. Fica assim definido contexto da teoria crítica do direi- to como a união dialetizada entre a teoria e a experiência, na realização do direito como espaço de luta e conquista com vistas à autonomia dos indivíduos e à emancipação das socie- dades. Do mesmo modo, a teoria crítica do direito procura subsidiar a elaboração de um modelo prospectivo, apto a realizar ideal, a que se referia Roscoe Pound, do direito como construção social; e fica igualmente definido o con- texto do que se deve entender por crítica: sem que deva necessariamente reduzir-se à crítica marxista, o direito deve ser operado como o locus de refúgio das reivindicações so- ciais, o lugar da consolidação das conquistas dos fracos, opri- midos socialmente e excluídos de todo tipo. Trata-se, enfim, de recuperar o jus como o universo da libertação. Material com direitos autorais14 TEORIA CRÍTICA DO DIREITO Esta dimensão libertária parece algo pacífico no con- texto da filosofia política que tem por referência o mundo europeu, mas adquire especial importância quando se toma por referência a América Latina, onde somente agora, já no limiar do terceiro milênio, os direitos humanos começam a ganhar espaço na produção jurídica do Ademais, que tal perspectiva passa a ser ponto de con- vergência das vertentes realistas que se têm articulado nos mais recentes desenvolvimentos da filosofia do direito. Por- tanto, coerente com a rejeição há pouco esboçada à tendên- cia marxista a um rompimento radical com o pensamento dito burguês, procura-se identificar essas vertentes, especifi- cando quadro teórico que ora se define em linhas gerais. Dada a vastidão do assunto, privilegiam-se as que no contex- to da interdisciplinariedade do social se me afiguram mais importantes, do ponto de vista das articulações que delas possam dimanar entre a filosofia do direito e as grandes expres- da filosofia contemporânea, bem como entre estas e uma visão construtiva do saber jurídico. É a partir desse qua- dro que se irá formar o modelo epistêmico ao qual denomino crítico, como também irão dimanar as teses básicas a serem tratadas, num plano articulado com o político, o sociológico, semiológico e o psicanalítico, entre outros que deverão enri- quecer a visão transdisciplinar do objeto das pesquisas. Também nesse mesmo contexto, procura-se definir o estatuto ontológico desse objeto da crítica, isto na medida em que se possa atribuir ao jurídico uma determinada natu- reza objetivamente implicada pelo ser social. Daí a exigência de uma reflexão metodológica inicial, pois é a partir das circunstâncias objetivamente interdisci- plinares que se esboçam as categorias aptas a pensar o direi- to sob a ótica da transformação de seu objeto, às quais deno- mino categorias críticas, em complementação, não oposi- ção, às categorias formais da perspectiva kantiana e às reais IS GOMEZ, José M. Elementos para uma crítica à concepção juridicista do Estado. In: Sequência. Revista dos Estudos Jurídicos e Políticos da UFSP, n. 2, 1980. Material com direitos autoraisINTRODUÇÃO 15 da fenomenologia, as quais já estão incorporadas à tradição dogmática do saber jurídico ocidental, construído ao longo do milênio, não podendo ele, de modo algum, ser ignorado e muito menos desprezado. Isso não obstante, entende a teoria crítica do direito que essas duas maneiras de encarar as categorias do saber jurídico, como a priori formal e a priori material, na verda- de excluem cognoscente como sujeito de uma ação política transformadora que age no mundo e sobre o mundo, eis que são condicionantes não somente do conhecimento objetivo do real, como também das manifestações históricas dessa realidade, ou seja, as categorias formais do apriorismo analí- tico, tal como as reais do apriorismo fenomenológico, não comportam a visão do ser cujo conhecer é também um agir consciente. É mediante a noção de categoria crítica que pretendo introduzir no conhecimento jurídico essa dimensão constru- tiva e prospectiva do saber, no sentido de que ele possa ao mesmo tempo servir de meio de acesso à verdade objetiva e de instrumento de sua transformação objetiva. Em outras palavras: inserir direito na práxis. Mas de que maneira tão diferentes aspectos podem con- vergir para tratamento epistêmico unitário? Deve-se consi- derar que toda elaboração procura fixar certos princípios teó- ricos que servirão de base para a construção de todo um con- junto de conhecimentos. Sendo assim, cada aspecto interdis- ciplinar deve convergir num princípio, que não será necessa- riamente um postulado, mas somente uma instância possível que estará integrada nas teses fundamentais da teoria crítica, as quais não constituem de modo algum princípios dogmáticos, mas a expressão das categorias que se forjaram ao longo do estudo das vertentes do pensamento crítico. É que projeto epistêmico ora proposto exige o desen- volvimento dessas formas de pensamento adequadas ao tra- to