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ROSSANA ALVES BAPTISTA PINHEIRO EDIFICAÇÃO DA MEMÓRIA NOS ESCRITOS DE MARTINHO DE BRAGA: CAMINHOS DA EXPANSÃO DO CRISTIANISMO NA GALLAECIA DO SÉCULO VI UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA EDIFICAÇÃO DA MEMÓRIA NOS ESCRITOS DE MARTINHO DE BRAGA: CAMINHOS DA EXPANSÃO DO CRISTIANISMO NA GALLAECIA DO SÉCULO VI Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social Júlio de Mesquita Filho para obtenção do título de mestre em história. (Área de concentração: História e Cultura Social) Orientadora: Profa. Dra. Néri de Barros Almeida FRANCA 2004 ROSSANA ALVES BAPTISTA PINHEIRO EDIFICAÇÃO DA MEMÓRIA NOS ESCRITOS DE MARTINHO DE BRAGA: CAMINHOS DA EXPANSÃO DO CRISTIANISMO NA GALLAECIA DO SÉCULO VI Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social Júlio de Mesquita Filho para obtenção do título de mestre em história. (Área de concentração: História e Cultura Social) Orientadora: Profa. Dra. Néri de Barros Almeida Aprovada por: Banca Examinadora: Prof. Dr. Marcelo Cândido da Silva (USP) Profa. Dra. Márcia Regina Naxara (UNESP/Franca) Profa. Dra. Néri de Barros Almeida (UNICAMP) Se Vos encontro sem a memória, estou esquecido de Vós. E como Vos hei de lá encontrar se me não lembro de Vós? Agostinho, Confissões Para liquidar os povos, começa-se por lhes tirar a memória. Destroem-se seus livros, sua cultura, sua história. E uma outra pessoa lhes escreve outros livros, lhes dá uma nova cultura e lhes inventa uma outra História. Em seguida, o povo começa lentamente a esquecer o que é e o que era. Milan Kundera, História do riso e do esquecimento Agradecimentos Nestes dois anos de mestrado, contei com a ajuda inestimável de diversas pessoas e instituições sem as quais o presente trabalho teria sido realizado mais dificilmente. Apesar de se tratar de uma lista considerável, não seria possível deixar de mencionar nenhuma delas pelo fato de terem contribuído diretamente para o desenvolvimento da dissertação que agora se apresenta. Primeiramente, gostaria de agradecer aos meus pais, Maria de Fátima Alves Baptista e Inocêncio Agostinho Teixeira Baptista Pinheiro pelo incentivo constante não só durante todo o período do mestrado mas desde há muito tempo. Sempre amáveis, amigos e dedicados, nunca hesitaram em fornecer assistência financeira, intelectual, emocional e existencial. Gostaria de agradecer à CAPES pela bolsa recebida durante dois meses e à Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pelo amparo material de outubro de 2002 até o presente momento, sem o qual a compra de livros, a participação em congressos e o provimento pessoal, sem dúvida alguma, teriam sido limitadores e prejudiciais ao desenvolvimento do trabalho. Contei ainda com o apoio pessoal e intelectual de diversas pessoas sempre dispostas a ajudar e a estabelecer um constante intercâmbio de materiais e idéias. Dentre elas, um agradecimento especial à Profa. Dra. Eliana Magnani Soares-Christen (CNRS/Auxerre). Com o curso Igreja e sociedade no Ocidente medieval, ministrado por ela na Universidade Estadual Paulista, campus de Franca, pude entrar em contato direto com diferentes materiais e métodos para o estudo da Idade Média. À Profa. Dra. Leila Rodrigues da Silva (UFRJ/Rio de Janeiro) pela colaboração desde à elaboração do primeiro projeto de pesquisa com sugestões valiosas e instigantes que propiciaram novas reflexões sobre os pressupostos e hipóteses da dissertação, bem como incentivaram novas interpretações do documento analisado. Agradeço ao Prof. Dr. Moacyr Novaes (USP/São Paulo) pela compreensão do problema da memória nos escritos de autores da Antigüidade Tardia, principalmente na obra de Agostinho, autor de extrema importância para a composição da cultura cristã ocidental. Às Profas. Dras. Susani França (UNESP/Franca) e Margarida Maria de Carvalho (UNESP/Franca) pelas sugestões e apontamentos no exame de qualificação. À Profa. Dra. Ana Paula Megiani Torres (USP/São Paulo) agradeço a indicação do auxílio dado pela Cátedra Jaime Cortesão com a finalidade de realizar pesquisas em terras lusitanas, oportunidade única para o aprofundamento das problemáticas suscitadas pelo objeto estudado. Da mesma forma, agradeço à Profa. Dra. Vera Lúcia Amaral Ferlini (USP/São Paulo), diretora da Cátedra Jaime Cortesão e ao Instituto Camões, que me agraciaram com tal auxílio. À Profa. Dra. Maria de Lourdes Sirgado Ganho (Universidade Católica Portuguesa/Lisboa) agradeço a gentil acolhida em Lisboa e os melhores momentos e as mais belas paisagens durante a estadia naquela cidade. Ao Prof. Dr. Luís Adão da Fonseca (Universidade do Porto) pela recepção