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1 
 
As tramas musculares no tecido social carioca: corporeidade em tempos de 
cultura narcísica. 
Bernardo Conde 
 
 
A expansão do individualismo foi produzindo paulatinamente uma série de 
mudanças nas formas de navegação social. As marcas mais visíveis destas mudanças 
estão nas grandes instituições como família, religião, política e trabalho, base das 
sociedades tradicionais. Para caracterizar esssa mudanças Bauman faz uma 
comparação entre o sólido e o líquido como uma analogia entre aspectos pré-
modernos e modernos.
1
 
Assim, no processo de transformação da sociedade, o sólido, no caso 
simbolizando instituições e valores e mais vinculado ao espaço do que ao tempo em 
função de sua imutabilidade, tendeu ao esfacelamento, justamente por sua 
incapacidade adaptativa. Quanto ao líquido está muito mais referido ao tempo do que 
ao espaço, sempre buscando se adaptar as condições do terreno. Na modernidade, para 
identificar um lugar temos de ter o tempo como referência. Por exemplo: quando 
falamos de Copacabana temos que localizá-la no tempo – “Qual Copacabana? Da 
década de 1920, 1950 ou 1980?”, são lugares diferentes que ocuparam o mesmo 
espaço físico. Essa condição vale também para instituições e comportamentos. 
Para o autor, o derretimento de tais sólidos visava à construção de novas 
instituições igualmente sólidas, só que mais adequada às novas demandas. No entanto, 
o processo de desconstrução de todo sólido que ameaçava se instaurar se tornou, 
paradoxalmente, uma constante. As mudanças que se operaram na entrada da 
modernidade representaram, portanto, mais do que a passagem de uma era para a 
outra, elas são a própria característica da modernidade. Lembrando Marx: “todas as 
relações fixas e congeladas, com seu cotejo de vestutas representações e concepções, 
são dissolvidas, todas relações recém formadas envelhecem antes de poderem 
ossificar-se. Tudo que é sólido desmancha no ar (...)”.
2
 
Bauman assinala que o derretimento de tudo que era sólido possibilitou a 
eliminação de qualquer obrigação “irrelevante” que viesse a impedir a “via do cálculo 
 
1
 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001 
2
 MARX, Karl, ENGELS, F.. A ideologia alemã. São Paulo: Hucitec, 1987. 
 2 
racional”, libertando as empresas de negócios dos deveres com a família e o lar e da 
“densa trama das obrigações éticas” reduzindo tudo a lógica do dinheiro.
3
 
A partir da Na "desideologização” autores com Lash diagnosticam que na 
“cultura do narcisismo” se instaura uma crise de sentido. Se a felicidade individual se 
estabelece como valor acima de qualquer bem coletivo, o sentido da vida e 
principalmente o da morte ficam abalados. Onde se tem a felicidade como meta o 
sujeito se desvincula do passado e do futuro, ele deixa de ser um elo de uma corrente 
que lhe atravessa, não é mais um elemento de composição de uma identidade coletiva 
que lhe atribui sentido (família, religião, ideologia política, tradição, etc.). 
Berger e Luckmann apontam que 
deve-se procurar na constituição subjetiva do sentido a origem de todo 
acervo social do conhecimento, do reservatório histórico do sentido, do qual 
se nutre a pessoa nascida numa determinada sociedade e numa certa época. 
(...) A formação de reservatórios históricos de sentido e de instituições alivia 
o indivíduo da aflição de ter de solucionar sempre de novo problemas de 
experiência e de ação que surgem em situações determinadas.
4
 
 
Para os autores os elementos e sistemas significativos aceitos têm sido (ao 
longo da história) construídos sob medida para serem transmitidos às futuras 
gerações. Nas sociedades complexas, as funções como censura, canonização, 
sistematização e pedagogização sempre foram atribuídas a especialistas justamente 
com essa função.
5
 
Em nome da liberdade, da pluralidade, da relativização e, paradoxalmente, da 
verdade, há uma ruptura com os sistemas de valores e significados estabelecidos até 
então; em seus lugares, surgem instituições fluidas (ao modo de Bauman) nas quais os 
valores são renegociados constantemente a serviço da individualidade. 
Jurandir Freire Costa também diz de um sujeito esvaziado na 
contemporaneidade, que se desvencilhou dos seus compromissos com as grandes 
instituições, mas que, no entanto, está perdido em busca do sentido da vida. 
 