prospectivo e construtivo do fenômeno jurídico, sem que ele corra o risco de cair no vazio, restringindo-se à filosofia do direito sem tratar do direito, internalizando aquelas deficiên- Material com direitos autorais16 TEORIA CRÍTICA DO DIREITO cias já constatadas quanto às correntes do realismo jurídico e às correntes derivadas do marxismo ortodoxo. Evidentemente, o universo da concreção jurídica não poderia ser tratado nas minúcias da teoria do direito positi- vo, mas a teoria crítica pode formar uma estrutura teórica a serviço da crítica do direito positivo. Por isso, caminho escolhido foi o de repensar os pressupostos ideológicos da dogmática jurídica, concebida como modelo tradicional de saber, que fornece o quadro sistemático do direito positivo. Tais pressupostos são analisados em alguns conceitos fun- damentais, os quais formam o núcleo da teoria geral do direito que, tanto na versão clássica dos pandectistas quan- to nas mais modernas de Kelsen e Hart, por exemplo, pre- tende sistematizar os conceitos, categorias e princípios mais gerais inferidos da experiência histórica do direito. Em face do questionamento dessa pretensão, a teoria crítica do direito procura constituir uma resposta adequada, ou seja, uma teoria do direito voltada para a concreção da- quela experiência. O denominador comum destes estudos é o que deno- mino dialética da participação, proposta metodológica dimanada da constatação de que, no direito como na socie- dade, o sujeito cognoscente está situado dentro do objeto que estuda, com ele se identifica e nele exerce sua atividade transformadora - é nesta participação, que também é uma transformação, que jurista se revela como sujeito da práxis. A teoria crítica do direito tem dois aspectos coimplicados: um objeto material - direito - e um objeto formal - a crítica -, sendo esta mais uma conjunção de pontos de vista sobre os efeitos sociais da concepção tradicional do saber jurídico do que propriamente uma teorização com enfoque unitário. Daí que ambos podem ser tomados como ponto de partida: tanto uma nova concepção do direito que suporte o enfoque crítico ora definido quanto o exame das circunstân- cias do aparecimento de novo tipo de saber que pode preci- samente ser definido como Ambos são desenvolvi- dos simultaneamente: a nova concepção do jus, motivada pelo desencanto da sociedade diante do fracasso da organização Material com direitos autoraisINTRODUÇÃO 17 estatal, com seu direito positivo oficial, como forma apta a promover a dignidade da vida humana, e a nova concepção do saber, pela evidência de que as concepções de verdade da ciência e a própria verdade como meta a atingir estão limita- das pelas insuficiências de um tipo de racionalidade analítica que se tornou prevalecente. Ambos os aspectos são examinados nesta pesquisa; to- davia, a tentativa de reconstrução do saber jurídico, a partir de identificação dos pressupostos ideológicos da dogmática jurídica, é precedida por um estudo metodológico prelimi- nar e pela avaliação das manifestações mais significativas do pensamento filosófico e jusfilosófico, os quais constituem apro- ximação à teoria crítica. Além dos diferentes aspectos a que já se aludiu, a com- plexidade dos temas tratados exigiu cuidados especiais quanto à linguagem, ao método de exposição e à ordem de apresentação. A fim de tornar a obra mais acessível ao leitor situado fora do pequeno círculo dos versados na jusfilosofia, pro- curou-se evitar os excessos da linguagem permeada pelo tecnicismo, observando-se a tradução nas citações de tex- tos em idioma estrangeiro. A metodologia adotada procurou igualmente afastar apego excessivo aos esquemas lineares da derivação analíti- ca, de conclusões inferidas a partir das premissas construídas ao longo do texto, mas optou por um modelo circular de re- flexão sobre as idéias exsurgidas no contexto do pensamento crítico. O trabalho é dividido em três partes: a primeira expõe os fundamentos epistemológicos e metodológicos da teoria crítica do direito, bem como as vertentes, no contexto interdis- ciplinar da filosofia e da teoria da sociedade, em que foram forjadas as principais categorias do pensamento crítico e que subsidiam a construção das categorias críticas do direito: cons- titui o título I, com os quatro capítulos iniciais. Esse estudo propedêutico converge para os fundamentos epistemológicos do direito segundo um enfoque correspondente à dimensão do saber jurídico definida como crítica Material com direitos autoraisYou have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book.TÍTULOI O PENSAMENTO CRÍTICO Material com direitos autoraisYou have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book.You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book.You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book.24 TEORIA CRÍTICA DO DIREITO cismo, configurando um empiroceticismo, pois coloca em dúvida que o