no Porto. Ao Prof. Dr. Nuno Monteiro (Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa) pelo acesso ao computador, sem o qual a dissertação não teria sido concluída a tempo. À Maria do Carmo (UFMG/Belo Horizonte) que tornou este contato possível, bem como a estadia em Lisboa mais agradável. Ao Prof. Dr. José Marques (Universidade do Porto) que disponibilizou duas horas de seu tempo para discutir o trabalho, com indicação de bibliografias e formas de abordagens que o deixassem mais interessante e ilustrativo. Às secretárias da biblioteca da Faculdade de Filosofia de Braga, Sandra e Conceição, que não mediram esforços e exceções para que eu tivesse acesso a todos os livros e revistas dos quais necessitava. Ao Sr. Augusto da Livraria Nova Diário do Minho por ter me presenteado com uma versão rara e esgotada da Vida de S. Frutuoso em português, com o simples intuito de incentivar o prosseguimento da pesquisa sobre a cristianização da Gallaecia. Devo muito ainda ao Prof. Dr. João Lupi (UFSC/Florianópolis), bracarense querido e amigo que foi um constante incentivador da pesquisa, ajudando ilimitadamente em todos os momentos que a ele recorri. Como não poderia deixar de ser, agradeço aos amigos do Grupo Memória e Parentesco na Idade Média da Universidade Estadual Paulista, Franca, que sempre estiveram interessados em ouvir e falar, com os quais compartilhei problemáticas, bibliografias, angústias e momentos de deleite pelas descobertas e idéias concernentes aos nossos trabalhos. A vocês, André Luís Pereira, Cláudia Regina Bovo, Iara D´Assunção e João Gomes da Silva Filho, meus sinceros agradecimentos pela generosidade e amizade. Gostaria ainda de agradecer à Profa. Dra. Néri de Barros Almeida que, ao aceitar a orientação deste trabalho, ofereceu a oportunidade de aproximação com o fascinante universo medieval e de o conhecer a partir da realização de um trabalho sério, ainda que feito muitas vezes na instabilidade. A ela agradeço a possibilidade de trabalhar livremente, desfrutando igualmente das inseguranças proporcionadas pela investigação histórica e da maravilha da descoberta e do conhecer. Seu entusiasmo, sua disponibilidade, sua competência e seu trabalho sempre constantes fizeram com que nossa passagem pelo mestrado em história medieval não se configurasse em um simples desenvolver de pesquisas singulares e isoladas, mas sim em uma rede extensa de contatos e investigaçõescom outros pesquisadores da área, que enriqueceu e fortaleceu nossa formação intelectual e profissional. Sua generosidade unida à sua rigidez e exigência no trato com as fontes e com a bibliografia tiveram sobre mim uma importância sempre crescente nestes seis anos de trabalho. E se os agradecimentos acima envolvem uma série de pessoas e instituições que contribuíram com o trabalho, muito do que aí está é fruto do empenho e do desprendimento com os quais a Profa. Dra. Néri de Barros Almeida sempre tratou todos os membros do grupo. Obrigada por tudo. Finalmente, gostaria de agradecer ao querido Rodrigo Chagas Brasil, sempre tão presente e amigo. Sua importância não é possível medir em palavras e por isso “entristeço-me de que minha língua não baste ao meu coração”. Resumo Palavras-chave: memória, esquecimento, superstição, cristianização, reino suevo, Martinho de Braga, De correctione rusticorum. A dissertação de mestrado intitulada Edificação da memória nos escritos de Martinho de Braga: caminhos da expansão do cristianismo na Gallaecia no século VI tem como objeto central o processo de cristianização pelo qual passou o reino suevo com a chegada de Martinho de Braga na região em 550. Para o desenvolvimento do trabalho, utilizou-se como fonte o sermão De correctione rusticorum escrito pelo bispo em cerca de 579 a propósito do II Concílio de Braga de 572, presidido pelo bracarense. Tendo em vista as superstições aí enunciadas e condenadas, dividiu-se a pesquisa em três eixos centrais de análise. Primeiramente, tem-se a explanação das superstições relativas à apreensão e ao conhecimento do tempo, de que são exemplos os augúrios e as adivinhações, a nomeação dos dias da semana e as festividades. A elas, o bispo opõe outras formas vistas como mais eficazes e verdadeiras e estão inseridas em uma perspectiva cristã sobre o tempo, a começar pelo sentido dado à história humana. Em segundo lugar, a condenação de formas tradicionais de comemoração aos mortos, assinaladas na realização de banquetes fúnebres, cantos e danças em honra dos mortos, bem como em formas de enterramento pouco aconselháveis. Estas práticas são explicitadas a partir de uma nova concepção sobre a morte, que tem na ressurreição de Cristo