Enunciada de outra maneira a pergunta é a seguinte: se não delegamos mais 
à religião, ao trabalho, a política ou à família o papel de dar sentido na vida, 
 
3
 Bauman, 2001, op. cit., p. 10. 
4
 BERGER, Peter L. e LUCKMANN, Thomas. Modernidade, Pluralismo e Crise de Sentido. Editora 
Vozes, Petrópolis, 2004, pp. 18 e 19. 
5
 Beger e Luckman, 2004, op. cit., p. 20. 
 3 
o que funciona como valor transcendente aos meros propósitos de auto-
realização?
6
 
 
Esse desligamento do coletivo em busca da interiorização, Lasch exemplifica 
ao apresentar uma série de acontecimentos sociais e políticos nos quais os americanos 
passam a necessitar estabelecer uma identidade própria em detrimento do mergulho 
dessas identidades em causas mais amplas. Diz de uma desistência de “mudar o 
mundo”, “melhorar a sociedade”, para mudar a vida privada, melhorar a si mesmo. 
 
Após a ebulição dos anos sessenta, os americanos recuaram para 
preocupações puramente pessoais (...) as pessoas convenceram-se de que o 
importante é o autocrescimento psíquico: entrar em contato com os seus 
sentimentos, comer alimentos saudáveis, tomar lições de dança clássica ou 
dança-do-ventre, mergulhar na sabedoria do Oriente, correr, aprender a se 
‘relacionar’, superar o “medo do prazer”.
7
 
 
O descomprometimento com o coletivo, seu esvaziamento e sua perda de 
sentido associado à incapacidade de transcendência, acaba por produzir alguém vazio, 
em busca de preenchimento, em que a experiência parece ser o único caminho para 
“sentir”. 
Berger e Luckmann também atribuem ao modo de vida nas sociedades 
modernas como causas da crise de sentido, no entanto, indicam que nestas mesmas 
sociedades existem estruturas parciais que “impedem que as crises de sentido 
incendeiem toda a sociedade (...) Contra a diferenciação e o pluralismo não há 
remédio que não se tenha mostrado mortal. As instituições intermediárias só podem 
ministrar doses homeopáticas”. Os autores indicam que a “saída” está em um caminho 
entre o “coletivismo dogmático dos fundamentalistas” e o individualismo exacerbado 
da “pós-modernidade”, entre “pertencer” e ser “livre”. Se a produção de sentido é 
coletiva, subsequentemente a desvinculação da coletividade leva a uma crise de 
sentido.
8
 
Há uma tendência das pessoas reclamarem da incapacidade de sentir. Buscam 
experiências mais intensas (talvez essa seja uma pista para entender o boom dos 
esportes radicais), “tentam reavivar apetites enfraquecidos”, culpabilizam o superego 
e enaltecem uma vida de sentidos que se perdeu no tempo. No século XX se ergueram 
tantas barreiras psicológicas contra as emoções fortes e investiram tanta energia 
 
6
 COSTA, Jurandir Freire. O vestígio e a aura – Corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de 
Janeiro: Garamond, 2004, p. 189. 
7
 Lasch, 1980, op. cit., p. 24. 
8
 Beger e Luckman, 2004, op. cit., p. 83. 
 4 
contra os impulsos proibidos que não se sabe mais o que é sentir e o que é ser tomado 
pelo desejo.
9
 
