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1 Receitas e despesas de um império: contribuição para a história fiscal de Portugal e o ultramar, 1401-1761 < texto não revisado – solicita-se não citar > Angelo Alves Carrara Juiz de Fora 2014 2 Apresentação Este volume constitui o resultado final de um conjunto de pesquisas que iniciei há uma década no campo da fiscalidade. A preocupação original – a estrutura das receitas e despesas da capitania de Minas Gerais – logo incorporou uma área e um período mais amplos (o Estado do Brasil). À medida que a pesquisa respondia às questões de início formuladas, novos problemas iam se apresentando, o mais importante dos quais, na minha avaliação, consistia na determinação do lugar do Brasil na fiscalidade portuguesa. A solução deste problema, porém, requeria antes disto caracterizar a fiscalidade portuguesa propriamente dita.1 A história que aqui se conta parte de uma perspectiva algo diferente da utilizada nos estudos sobre sistemas fiscais europeus, focados principalmente na construção gradual de uma administração tributária nacional, e que reconhece a impossibilidade de se analisar o Portugal da era moderna sem o devido escrutínio dos fluxos fiscais entres as diferentes porções que constituíam o império. Para as nações ibéricas, o adjetivo “imperial” deveria, portanto, estar implícito na expressão “fiscal military state”, já que, desde o século XV para ambas o ultramar é um elemento estrutural inescapável. Portugal e suas conquistas corresponderiam, portanto, a um “Estado fiscal imperial”. Já para os estados imperiais, como Portugal e Espanha, há algum tempo a historiografia iberoamericana vem adotando uma perspectiva transatlântica, com atenção no sistema de múltiplas interrelações e condicionamentos recíprocos entre o centro e a periferia. No Brasil, um dos primeiros exemplos dessa abordagem assinalava explicitamente o objetivo de estudar “temas fragmentados” tais como mulheres e gênero, comércio e comerciantes, revoltas e motins, conjurações e a crise do Império, nas diferentes regiões do império, “procurando ligar a história do Brasil e a de Minas ..., na perspectiva do Império Ultramarino Português”.2 1 Os projetos iniciados em 2003 sobre a fiscalidade do Estado do Brasil nos séculos XVII e XVIII, e que receberam o apoio sempre indispensável do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq, Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais resultaram nos seguintes trabalhos: CARRARA, Angelo Alves. Receitas e despesas do Estado do Brasil; século XVII. Juiz de Fora: Editora da Universidade Federal de Juiz de Fora, 2009; CARRARA, Angelo Alves. Receitas e despesas do Estado do Brasil: Minas Gerais, Bahia e Pernambuco, século XVIII. Juiz de Fora: Editora da Universidade Federal de Juiz de Fora, 2009. Para uma análise mais abrangente sobre a passagem do século XVIII ao XIX: CARRARA, Angelo Alves. A reconfigurac ̧a ̃o da tributação brasileira no contexto das Guerras Napoleônicas. Jahrbuch für Geschichte Lateinamerikas, v. 2 FURTADO, Júnia Ferreira (org.). Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império Ultramarino Português. Belo Horizonte: Editora da niversidade Federal de Minas Gerais, 2001; 3 Assim é com este trabalho, cujo objetivo fundamental é investigar três itens considerados essenciais para a compreensão da fiscalidade do império português: seus elementos estruturais, os impactos fiscais das conjunturas econômicas e a participação dos territórios ultramarinos. O período escolhido tem como balizas os fins do século XIV e a implantação do Erário Régio, em 1761. A data inicial corresponde à transformação de Portugal num Estado fiscal como resultado das gerras fernandinas e de Independência (1369-1411), já a colocação em prática a partir de 1762 das novas rotinas contabilísticas determinadas pelo alvará de 22 de dezembro de 1761, inaugurou um aparato totalmente novo de registro das receitas e despesas começou a ser operado, exigindo um tratamento igualmente diferente do que aqui foi adotado. Isto não me impediu, contudo, de avançar no estudo da escrituração contábil e sua relação com os conceitos que aqui busco apresentar. O movimento geral das receitas não constitui novidade: já há muito foi apresentado por Vitorino Magalhães Godinho – um século XVI que assiste à expansão contínua das fontes de receitas do ultramar consolidadas nas duas primeiras décadas do século XVII; nos primeiros anos da década de 1620 seguiu-se uma fortíssima retração das rendas ultramarinas conjugada com a participação crescente de novas fontes internas de receitas, como os subsídios, fintas, estancos e a décima; e a partir dos primeiros anos do século XVIII, a retomada da expansão das fontes externas provocada pela produção aurífera no Brasil. As despesas, por seu turno, até pela parcimônia das fontes, não têm merecido a mesma atenção. De qualquer modo, como no caso das receitas, é no Reino que as despesas se realizam em máximo volume: Casa Real, tenças e juros, gastos administrativos, despesas militares e armadas da Índia consomem quase todos os dispêndios da Fazenda Real. Nas áreas conquistadas, vale igualmente para Portugal a ÁLVAREZ DE TOLEDO, Cayetana. Politics and reform in Spain and Viceregal Mexico: the life and thought of Juan de Palafox, 1600-1659. Oxford: Clarendon Press, 2004; MONTEIRO, Nuno Gonçalo; CARDIM, Pedro; CUNHA, Mafalda Soares da (orgs). Optima Pars: elites ibero-americanas do Antigo Regime. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005. BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral (orgs.). Modos de governar: ideias e práticas políticas no império português; séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005; GARCÍA HERNÁN, Enrique. Consejero de ambos mundos: vida y obra de Juan de Solórzano Pereira (1575-1655), Madri: Fundación Mapfre, 2007; ARANDA PÉREZ, Francisco José; RODRIGUES, José Damião Rodrigues (coords.). De Re Publica Hispaniae: una vindicación de la cultura política en los reinos ibéricos en la primera Modernidad. Madri: Silex, 2008. DÍAZ BLANCO, José Manuel Razón de estado y buen gobierno; la guerra defensiva y el imperialismo español en tiempos de Felipe III. Sevilha: Universidad de Sevilla, 2010; AMADORI, Arrigo. Negociando la obediencia; gestión y reforma de los virreinatos americanos en tiempos del conde-duque de Olivares (1621-1643). Sevilha: Universidad de Sevilla, 2012. 4 estrutura de gastos apresentada por Herbert Klein e John TePaske.3 A estrutura geral sintetizada por TePaske equivalea uma fórmula simples: após o pagamento de todas as despesas com o aparato administrativo, militar e religioso das conquistas pelos próprios colonos, o eventual excedente fiscal era enviado à metrópole para fazer frente às despesas no Reino ou para outros territórios ultramarinos. O que se busca aqui é antes de tudo refinar alguns elementos de análise, em particular as dimensões territoriais e demográficas do império e a lógica das receitas e despesas imperiais. Deve ser destacado, ademais, o material de natureza fiscal publicado em anexo. Ao lado das atividades específicas da investigação, beneficiei-me fortemente de um intenso debate travado com colegas como eu dedicados a esse campo de estudos. O contato com a produção historiográfica ibero-americana sobre o tema persuadiu-me a considerar que, mais do que inevitáveis e indispensáveis discussões em torno de perspectivas teóricas, metodologias, natureza e qualidade das fontes, a história dos impérios mercantis da era moderna só poderia ser contada por inteiro se se adotasse uma perspectiva comparada. Comparação não apenas da extensão territorial, população ou dos montantes arrecadados e despendidos em cada um deles, mas principalmente do modo como geriam os recursos de que dispunham. Em particular, seus recursos fiscais. Registro desde logo minha gratidão a Joaquim Romero Magalhães, Laura de Mello e Souza, Caio Boschi e Max Menz, que muito generosamente leram o rascunho e apresentaram críticas e sugestões sempre indispensáveis. 3 TEPASKE, John Jay. The costs of empire: spending patterns and priorities in colonial Peru, 1587-1820. Colonial Latin American History Review, v. 2, n. 1, p. 1-33, 1993. Nas palavras de TePaske sobre as diretrizes gerais da política fiscal imperial espanhola no Peru colonial, “these policies were calculated primarily to serve the interests of the mother country; after meeting colonial necessities, any surplus revenues went home to Spain” (p. 28). E o autor acrescenta: “analysis of spending patters in the viceroyalty of Peru also reflects the truly pre-modern character of the Spanish colonial fiscal system. Individuals and institutions depending upon these outlays lived on sufferance” (p. 29). A lógica fiscal nas conquistas resumir-se-ia numa fórmula simples (p. 9): “income generated by the royal treasuries of Peru determined both the level of expenditures and the amount of surplus tax funds available for remission to Spain”. KLEIN, Herbert S. The American finances of the Spanish empire; royal income and expenditures in colonial Mexico, Peru and Bolivia, 1680-1809. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1998. 5 Um campo de estudos Nomenclaturas Fiscalidade é termo relativamente noviço na historiografia. Nos dicionários das línguas neolatinas é comumente definido como o conjunto de normas relativas aos tributos. Mas em sua presumível primeira ocorrência, numa carta do marquês de Argenson, ministro dos negócios estrangeiros de Luís XV, datada de 28 de outubro de 1749, o sentido desta palavra aproximava-se mais do de “carga tributária”, que no texto é associada diretamente a uma dissipação dos recursos fiscais. Assim ocorria também com o próprio adjetivo ‘fiscal’, com o sentido de ‘rigoroso [na cobrança] com o fisco’, aplicado ao “contrôleur général”.4 Essa carga semântica encontrou as condições ideais para associar-se à palavra na descrição da ação da Coroa portuguesa em Minas Gerais ao longo do século XVIII por Xavier da Veiga ou Felício dos Santos. Em ambos o adjetivo – fiscal – parece subentender um substantivo – opressão. Fiscalidade, nesse contexto, poderia ser empregada exatamente como o fizera Argenson. Essa noção ecoa na definição apresentada por Luis Salas, segundo quem, em seu sentido mais amplo, a fiscalidade seria “el ejercicio de una extracción de recursos aplicado a un territorio determinado”. Este também parece ser seu sentido nas ocorrências contemporâneas e menos comuns em inglês, que prefere outras, como “taxation” ou “tax system”.5 4 ARGENSON, René-Louis de Voyer, marquis d' [1694-1757]. Memoires du Marquis d'Argenson. Paris: J. M. Gallanar, 1857, v. 3 [295-297]. Em suas palavras: “voilà le roi bien riche en revenus. (…) Certes voilà un contrôleur général bien fiscal, et tel qu'il n'y en a jamais eu, car cette fiscalité éteint chez lui tout désir de soulager le peuple. (…) Car il ne faut pas s'y tromper, tout ce qui se passe est d'un grand scandale. On ne voit que fiscalité, augmentation de revenus, impôts de guerre continués pendant la paix, mêmes revenus en paix comme en guerre, troupes retranchées de plus de moitié, et cependant les dépenses augmentées à la cour, la maîtresse, les favoris et favorites enrichis, bâtimens, voyages, abus, dissipations, luxe récompensé, le mérite absent, tout cela prend mal et très-mal dans le public” (“Eis o rei bem rico em rendas. (...) Certamente, aí está um controlador geral bem ‘fiscal’ [i. e., rigoroso em matéria fiscal], e tal como nunca havia sido, pois esta fiscalidade [pressão fiscal] estingue nele todo o desejo de aliviar o povo. (...) Pois não se vá enganar, tudo o que acontece é um grande escândalo. Vemos apenas a fiscalidade, o aumento das rendas, impostos de guerra durante a paz, mesmos rendimentos em paz como em guerra, tropas reduzidas a mais da metade, e contudo as despesas aumentadas na corte, a senhora, os favoritos e favoritas enriquecidos, construções, viagens, abusos, dissipações, luxo recompensado, o mérito ausente, tudo isto cai mal e muito mal no público”). Este sentido de pressão fiscal mantém-se no francês moderno e no italiano: “disposition à exagérer les droits du fisc” (Littré); “atto, comportamento intransigente e vessatorio”. Para o alemão, o termo foi transposto já em 1780 apenas com o sentido de “direitos fiscais” (no caso, os do monarca): “... in der königl[ichen] Fiskalität ...” (instruções para os funcionários e trabalhados da mineração em Felsőbánya, de 1o de dezembro de 1780, in: SCHMIDT, Franz Anton. Chronologisch-systematische Sammlung der Berggesetze der österreichischen Monarchie. Viena: 1836, 2a Seção, p. 192. 5 SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino [1861-2]. 5. ed., Petrópolis: Vozes, 1978; VEIGA, José Pedro Xavier da. Efemérides mineiras. Ouro Preto: Imprensa Oficial, 1897; SALAS, Luis. La 6 Mas o uso que dele se faz especialmente na historiografia latino-americana é mais abrangente e tende a traduzir “história fiscal ou das finanças públicas”. Corresponde a um conjunto de itens que reúne não apenas o ordenamento jurídico de natureza fiscal, mas fundamentalmente sua efetiva manifestação nas sociedades, as rubricas de receita e despesa, os sistemas de arrecadação, montantes arrecadados e despendidos, a eficiência fiscal, e, claro, a pressão fiscal sobre a sociedade, motivo da preocupação de Argenson nos meados do século XVIII. Fiscalidade e formação dos Estados Das análises indissoluvelmente alicerçadas em metodologias quantitativas decorre seu vínculo original com a História Econômica, de modo geral, e com a História Financeira, de modo particular. Mas desde a introdução da expressão “Estado fiscal” nos fins do século XIX por Albert Schäfflee adotada na abordagem sociológica das finanças públicas (“Finanzsoziologie”), primeiramente por Rudolf Goldscheid, e logo em seguida por Schumpeter, responsável de fato pela sua notoriedade, a fiscalidade passou a constituir um terreno fundamental em investigações sobre o processo de formação dos Estados modernos.6 A despeito das discordâncias quanto à sua natureza – se mínimo ou de bem-estar social, há relativo consenso quanto ao momento em que começou a se consolidar (após as guerras napoleônicas), bem como os elementos essenciais que o definiriam, assinalados por Weber, em especial: 1. o monopólio da força física legítima num dado território; 2. uma burocracia profissional, e 3. um sistema fiscal interno unificado.7 fiscalidad, el estado moderno y la historiografia nobiliaria: estados fiscales y nobleza castellana (siglos XVI y XVII). Tiempos modernos, n. 8, mai.-set. 2003; YUN-CASALLILLA, Bartolomé; O’BRIEN, Patrick (eds.). The rise of the fiscal state. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, p. 4/26. A presumível primeira ocorrência da palavra em inglês reveste-se do sentido muito geral de “finanças”: BALDWIN, Joseph G. The flush times of Alabama and Mississippi: a series of sketches. Nova York: D. Appleton and Company, 1854, p. 97/322. 6 SCHEER, Christian. Die deutsche Finanzwissenschaft 1918-1933; ein Überblick, in: RIETER, Heinz (ed.) Studien zur Entwicklung der ökonomischen Theorie XIII: deutsche Finanzwissenschaft 1918-1939. Berlin: Duncker & Humblot, 1994, pp. 11-141 (Schriften des Vereins fu ̈r Socialpolitik, Gesellschaft fur Wirtschafts- und Sozialwissenschaften, Neue Folge, vol. 115/XIII), Berlin: Duncker & Humblot, 1994, pp. 11-141, p. 14; PETERSEN, E. L.. From domain state to tax state; synthesis and interpretation. Scandinavian Economic History Review, v. 23, 1975, pp. 116–48 7 Patrick O’Brien, por exemplo, define os estados modernos como “sovereign authorities governing successful economies that provide high, stable, and rising standards of welfare for their citizens” (O’BRIEN, Patrick Karl. The nature and historical evolution of an exceptional fiscal state an its possible significance for the precocious commercialization and industrialization of the British economy from Cromwell to Nelson. Economic History Review, v. 64, n. 2, p. 408-446, p. 408); WEBER, Max. Politik als Beruf. Munique-Leipzig: Duncker & Humblot, 1919, p. 4: "Staat ist diejenige menschliche Gemeinschaft, welche innerhalb eines bestimmten Gebietes … das Monopol legitimer physischer Gewaltsamkeit für sich (mit 7 Para Schumpeter, a formação do estado moderno consistiu nam processo cujo estágio inicial correspondeu à transição do “Estado senhorial” (Domänenstaat; domain state) ao “Estado fiscal” (Steuerstaat; tax state), decorrente da incapacidade dos senhorios régios fazerem frente às necessidades crescentes do Estado, principalmente com as guerras. Do estágio original em que os recursos fiscais provinham dos domínios régios, chega-se a outro, no qual todo o reino é chamado a prover fundos aos príncipes: um estado fiscal (“tax state”). Seguindo essa perspectiva, Kersten Krüger empreendeu seu estudo sobre o Hesse.8 O aprofundamento e ampliação do foco, nomeadamente as análises comparativas da história fiscal para o período medieval e moderno tornou-se possível a partir dos anos 1980 e 1990 como resultado da construção de longas séries de dados fiscais por um conjunto abrangente de historiadores direta ou indiretamente vinculados ao programa de pesquisa intitulado “The origins of the modern state in Europe”, financiado pela European Science Foundation, e cujos resultados foram publicados sob a organização de Richard Bonney na segunda metade dos anos 1990. Richard Bonney e Mark Ormorod alargaram os estágios na história fiscal para quatro tipos preponderantes: os Estados tributário (tribute), senhorial, taxador (tax state) e o último estágio, o Estado fiscal. Os autores observam, porém, que na prática os Estados combinam elementos de diferentes estágios em várias “constituições fiscais”, mas as características associadas a cada estágio particular são tomadas como dominantes, permitindo assim classificar os Estados no interior das estruturas desse modelo. Além disto, ambos enfatizam que não há qualquer evolução linear. Ao contrário, os regimes fiscais podem mudar repentinamente, e distinguem as crises (que provocam a mudança num determinado sistema fiscal); revoluções (com transições de um tipo de sistema fiscal para outro) e o crescimento autossustentado, limitado ao moderno Estado fiscal. Os casos de Portugal e seus Erfolg) beansprucht"; WEBER, Max. Economy and society. Berkeley: University of California Press, 1978, p. 229. 