exame dos fatos da experiência possibilite afir- mar aqueles princípios como verdadeiros, pois a observação oferece apenas o espetáculo de uma sucessão regular e não o de uma necessária ligação entre os fatos, não excluindo a possibilidade de que poderia ocorrer de modo Tal é o problema da objetividade do conhecimento cien- tífico, qual, embora remonte aos pensadores revestiu-se de particular interesse a partir de nova visão do processo de conhecimento introduzida por Kant. Trata-se de uma primeira abordagem crítica, configurando um criticismo gnoseológico. Kant, sob a influência do empiroceticismo de Hume, pretendeu superar a antinomia da prevalência do sujeito ou do objeto no processo de conhecimento, concebendo as ca- tegorias como formas a priori do intelecto destinadas a coor- denar os dados da experiência. Assim, na visão do autor, os primeiros princípios não podem ser tirados da experiência, porque se constituem em formas independentes e autôno- mas do espírito, as quais se imprimem a si mesmas nos da- dos da experiência. Assim configurou-se, na história da filosofia, autêntica revolução coperniciana, com a inversão na ordem de prevalência dos elementos da relação cognoscitiva. Antes de Kant, a con- cepção gnoseológica geral era a de que intelecto receberia os dados dimanados dos objetos em sua forma exterior, o que parecia tão óbvio quanto a evidência ptolomaica de que a ter- ra seria o centro do universo. O criticismo kantiano demons- trou porém que, na relação entre o sujeito e o objeto do co- é o próprio intelecto, fator sujeito portanto, capaz de exercer a função constitutiva em relação ao seu ob- jeto, pois é este que se reveste das formas que o espírito esta- belece de maneira apriorística, isto é, independentemente da 2 DEL VECCHIO, Giorgio. Ob. 167. 3 COELHO, Luiz Introdução histórica à filosofia do Rio de Janeiro: Forense, 1977. Material com direitos autoraisYou have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book.You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book.You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book.28 TEORIA CRÍTICA DO DIREITO ções e inferências e procurando sua razão de ser, adquire o conhecimento hierarquia científica. Conhecimento vulgar e conhecimento científico são, pois, as duas modalidades dessa relação intelectual entre o sujeito e o objeto. No primeiro, prevalecem as simples representa- ções ou imagens mentais, no segundo, os conceitos produzi- dos pelas abstrações das imagens e dos próprios conceitos mais particularizados. O conjunto dos conceitos em torno de determinado objeto, ordenados conforme certas exigências de racionalidade que a tradição filosófica do ocidente desenvolveu, constitui a ciên- cia. Tal é a definição objetiva de ciência. Subjetivamente ela se confunde com o próprio conhecimento, quando produzi- do segundo os paradigmas adotados pelo senso comum teó- rico de modo geral. Essas exigências da racionalidade ocidental formam um modelo de saber, ou paradigma, ao qual se ajustam os re- sultados do conhecimento para formar o sistema científico, isto é, a ciência objetivamente considerada. É usual a separação entre o conhecimento científico e filosófico. Trata-se de certa graduação estabelecida em fun- ção da maior ou menor generalidade dos conceitos, cuja fron- teira não é rigorosa. Costuma-se dizer que conhecimento científico se preocupa com as causas imediatas dos fenôme- nos e que filosófico dirige-se às causas mediatas ou primei- ras. Essa opinião é no mínimo discutível, já que conceito de causa é controverso, além do que as causas dos fenôme- nos não são único escopo do conhecimento. Penso que conhecimento científico em si é substancialmente uno, mas se for necessário estabelecer uma separação deve-se levar em conta que a ciência corresponde a uma primeira abstra- ção, pela qual se sistematizam, ou simplesmente reúnem, os conceitos referidos imediatamente aos fenômenos, de acor- do com certas regras estabelecidas em função dos paradigmas da ciência, e que a filosofia corresponde a um segundo grau de abstração, que ocorre no momento em que se produzem e reúnem conceitos referidos aos próprios conceitos produ- Material com direitos autoraisYou have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book.30 TEORIA CRÍTICA DO DIREITO objeto de ciência, não obstante submetido ao enfoque deste segundo grau de abstração. Não resta dúvida de que o avan- científico contribui para o enriquecimento do filosófico. Nos dias atuais, quando as fronteiras do conhecimento tangenciam os limites da capacidade humana, a ciência e a filosofia se reencontram nesse limiar em que a inteligência parece hesitar em ir além de sua própria e, aparentemente, limitada capacidade. O reencontro da ciência e com a filoso- fia parece querer indicar o retorno da ciência ao seu tronco originário. O conhecimento é apanágio do ser humano e existe em função do homem. Esta