Sennett afirma que a representação teatral estabelece, na forma de boas 
maneiras e gestos rituais, papéis a representar produzidos pela astúcia necessária para 
não se revelar em público. A convenção é o instrumento mais usado no exercício da 
vida social, uma vez que regras de conduta surgem para proteger as pessoas de terem 
que se mostrar as outras, "são obstáculos à expressão íntima". Na medida em que a 
sociedade da intimidade avança,as pessoas se tornam menos expressivas. Esta é uma 
idéia fundamental em Sennett, ou seja, de que a sociedade intimista, que 
aparentemente valorizaria o calor humano entre as pessoas, mesmo que no espaço 
privado, produz o contrário, isolamento e solidão. Mas “onde finalmente a pessoa se 
revela? Mostra quem ela realmente é?”. Na sociedade moderna é na intimidade. 
Sendo assim, o mundo privado é o que deve ser buscado (o voyeurismo, os reality 
shows e os big brothers). No entanto, este passa paradoxalmente a estar cada vez mais 
oculto, acabando por produzir algo que poderia ser chamado de a “encenação da 
intimidade”. 
Na busca do eu é preciso perceber o que se está sentindo, mas há nas 
sociedades modernas o medo de que a manifestação dos sentimentos torne o sujeito 
presa fácil do outro, fragilizando-o diante dos estranhos. Com isso, passa-se a 
depositar no outro a culpa por esse medo. Há um desejo de expressão dos sentimentos 
simultâneo ao medo da objetivação das emoções. Há uma busca pelo sentir, mas, no 
narcisismo,
10
 a clareza de sentimentos é uma ameaça ao eu. 
Na tirania da intimidade, postulada por Sennett, o que se apresenta é o 
psicológico e o imediato, a ruptura das barreiras e convenções sociais acontecem em 
função de uma expectativa de que quando as relações se tornem chegadas, próximas, 
possam ser calorosas. Entretanto, o que essa intimidade acaba por produzir é 
frustração devido a essas personalidades auto-explicativas temerem manifestar seus 
sentimentos. 
 
O Ocidente e o Corpo 
A atual sociedade de consumo ampara-se no ideal da abundância, na 
multiplicidade de ofertas, em que cada objeto consumido implica em escolha.
11
 Por 
sua vez, cada escolha passa a ser um elemento de contorno identitário do consumidor; 
cada bem de consumo vai comunicando ao mundo externo um pouco sobre o sujeito, 
 
9
 Lasch, 1980, op. cit., p. 32. 
10
 Na concepção de Lasch 
11
 Budrrillard, 1991, op. cit.. 
 5 
localizando-o culturalmente. Os objetos passam então a exercer o papel de mediação 
entre o eu e o outro, é através da imagem construída pelo tipo de consumo é que a 
sociedade da abundância vai classificando o sujeito. 
Nessa sociedade o corpo assume um papel preponderante e passa a ser o 
templo para o qual quase todo o consumo se destina, quer para sua componente 
biológica, quer para sua complementaridade física e/ou psíquica. 
 
O cuidado de si, antes voltado para o desenvolvimento da alma, dos 
sentimentos ou qualidades morais, dirigi-se agora para a longevidade, a 
saúde, a beleza e a boa forma. Inventou-se um novo modelo de identidade, a 
bioidentidade, e uma nova preocupação consigo, a bioacese, nos quais o 
fitness é uma suprema virtude. Ser jovem, saudável, longevo e atento à forma 
física tornou-se a regra científica que aprova ou condena outras aspirações à 
felicidade.
12
 
 
As transformações sociais e culturais promovidas na modernidade, trazendo o 
eu para o centro do investimentos libidinais, estabelece, através dos fatos, o que 
Durkheim evidenciava em termos de necessidade de distinção entre os indivíduos: “é 
preciso um fator de individualização e é o corpo que faz esse papel”.
13
 
De uma maneira geral as abordagens sobre o corpo nas diversas áreas das 
ciências modernas (ocidentais) partem da autonomia deste diante do indivíduo que o 
encarna.
14
 
O corpo sempre foi uma realidade mutante de uma sociedade para outra. Suas 
diversas possibilidades, as imagens que o definem, que dão sentido a sua extensão 
invisível, os mecanismos que vão definir sua natureza, os ritos e os símbolos que o 
trazem socialmente para cena, suas proezas, as resistências que oferecem ao mundo, 
são demasiadamente variadas em suas inscrições sociais. Dessa forma o corpo não 
representa somente um agrupamento de órgãos, como nos faz pensar a anatomia e a 
fisiologia ocidental, mas “uma estrutura simbólica, superfície de projeção passível de 
unir as mais variadas formas culturais”.
15
 
A própria noção de corpo, como uma estância isolada, fragmentado em 
membros, órgãos, soa estranho para a maior parte das sociedades tradicionais. Nestas, 
de predominância comunitária, onde o estatuto de pessoa está subordinado ao do 
coletivo, o corpo é raramente objeto de cisão, isto é, o corpo e o homem são 
 