8 SCHUMPETER, Joseph Alois. The crisis of the tax state. In: SWEDBERG, Richard (ed.). Joseph A Schumpeter: the Economis and Sociology of capitalism. Princeton: Princeton University Press, 1991, p. 99- 140. Versão aumentada de uma conferência proferida por Schumpeter na Wiener Soziologische Gesellschaft, originalmente publicado em 1918 sob o título “die Krise der Steuertaates” no número 4 da Zeitfragen aus dem Gebiete der Soziologie. Outra tradução para o inglês foi preparada por Wolfgang F. Stolper e Richard A. Musgrave foi publicada em International Economic Papers, n. 4, 1954; KRÜGER, Kersten. Finanzstaat Hessen 1500-1567; Staatsbildung im Übergang vom Domänenstaat zum Steuerstaat. Marburg Elwert, 1980; KRÜGER, Kersten. Public Finance and modernisation: the change from the domain state to tax state in hesse in the sixteenth and seventeenth centuries. in Witt (ed.). Wealth and taxation in central Europe: the history and sociology of public finance. Nova York: Berg, 1987, p. 49-62. 8 territórios ultramarinos só mais recentemente foram objeto de estudos alicerçados em bases quantitativas mais amplas.9 Guerra e fiscalidade De todo modo, a relação que Schumpeter estabeleceu entre campanhas militares e fisco tornou-se ponto nevrálgico da abordagem consolidada a partir dos anos 1980, e sintetizada no conceito de “Estado fiscal militar”, cunhado por John Brewer. A despeito de sua reconhecida confusão e imprecisão, esta expressão tem se mostrado interessante por assinalar as duas funçõesprincipais do Estado da Era Moderna: arrecadar tributos e travar a guerra. Dito de outro modo: o Estado cujo principal objetivo era sustentar a máquina de guerra por meio da mobilização de recursos financeiros. Ademais, essa abordagem vinha acompanhada de uma nova percepção da natureza do poder real, ao enfatizar um elemento novo: em lugar de monarquias absolutistas, o Estado moderno se caracterizaria pela busca de cooperação e colaboração das partes interessadas em termos políticos, sociais e econômicos; repousaria na negociação, mais do que na coação de cima para baixo ou na autoridade intimidadora. Os poderes locais e suas elites teriam desempenhado um papel central na mobilização de recursos para a guerra, inclusive apoio sentimental e ideológico. Nas palavras de Rafael Torres, “Estado fiscal militar” constitui-se num “stopgap term for filling the holes left by the term absolutism”.10 9 BONNEY, Richard (ed.). Economic systems and state finance. Oxford: Oxford University Press/The European Science Foundation, 1995; BONNEY, Richard. The rise of the fiscal state in Europe, c. 1200-1815. Nova York: Oxford University Press, 1999; ORMROD, William Mark; BONNEY, Margaret; BONNEY, Richard (eds.). Crises, revolutions and self-sustained growth: essays in European fiscal history, 1130-1830. Stamford: Shaun Tyas, 1999, p. 10/16; MIRANDA, Susana Münch. A administração da Fazenda Real no Estado da Índia (1517-1640). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2007 (tese de doutoramento); HENRIQUES, Antônio Maria Braga de Macedo de Castro. State finance, war and redistribution in Portugal (1249-1527). York: University of York, 2008 (tese de doutorado); CARRARA, Angelo Alves. Receitas e despesas da Real Fazenda no Brasil; século XVII. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2009; CARRARA, Angelo Alves. Receitas e despesas do Estado do Brasil: Minas Gerais, Bahia e Pernambuco, século XVIII. Juiz de Fora: Editora da Universidade Federal de Juiz de Fora, 2009. 10 BREWER, John. The sinews of power; war, money and the English state, 1688-1783. Nova York: Alfred A. Knopf, 1989. De seu contexto original – a Grã-Bretanha setecentista – a expressão foi adotada para descrever outros estados europeus dos séculos XVI-XVII, à China de 771-220 a.C, ou então à Etiópia e os Estados Unidos dos séculos XVIII-XIX. De especial interesse para uma resenha crítica do conceito de absolutismo, que apresenta a encruzilhada a que chegou o termo, dada a escassa concordância dos autores quanto a sua natureza, bem como os possíveis meios de fazer avançar o estudo do tema, é o texto de BONNEY, Richard. Absolutism: what’s in a name? French History (1987) v. 1, n. 1, p. 93-117 (note-se que Bonney, neste texto de 1987, propõe que, para a superação das dificuldades, seria necessária uma nova abordagem; dois anos depois aparecia o texto de John Brewer). Um exemplo dessa superação: HENSHALL, Nicholas. The myth of Absolutism: change and continuity in Early Modern European monarchy. Londres: Longman, 1992. Cf. dois abrangentes balanços historiográficos a respeito: TORRES SÁNCHEZ, Rafael (ed.). War, state and development; fiscal-military states in the Eighteenth century. Pamplona: EUNSA, 2007, p. 13-44; O’BRIEN, Patrick Karl. The nature and historical evolution of an exceptional fiscal state an its possible significance for the precocious commercialization and 9 Esta última característica dos Estados fiscais militares mereceu maior atenção exatamente em virtude das suas implicações para a eficiência de cada um. Estados mais eficientes seriam os que conseguiam envolver mais agentes no esforço pela mobilização de recursos do que os que dispunham de mais autoridade ou eram mais centralizados; que fossem mais capazes de suscitar consenso e aprovação em suas sociedades e de nelas atrair apoios ou superar resistências: mais importante do que a autoridade seria a legitimidade da ação dos monarcas. Ou, dito de outro modo, a autoridade proviria de um amplo consenso social e político. Nesse quadro, a Inglaterra apresenta-se como o modelo, ou, noutra perspectiva, o caso excepcional.11 Em síntese, a eficiência dos Estados se manifestava em “centralized and viable fiscal and financial regimes, capable of providing sovereign states in formation with the resources required to sustain their security, stability, and suppor for territorial and economic expansion, as the best way to model their survival and success in a mercantilist international order that persisted for centuries before and some decades after the Treaty of Vienna”.12 Comércio internacional e fisco Ao lado da guerra, a outra força conformadora dos Estados na Era Moderna destacada por essa historiografia é o comércio internacional. Como consequência, o industrialization of the British economy from Cromwell to Nelson. Economic History Review, v. 64, n. 2, p. 408-446. 11 HOFFMAN, Philip T.; NORBERG, Kathryn (eds.). Fiscal crises, liberty and representative government, 1450–1789. Stanford: Stanford University Press, 1994; COOKSON, John E. The British armed nation, 1793- 1815. Oxford: Oxford University Press, 1997; BRADDICK, Michael J. State formation in early modern England, c. 1550-1700. Cambridge: Cambridge University Press, 2000; CONWAY, Stephen. War, state, and society in mid-eighteenth-century Britain and Ireland. Oxford: Oxford University Press, 2006, cap. 2; versão alterada sob o título “Public and private contributions to the mobilisation of manpower and resources for war in mid-eighteenth-century Britain and Ireland”. In: BOWEN, H. V.; GONZÁLEZ ENCISO, A. (eds.). Mobilising resources for war: Britain and Spain at work during the Early Modern Period. Pamplona: EUNSA, 2006, p. 37-58. Conway é enfático ao afirmar que “partnership [between the state and private and local interests] was the key to Britain’s ultimate success in mobilising such impressive quantitties of manpower, material and money” (p. 39). Para Richard Bonney, mais importante que o grau de centralização política seria o controle governamental sobre a administração ou do nível de informação (BONNEY, R.. Absolutism: what’s in a name? French History, 1, 1987, p. 93-117, p. 93-94). Para um exemplo da produção recente na Espanha que caminha sob esta perspectiva, consulte-se TORRES SÁNCHEZ, Rafael. El precio de la guerra; el Estado fiscal-militar de Carlos III (1779-1783). Madrid: Marcial Pons, 2013. Sob um viés jurídico, esta perspectiva está igualmente presente na historiografia portuguesa recente: HESPANHA, Antonio Manuel. Vísperas del Leviathan: instituciones y poder político (Portugal, siglo XVI). Madri: Taurus Ediciones, 1989; CARDIM, Pedro. “Administração” e “governo”: uma reflexão sobre o vocabulário do Antigo Regime. In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral (orgs.).Modos de governar: ideias e práticas políticas no império português; séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005, p. 45-68. 