função pode traduzir-se de duas maneiras. Primeiramente, pela satisfação intelectual do su- jeito em sentir estar-se realizando como ente racional, ou seja, o conhecimento pelo simples conhecimento, dentro da visão de que o nível da humanidade tem alguma relação pro- porcional com o conhecimento. No entanto, desta visão não se deve retirar a tese de que os seres humanos, aos quais não foi dada a oportunidade de se educar, ou que, por fatores diversos, especialmente o subdesenvolvimento econômico, permanecem marginalizados das conquistas da civilização, possam ser considerados inferiores. Não há que se falar em escala humana, pois cada homem é dotado de humanidade, toda sua, que o dignifica enquanto indivíduo, mas que não pode sobrepô-lo aos demais nem lhe concede direitos sobre a natureza. Isso vale para a produção do conhecimento, tan- to quanto para uso que dele se faz. Aqui encontramos a segunda maneira de evidenciar o sentido humanístico da ciência. Trata-se da técnica, saber a serviço de alguma coisa. Toda ciência desemboca numa técnica e toda técnica é infor- mada por uma ou diversas ciências. Não fosse a anterior ressalva a respeito do valor do conhecimento em si, como fator de perfeição, dir-se-ia que a ciência sem a técnica é vazia, destituída de A técnica é a criação e o resul- tado da técnica é o conjunto de obras da humanidade, as quais formam a cultura e a civilização. Material com direitos autoraisPRELIMINAR METODOLÓGICO 31 Também aqui podem ser salientados dois aspectos: um relativo ao aperfeiçoamento humano como realização de sua vocação, quando a técnica se transmuta em arte e moral, e outro referido à objetividade do mundo exterior. No primeiro caso, intervêm os valores estéticos e éticos, consubstanciados na beleza e no bem como sentidos da ati- vidade humana. O objetivo humanístico a que se vincula esse aspecto da técnica decorre do fato de que ela se realiza pela vivência individual, seja pela identificação pessoal com a be- leza através da obra artística, seja pela identificação com o bem através da conduta eticamente orientada. Em ambos os casos, com vistas ao aperfeiçoamento pessoal, o que não pode ser encarado isoladamente, pois é irrealizável sem que o todo, onde o indivíduo se insere, também se aperfeiçoe. Isso de- corre da dimensão social do homem. Homem e sociedade, esta é a dialética fundamental de todo conhecimento, de toda ciência e de toda filosofia. Quanto ao segundo aspecto, ele se manifesta no conjun- to de fatores destinados a estimular o aperfeiçoamento da hu- manidade: a técnica propriamente dita, sob a égide de valo- res diversos, tais como a utilidade, o desenvolvimento, o tra- balho e progresso tecnológico, que não se confundem com valores estéticos e éticos, embora estes não devam jamais estar ausentes de qualquer atividade humana. Ou seja, faz parte da vocação do homem para seu próprio aperfeiçoamento e para o aperfeiçoamento de sua comunidade transpessoal, que ele busque realizar no trabalho tecnicamente orientado, além dos objetivos técnicos, os valores da beleza e do bem. A arte, a ética e a técnica constituem aspectos pragmá- ticos da ciência, os núcleos dos fatores que a configuram como atividade criadora. A correlação entre a ciência e aqueles núcleos também aqui se evidencia, pois não existe arte ou técnica sem um mínimo de ciência, como também é impensável uma ciência, por pura que possa ser, sem que o sujeito a exercite com um mínimo de técnica, condição para o desen- volvimento da ciência; e pode-se, igualmente, falar em uma Material com direitos autorais32 TEORIA CRÍTICA DO DIREITO ética-ciência a informar a elaboração dos princípios orientadores da conduta, tanto quanto em uma ética propriamente normativa ou prática, identificada naqueles princípios. São dois aspec- tos distintos a caracterizar a ética, de um lado como ciência, filosofia, doutrina ou ideologia, e de outro como norma de conduta. Tais considerações explicam porque as pessoas costu- mam confundir técnica e ciência, cujas fronteiras, como vi- mos, não estão suficientemente definidas. Todavia, a partir da interação sujeito/objeto, pode-se concluir que a ciência deixa de ser encarada como simples descrição da realidade, mas passa a ser vinculada à ordenação racional da realida- de. Desaparecem as fronteiras entre a ciência e a técnica, pois enquanto a razão exige provas, recusando as certezas e expe- riências imediatas, ela reorganiza mundo, não para consta- tar a ordem que se pressupõe imanente, mas voltando-se para futuro, para criar uma nova num processo inces- sante de construção e reconstrução da realidade, não a falsa realidade petrificada nos fantasmas da razão abstrata, mas real concreto da razão dialética, a realidade da qual o homem é partícipe atuante e seu autêntico criador. Resta finalmente a compreensão de que o conhecimen- to, em todos os graus e sob qualquer aspecto, deve estar a serviço do homem, e só é válido na medida em que contribui para sua plena realização, ontológica e eudemonística, como pessoa, como sociedade e como humanidade. A consciência dessa dimensão e da unidade que dela decorre entre o pensar e o agir, e entre ambos concebidos unitariamente e o próprio ser, constituem ponto de partida, o fundamento do repensar de toda a metodologia científica, que desemboca no pensamento dialético. 