12
 Costa, 2004, op. cit., p. 190. 
13
 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. Tradução: Paulo Neves. São Paulo: 
Martins Fontes, 1996, p. 492. 
14
 LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Petrópolis: Editora Vozes; 2006, p. 24. 
15
 Le Breton, 2006, op. cit., p. 29. 
 6 
indissociáveis. Nas representações coletivas, carne, natureza, transcendência e cosmo 
se interpenetram. Os rituais antropofágicos, talvez fossem a representação máxima 
disso, não se alimentava, nem comiam o corpo, comiam o outro, o inimigo, traziam 
sua energia para dentro. Diferente das sociedades individualistas, nas quais o corpo é 
o elemento que delimita a pessoa que estabelece o espaço entre as individualidades, 
nas sociedades tradicionais e comunitárias este é elemento “de ligação da energia 
coletiva e, através dele, cada homem é incluído no seio do grupo”.
16
. 
Leenhardt, inventariando elementos de aculturação devido à ocupação 
ocidental na Malinesia, questiona a um ancião o que eles herdaram da influência 
ocidental: “o que vocês nos trouxeram é o corpo”.
17
 
 
“Assim é, se lhe parece” (Pirandello) 
Na cultura ocidental os incrementos tecnológicos e a lógica do mercado 
possibilitaram uma maior circulação das informações. A quantidade de informações 
que o cidadão médio pode acessar (internet, tv abertas ou pagas, vídeos, dvds, cinema, 
revistas especializadas, etc.) obrigaram as mídias estruturar um modo de comunicação 
que permitisse ao receptor maior acesso a quantidade e a diversidade destas. A hiper-
valorização da imagem aparece como uma conseqüência da sociedade da abundância. 
Uma imagem, para além de sua sedução e capacidade mais ampla de comunicação, 
economiza tempo e possibilita um consumo maior em termos de quantidade. As 
tecnologias também possibilitaram sua manipulação. Dos efeitos especiais de 
Hollywood aos “retoques” da revista Playboy, a dicotomia entre o natural e o 
artificial, o real e o falso perderam força. A noção de hiper-realidade na qual as 
imagens dos filmes e das propagandas nos apresentam um mundo mais real, à 
percepção do receptor, do que ele vê a sua volta, e a própria noção de “sociedade do 
espetáculo” de Debord, dizem de um lugar onde distinguir entre representação e 
substância se torna complexo. A questão não é mais entre ser e ter (como referência 
de identidade na sociedade de consumo), mas sim parecer (ou aparecer).
18
 
Esses valores servem também ao corpo. Até a década de 1970 o corpo 
representava uma essência, se tinha a noção de um corpo natural, de uma natureza que 
não devia ser negada. A noção do “artificial” implicava em “falso”, não “autentico”. 
Para essas delimitações havia uma curiosa significação entre “natural” e o “artificial”, 
por exemplo, a prática de esportes produzia um corpo “natural”, já a prática de 
exercícios com halteres produzia um corpo “artificial”. 
 
16
 Le Breton, 2006, op. cit., p. 30. 
17
 LEENHARDT, 1947, apud Le Breton, 2006, op. cit., p. 28. 
18
 DEBORD, Guy (1998). A Sociedade do Espetáculo. Comentários sobre a sociedade do espetáculo. 
Rio de Janeiro: Contraponto, 1998. 
 7 
Era uma época na qual as intervenções de maneira mais acentuada (ou 
definitiva) no corpo, pinturas de cabelo, plásticas, práticas com halteres eram omitidas 
do ambiente público. Nesse sentido a intervenção no corpo, uma das representações 
do eu, era visto como uma perda de autenticidade. 
Acerca de cinco anos, assistindo a um programa que se propunha ser “pop”,onde a apresentadora expunha modelos e atrizes, todas com corpos muito 
semelhantes, ouvi um pouco intrigado a seguinte pergunta dirigida a uma modelo (ou 
atriz, não me recordo): “De quem é o seu peito?”. Confesso, talvez por desatualização, 
que fiquei um pouco atordoado com a pergunta. “Como num programa “super-pop” se 
faz uma pergunta de maneira tão machista? Ao invés de perguntar quem ela estava 
namorando, pergunta quem é o ‘dono do peito’!?”. A resposta possibilitou que eu 
superasse aquele pequeno anacronismo: “Doutor X, que colocou 200 miligramas em 
cada. Não ficou lindo?”. 
Le Breton afirma que vivemos em uma era Frankenstein, na qual os corpos são 
construídos e reconstruídos ao modo do “freguês”. Uma época em que lipos-
esculturas, plásticas, silicones, botox, “bombas” anabolizantes, body art, body 
modificatyon, tatuagens, academias, passarelas, deixam de ser estratégias de 
representação e passam a ser a produção do próprio eu. “Antes de passar pelo menos 
duas horas com o maquiador e o cabeleireiro, nem eu pareço com a Cindy 
Crawford”.
19
 