e a de todos os corpos no momento do Juízo Final o seu ponto de apoio. É tendo em vista que haverá uma ressurreição para todos, momento no qual os maus serão separados dos bons, que o culto prestado aos mortos é considerado secundário na ajuda dada à salvação do morto. E por fim, o rito batismal, elemento essencial para a configuração de uma comunidade cristã, que deveria ser conduzida por bispos bem instruídos nos ensinamentos de Cristo. Estes eram considerados os guardiães da palavra de Deus e responsáveis por trazer a tona a memória do Criador e dos preceitos cristãos àqueles homens deles esquecidos porque ainda imersos no pecado praticado por Adão e Eva. É pela análise do sermão em conjunto com outros escritos de Martinho de Braga que se pode compreender seu empenho pastoral e os mecanismos dos quais se valeu a fim de promover a recondução do reino suevo ao catolicismo. Reino este cujos dirigentes eram até então arianos e cuja existência no Noroeste da Península Ibérica estava constantemente ameaçada por seus vizinhos visigodos e por disputas internas pelo poder. Abstract Key words: memory, forgetfulness, superstition, conversion to Christianity, suevo kingdom, Martinho de Braga, De correctione rusticorum. The Master’s dissertation entitled The Construction of memory in Martinho de Braga’s writing: ways in the expansion of Christianity in VI century Gallecia has as its main objective the process of conversion to Christianity which the suevo´s kingdom went through with Martinho de Braga’s arrival in that region in 550. For the development of the present work, the De correctione rusticorum sermon was used, a document written by the bishop around 579. Its contents touch the 572 second Concilio de Braga which was chaired by the bishop of Braga. Taking into consideration the superstitions which were discussed and condemned in this document, the research was divided into three central axes of analysis. Firstly, an explanation of these superstitions as they relate to the apprehension and knowledge of time, of which the auguries and divinations, the nomenclature of the weekdays and festivities function as examples. To these, the bishop opposes others ways that he sees as more efficient and truthful, which are inserted in a Christian perspective concerning time, having as its starting point the sense given to human history. Secondly, the condemnation of traditional forms of death celebration signified by funeral banquets, chants and dances to honour the dead, as well as types of burial which are less advisable. These practices are tackled by a new conception of death, having Christ’s resurrection and that of all bodies in the Final Judgement day as its fundamental argument. Bearing in mind that there will be resurrection for all, moment in which the good will be separated from the evil and that the cult to the dead is considered secondary in the aid given to the salvation of the dead. Finally, the baptistic rite, the essential element in the configuration of a Christian community, which should be conducted by bishops who have been well instructed in God’s teachings. These were considered guardians of God’s words and responsible for bringing up the Creator’s memory. They were also in charge of the Christian precepts to the men who had forgotten them because they were still immersed in Adam and Eve’s sin. Through the sermon analysis in conjunction with other of Martinho de Braga’s writings, it is possible to comprehend his pastoral determination and the means which he used in order to promote the reconnection of the suevo kingdom to Catholicism. Until then the leaders of this kingdom had been Aryans, and its existence in the Northeast of the Iberian Peninsula was constantly threatened by its Visigoth neighbours and by internal power disputes. Sumário Introdução 14 Primeiro Capítulo: O tempo cristianizado: das Calendas de Janeiro ao Domingo 27 Segundo Capítulo: Cristianização da memória: entre a comemoração dos mortos e uma nova perspectiva sobre a morte 51 Terceiro Capítulo: Batismo: de portas abertas à salvação 78 Considerações Finais Do pecado à salvação, do esquecimento à memória: caminhos da expansão do cristianismo na Gallaecia do século VI 108 Referências Bibliográficas 114 Introdução Situado entre Douro e Minho, o reino suevo teve um breve período de existência na Península Ibérica. Povos de origem germânica, oriundos da Panônia 1 , os suevos chegaram à região peninsular em 409 juntamente com alanos e vândalos. Com a partilha do território em 411 2 , coube a eles a região da Gallaecia, sendo Braga a capital do reino por todo o período em que estiveram no Noroeste