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[Mar de Historias] Frantz Fanon e as verdades que precisam ser ditas {blog}

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LETRAS-FRANCÊS 
LITERATURA FRANCOFONA | UFF 
Curadoria de Conteúdo, Edição e Diagramação: Marcela B. 
 
FRANTZ FANON 
E AS VERDADES QUE 
PRECISAM SER DITAS 
___ 
Por Andreia Santana, 
Publicado em ​05/09/2009 
 
 
“O racismo e o colonialismo deveriam ser entendidos como modos 
socialmente gerados de ver o mundo e viver nele”. 
(Frantz Fanon) 
A citação acima é da obra ​Pele Negra, Máscaras Brancas​, escrita pelo intelectual 
antilhano Frantz Fanon nos anos 40 e publicada em 1952. Conforme prometi alguns 
posts abaixo, tentarei dividir o impacto que a leitura desta obra emblemática para os 
movimentos negros causou em mim. Até um mês atrás, antes de começarem as 
aulas como aluna especial do mestrado em Cultura e Sociedade, na UFBA, 
confesso minha ignorância completa sobre quem tinha sido Fanon e mais ainda 
sobre sua obra e a importância dela nos meios acadêmicos e no centro de 
movimentos sociais mundo afora. Eu nunca tinha ouvido falar dele e quando o 
conheci através da sua obra mais famosa, lamentei profundamente o fato de ser tão 
ignorante. Fanon era um autor que eu queria que tivesse entrado na minha vida 
 
 
 
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mais cedo. No entanto, pode ser que mais jovem eu não estivesse preparada para 
conhecê-lo. 
Após participar de uma calorosa discussão sobre sua obra em sala de aula, percebo 
que Fanon ainda incomoda muito. Mais de 50 anos depois da publicação de​ Pele 
Negra…​, colocar o dedo na ferida do racismo e dos impactos da escravidão negra 
nas sociedades pós-coloniais ainda causa uma certa saia-justa. Não sou militante de 
nenhum movimento especificamente e tenho uma certa desconfiança do 
radicalismo de todos os movimentos em geral, sejam de esquerda ou de direita. Em 
certa medida, algumas passagens da obra chocam por serem completamente 
radicais, mas dolorosamente verdadeiras, guardadas as devidas proporções, pois 
passaram-se mais de 50 anos desde a publicação e o fato dele falar com 
propriedade dos conflitos pós-coloniais nas Antilhas, sobretudo na Martinica, pode 
levar erroneamente à crença de que seus exemplos não se encaixam para o Brasil. 
Encaixam-se com perfeição cirúrgica em diversas situações, visto que também 
somos diaspóricos (recebemos contingentes elevados de africanos expatriados 
pelo tráfico humano por mais de três séculos) e pós-coloniais (visto que fomos 
colônia portuguesa por mais de 400 anos). 
Pele Negra, Máscaras Brancas​, diz Lewis R. Gordon, o autor do prefácio da edição 
brasileira (publicação da EDUFBA), foi escrito originalmente como tese de 
doutoramento de Fanon na Faculdade de Medicina. A obra, porém, foi recusada e o 
orientador recomendou que escrevesse sobre um caso clínico. Fanon então, decidiu 
transformar ​Pele Negra​ em um manifesto anti-colonialismo e um libelo à libertação 
do homem, tanto branco, quanto negro, do que ele chama de complexo de 
superioridade (do branco colonizador) e de inferioridade (do negro colonizado). O 
livro é uma colcha de retalhos e uma sessão de exorcismo combinadas. Colcha de 
retalhos porque Fanon, a título de traçar um panorama psicológico dos 
martinicanos, une poesia, prosa, filosofia, exemplos de casos clínicos – com a devida 
 