A construção do eu, mesmo que superficial, produz uma sensação de liberdade 
jamais vista antes. Como dizia a piada “o que separa uma loura de uma morena são 
apenas dez minutos”. “Ser” loura na contemporaneidade já não é mais uma condição 
definitiva, nem ao menos há uma preocupação em se dissimular essa temporalidade, 
ao contrário, ela reafirma singularidade e autenticidade na composição do eu. 
A busca do “sentir” que saiu do público para o íntimo, através do consumismo 
vai se acomodando nas superfícies dérmicas. O que Freire Costa vai sinalizar como a 
cultura das sensações. O próprio consumo de drogas serve como referência para essa 
passagem. Nos anos 1960, o LSD, a droga da moda na época, era uma droga 
introspectiva, que provocava em cada usuário uma visão particular da “realidade”, 
justificada pela busca do autoconhecimento. A partir dos anos 1990 a droga da moda 
passa a ser o ecstasy, que tem como um dos seus efeitos mais desejados, o aumento da 
sensibilidade da superfície do corpo. 
 
19
 GOLDENBERG, Mirian e SILVA RAMOS, Marcelo. A civilização das formas: o corpo como valor 
In: GOLDENBERG, Mirian (org.). Nu e Vestido – Dez antropólogos revelam a cultura do corpo 
carioca. Rio de Janeiro: Record, 2002. 
 8 
Na contemporaneidade, a bioidentidade permite a passagem da autenticidade 
psíquica formulada por Sennett, para a autenticidade corporal fechada a intervenções 
mais complexas e profundas na construção do eu. É na fala da personagem Agrado, 
uma travesti do filme Tudo sobre minha mãe que Almodóvar diz dessa busca do eu na 
atualidade. Ao justificar o seu investimento na condição de mulher falando das 
lipoesculturas, miligramas de silicones, próteses, enfim, na intervenção no próprio 
corpo, Agrado afirma: "Uma pessoa é tanto mais autêntica quanto mais se parece com 
aquilo que ela sempre sonhou para si mesma". 
 
Por essas praias cariocas 
Stéphane Malysse
20
 observou uma maneira de ir à praia do carioca bastante 
singular aos olhos de um antropólogo francês. Diferente da Europa, de uma maneira 
geral, onde a praia é local de lazer e repouso, a praia no Rio tem um significativo 
caráter de socialização. É um local de interação dos corpos, de produção de 
visibilidades, de constituição de relacionamentos, de atividades físicas, de constante 
movimentação, em que nada se parece com um local de repouso. Esse é um espaço 
que é produto e produtor da valorização da estética corporal. Nesse sentido o corpo é 
um cartão de visita. Uma estância de “conhecer”, “classificar” e “avaliar” o outro 
(“teste da praia”). 
Assim o corpo é visto como a roupa com que se vai à praia, que se por um 
lado há uma maior liberdade moral no desnudamento e na exposição dos corpos, por 
outro, as pessoas se vêem mais constrangidas pela coerção social do ideal da forma. 
Assim, a maior exposição obriga a uma maior contenção dos impulsos sexuais e 
maior premeditação nas poses e nos gestos, ou seja, maior autocontrole. 
A moralidade não reclama mais um corpo vestido, mas um corpo “bem 
delineado”. Imoral não é estar com mini-saias, calças baixas e apertadas, tops, 
biquínis minúsculos ou sungas transparentes, mas expor um corpo que não atende ao 
padrão. Essa coerção, do corpo ideal, pode ser vista nas revistas, propagandas, nas 
novelas, na internet e na quantidade de dicas para entrar em forma (ou seria em 
fôrma?). Também na própria maneira em que se induz e reproduz a insatisfação com o 
próprio corpo. 
As noções de “boa forma” que são atribuídas a um corpo saudável, são 
determinadas pela plástica do corpo. Também o termo “sarado” (curado, bem de 
 