2. O PENSAMENTO DIALÉTICO Platão considera processo gnósico como dividido em três partes ou etapas: a dialética, a ética e a física. A dialética designa a etapa que corresponde ao descobrimento das idéias e de suas relações, elevando-se a alma humana ao nível dos Material com direitos autoraisPRELIMINAR METODOLÓGICO 33 princípios-ideais que impregnam o cosmos da natureza e o cosmos da sociedade; a ética corresponde ao processo de derivação desses princípios-ideais para estabelecer o cosmos da sociedade; e a física refere-se à construção do cosmos da natureza mediante as idéias. Nessa concepção inicial, a dialética é a mais elevada das ciências, tendo por forma o diálogo e por conteúdo a descoberta da ordem dos conceitos e dos seres, segundo uma hierarquia presidida pelo bem. Os críticos modernos atribuem à dialética platônica o significado de movimento do espírito, que se eleva do singu- lar ao universal, ou seja, das sensações às idéias, da beleza ao princípio do belo, dos fins individuais à justiça universal. Assim, quando se relaciona o platonismo com essas três or- dens, fala-se separadamente numa dialética dos conceitos, numa dialética dos sentimentos e numa dialética das ações. Por outro lado, é possível ainda distinguir em Platão três significados do termo dialética, mais ou menos comple- mentares: como arte do diálogo e da discussão, como técnica relativa à classificação dos conceitos e como postura metodo- lógica relativa à maneira de remontar aos primeiros princí- pios e às idéias mais gerais, as quais, para o filósofo, têm valor ontológico. Em Aristóteles, a dialética é uma das formas do pensa- mento lógico. O estagirita denomina dialéticos aos silogismos que, baseados em tópicos (topoi), premissas apenas prová- veis, levam a conclusões também prováveis e que, por isso, distinguem-se dos silogismos apodíticos. O pensar dialético, estudado na Tópica, é o núcleo da retórica, entendida como atividade teórica voltada para a persuasão. A dialética aristotélica se configura, pois, como o elo de ligação entre a analítica e a retórica, com o predomínio do significado metodológico haurido em 7 DILTHEY, Wilhelm. História da filosofia. Trad. de Manuel Lisboa: Presença, p. 71. Tb. FRANCA, Pe. Leonel S.J. Lições de história da 2. ed. Rio de Janeiro: AGIR, 1969, p. 55. Sobre a dialética aristotélica, V. Material com direitos autorais34 TEORIA CRÍTICA DO DIREITO Em Kant, a dialética é relacionada com a lógica transcen- dental, definida como o estudo das condições, a priori, do entendimento, a qual se distingue da dialética transcendental, o estudo das aparências transcendentais, as que resultam da natureza mesma do espírito. Essas aparências transcendentais completam o contexto formado pelas aparências lógicas, como os sofismas, e pelas empíricas, como as ilusões de ótica. Assim, os raciocínios ilusórios são denominados dialéticos e a dialética em geral é definida como uma lógica da aparência. Para Hegel, a dialética consiste numa aplicação científi- ca do princípio, inerente ao pensamento em si mesmo, de sua conformidade às leis do seu próprio desenvolvimento e do desenvolvimento do ser em geral. Essas leis se manifestam como um processo de tese, antítese e síntese, o qual revela o tornar-se ou vir a ser. Cada coisa, cada ente, é, ao mesmo tempo, uma síntese da tese e antítese anteriores e também sua contradição, que se superam em outra síntese superior, afirmada como nova tese a engendrar sua própria e nova numa trans- formação contínua e ascendente. À mesma lei estão sujei- tas as transformações do espírito, as quais engendram as da matéria. O mundo não é um conjunto de unidades nomas, pois a única coisa completamente independente é o todo, que, para Hegel, equivale ao ser absoluto, o qual é igualmente dinâmico. Em seu dinamismo imanente, o absoluto exterioriza seu próprio ser, engendrando a natureza. Mas o absoluto, como tese oposta à natureza, isto é, como sua antítese, retorna a si, como síntese suprema, no momento em que toma cons- ciência de seu próprio ser, de sua mesmeidade. E assim, as transformações do espírito, sujeitas a idêntico processo triádico, ANDRADE, Almir de. A dialética aristotélica e o princípio de contradição. Revista Brasileira de Cultura, Brasília, MEC, Conselho Federal de Cultura, n. 5, p. 95. Tb. Vide a propósito, de autoria de Fábio Ulhoa Coelho, o prefácio à edição brasileira do Tratado da argumentação de Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, publicado pela Martins Fontes em 