12 O’BRIEN, Patrick Karl. The nature and historical evolution of an exceptional fiscal state an its possible significance for the precocious commercialization and industrialization of the British economy from Cromwell to Nelson. Economic History Review, v. 64, n. 2, p. 408-446, p. 409. 10 debate sobre o papel do mercantilismo torna-se inevitável. No entanto, outra perspectiva de análise, começa a se apresentar, e enfatiza elementos diferentes: “Britons in the eighteenth century did develop a robust and remarkably effective state. But it was not a narrowly fiscal-military state. At the same time that the Britons paid and paid dearly for the creation of massive armies and navies capable of defeating their greatest European rivals, Britons also devoted a relatively smaller proportion of their revenues to narrowly fiscal-military matters. In this period they created an interventionist state that did much to improve infrastructure and extend social provisioning. And, it turns out, the British government spent most heavily on civil development not in England, but in Scotland, Ireland, and in the plantations. Britain diverged from the European and historical pattern because the Whigs, in large part, believed that unlimited economic growth was possible. (...) The Revolution of 1688-1689 made it possible for Britain to precociously develop the interventionist state..” Pincus e Robinson destacam que a Grã-Bretanha começou a gastar relativamente mais as suas receitas com itens não militares, em especial com iniciativas de natureza social ou econômica. O Estado britânico setecentista ter-se-ia dedicado tanto à expansão militar quanto ao crescimento econômico ilimitado, investindo em educação, infraestrutura (esgotamento sanitária, estradas e portos) ou descobertas científicas, por exemplo. Além disto, o gasto fiscal britânico com rubricas militares era menor quando comparado com o de outros Estados. A explicação que os autores propõem para esse distanciamento pelo Estado britânico do padrão histórico europeu de gastos fiscais – isto é, gastos relativamente maiores em outros tipos de atividades que não militares – é que a Revolução de 1688-1689 marcou uma ruptura na natureza do estado Britânico. Estados fiscais imperiais e mercantilismo Pincus e Robinson questionam ainda a aceitação da noção mercantilista de que o comércio era um jogo de soma zero segundo o qual o desenvolvimento econômico só seeria alcançado por meio do apoderamento da riqueza de um Estado competidor, os Whigs teriam subscrito uma visão de que o trabalho criaria a riqueza e, portanto, os governos deviam promover o crescimento econômico apoiando as manufaturas tanto na Grã-Bretanha como em suas colônias.13 O debate está aberto, e a análise do papel da fiscalidade na trama da formação dos Estados modernos, porém, segue como um empreendimento inescapável. A ótica 13 PINCUS, Steve; ROBINSON, James. Wars and state‐making reconsidered: the rise of the interventionist state. Harvard University, 2013; BREWER, John. The sinews of power; war, money and the English state, 1688- 1783. Nova York: Alfred A. Knopf, 1989, p. 40; INNES, Inferior politics; social problems and social policies in Eighteenth-Century Britain. Oxford: Oxford University Press, 2009, p. 74; PINCUS, Steve. Rethinking mercantilism. William and Mary Quaterly, 3rd. series, 69, n. 1 (jan. 2012 p. 3-70). 11 adotada na América Latina filia-se a uma matriz historicamente distinta – “by looking from the colony toward the metropolis”, nas palavras de Carlos Marichal. Isto obriga necessariamente a uma mudança importante de perspectiva: a análise dos Estados fiscais imperiais, como ele os denomina, exige necessariamente não apenas o escrutínio dos fluxos financeiros, mas também das transações mercantis entre a metrópole e suas colônias, de um lado, e os fluxos comerciais entre a metrópole e as demais nações, nos quais a reexportação de gêneros coloniais tem notável importância. A investigação nesse campo permitiria avaliar os impactos estritamente fiscais das estruturas imperiais, bem como suas consequências econômicas, demográficas e de conjunto de tudo isto nos processos de construção do Estado e de desenvolvimento econômico. Neste debate há de se separar evidentemente o montante financeiro - de natureza fiscal ou não - obtido pela metrópole com o fluxo de mercadorias coloniais, do impacto propriamente dito destes fluxos sobre o desenvolvimento econômico tanto do centro como da periferia. Há duas décadas John Brewer notou o desequilíbrio entre a maior atenção conferida à influência do centro sobre a periferia, em comparação à menor preocupação com os efeitos do império sobre a metrópole. No que respeita aos fluxos estritamente fiscais, um bom exemplo das posições em jogo a respeito do império espanhol é o debate protagonizado por Carlos Marichal e William Summerhill a partir do texto de Alejandra Irigoin e Regina Grafe.14 Patrick O’Brien denominou de “imperialismo fiscal” as tentativas dos Estados para ampliar os parâmetros de seus sistemas fiscais por meio da incorporação de territórios, bens e populações para além das suas fronteiras medievais e de políticas mercantilistas postas em execução no sentido de concentrar os tributos incidentes sobre o comércio internacional nos portos sob sua jurisdição. Contudo, avalia que, se Portugal e (em menor grau) Espanha aumentaram os fluxos fiscais diretamente acessíveis a ambas as monarquias na forma de prata e ouro a partir do século XV, nenhum outro Estado imperial até o século XVIII teria conseguido extrair e transferir para a metrópole 14 MARICHAL, Carlos. Bankruptcy of empire: Mexican silver and the wars between Spain, Britain and France, 1760-1810. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 5/50; SUMMERHILL, William (2008): “Fiscal Bargains, Political Institutions, and Economic Performance”, Hispanic American Historical Review, 88 (2), pp. 219-233; IRIGOIN, Alejandra & GRAFE, Regina (2008): Bargaining for Absolutism: a Spanish path to Nation-State and Empire building, Hispanic American Historical Review, 88(2), pp. 173- 209; MARICHAL, Carlos. Rethinking negotiation and coercion in an imperial State”, Hispanic Ameri-can Historical Review, 88 (2), pp. 211-218; a expressão “imperial fiscal logic” é citada na p. 215; O’BRIEN, P. K.; PRADOS DE LA ESCOSURA, L. (eds.). The costs and benefits of European imperialism from the conquest of Ceuta, 1415, to the treaty of Lusaka, 1974. Madrid: 1998; BREWER, John. The eighteenth-century British state: contexts and issues. In: STONE, Lawrence. An imperial state at war; Britain from 1689-1815. Londres: Routledge, 1994, p. 52-71, p. 69. 