Peninsular 3 . Todavia, os historiadores não são unânimes na determinação da configuração geográfica do reino pelo fato da história dos suevos na Península Ibérica ser composta por avanços e retrocessos quanto à conquista e perda de territórios em um conflito constante com vândalos e depois com visigodos. Outro fator ilustrativo da dúvida sobre a posição do reino é percebido com a discussão levada a cabo pelos historiadores Jorge López Quiroga e Mônica RodríguezLovelle com José Leite de Vasconcelos tendo por base a leitura do Chronicon de Idácio de Chaves 4 , uma das fontes possíveis para o estudo dos suevos desde o período de sua instalação até 469 5 . A partir da análise do Chronicon, José Leite de Vasconcelos chegara à conclusão de que o reino suevo fazia fronteira com o vândalo no sentido Leste/Oeste e não Norte/Sul como até então havia sido considerado. Jorge López Quiroga e Mônica Rodríguez Lovelle rebatem seus argumentos e retomam a divisão Norte/Sul entre os reinos. Com ela, os suevos estariam estabelecidos 1 Armando Soares Vilaça determina a partir da análise do De moribus Germanorum de Tácito que na Panônia os suevos dominavam os territórios que iam do Báltico ao Danúbio e do Elba ao Vístula, isto é, situavam-se, juntamente com outros povos, em uma vasta área do centro da Germânia. In: VILAÇA, A. O reino dos suevos perante alguns estudos recentes. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1955, p. 05. (Tese de licenciatura). 2 Ibid. e LOPES QUIROGA, J; RODRÍGUEZ LOVELLE, M. De los romanos a los bárbaros: la instalación de los suevos y sus consecuencias sobre la organización territorial en el Norte de Portugal (411-469). In: Studi Medievali, Fase II, 1971, p. 531. 3 Os suevos ficam no Noroeste Peninsular de 411 até 585 quando são incorporados ao reino visigodo. 4 Diz Idácio de Chaves a respeito da divisão da Península Ibérica entre os germanos: “Ano 411. Os vândalos ocupam a Galécia; os Suevos (a região) situada no extremo ocidental do mar Oceano; os Alanos (ocupam) as províncias da Lusitânia e da Cartaginense; aos Vândalos, denominados Silingos, cabe-lhes em sorte a Bética”. IDÁCIO DE CHAVES. Crônica. Trad. José Cardoso. Braga: Universidade do Minho, 1982, p. 13. 5 LOPES QUIROGA, J; RODRÍGUEZ LOVELLE, M., op cit. entre Douro e Minho na região da Gallaecia 6 , tendo ao Norte os vândalos, situados acima do Rio Lima, e ao Leste 7 a comunidade à qual pertencia Idácio, que se contrapunha ferozmente a qualquer tipo de submissão aos germanos para não perderem sua autonomia e principalmente seu sentido de romanidade 8 . Igualmente instável é a história religiosa dos suevos 9 , pois na Península Ibérica experimentaram o cristianismo e o arianismo. Em cerca de 448 são os primeiros povos germânicos a terem um rei católico 10 . Requiário, filho de Réquila, é convertido pelas mãos do bispo Balcônio de Braga antes mesmo de seu pai morrer e de assumir o reino 11 . Idácio de Chaves sublinha esta conversão, mas nem este fator faz com que o autor se posicione de modo favorável em relação aos suevos. Requiário, apesar de cristão, é visto pelo bispo de Chaves como um rei ambioso, cuja política está voltada para a expansão territorial do reino suevo e para a ampliação de seus poderes na Península Ibérica 12 . É tendo em vista esse propósito que Requiário chega à Bética 13 e estabelece uma série de alianças com visigodos e romanos. Idácio demonstra o quanto o rei suevo não mantinha sua palavra e descumpria freqüentemente os acordos firmados, prosseguindo assim com sua política expansionista. Após a morte de 6 Os autores dizem que Idácio de Chaves utiliza o termo Gallaecia em um duplo sentido. A Gallaecia divisão distrital romana que compreendia o Norte da Península Ibérica abrangendo as regiões de entre Douro e Minho, Trás os Montes e Galícia espanhola e a Gallaecia circunscrita aos domínios do distrito de Braga. Ibid., p. 533. 7 Região de Trás-os-Montes e Ourense. 8 A postura de Idácio frente aos suevos e aos visigodos é peculiar. O bispo de Chaves constantemente alude ao vandalismo e à barbárie dos suevos, enquanto os visigodos são muitas vezes encarados como sendo os herdeiros de Roma. Todavia, a postura do autor frente aos visigodos também se modifica no decorrer da obra: “Pouco depois de sua partida da Galécia, os suevos – como sempre falazes e perjuros no que diz respeito às suas promessas e à sua palavra – arrasam, como é habitual, diversas regiões da infortunada Galécia”. In: IDÁCIO DE CHAVES, op cit, p. 43. 9 VILAÇA, op cit; NASCIMENTO, A. Instrução pastoral sobre superstições populares. Lisboa: Cosmos, 1997; MATTOSO, J. História de Portugal: antes de Portugal. Lisboa: Estampa, 1997. 