1996, cuja terceira tira- gemé de 1999. Material com direitos autoraisPRELIMINAR METODOLÓGICO 35 dão origem às transformações da matéria. Por isso, Hegel identifica o mundo racional com a própria realidade, pois tudo o que é real é racional e tudo o que é racional é O pensamento, seguindo suas próprias leis, ocorre tam- bém na conformidade do desenvolvimento do ser e, em con- o processo dialético é a verdadeira natureza pró- pria das determinações do entendimento, das coisas e, de modo geral, do consiste, essencialmente, em se conhecer a unidade dos contrários e descobrir o princípio dessa união em uma categoria superior. Pela primazia concedida ao espiritual sobre o material, a dialética hegeliana é idealista, idealismo que impregnou a maior parte da filosofia pós-hegeliana. Mas no contexto da própria escola de Hegel inicia-se a conversão do idealismo para o materialismo, graças a Feuerbach, obra completada por Karl Marx. Esse materialismo pós-hegeliano fixou-se no princípio de que, ao contrário do que afirmara o idealismo hegeliano, são as coisas que se transformam, sendo que essas transfor- mações refletem-se no pensamento, dando origem às Esta visão materialista aceita o princípio triádico da evolução dialética das coisas, mas nega a realidade do espírito, redu- zindo-o a reflexo ou representação da realidade material. Em Marx, a evolução da sociedade é explicada por suas contradições internas, donde a noção de luta de classes a impulsionar a história e o progresso econômico-social. A classe momentaneamente dominante, formada pe- los detentores dos meios de produção, tem sua própria an- títese identificada na massa dos dominados, a classe dos prole- 8 HEGEL, Georg W. Friedrich. A fenomenologia do Trad. de Henrique Cláudio de Lima Vaz. São Paulo: Abril Cultural, 1974, V. XXX. (Coleção Os Pensadores). Tb. Hegel y la Escuela Hegeliana. Trad. José Madrid: Revista do Ocidente, 1931. 9 Idem. Enziclopädie der Philosophischen Wissenschaften. Hamburg: Verlag von Felix-Meine, 1959. Material com direitos autorais36 TEORIA CRÍTICA DO DIREITO tários que, ao assumir o poder, gerará nova sociedade, mais livre e igualitária e menos opressiva. Este materialismo dialético levou a uma nova interpre- tação da história, cujos atores, em vez de heróis, monar- cas, santos e generais, são os trabalhadores, sendo traba- lho a grande força que move a sociedade. Por esta visão dia- lética da história compreende-se como, no mundo antigo, os escravos constituíam a antítese das castas privilegiadas, re- sultando a sociedade medieval como síntese do desapareci- mento das classes antagônicas do mundo romano, que eram os escravos e os patrícios, estes aliados ou apoiados na clas- se plebéia. No mundo medieval, os pólos dessa dialética eram cons- tituídos pela nobreza aliada ao clero, tendo a burguesia mar- ginalizada como esta, ao erigir-se em classe domi- nante através das revoluções burguesas - o processo dialético é necessariamente violento que eclodiram na Europa entre os séculos XIII e XVIII, época da formação e consolidação do Estado moderno, engendrou sua própria consti- tuída pelo proletariado. Ainda, segundo esta cosmovisão, no momento em que o operariado assumir o poder, haverá o equilíbrio social, pois esta classe não permitirá a instituição de grupos privilegiados, desaparecendo, com a abolição da pro- priedade privada, a própria razão de ser da luta de classes. Segundo a concepção ortodoxa do marxismo, as revo- luções são inexoravelmente violentas, por corresponderem à lei da autodestruição das classes antagônicas erigidas em tese e ou seja, toda sociedade que se afirma como or- dem mais ou menos estável constitui a síntese da oposição e do conflito entre as classes sociais que haviam se afirmado como tese e antítese naquela ordem social superada, isto é, terá sido construída sobre os escombros da ordem social anterior. Esta, para Marx, é intrinsecamente injusta, porque fundada na propriedade privada e na produção da mais-va- lia, exigindo a exploração do homem pelo homem em virtude de sua própria lógica. Eis aqui, sumariamente, a concepção dialética da histó- ria, a qual tem sido utilizada pela ala extremista do marxismo Material com direitos autoraisPRELIMINAR METODOLÓGICO 37 para legitimar, tanto a violência revolucionária no interior das nações quanto a violência internacional que culmina no ter- rorismo. Tal violência, para os marxistas ortodoxos, não é somente uma necessidade revolucionária, ela é inevitável, pois sua implicação provém de uma lei natural, princípio dialético da evolução do ser social. O marxismo consolida a cosmovisão dialética, concebi- da em dois planos: objetivamente, como processo de desen- volvimento da realidade, segundo as leis que lhe são próprias ou e subjetivamente, como a apreensão cognos- citiva desse desenvolvimento Entretanto, fator contradição que, tanto em Marx como em Hegel é a própria essência do pensar