12 rendimentos fiscais significativos e contínuos com a empresa comercial ultramarina. Logo, sua importância na construção de sistemas fiscais viáveis e produtivos para o crescimento a longo prazo das economias metropolitanas teria sido insignificante. No entanto, o recurso a dados quantitativos mais consistentes, porém, tem permitido alguma revisão destes argumentos. Bowen pôs-se a “considerare se possível quantificar as diferentes formas pelas quais a aquisição de um império indiano pela East India Company a partir dos meados do século XVIII teria influenciado o desenvolvimento doméstico do Estado britânico e capacitado a travar a guerra em escala mundial. Sua avaliação da importância dos recursos ultramarinos é de que .15 O caso português é sem dúvida curioso: pioneiro na expansão comercial marítima europeia, é inegável o volume dos fluxos fiscais diretos ou indiretos com ela obtidos pelo Estado. Jorge Pedreira considera que a avaliação das consequências econômicas dos impérios a partir do século XV levanta um conjunto de problemas incontornáveis, dos quais, os mais desafiadores seriam o “interminável debate ideológico sobre o desenvolvimento das nações” e a falta de dados estatísticos apropriados que assegurariam um julgamento preciso. Uma dificuldade fundamental decorre da virtual impossibilidade de se distinguir e, como consequência, “determinar as consequências econômicas dos impérios e avaliar o contributo da periferia para o crescimento econômico da Europa ocidental”.16 Todos estes senões haviam sido também destacados por Patrick O’Brien, que acrescentou um problema heurístico de base: “a correct perspective on international trade is difficult to achieve – not merely because statistics are scarce and shaky but because, unlike other sectors of the economy, oceanic trade has left an abundance of records which have seduced 15 O’BRIEN, Patrick Karl. The nature and historical evolution of an exceptional fiscal state an its possible significance for the precocious commercialization and industrialization of the British economy from Cromwell to Nelson. Economic History Review, v. 64, n. 2, p. 408-446, p. 415; BOWEN, H. V.. Mobilising resources for global warfare: the British state and the East India Company, 1756-1815. In: BOWEN, H. V.; GONZÁLEZ ENCISO, A. (eds.). Mobilising resources for war: Britain and Spain at work during the Early Modern Period. Pamplona: EUNSA, 2006, p. 81-110. 16 PEDREIRA, Jorge M.. To have and to have not; the economic consequences of empire: Portugal (1415–1822). Revista de Historia Económica/Journal of Iberian and Latin American Economic History (Second Series), 16, pp 93-122 (versão em português: PEDREIRA, Jorge M. As consequências econômicas do império: Portugal (1415-1822). Análise social, v. 32, n. 2-3, 1998, p. 433-461). A tarefa mantém-se de pé: “Unfortunately a statistical base containing secure, conceptually refined, and properly calibrated data for revenues made available to central governments for a large and representative sample of major European polities has not been constructed. This remains as an urgent and necessary task for research into fiscal history on a comprehensive basis” (O’BRIEN, Patrick Karl. The nature and historical evolution of an exceptional fiscal state an its possible significance for the precocious commercialization and industrialization of the British economy from Cromwell to Nelson. Economic History Review, v. 64, n. 2, p. 408-446, p. 413). 13 generations of historians eager to reconstruct the fascinating story of exploration, conquest, and rivalry among European states for the spois of discovery.17 Contudo, apesar de mostrar-se algo pessimista quanto à superação destes desafios – “a controvérsia prosseguirá sempre, não só em volta da interpretação dos efeitos do imperialismo, mas acerca dos próprios fatos e números” em razão de que “talvez nunca possamos construir uma matriz de custos-benefícios plausível ou uma estimativa aceitável do significado relativo dos empreendimentos imperiais” – Pedreira considera que “não há razões para que os cientistas sociais não sejam ousados na resposta a estas questões, se tiverem presentes as dificuldades que enfrentarão na sua pesquisa e desde que estejam preparados para se contentarem com respostas eventualmente mais modestas do que imaginavam no início da sua indagação.18 Estados imperiais e desenvolvimento econômico Um item adicional encontrado nessa discussão refere-se ao impacto da estrutura fiscal imperial sobre o desenvolvimento econômico. Rafael Torres propôs ainda estender a análise, buscando-se estabelecer a relação entre Estado, guerra e desenvolvimento econômico ao longo do século XVIII, considerado a autêntica Idade de Ouro do estado fiscal militar. Sua perspectiva é particularmente interessante para o presente estudo, tanto por permitir manejar o conceito de “estado fiscal imperial”, como pela atenção por ele conferida ao papel do mercantilismo.19 Na avaliação de Wilma Costa, por exemplo, a lógica dos fluxos fiscais do império teria exercido um efeito negativo sobre o desenvolvimento econômico de Portugal. De fato, a literatura sobre as consequências econômicas para a metrópole dos impérios ultramarinos estabelecidos pelos europeus desde o século XVI tem produzido uma considerável base estatística. Não obstante, tem tido um êxito limitado no estabelecimento de algum consenso relativo à verdadeira natureza da relação entre o centro e a periferia: “even in termos of the scale and direction of this effect, conclusions range widely, from negative to positive, and from small, or insignificant, to large and 17 O'BRIEN, Patrick Karl. The Foundations of European Industrialization: From the Perspective of the World. Journal of Historical Sociology, v. 4, 1991, p. 288–316; O'BRIEN, Patrick K. European economic develoment: the contribution of the periphery. The Economic History Review, v. 35, n. 1, 1982, p. 18. 18 PEDREIRA, Jorge M.. To have and to have not; the economic consequences of empire: Portugal (1415–1822). Revista de Historia Económica/Journal of Iberian and Latin American Economic History (Second Series), 16, pp 93-122 (versão em português: PEDREIRA, Jorge M. As consequências econômicas do império: Portugal (1415-1822). Análise social, v. 32, n. 2-3, 1998, p. 433-461). 19 TORRES SÁNCHEZ, Rafael (ed.). War, state and development; fiscal-military states in the Eighteenth century. Pamplona: EUNSA, 2007, p. 13-44. 14 even critical to the economic performance of the colonizing nations”. Leonor Costa, Nuno Palma e Jaime Reis concluíram que, apesar de o império ter ajudado a economia doméstica portuguesa, não foi suficiente para anular a tendência de declínio em relação ao núcleo avançado da Europa em marcha a partir do século XVII.20 A este conjunto de elementos referentes às consequências estritamente econômicas, podem ser também acrescentados os efeitos políticos. Boxer, por exemplo, argumentou que pelo menos após a Restauração em 1640 foi o império que teria assegurado grandemente a sobrevivência de Portugal como um Estado independente.21 Fiscalidade e extrafiscalidade Certamente algumas questões devem merecer melhor escrutínio numa análise futura. Uma delas refere-se ao próprio emprego da palavra “fiscal”. A ótica jurídica considera fiscal o uso do tributo com fins meramente arrecadatórios, isto é, instrumento de abastecimento dos cofres públicos, e extrafiscal seu uso para outros objetivos, em particular no que interfira no meio econômico e social. Ora, não há tributo que atenda este critériode modo puro.22 Nesse sentido, o estritamente fiscal corresponderia ao que é tão somente objeto de arrecadação tributária (subentendido igualmente o arrecadado como punição ao não cumprimento da norma tributária, como são os casos dos confiscos e multas pelo atraso do pagamento de algum imposto). Assim, em decorrência deste pressuposto, a contabilidade de natureza estritamente fiscal corresponderia à fórmula “receitas menos despesas”, e não admitiria nunca que as despesas superassem as receitas. Sempre haveria alguma sobra, que retornaria incorporada à receita. No caso de a despesa superar a receita, simplesmente alguém não seria pago. Aqui têm então lugar na equação as variáveis (a) receitas arrecadadas ou (b) por arrecadar, e (c) despesas pagas ou (d) por pagar. A fórmula constituída por estes termos contém, portanto, metal sonante (o que está de fato nos cofres) e a moeda escritural (no caso das variáveis (b) e (d). Nos casos em que a (a) + (b) não são suficientes para cobrir as despesas haveria duas alternativas possíveis: 20 COSTA, Wilma Peres. Do Domínio à Nação, impasses da fiscalidade no processo de Independência. In: JANCSÓ, István (org.). A formação do Estado e da nação brasileira. São Paulo: Hucitec, 2003, p. 143-194; COSTA, Leonor Freire; PALMA, Nuno; REIS, Jaime. The great escape? The contribution of the empire to Portugal’s economic growth, 1500-1800. Madrid: Universidad Carlos III de Madrid, 2003 (Working Papers in Economic History, 13-07, novembro de 2013). 21 BOXER, Charles Ralph. Four centuries of Portuguese expansion 1415-1825: a succinct survey. Johannesburg: Witwatersrand University Press, 1961, p. 90. 22 Numa análise abrangente sobre a matéria, isto é o que também assinala CARAVELLI, Flávia Renata Vilela. Fiscalidade e extrafiscalidade: em busca de uma distinção adequada ao contexto da Constituição de 1988. Belo Horizonte: PUC-MG, 2010 (dissertação de mestrado). 