20
 MALYSSE, Stéphane. Em busca dos (H)alteres-ego: Olhares franceses nos bastidores da 
corpolatria carioca. In: GOLDENBERG, Mirian (org.). Nu e Vestido – Dez antropólogos revelam a 
cultura do corpo carioca. Rio de Janeiro: Record, 2002. 
 9 
saúde) que na gíria corrente é usado para corpos musculosos, sem gordura, unem e 
expressam, à maneira platônica, o belo, o bom e o verdadeiro. 
Recentemente a Dove (indústria de cosméticos) produziu uma peça 
publicitária para mulheres “normais”, “por uma beleza real”, na qual apareciam várias 
mulheres com quilos a mais em relação às modelos de propaganda. Estas, vestidas de 
lingerie, passavam a imagem de “simpáticas”, mas não de sensuais. Não havia 
erotização na cena, talvez por que parecesse “imoral” em função de seus corpos. A 
sensualidade e a erotização em público só é permitida a um padrão corporal, fora 
disso, ou é imoral (digno de reprovação) ou é exótico (digno de risos). 
Assim também foi na condenação, manifestada na profusão de e-mails, e 
comentários que pude entreouvir nas salas de aula, quando a cantora Preta Gil 
apareceu nua em uma posição sensual na capa do seu cd. Achavam ser um “absurdo” 
alguém com um corpo “daquele” se propor a ser “gostosa”. Também em relação à 
Cida, uma ganhadora do “concurso” Big Brother, no qual todas as mulheres que iam 
sendo eliminadas apareciam parcialmente nuas em um site chamado Paparazzo, com 
exceção da própria, a única não selecionada pela produção do programa (entrou por 
sorteio). Sua participação não foi balizada pelas suas formas. Não seria justamente a 
diferença que deveria ser objeto de curiosidade? 
Certa vez, também pude ouvir o seguinte diálogo em sala de aula: “Você viu a 
Andréia Lopes (campeã se surf) na Playboy?”, “Viu? E aí?”. A resposta foi: “Igual a 
todas as outras. O que mudou um pouco foi o rosto.”. Esse diálogo resume essa 
percepção da estética corporal que é produzida e reproduzida pela combinação dos 
ideais de corpo com as técnicas fotográficas e a tecnologia de computador. Em 
entrevista para revista Claudia,
21
 Marisa Orth confessa que se sente mais à vontade 
pousando nua para a Playboy, do que tendo que ficar nua a dois sem nenhum 
“retoque”. A forma do corpo se torna uma roupa padrão com a qual todos devem se 
vestir. No entanto, o corpo é o reduto da individualização, é com ele que se representa 
singularidade e autenticidade. No jogo moderno, como descrito anteriormente, em que 
a saída para a crise de sentido está na elaboração de uma equação que conjugue 
liberdade e pertencimento em um único tempo, há uma busca por um corpo singular 
(mas não muito) e ao mesmo tempo homogêneo (mas nem tanto). 
Até a utilização das roupas assume um caráter diferenciado. Se por um lado a 
produção de moda da alta costura internacional muitas vezes utiliza o corpo, das 
modelos, como um suporte que valoriza o corte dos estilistas, por outro, o “vestuário 
carioca” é que está a serviço do corpo, mas não para escondê-lo e sim para melhor 
expô-lo. São roupas que paradoxalmente mostram o corpo. 
 
21
 “Ficar sem roupa,que delícia!” (Claudia, maio de 2001 apud Goldenberg, 2002, 26) 
 10 
Na cidade as exposições dos corpos, os gestos, as danças, as formas de 
conversar tocando o outro e a sensualidade investida nas camadas dérmicas, para além 
de uma estância primária de comunicação ou um modo de aproximação, passam a 
representar a linguagem pela qual se comunica o eu. O meio se torna a mensagem. O 
corpo, ou sua aparência, seja como destino do consumo ou como o objeto de 
consumo, vai se tornando a substância do sujeito. 
Dessa forma, se em sociedades tradicionais o corpo é indissociável (faz parte 
da composição da pessoa) e no ocidente pós Descartes, já fragmentado, é a parte que 
“atrapalha” o eu, em praias cariocas, sob o sol da “cultura do narcisismo”, o eu passa 
a ser o corpo. 
Os investimentos nas linguagens corporais e o próprio desnudamento, que 
poderiam ser agente de ampliação do calor humano e aproximação das pessoas, vão 
produzindo, na maioria das vezes, um sujeito oculto por trás dos tecidos musculares. 
A aparente intimidade desses corpos autoexplicativos, acaba por desnudar a 
fragilidade e o medo da exposição dos sentimentos. 
Afinal, com que corpo nós somos?

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