dialético, passa a configurar apenas um dos aspectos de uma totalidade. Neste sentido alude Reale a uma dialética de complementariedade ou de implicação, que compreende um processo dinâmico e aberto, no qual os elementos se implicam e se complementam, inclusive os elementos opostos que, sem se anularem numa síntese superior, simplesmente se integram numa estrutura totalizadora e totalizada. A dialética, desde a antiguidade, foi então pensada sob duas formas distintas: como arte de operar com conceitos, correspondendo ao sentido platônico, e como processo de assimilação teórica da realidade, sentido já detectado em Heráclito. Observa Kopnin que esses dois modos de conce- ber a dialética opunham-se como o lógico ao ontológico, ten- do Hegel procedido à sua identificação no sentido idealista e Marx no sentido materialista. 11 Hoje em dia a dialética é a própria mundividência que, pressupondo o movimento imanente do ser, considera ente em sua totalidade, a qual se volta para si mesma como indivi- dualidade total e se projeta no mundo como implicação total. 10 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1976, p. 90. KOPNIN, P. V. Fundamentos lógicos da ciência. Trad. de Paulo Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, p. 74. Material com direitos autorais38 TEORIA CRÍTICA DO DIREITO O sentido do movimento está presente em todas as dialéticas, da platônica à marxiana, e não escapa, ainda que sutilmente, ao silogismo dialético de Aristóteles e à lógica das aparências de Kant. A dialética entende que o estado de parado ou estático é mera abstração e que a realidade das coisas é o movimento ou dinamicidade, o qual ocorre em várias dimensões: há uma dinamicidade espacial que se ma- nifesta no movimento da matéria no espaço; uma dinamicidade temporal que se expressa no desenvolvimento do ser no tempo; há dinamicidade lógica na atitude do espírito que relaciona conceitos, formando juízos e raciocínios; e há dinamicidade ôntica no desenvolvimento das coisas em obediência às for- ças que lhe são imanentes. Essas quatro dimensões do movi- mento, espacial, temporal, lógica e ontológica, estão presen- tes, respectivamente, na natureza, na história, no pensamen- to e no ser em geral, isto é, nos fenômenos, constituindo o fundamento de uma dialética da natureza, uma dialética da história, uma lógica dialética e uma dialética fenomenológica. O pensamento dialético vislumbra, portanto, os objetos do conhecimento do ponto de vista de sua dinamicidade. Não exclui todavia conhecimento metafísico tradicional nem o desvaloriza, mas o abarca e o utiliza, integrando-o no mes- mo processo dinâmico. E assim, a lógica dialética, que cor- responde a uma razão dialética, não exclui a lógica formal, correspondente à razão analítica, mas a absorve e completa, por considerá-la insuficiente para a compreensão de certos fenômenos. Isso envolve um novo logos que não se opõe pro- priamente ao pensamento analítico, mas o supera em função da compreensão do real em outro plano, o do movimento im- bricado com a totalidade. Assim, a lógica dialética implica a metodologia do próprio pensar no sentido da verdade objeti- va, porque articula o pensamento com as leis do próprio objeto. Vieira Pinto, depois de advertir que as operações do pen- samento são de caráter cognoscitivo e destinam-se à apreen- são dos conteúdos inteligíveis de todo dado existente, distin- gue duas possibilidades de pensar, correspondendo, respecti- vamente, à lógica dialética e à formal. Aquela assume, neste Material com direitos autoraisPRELIMINAR METODOLÓGICO 39 autor, foros de modalidade do pensamento lógico e é consi- derada parte da ciência da lógica; neste sentido, a dialética "diz respeito à compreensão dos processos de pensamento, referindo-os ao curso do seu desenvolvimento, enquanto ma- nifestação da faculdade histórica do animal humano em evo- lução, de captar as leis mais gerais e íntimas da ordem e da atividade dos seres. A dialética constitui-se nesta forma es- pecial de concepção lógica, justamente porque aprecia o pro- cesso da gênese do pensamento em função dos processos de desenvolvimento da realidade em Assim sendo, a dialética é sistema de pensamento racional que reflete fidedig- namente movimento real das transformações que se pas- sam no mundo exterior, físico e A lógica formal, Vieira Pinto considera nociva na medida em que "obstaculiza o caminho da compreensão dialética, evolutiva, histórica da lógica, cegando-nos desde o primeiro momento para a acei- tação da racionalidade como processo biológico que se de- senvolve ao longo de toda a escala animal, culminando na autoconsciência de que o homem é Não concordo com esta capitis diminutio da lógica formal, já que ambas têm sua razão de ser segundo os obje- tivos colimados pela atividade pensante. Além disso, o pensamento é uno, sendo a lógica formal e a dialética dois momentos de uma elaboração racional que em si é una. Pode-se afirmar que as abstrações matemáticas constituem o lado extremo do campo privilegiado da lógica formal e que a ciência da sociedade, o campo privilegiado da lógica que não se admite é a mútua exclusão das duas maneiras de pensar o objeto nem a oposição entre elas, pois o pensamento e o objeto são os mesmos em ambas as lógicas, num sentido de complementariedade que vem a ser a própria essência da dialética. 