15 1. não pagar alguns gastos ou 2. recorrer a um artifício fiscal, isto é, à extrafiscalidade, como os empréstimos, que são originalmente uma operação financeira, e só secundariamente, recurso fiscal. Mas há outros recursos de fato extrafiscais mas que aparecem como fiscais, como a permuta do ouro em pó de faisqueira, a partir de 1809 em Minas Gerais. Outro exemplo é o recurso às sucessivas desvalorizações da moeda, como as levadas a efeito por D. Fernando [regnavit 1367-1383]. Há, portanto, de se verificar o que de fato constitui matéria fiscal e o que é artifício arrecadatório.23 Os empréstimos Os empréstimos vinculam-se a outro item de uma agenda de investigação: o da eficiência fiscal, por expressar a saúde financeira das instituições fazendárias. A eficiência pode igualmente ser mensurada pelo peso das despesas operacionais ou administrativas, isto é, aquelas realizadas no processo de arrecadação dos tributos, e que incluem os dispêncios com o pessoal encarregado estritamente da cobrança e arrecadação, com material de consumo, ajudas de custo no caso de cobranças em lugares distantes, por exemplo, bem como as despesas que hoje consideraríamos de capital (no caso da construção de prédios ou de qualquer infraestrutura relativa ao processo de cobrança e arrecadação). Se, no final, o saldo for positivo, o sistema funciona adequadamente; se negativo, não, isto é, se tem-se de recorrer à extrafiscalidade, que é o mesmo que dizer “empréstimos”. Quanto menores as despesas operacionais e menor a necessidade de recurso a qualquer artifício extrafiscal mais eficiente o sistema.24 O tema da eficiência fiscal mereceria também uma incursão pelos sistemas de cobrança e arrecadação durante a Era Modera: se por administração da Real Fazenda ou pelo sistema de arrendamentos. Portugal só começa a abandonar este último nos fins do século XVIII, e nunca contou com corporações de mercadores, ao contrário do que ocorreu com Espanha, que com o fim dos contratos de arrendamento assistiu à ampliação da administração fiscal (como é caso das intendências) e a consequente 23 Um estudo pormenorizado a respeito desse tributo pode ser consultado em CARRARA, Angelo Alves. A Real Fazenda de Minas Gerais; guia de fontes da Coleção Casa dos Contos de Ouro Preto. Ouro Preto: Editora da UFOP, 2005; HENRIQUES, Antônio Maria Braga de Macedo de Castro. State finance, war and redistribution in Portugal (1249-1527). York: University of York, 2008 (tese de doutorado). 24 Algumas variáveis a levar-se em conta: “size, territorial dispersion and institutional diversity, relative position in global and international networks, capability to import fiscal techniques and financial advances, and the different degrees of independence in regard to movements of international capital are ... relevant factors in the efficiency of fiscal systems and in their final transition to the fiscal state” (YUN- CASALLILLA, Bartolomé; O’BRIEN, Patrick (eds.). The rise of the fiscal state. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, p. 24). 16 multiplicação dos agentes corporativos (consulados, “tribunal de minería”, etc.). Qual a eficiência fiscal num e noutro modelo? E ainda relacionado ao mesmo tema, valeria a pena avaliar o impacto sobre o sistema da adoção do sistema de partida dobrada a partir dos meados do século XVIII. Ordenamento jurídico e constituição fiscal O conceito de constituição fiscal é de fato extremamente inspirador para o presente estudo. Originalmente proposto por Kenneth Dam na análise restrita aos Estados Unidos, foi logo em seguida difundido por Brennan e Buchanan, que estavam a escrever seu livro quando ocorreu a revolta dos contribuintes da Califórnia de 1978 que resultou na “Proposição 13”, ou a Iniciativa Popular de Limitação da Tributação sobre a Propriedade, votada por meio de referendo de iniciativa popular na Califórnia em 1978 e que limitou os impostos fundiários a serem arrecadados pelo Estado. A despeito de sua aplicação num momento histórico específico, penso que o conceito é fundamental para o entendimento das transformações na fiscalidade em outros períodos, como o que aqui se estuda. Para Dam, a constituição fiscal consistia na “soma das disposições constitucionais com efeitos sobre a tributação e a despesa, incluindo tanto as normas definidoras da competência fiscal do governo federal como as regras de distribuição dos poderes de tributação e dispêndio entre o governo federal e os estados”. Brennan e Buchanan partem do pressuposto segundo o qual o governo aufere seus poderes do consentimento final dos que são governados. Logo, está implícito neste modelo que o agente autorizado da coerção, o governo, pode ser limitado em seu raio de ação. Ou seja, as constituições podem restringir as atividades da entidade política.25 Ora, se se considera que os Estados da Era Moderna igualmente são construídos a partir da negociação entre os diferentes agentes da sociedade, obviamente dispomos dos elementos para se falar, não propriamente de uma “constituição” fiscal, mas, sem dúvida, de um arcabouço jurídico fiscal, definido pelo conjunto de normas fundamentais, formais ou mesmo informais, que regem a política fiscal. Isto ultrapassa o simples ordenamento jurídico queestabelece a estrutura burocrática responsável pela arrecadação das receitas e pagamento das despesas, ou o regime fiscal, mas fundamentalmente os limites legítimos da tributação e do dispêndio. Em termos claros: de quem e como cobrar tributos e com quem ou com quê gastar os montantes arrecadados. 25 DAM, Kenneth W.The American Fiscal Constitution. University of Chicago Law Review, v. 44. n. 2, 1977, p. 271-320, p. 272; BRENNAN, Geofrey; BUCHANAN; James M.. The power to tax: analytical foundations of a fiscal constitution. Indianapolis: Liberty Fund, 1980, p. 17 A partir dos primeiros anos da dinastia de Avis começaram a ser estabelecidos diferentes órgãos, regimentos e ordenações visando a conferir maior sistematização às funções fazendárias. Mas seu papel de fato residia no controle das contas dos agentes responsáveis pela arrecadação das receitas e pagamento das despesas. Observado numa perspectiva de mais longo prazo, o movimento parece ter início com o Regimento dos Contos em 1389. O que se vê em seguida parece ser um processo de aprofundamento na sistematização das normas contabilísticas, de refinamento nas rotinas e concentração dessas funções em uma única entidade, que culmina em 1761 com a criação do Erário Régio.26 Contudo, a função fundamental de cada uma das entidades que se foram criando e reformando até o século XVIII era a verificação das contas de todas as repartições fazendárias, e não a de produzir uma escrituração contábil unificada a partir dos dados fornecidos por todos os almoxarifados, alfândegas e provedorias. O período inicial deste estudo – as guerras fernandinas e de Independência entre 1369 e 1411 – marca o estabelecimento de uma nova “constituição fiscal”, e refletiu-se no conjunto de normas que regulamentaram essas transformações. O regimento dos Contos, de 5 de julho de 1389 é em geral considerado o primeiro regulamento da repartição fazendária responsável pelo controle da gestão das receitas e despesas do Reino: os Contos de Lisboa. Pouco depois, 28 de novembro de 1419, instituiu-se o regimento dos contadores da cidade de Lisboa, com o objetivo de regulamentar a distribuição das contas pelos contadores e escrivães, dos vários tesoureiros e recebedores da cidade de Lisboa e seu termo, bem como os respectivos prazos de tomada de conta. Por este regimento, todas as rendas arrecadadas na cidade de Lisboa e seu termo, tanto direitos como sisas, deviam ser guardadas no Tesouro e conferidas pelos contadores e escrivães. O ordenamento jurídico seguinte, regimento do contador-mor dos Contos da Cidade de Lisboa, de 22 de março de 1434, que regulamentou os procedimentos da tomada de conta e encarregava o contador-mor de controlar e evitar a negligência dos funcionários parece relacionar-se diretamente ao conjunto de reformas levadas a cabo por D. Duarte I [1433-1438], como a do sistema monetário. No século XIV o tesouro central perdeu imporância para um sistema de tesourarias locais, os almoxarifados. Estas novas “células fiscais” como as denomina Castro Henriques, marcariam o início de uma constituição fiscal, na qual as sisas 26 Para uma detalhada exposição sobre o tema, cf. PAIXÃO, Judite Cavaleiro; LOURENÇO, Maria Alexandra. Tomar em linha de conta o controlo das contas e a sua regulamentação. Jornal de Contabilidade, v. 264, p. 76-78; v. 265, p. 114-115; v. 266, p. 155-157; v. 267, p. 191-193; 268, p. 231-234; v. 269, p. 263-266, 1999; PAIXÃO, Judite Cavaleiro; LOURENÇO, Maria Alexandra. Contos do Reino e Casa. Revista do Tribunal de Contas. Lisboa: Tribunal de Contas, n. 21-22, p. 401-457, jan.-dez. 1994; n. 23, jan.-set. 1995. 