10 PINTO, Sérgio da Silva. Requiário de Braga: o primeiro rei católico do orbe latino. Bracara Augusta, 5, 1954, p. 44-60. 11 “Ano de 448. Réquila, rei dos suevos morre como pagão em Mérida, no mês de Agosto. (Logo) após sucede- lhe no (governo do) reino seu filho Requiário – católico”. IDACIO DE CHAVES, op cit, p. 28. 12 “Ano de 448. (Processa-se essa sucessão) [a de Requiário] sem dúvida, a despeito da oposição de alguns dos membros da sua família, ainda que seja latente. Todavia, logo que tomou nas mãos as rédeas do reino, investe sem demora contra as regiões ulteriores no intuito de fazer pilhagens. Ano de 449. Requiário desposa a filha do rei Teodorico. Inaugurou auspiciosamente o seu reinado com o massacre do país basco”. Ibid, p. 29. 13 A Bética compreendia a região sul da Espanha, atual Andaluzia. Requiário chega até Mérida. Requiário, o rei Remismundo torna-se ariano por obra do bispo Ajax do reino visigodo 14 . Esta conversão é interpretada por José Mattoso como uma demonstração da influência dos visigodos sobre os suevos durante esse período 15 . Com a conclusão da crônica de Idácio e a morte do cronista, o reino suevo cai na obscuridade pela escassez de testemunhos escritos produzidos na região. Novas notícias voltam a surgir em meados do século VI, quando chega à Gallaecia um monge chamado Martinho, que desembarca no porto de Portucale em 550 e passa a desempenhar um importante papel, quer na estruturação da Igreja, quer em sua relação com a monarquia sueva que resulta na recondução do reino ao catolicismo. As razões de sua ida para a Gallaecia, bem como os dados de sua biografia, são pouco evidentes e muitas vezes chegam a conflitar entre si. O pouco que se sabe foi retirado da análise do epitáfio escrito pelo bispo de Braga em conjunto com escritos de Gregório de Tours, Venâncio Fortunato, Isidoro de Sevilha e o Breviário Bracarense do Cônego Soeiro 16 . A partir da leitura destas fontes, formaram-se duas correntes. Até a década de cinqüenta do século XX, considerava-se que o bispo havia nascido na Panônia 17 e que recebera formação oriental quando de sua visita à Terra Santa. Seria então desde terras orientais que Martinho de Braga partira rumo à Gallaecia com uma breve estadia na Gália. 14 “Ájax, gálata de nação, tendo-se tornado apóstata, apesar de já demasiado velho, abraça o arianismo. Entre os Suevos, com o auxílio do seu rei, apresenta-se como inimigo da fé católica e da trindade divina. De uma região gaulesa habitada pelos Godos, foi transportado este veneno pestífero do inimigo do homem”. In: IDÁCIO DE CHAVES, op cit, p. 45. 15 “Em 448 ou 449, o rei Requiário, o principal condutor destas expedições de conquista, converter-se-á ao Catolicismo, o que não pode deixar de significar a progressiva assimilação da cultura latina pelos Suevos. Mais tarde, a conversão do mesmo povo ao arianismo, devido às pregações do bispo Ajax, a partir de 466, não significa o contrário, pois o arianismo era uma heresia cristã, mas apenas a progressiva influência visigoda na Península Ibérica. Uma influência, de resto, que devia também muito à própria assimilação da cultura latina pelos visigodos, da qual aquela confissão religiosa era uma componente importante”. In: MATTOSO, J., op cit, p. 279. 16 Luís Ribeiro Soaresestabelece as fontes disponíveis para o estabelecimento da cronologia de Martinho: Historia Francorum de Gregório de Tours, escrito entre 580 e 584; Carminum libri de Venâncio Fortunato; De viris illustribus (escrito entre 615 e 618), Chronicon (terminado em 616) e Historia Suevorum de Isidoro de Sevilha; e por fim o Breviário Bracarense do Cônego Soeiro, cópia feita no século XV de original do século XIV. SOARES, L. A linhagem cultural de S. Martinho de Dume. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1997, p. 13-21. 17 Região da atual Hungria. Monique Highlight Esta tese foi questionada em 1963 por Luís Ribeiro Soares. Em seu doutoramento, o autor sugeriu que o bispo não nascera na Panônia, tampouco fora formado no monasticismo oriental. Ao contrário, o autor postulou a romanidade de Martinho de Braga 18 ao dar uma nova interpretação ao seu Epitáfio, bem como às passagens de Gregório de Tours e de Venâncio Fortunato. Em seu epitáfio, temos os seguintes dizeres: Das Panônias oriundo, no largo mar levado Ao seio da Galiza por desígnios de Deus, Martinho, ó Confessor, digam nestes átrios teus: ‘Bispo, o culto instaurou, mais o sagrado ritual’, E a ti, Patrono, eu, servo, seguindo, eu que chamado Martinho fui no nome, não no mérito, igual, Eis-me agora de Cristo em paz aqui repousado 19 . A frase que deu margem aos diferentes posicionamentos