 
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conversa de consultório, crítica literária (ela analisa livros escritos por romancistas 
da Martinica que só ajudavam no seu tempo a reforçar o estereótipo de que os 
negros seriam uma raça inferior), psicanálise…etc. 
E uma sessão de exorcismo porque o próprio autor, em tom confessional 
comovente, revela o quanto para ele, enquanto homem negro, a construção de uma 
identidade descolonizada é tarefa sofrida. A própria construção da identidade negra 
é questionada por Fanon, bem como a existência de uma identidade branca. Daí ele 
acreditar que a colonização e seus efeitos moldaram sociedades psicologicamente 
doentes. De um lado, o opressor que precisa do oprimido para legitimar sua 
superioridade. Do outro, o oprimido que precisa do opressor para legitimar seu lugar 
de vítima em busca de reparação. É bem radical, sem dúvida, principalmente 
quando percebemos que na sociedade atual, para que as distorções deixem de 
existir, é preciso a reparação para equilibrar as forças. 
Aos olhos do século XXI, a discussão sobre raça estaria encerrada e ao invés disso, 
trabalha-se o conceito de etnias diferentes em uma única raça, a humana. No 
entanto, no tempo de Fanon, o conceito de raça ainda era muito presente na 
sociedade e pretexto para os mais diversos fins, quase todos excludentes, 
comparativistas e alguns bem cruéis, como o nazi-facismo. O racismo porém, está 
longe de ser um problema do passado, do tempo de Fanon. E é nesse aspecto que 
o livro toca o dedo na ferida. Para quem ainda se ilude com a crença de que o Brasil 
é uma bela e próspera democracia racial, um país multicolorido onde o encontro 
das raças aconteceu sem sofrimento e que negros, índios e brancos miscigeram-se 
sem traumas, a leitura é dolorosa. Mesmo quem não compactua dessa visão 
estado-novista do país e tem noção clara das desigualdades sociais e raciais ainda 
presentes nesta república multicultural (aí sim, bem miscigenada), a leitura é 
esclarecedora e ao mesmo tempo impactante. 
 
 
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Para mim, que como boa parte dos baianos e dos brasileiros, sou fruto da 
miscigenação, certas passagens do livro são quase autobiográficas. Ainda assim, 
senti falta de um pouco mais de atenção aos mestiços e aos conflitos que eles 
enfrentam, consigo mesmos e com os outros, quando vivem em sociedades 
radicalmente segregadas, em que não são suficientemente brancos para ser aceitos 
entre a elite branca e nem negros o suficiente para engrossar as fileiras do 
movimento que pede a reparação, o respeito e o equilíbrio de forças na sociedade. 
Em certas passagens até, ele é implacável. Quando diz que as mulatas martinicanas 
não queriam se envolver com homens escuros, mas buscavam sempre os mais 
claros para se casar e assim “limpar” a raça, há desprezo em sua voz. Desprezo por 
essa mulher martinicana que, no entanto, é fruto do colonialismo. 
Mas, no meu caso especificamente, não tem como não identificar um discurso 
familiar particularmente próximo nessa afirmação de que os negros precisariam 
“embranquecer” para existir na sociedade colonialista. Com a cultura afrodescente 
no Brasil, por exemplo, em diversos momentos houve esse conflito entre valorizar a 
raiz da mãe África ou desafricanizar um pouquinho, tirar da cozinha e botar na sala 
de jantar, com o objetivo de ganhar a simpatia da elite. E no Brasil, o conceito de 
elite é particularmente parecido com o da Martinica de Fanon: por aqui, assim como 
lá, o dinheiro embraquece até a mais negra das peles enquanto a falta do vil metal 
enegrece a pele mais clara. Isso não significa que negros ricos gozam do mesmo 
status que os brancos ricos. O racismo ainda existe em toda a sua crueldade. Mas o 
preconceito social diminui de acordo com a conta bancária. 
Lembro que na aula, quando toquei na questão da mestiçagem, tentando botar 
lenha na fogueira ao indagar que papel tem o mestiço nessa história toda, uma 
colega respondeu: “é preciso escolher um lado”. Mas e se o lado que o mestiço 
quiser escolher for só o lado da aceitação enquanto ser humano, independente da 
cor da pele? E se a ideia for ser aceito pelos dois lados? E se a intenção for que não 
 