18 passaram a desempenhar o papel essencial. A característica dessa nova constituição fiscal correspondia à transformação de um sistema orientado para a acumulação, para outro em que a redistribuição e a guerra ofensiva estavam intrinsecamente conectados. Isto representava uma mudança decisiva operada nas finanças estatais portuguesas: a passagem de um Estado senhorial a um Estado fiscal. Para a nobreza, a guerra era um meio de assegurar lucro, seja por meio da pura pilhagem ou do patrocínio régio, ao passo que a contribuição dos não nobres para as campanhas militares seriam mínimas e limitadas à defesa do Reino. A atividade guerreira seria a melhor forma de aumentar o prestígio, a honra e o proveito pelos nobres, o que explica sua intensa participação nas várias frentes da expansão dos séculos XV e XVI.27 Como bem salienta Castro Henriques, estas mudanças não correspondem apenas a um mero crescimento quantitativo das receitas, mas uma relação inteiramente nova entre os monarcas da dinastia de Avis e a vida econômica do Reino. Ao instituir as sisas como o esteio das finanças régias, o Estado fiscal português passou a depender do mercado. Daí o papel verdadeiramente revolucionário das sisas.28 As despesas militares entre 1415 e 1471 não foram pequenas: Ceuta teria custado 280.000 dobras, mais do que a receita total do Reino em 1401, orçada em 204.000; o desastre militar de Tânger, avaliado em 57.000 dobras, igualmente superava a renda total de 1743, de 47.000 dobras; e a expedição de Arzila e Tânger em 1471, com um custo em torno de 104.000 e 112.000 dobras era mais da metade dos rendimentos em 1472, de 180.000 dobras. A solução adotada, servir-se de recursos extraordinários pagos pelos povos, tinha limites. Em vista da relutância das cortes em financiar outros conflitos além dos que tinham lugar nas fronteiras do Reino, a monarquia teve de recorrer a rendas ordinárias para lançar a campanha no norte da África, o que logrou fazê-lo a partir dos fins da década de 1460. A proporção dos gastos com a campanha de 1471 demonstra-o claramente. Embora um desastre para a Coroa, Ceuta podia ser lucrativa para os nobres 27 COSTA, João Paulo Oliveira e. A nobreza e a expansão; particularidades de um fenómeno complexo. In: COSTA, João Paulo Oliveira e (dir.). A nobreza e a expansão; estudos biográficos. Cascais; Patrimonia, 2000, pp. 11-51; COSTA, João Paulo Oliveira e. A nobreza e a fundação do Estado Português da Índia. in: In: MAGALHÃES, Joaquim Romero; FLORES, Jorge Manuel. Vasco da Gama; homens, viagens e culturas (actas do Congresso Internacional. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001, pp. 39-73; HENRIQUES, Antônio Maria Braga de Macedo de Castro. State finance, war and redistribution in Portugal (1249-1527). York: University of York, 2008 (tese de doutorado), p. 36-37/264-273; PELÚCIA, Alexandra Maria Pinheiro. Martim Afonso de Sousa e a sua linhagem: a elite dirigente do império português nos reinados de D. João III e D. Sebastião. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2007, p. 142-143; VASCONCELOS, Antônio Maria Falcão Pestana de. Nobreza e ordens militares; relações sociais e de poder (séculos XIV a XVI). Porto: Universidade do Porto, 2008, p. 207-220. 28 HENRIQUES, Antônio Maria Bragade Macedo de Castro. State finance, war and redistribution in Portugal (1249-1527). York: University of York, 2008 (tese de doutorado), p. 148-163. 19 que se apresentavam voluntariamente para ali servir. Nobres que foram para a África podiam ganhar a vida como corsários e saquear o interior do Marrocos como meio de alcançar fama e lucro. Além disto, constituía uma oportunidade de ascensão social, com a criação de novos títulos, raros até então. Em síntese: um amálgama entre os interesses da Coroa e os da nobreza. A permanência das sisas foi motivada por uma concepção das finanças reais em que as riquezas arrecadadas pela Coroa deviam ser redistribuídas, e não entesouradas. Este foi o passo determinante no sentido de uma monarquia redistributiva, materializada no aumento do número de membros da Casa Real entre 1402 e 1473.29 No que respeita às ordens militares, a cristalização desse modelo redistributivo parece operar-se com D. Sebastião (1557-1578), que impôs “a obrigatoriedade de servir militarmente no Norte de África, nas armadas da costa e do oceano como meio para alcançar o simples hábito ou uma comenda”. A partir de Filipe II de Espanha, contudo, estes requisitos teriam sido relaxados, e nos primeiros anos após as Cortes de Tomar, ocorreu “uma grande inflação de hábitos”. Nas palavras de Olival, “o novo monarca pagou fidelidades com estas insígnias, independentemente da natureza dos serviços”. A necessidade de reforma das ordens militares que se seguiu dessa inflação de comendas só veio a surtir algum efeito prático, contudo, tardiamente. Filipe II e Filipe IV “tentou usá-las o mais que pode para pagar serviços ... cada um à sua maneira. Sobretudo na década de 1630, Filipe IV tentou disciplinar os seus servidores e a nobreza em geral, ao atribuir hábitos e comendas mediante obrigações que deviam ser, quase sempre, previamente satisfeitas e que não correspondiam aos tópicos que impusera D. Sebastião. (...) Iniciava-se claramente outra fase na vida das Ordens Militares Portuguesas. A partir daí, a força dos seus seus numerosos membros não seria já suficiente para travar o poder do rei-mestre. Nesse sentido, as mudanças sob os Austrias foram decisivas: quase esgotaram a capacidade reivindicativa dos cavaleiros. Filipe III foi dos poucos monarcas que condescendeu em ouvi-los, ao permitir que fizessem parte de juntas sobre as Ordens e ao autorizar capítulos gerais, mas a experiência não voltaria a repetir- se.30 De algum modo, este relaxamento deve ter produzido algum efeito nas mentalidades, que a conjuntura aberta com a crise de 1620 terminou por consolidar. Na década de 1450 foram estabelecidos outros instrumentos jurídicos voltados para a melhor sistematização da contabilidade na década de 1450: o alvará de 9 de junho de 1450, que estabeleceu a forma como se devia registrar as receitas e despesas da cidade de Lisboa pelos oficiais fazendários, bem como as mercadorias sujeitas ao pagamento da 29 HENRIQUES, Antônio Maria Braga de Macedo de Castro. State finance, war and redistribution in Portugal (1249-1527). York: University of York, 2008 (tese de doutorado), p. 259-285. 30 OLIVAL, Fernanda. Os Áustrias e as reformas das ordens militares portuguesas. Hispania, v. 44, n. 216, 2004, p. 95-116, p. 96-98/116. 20 sisa; e o alvará de 20 de julho de 1455, determinando a entrega ao porteiro dos Contos de Lisboa dos livros de registro a cargo dos escrivães das rendas e direitos reais de Lisboa, seis meses após o fim do arrendamento. Já para os fins do século XV, um regimento de 1480 instituiu as regras a seguir nos serviços de Tesouraria Régia.31 Todas essas medidas experimentaram uma ampla revisão com vistas à atualização e sistematização, de que as Ordenações Manuelinas são inseparáveis. Aliás, as próprias mudanças nas Ordenações refletem esse caráter de atualização: em 15 de março de 1521 D. Manuel ordenou a destruição de todos os exemplares da “impressão velha” dos cinco livros das Ordenações, que até então tinham estado em vigor. Mandava que se julgasse pelas novas, reformadas, cuja impressão acabara a 11 de março, desse ano de 1521. Essa destruição era entendida como necessária para evitar que se avogasse com base numa Ordenação diferente da que passava a vigorar. Em 1514 os Contos d’El Rei transformaram-se nos Contos do Reino e Casa, e pouco depois o Regimento e Ordenações da Fazenda, de 17 de outubro de 1516, sistematizaram as normas contabilísticas e determinaram que as diversas repartições fazendárias (Contos do Reino, Contos de Lisboa, Contos das Comarcas, Contos das Ilhas e Lugares d’Além) fossem centralizadas e seus procedimentos de tomada de contas coordenados pelo vedor da Fazenda. Esse espírito de “correção e emenda” é claramente explicitado no prólogo do Regimento de 1516: “pelos reis passados nossos antecessores foram feitas algumas ordenações, determinações e dado regimento aos vedores de sua Fazenda, provedores, contadores, almoxarifes, recebedores e outros oficiais dela, da maneira que haviam de ter em servir seus ofícios, prover e arrecadar suas rendas e direitos e fazer outras coisas que a eles e a bem do povo cumpria, tocantes à dita sua Fazenda, segundo largamente era conteúdo em um livro dos regimentos que disso foi feito, que andava na dita Fazenda. E ora consi[de]rando nós como por a longura do tempo e por alguns outros respeitos algumas das ditas ordenações, determinações e regimentos se não usava já delas, e outras não eram tão claras como cumpriam para os vedores e oficiais de nossa Fazenda para eles a haverem de reger e governar e poderem bem determinar as dúvidas e coisas que a eles viessem, nos pareceu coisa mui conveniente e necessária a nosso serviço e a bem das partes prover isso e as corrigir e emendar e declarar e fazer outras de novo onde cumprisse e o caso requeresse” 31 RAU, Virgínia. A Casa dos Contos. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1951; PORTUGAL. TRIBUNAL DE CONTAS. Os três mais antigos regimentos dos Contos: 1389, 1419 e 1434. Lisboa: Tribunal de Contas, 1959; FRANCO, Antônio de Sousa; PAIXÃO, Judite Cavaleiro. Magistrados, dirigentes e contadores do Tribunal de Contas e das instituições que o precederam: finais do séc. XIII. Lisboa: Tribunal de Contas, 1995; GOMES, Delfina Rocha. A evolução dos registos contabilísticos e a aplicação da partida dobrada em Portugal. Braga: Universidade do Minho, 2000 (dissertação de mestrado); HENRIQUES, Antônio Maria Braga de Macedo de Castro. State finance, war and redistribution in Portugal (1249-1527). York: University of York, 2008 (tese de doutorado), p. 184-185. 21 Na segunda metade do século XV o alvará de 1 de abril de 1560 unificou a contabilidade dos Contos de Lisboa e dos Contos do Reino e Casa. A Casa dos Contos de Goa recebeu regimento em 19 de agosto de 1589. E o Regimento da Fazenda de 20 de novembro de 1591 criou um único Tribunal da Fazenda, denominado Conselho da Fazenda, em substituição das Vedorias da Fazenda do Reino, Mestrado e Ilhas; Índia e conquistas; e África, Contos e Terças. Já no século XVII, o regimento dos Contos de 3 de setembro de 1627 centralizou nos Contos do Reino e Casa toda a contabilidade pública, tanto da Metrópole comodo Ultramar, e regulamentou os procedimentos da tomada de conta. O novo organismo de controle final das contas das repartições de todas as partes do império até 1761 – a Casa dos Contos do Reino – tinha por função primordial a liquidação e fiscalização das contas dos oficiais da Fazenda. Nas palavras de frei Nicolau de Oliveira, a Casa dos Contos era “um tribunal onde vão prestar contas todos aqueles que têm administrado os bens e rendas reais, tanto no Reino, como na Índia; ou mesmo em qualquer outro lugar das conquistas, ou porque arrendou, ou se por qualquer outra via as administrou. Se ficou a dever, aqui o fazem pagar”.32 Em geral este regimento é tomado como tendo o propósito de “disciplinar e dominar a burocracia que aumentava em número e abuso. Por outro lado, para além da corrupção, o analfabetismo marcava uma grande parte dos funcionários da Contabilidade pública central”. Contudo, penso ser obrigatória a relação entre este regimento e o estado das contas do Reino e seus territórios no ultramar a partir do fim da trégua com os holandeses. O desabamento das receitas provenientes da Carreira da Índia sem dúvida fez soar o alarme quanto à necessidade de um controle o mais rígido possível sobre as despesas, mais do que sobre as receitas. É isto que talvez explique a ênfase dada à necessidade de comprovação legal das despesas por cada oficial da Real Fazenda, claramente definida no capítulo 27 do Regimento: “que os contadores, ao tomar das contas, peçam razão aos oficiais que as derem, de como cumpriram seus regimentos e assim examinem os contratos, folhas, desembargos, provisões e mandados”. O escrutínio era ainda mais específico: o capítulo 29 determinava que “havendo nas contas, vendas ou despesas de algumas coisas, ou compra de utras em preços excessivos, altos ou baixos, os 32 PAIXÃO, Judite Cavaleiro; LOURENÇO, Maria Alexandra. Contos do Reino e Casa. Revista do Tribunal de Contas. Lisboa: Tribunal de Contas, n. 21-22, p. 401-457, jan.-dez. 1994; n. 23, jan.-set. 1995; OLIVEIRA, Nicolau de (frei). Livro das grandezas de Lisboa. Lisboa: Impressão Régia, 1804 [1. ed.1620], p. 295. 22 contadores o façam saber ao contador-mor, e assim das coisas que se acharem nas ditas contas que lhes fizerem dúvidas”. A gestão das receitas e despesas Um dos princípios basilares da fiscalidade portuguesa da era moderna consistia na autossuficiência financeira de cada repartição responsável pela cobrança e arrecadação das receitas e pagamento das despesas. É este princípio que explica a ausência de gestão unificada dos recursos e dispêndios fiscais até pelo menos a instituição do Erário Régio, em 1761. Em termos práticos, a cada uma das repartições fazendárias, como os almoxarifados e as alfândegas, no Reino, ou as provedorias, no ultramar, funcionava como agência arrecadadora dos tributos e pagadora das despesas cujas rubricas eram-lhe consignadas. Na nomenclatura contábil do século XVII, os rendimentos dos tributos arrecadados em cada estação fazendária estavam “consignados a” ou “aplicados para” alguma despesa. Ou, com idêntico significado ao encontrado na contabilidade espanhola, “situados” em determinadas rendas. Por exemplo: em 1607, doze contos de réis estavam “situados” a Manuel Gomes da Costa nos rendimentos do estanco das cartas de jogar, “para apresto da esquadra dos treze navios”. Podiam ainda ser “assentadas”. Algumas receitas foram com o tempo consolidando um padrão de despesa à qual estavam “consignadas”: assim as terças dos concelhos, estabelecidas para para as fortificações do Reino; a bula da Santa Cruzada, que mantinha, além de ordenados e as despesas operacionais da cobrança (impressão de bulas, ordenados dos oficiais da bula, &c.), os lugares d’África bem como a fábrica de São Pedro de Roma e a Inquisição (ordenados do inquisidor geral, inquisidores e demais oficiais). Na renda do consulado estava “situado” o pagamento dos oficiais, a fábrica da esquadra dos 13 navios e mantimentos de 2.500 homens. Do mesmo modo os almoxarifados de pão e fábricas das lezírias e pauis, cujo “pão e dinheiro se despende nas férias dos valadores, ordenados dos oficiais e outras despesas necessárias à dita fábrica sem ficar sobejando coisa alguma”. Obviamente, rendas houve que nasceram para um fim particular, e desaparecem quando quitaram-se as despesas para as quais se as criaram, como o tributo cobrado no Brasil para pagamento da paz de Holanda e dote da rainha.33Toda essa atividade – ou, mais 33 FALCÃO, Luís de Figueiredo. Livro em que se contém toda a fazenda e real patrimônio dos reinos de Portugal, Índia e ilhas adjacentes [Madrid, 1607]. Lisboa: Imprensa Nacional, 1859, p. 19-31; BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO/DIVISÃO DE MANUSCRITOS/Relação das rendas que a Fazenda de Sua Majestade tem em cada um ano neste reino [de Portugal] e nas partes de ultramar e dos ordenados, 23 precisamente, as contas – dos oficiais da Fazenda responsáveis em cada repartição pela gestão dos recursos fiscais era submetida ao julgamento das instâncias superiores: a tomada de contas de sua administração.34 A aplicação deste princípio, contudo, estava evidentemente limitada pela solvibilidade das repartições. Nas ocasiões em que as despesas consignadas a uma determinada repartição ultrapassavam o montante da receita nela disponível, o funcionário responsável devia solicitar a seus superiores hierárquicos a cobertura com fundos de outras repartições. Com a expansão ultramarina, este modelo administrativo foi transposto para os diferentes espaços do império, e o princípio estruturante da autossuficiência financeira dos órgãos de Fazenda transmutou-se em autossustentação financeira de cada porção conquistada, que Susana Miranda, ao estudar o funcionamento da Real Fazenda no Estado da Índia, alcunhou de “egoismo financeiro”: cada estação fiscal tendia a despender a receita arrecadada apenas na área de jurisdição da repartição. Isto não era uma exclusividade do império português. Valia igualmente para o império britânico e espanhol, por exemplo. Nas palavras de George Beer, “each colony should ultimately raise the funds for its own local expenses”. No entanto, numas conquistas as despesas podiam superar as receitas, enquanto que noutras ocorria o contrário. Algumas áreas, inclusive, representavam uma despesa estrutural para o império, ao passo que outras, a garantia de receita líquida elevada por décadas. Este fato obrigava a um constante remanejamento de saldos positivos em determinadas repartições para cobrir o déficit noutras. A folha de pagamentos sob responsabilidade da Provedoria da Fazenda da capitania do Rio de Janeiro, por exemplo, entre meados do século XVII até as duas primeiras décadas do século XVIII, foram saldadas com recursos provenientes da Provedoria-Mor do Estado do Brasil, na Bahia. Do mesmo modo, cabia à Provedoria da Fazenda da capitania de Minas Gerais arcar com todas as despesas da Real Extração dos Diamantes.35
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