sobre a origem de Martinho é Pannoniius genitus. Luís Ribeiro Soares sustentou, diferentemente do que acreditavam seus predecessores, que com essa referência o bispo de Braga apenas indicaria que era descendente de panônios e não que nascera na Panônia. Assim, ao invés de Das Panônias oriundo, o fragmento em questão deveria ser traduzido como Descendente de panônios. Para fazer valer seus argumentos, o autor recorre a dois outros textos que fornecem indicações sobre a trajetória e a biografia do bispo. Primeiramente, a passagem da Historia Francorum de Gregório de Tours que faz menção à morte do Martinho, bispo dos suevos 20 . O segundo escrito, de Venâncio Fortunato, apresenta Martinho como: Pannoniae, ut perhibent, veniens e parte Quiritis. Segundo o autor, ao dizer que o bispo vinha das “bandas de Roma”21 Fortunato 18 “Martinho seria então um romano, ao menos pela formação, pela cultura; atestam assim, aclarados por esta nova luz, a sua bela prosa rítmica, o seu celebrado senequismo e até o seu conhecimento do grego, e como chega à Galécia antes de 556 é mais do que provável que tivesse conhecido, ou pelo menos ouvido falar de Bento, passado à gloria da santidade três ou quatro anos antes de ter largado das bandas de Roma”. SOARES, L., op cit, p. 257-258. 19 MARTINHO DE BRAGA. Obras. Braga: Bracara Augusta, 1975, p. 9. 20 “Por esse tempo (580, 5º ano do reinado de Childeberto) também morreu São Martinho, bispo da Galiza. Tendo completado, pouco mais ou menos, trinta anos nesse estado sacerdotal (bispo), cheio de virtudes, partiu para o Senhor”. In: SOARES, L., op cit, p. 13. 21 Veniens et parte Quiritis. fornece um indicativo preciso que comprova a vinda de Martinho de Braga para a Gallaecia desde terras romanas, onde recebera sua formação monástica 22 . Na esteira de Luís Ribeiro Soares, alguns estudiosos passaram a aceitar a romanidade de Martinho de Braga e entre eles Arnaldo Monteiro Espírito Santo. Em sua tese de doutoramento apresentada em 1993 23 , o autor investiga a recepção das obras de Cassiano 24 no Noroeste Peninsular durante o século VI. Embora o objeto de sua pesquisa não seja propriamente o bispo de Braga, a partir da análise filológica de quatro de suas obras 25 , o autor fornece perspectivas interessantes sobre o contexto de sua formação 26 . A primeira delas é retirada da análise das Sententiae Patrum Aegyptiorum, texto escrito em grego e traduzido para o latim por Martinho de Braga para a instrução dos monges de Dume. A conclusão do autor é que o bispo não poderia ter tido sua formação no monasticismo oriental na medida em que desconhecia personagens importantes de seu cenário e possuía um grego mediano, verificados na constante alteração de nomes e significados 27 . 22 “Um pannoniis genitus, no seu epitáfio – um ablativo do etinômio pannonii, pannonorium, significando os panônios, o povo panônio, com genitus, designando progenitura –, vagamente corroborado por Fortunato e Gregório de Tours, não consente mais do que afirmar que era descendente de panônios, mas nunca que era natural da Panônia, como sistematicamente se tem traduzido. Gregório de Tours fala-nos de uma viagem aos lugares santos e da sua chegada à Galécia, vindo de uma região longínqua; Isidoro de Sevilha diz que navegara ex orientis partibus. Toda essa vaguidão – o acidente de uma viagem, o ter vindo por mar do Oriente – parece concretizar-se num verso de Fortunato a que pouca ou nenhuma importância se tem dado e que, leva a crer, contém a chave do enigma da sua vida anterior ao período galego: veniens e parte Quiritis (vindo das bandas de Roma). SOARES, L., op cit, p. 257. 23 ESPÍRITO SANTO, A. A recepção de Cassiano e das Vitae Patrum no século VI. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1993. (Tese de doutoramento). 24 Instituições e Colações. Segundo o autor, os especialistas consideram as Instituições (escritas entre 419 e 429) anteriores às Colações (Primeira parte escrita após 419 e editada em cerca de 426, a segunda parte teria sido iniciada antes de 426 e a terceira parte após 426 e antes de 429). Ibid. 25 As quatro obras analisadas pelo autor são: Sententiae Patrum Aegyptiorum, Pro repellenda iactantia, Item de superbia e Exhortatio a humilitatis. 26 “Não temos a pretensão de vir, com um estudo de caráter marcadamento filológico, reformular em todos os seus pormenores um quadro interpretativo apoiado em informações coevas do próprio Martinho. Mas não podemos deixar de assinalar alguns fatos novos que, por um lado, vêm abalar toda a solidez deste edifício e, por outro lado, postulam uma revisão de todo o conjunto da problemática martiniana, incluindo as bases historiográficas em que se apóia e as interpretações culturais que a partir delas se têm feito”. ESPÍRITO SANTO, A., op cit, p. 406. 