12 PINTO, Álvaro Vieira. Ciência e Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969, p.68. 13 Idem. 14 Idem. Material com direitos autorais40 TEORIA CRÍTICA DO DIREITO Todavia, autor citado nos conduz a duas noções fun- damentais para o pensamento crítico: a de transformação e a de autoconsciência, as quais nos vão abrir o caminho para uma dialética da sociedade a que denomino dialética da par- Ela vem a ser ponto de convergência, no con- texto da ciências da sociedade, das aproximações parciais providas pelo pensamento dialético. 3. A DIALÉTICA DA PARTICIPAÇÃO O pensamento dialético, ao vislumbrar a totalidade e movimento em que os objetos se constituem, engendra um problema epistemológico insolúvel sob ponto de vista do paradigma positivista de ciência, a aporia manifesta na im- possibilidade de um conhecimento do social através dos mo- delos científicos tradicionais, as formas de saber assimiladas no senso comum. Se aceitarmos que campo privilegiado do pensamento dialético é o ser social, a primeira desta nova maneira de vislumbrá-lo como objeto científico será então a necessidade de construir um paradigma de saber adequado às especificidades deste objeto, superando os mo- delos dimanados da concepção positivista. Na esteira da undécima tese, é necessário advertir inicial- mente que a proposta de uma teoria crítica aceita como basilar que, muito mais do que descrever o social nas suas relações de causalidade ou funcionalidade, importe as ações que se traduzem na sua transformação objetiva. Por isso, encarar dialeticamente as manifestações da vida social, entre as quais o direito, importa em considerá-las em sua totalidade e dina- micidade imanentes. Essa cosmovisão implica a consciência de que, se o sujeito cognoscente - em nosso caso o jurista - é parte do objeto que estuda, o fenômeno jurídico, a própria atividade de conhecer o direito, tal como em relação à socie- dade, já é uma atuação participativa que modifica o objeto. O grau de consciência dessa participação, quando o sujeito a assume como algo que ele mesmo se propõe, completa a dia- Material com direitos autoraisYou have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book.You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book.You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book.44 TEORIA CRÍTICA DO DIREITO genuamente acredita nessa falsa identidade entre o real e o conceitual, entre a realidade objetiva e o imaginário que se reputa racional, seja porque conscientemente adere ao ima- ginário como se fosse real, seja ainda porque, em se dando conta da insuficiência do próprio conhecimento, trata de es- camotear a realidade por procedimentos considerados cientí- ficos pelo senso comum, sua atitude é ideológica. Não que o conhecimento situado num plano ideológico não possa ser científico, mas sim, que a inconsciência ideológica que tra- duz a alienação compromete a cientificidade, cujo escopo último é real. É que sujeito constrói objeto mediante o conhecimento, apesar da evidência de que o mundo exterior existe independentemente do homem, na medida em que esse mundo é conhecido, deixa de ser somente mundo e passa a ser objeto. Embora a realidade possa ser concebida como algo independente, ela inexiste enquanto se objetiva para o homem e pela mediação do homem. Em O co- não se dirige propriamente à realidade, qual seja, à natureza, ao mundo, à sociedade e ao próprio homem, mas à realidade construída em função das representações. O ob- jeto do conhecimento são essas formas fenomênicas do real, as aparências que se reproduzem na mente dos indivíduos in- seridos numa práxis histórica. É essa realidade construída pelo próprio Daí que o objeto do conhecimento, no senso comum, transcende o mundo real, ele não se limita à matéria, mas pode consistir no imaterial, abstrato ou metafísico e até no imaginário, ou ainda em objetos cujo ser se exaure no pró- prio ato de pensá-los, como as entidades lógicas. Há objetos ainda constituídos por algo que só pode ser concebido em função de uma totalidade, como as coisas culturais e a pró- pria sociedade, também o direito, a moral, a religião, a ciên- cia e a filosofia. Em suma, objetos que se manifestam no complexo dos fenômenos imediatos e auto-evidentes, que os 17 KOSIC, Dialética do concreto. Trad. de Célia Neves e Alderico Toríbio. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. Material com direitos autoraisYou have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book.