 
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hajam lados e sim, respeito na diversidade, seja ela de etnia ou culturas? Utopia, 
diria alguém mais calejado. “Isso aí que você prega seria a democracia racial 
legítima”?. Não sei, sinceramente ainda busco minhas respostas. Mas não deixo de 
atentar para a palavra mulato e a conotação pejorativa que teve durante tanto 
tempo noBrasil. Teve? Ou ainda tem? Lembra mula, um híbrido estéril, 
desqualificado. E não houve escritores e até historiadores que alardearam aos 
quatro ventos que a “mulatice” era a perdição do país? Pelo menos até o discurso se 
inverter e termos uma verdadeira exaltação do mulato inzoneiro – ​Aquarela do 
Brasil​ para tingir de cores mais leves a negritude do país! 
Pois é, o mito da democracia racial prevalece. Mas porque não torná-lo uma 
realidade, só que pelos motivos certos? Nada de diferenciação entre as cores, há 
lugar no mundo para todas elas, sem que haja dominados e dominadores. Pois era 
com isso, numa definição bem simplista, que Fanon sonhava. Com seres humanos, 
sejam negros, brancos, amarelos, vermelhos, não importa, mas seres humanos. No 
entanto, ele mesmo reconhece a distância dessa realidade e a luta para reverter o 
que séculos de um regime cruel e de discursos desqualificantes solidificaram a 
nível de inconsciente coletivo. É perfeita a análise que faz da publicidade, do 
cinema, das canções, todas moldadas para demarcar um lugar, inferior, para o 
diferente, o negro, o outro, na sociedade. 
Em algumas passagens, Fanon parece aderir a uma ideia binarista da vida, uma 
ideia de que negros/brancos, africanos/orientais e europeus/ocidentais estariam 
em eterno conflito. Provavelmente, no seu tempo estavam mesmo e ainda hoje, a 
democracia etnica esteja longe de ser alcançada. A tendência do mundo 
globalizado porém, é também globalizar as cores, na teoria ao menos. Há autores 
que já trabalham com a questão sob uma ótica mais polivalente, sem esse jogo de 
contrários que parece marcar a obra de Fanon. Para mim, só parece, porque se 
 
 
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entendi tudo o que li da maneira correta, era justamente o fim dessa dualidade 
entre céu (branco) e inferno (negro) que ele queria. 
Fico me perguntando como Fanon veria a eleição de Obama para a presidência dos 
EUA? Ou de um ex-operário nordestino para a presidência do Brasil? Ou ainda de 
um índio para a presidência boliviana? Sem entrar no mérito das competências 
políticas, dos partidos ou dos interesses que cada um defende, penso apenas em 
termos de representatividade étnica e social ter um nero, um nordestino e um 
descendente de índios no poder. Acredito que Fanon comemoraria como uma 
mudança de perspectiva, mas não deixaria o senso crítico ser embotado. Estas 
seriam apenas algumas batalhas vencidas, mas outras ainda estão por travar, 
principalmente aqueles preconceitos arraigados dentro de cada um de nós. 
Quem era? 
Frantz Fanon nasceu na Martinica (ex-colônia francesa 
nas Antilhas), em 1925, e morreu, aos 36 anos, de pneumonia, em 1961. Cedo demais, 
para alguém com o seu gênio. Era psiquiatra, dirigiu o Dept. de Psiquiatria do 
 
 
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Hospital Blida-Joinville, na Argélia, onde também se engajou na luta pela 
independência deste país. Soldado durante a II Guerra, foi condecorado duas vezes 
por bravura. Os amigos mais próximos diziam que era um revolucionário e um 
homem de temperamento forte. Seu pensamento filósofico, de origem basicamente 
humanista, inspirou outros estudiosos e pensadores da diáspora africana, teoria 
política e social, teoria da literatura, estudos culturais e, principalmente, estudos 
sobre o colonialismo e o pós-colonialismo. Ao todo, escreveu quatro livros, sendo os 
dois mais importantes – lançados em português: ​Os condenados da terra​ e​ Pele 
Negra, Máscaras Brancas​. Este último publicado pela EDUFBA, em 2008, com 
tradução de Renato da Silveira e prefácio de Lewis R. Gordon. 
================================== 
Para saber mais sobre Fanon: 
>>​O pensamento anticolonial de Frantz Fanon e a Guerra de Independência da 
Argélia​(em pdf) 
>>​Biografia de Fanon na Wikipedia​ (em inglês) 
 
 
site: ​Mar de Historias | ​“​É a função do poeta: nomear o inominável, apontar as fraudes, tomar partido, 
despertar discussões, dar forma ao mundo e impedir que adormeça" (Salman Rushdie)” 
https://mardehistorias.wordpress.com/2009/09/05/frantz-fanon-e-certas-verdades-que-precisa
m-ser-ditas/

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