27 “Mas detendo-nos um pouco mais na tradução das Sententiae, ressalta com toda a evidência que a formação intelectual e doutrinal de Martinho, sobretudo a sua visão do monaquismo, é a de um monge de formação ocidental. Martinho não apenas adapta o texto a mentalidades e a um meio físico e humano diferentes, como ele próprio reage aos textos que traduz com a mentalidade de um ocidental. Além disso, nem o conhecimento que revela da língua grega está isento de falhas, nem os grandes nomes do monaquismo oriental lhe são familiares. Que Alonius passe a Antonius é um indício de que Martinho confunde nomes estranhos com nomes familiares, A segunda inovação proposta pelo autor é que Martinho de Braga conhecera as obras de Cassiano e as utilizara na redação de seus opúsculos Pro repellenda iactantia, Item de superbia e Exhortatio humilitatis. Todavia, diferentemente do que até então havia sido considerado, seu contato com Cassiano ocorrera já em território galego, uma vez que o bispo não o utiliza quando traduziu as Sentenças. Este fator modifica a imagem de um Martinho que trouxera consigo desde Oriente todos os códices e textos para que fossem traduzidos no Mosteiro de Dume. Se esta idéia poderia resultar em uma diminuição do prestígio que o bispo possuiu enquanto versado nas letras latinas e gregas e promotor de um florescimento cultural nunca visto noNoroeste Peninsular, ela também propõe uma elevação de Braga e seus arredores enquanto um destacado centro de cultura escrita e latina na Gallaecia 28 . A última conclusão a que chega o autor a partir de sua análise filológica é ainda mais inovadora do que aquela proposta por Luís Ribeiro Soares em 1963. Para Arnaldo Espírito Santo, o bracarense não era oriundo da Panônia e nem de Roma, mas sim da Gália. Somente assim, algumas filiações e amizades de Martinho poderiam ser explicadas: os contatos com Venâncio Fortunato e Gregório de Tours, as correspondências trocadas com a rainha Radegundes e com as freiras do mosteiro fundado por Cesário de Arles 29 , as influências ocidentais em seu pensamento, como é o caso de Cassiano, Sêneca, Agostinho e o próprio bispo de Arles, a adesão às discussões doutrinais do sul da Gália, como por exemplo, a problemática em torno do livre arbítrio e da graça divina 30 e por fim, o culto prestado a Martinho de Tours, por ele trazido para a Gallaecia 31 . como é o do pai do monaquismo por excelência, cuja vida e feitos tinham sido divulgados no ocidente pela tradução da vida que dele escreveu Santo Atanásio”. Ibid., p. 407. 28 “Este Martinho que, na fase em que compôs a trilogia, fez de Cassiano o seu mestre de pensar e de escrever, a fonte de doutrina e de meios de expressão, desconhecia Cassiano quando traduziu as Sententiae Patrum. E ignorava-o tão completamente, lido, que nenhuma daquelas palavras típicas consagradas pelo marselhês na literatura monástica ocidental lhe ocorre espontaneamente na tradução das Sententiae. A conclusão que daí se tira é óbvia: Martinho leu Cassiano em Braga. Ou, dito de outra forma, o encontro de Martinho com a obra de Cassiano deu-se em Braga”. Ibid., p. 407. 29 Essas correspondências estão perdidas, mas são referidas por Isidoro de Sevilha. 30 Arnaldo Espírito Santo diz que Cassiano foi condenado em sua doutrina como semipelagianista, em decorrência da sua concepção de salvação tendo em vista a graça e o livre-arbítrio. É justamente esta questão que Arnaldo Espírito Santo é o primeiro a ressaltar a dubiedade do testemunho de Gregório de Tours sobre a ida de Martinho de Braga para a Gallaecia 32 . Em De virtutibus s. Martini 33 o turonense narra a conversão dos suevos ao catolicismo em decorrência da promessa feita pelo rei Charrarico de que seria católico se as relíquias de S. Martinho de Tours curassem seu filho da lepra. Segundo o autor, nesta obra Gregório de Tours ressalta que o bracarense estaria na Gália quando os emissários do rei suevo para lá se dirigiram com a finalidade de pegarem as relíquias. Tivera então notícias do arianismo dos reis suevos, o que despertara sua vontade de ir à Gallaecia desempenhar seu papel pastoral, e chegara ao reino no mesmo dia em que as relíquias de seu homônimo de Tours. Na segunda referência 34 aparece um Martinho de Braga já enquadrado em um esquema hagiográfico e proveniente da Panônia e vindo para a Gallaecia desde Oriente. Nesta passagem, o bispo de Tours reforça sua consistente formação intelectual e sua importante atuação no reino suevo. Se no primeiro texto, Gregório de Tours afirma que Martinho de Braga chegou à Gallaecia ao mesmo tempo que as relíquias de Martinho de Tours, se ainda soubera do arianismo dos suevos quando estava na Gália e então desejara ir até o reino suevo, como poderia ter partido da Terra Santa e chegado ao mesmo tempo que as relíquias? “É evidente que Gregório de Tours se contradiz. E mais evidente é, ainda, que o importante para ele não é o fato histórico, mas o aproximar entre si os dois Martinhos e os dois reinos, um tópico tomado de Venâncio Fortunato. Aliás, a acreditar em Gregório de Tours, seria extremamente difícil de explicar, na sua primeira versão Martinho de Braga deixa de fora, propositadamente, segundo o autor, nas suas obras escritas sob influência de Cassiano. ESPÍRITO SANTO, A., op cit. 31 “Quer dizer, este Martinho Panónio, ‘ut perhibent’, aparece aqui como amigo íntimo de Venâncio Fortunato, como conhecido de Radegunda e de Agnes, por entre referências a Arles e ao monaquismo lerinense. Recordemos aqui uma observação que fizemos ao longo dos capítulos 2 e 3, a saber, que Martinho apresenta certos indícios de ser mais conhecedor das disputas teológicas em torno da graça e do livre arbítrio, que foram particularmente acesas no sul da França, do que dos ambientes monásticos do oriente. Se Martinho vem de fora da Galícia, a Frância e não a Panônia parece ser o lugar da sua proveniência, embora os seus antepassados, como tribo, o seu povo, possam ser oriundos da região da Panônia”. Ibid., p. 412. 32 As obras de Gregório de Tours que foram entrecruzadas são De virtutibus s. Martini e Historia Francorum. 33 De virtutuibus s. Martini. 34 Historia Francorum, Libri X. dos fatos, que Martinho tivesse saído do oriente no mesmo dia em que foram levantadas as relíquias de Martinho de Tours e tivesse chegado ao porto da Galícia ‘simul cum ipsis pignoribus’”35. A determinação da biografia de Martinho de Braga além de ser importante em si mesma visa responder uma problemática que tangencia a compreensão das relações de poder no período. Ao atribuir ao bispo a mesma origem dos suevos e considerar que teria vindo para a Gallaecia partindo da Terra Santa, a imagem que se forma é a de um monge comprometido com o projeto de Justiniano de reunir sob o seu comando os territórios que compunham o Império Romano antes da fixação das populações germânicas. O fato de ser um panônio faria de Martinho um interlocutor privilegiado na conversão dos suevos ao catolicismo e no estabelecimento de alianças com Justiniano e seu projeto de restauração da porção ocidental do Império Romano. Por outro lado, ao dizer que Martinho de Braga vinha das “bandas de Roma”, o que está em jogo é a busca pelo reconhecimento de relações entre os monges e o papado em uma proposta de conversão das terras longínquas que se valia dos monges como centros irradiadores do catolicismo. Esse seria o caso, por exemplo, de Gregório Magno e do monge Agostinho, responsável pela conversão dos saxões um século depois 36 . Para além das discussões em torno da biografia e das motivações de Martinho de Braga, outra não menos complexa é a que apresenta os escritos do bracarense como vinculados a modelos previamente estabelecidos que os tornaria pouco originais e legítimos para o conhecimento da região da Gallaecia e dos hábitos e tradições da população nortenha. São obras suas: a tradução das Sententiae Patrum Aegyptiorum, a tríade Pro repellenda iactantia, Item de superbia e Exhortatio a humilitatis, os opúsculos Formula Vitae Honestae e 35 ESPÍRITO SANTO, A., op cit, p. 413. 36 “Pressente-se incontestavelmente por detrás de tudo isto uma linha de intenções que parece revelar uma política papal de aproveitamento do monacato no sentido do apostolado missionário e que projeta a basílica martiniana [Martinho de Tours] de Bento em Monte Cassino. Já foi notado por alguns historiadores que o fato de faltarem documentos sobre a ação missionária dos papas neste conturbado período da história da Igreja romana que é a primeira metade do VI século não significa a sua inércia nesse campo”. SOARES, L., op cit, p. 97. De Ira, os poemas In Basilica, In Refectorio e o Epitaphium, a participaçãonos Primeiro e Segundo Concílios de Braga, a compilação de setenta e dois cânones provenientes do Oriente intitulada Capitula Martini, a obra De trina mersione e o sermão De correctione rusticorum. Seus escritos podem ser classificados tendo em vista sua finalidade: de caráter ascético-moral as Sententiae e os opúsculos; de caráter canônico-litúrgico os cânones, a compilação e a obra sobre a tripla imersão e finalmente seus poemas 37 . Seus escritos também podem ser agrupados em torno da função desempenhada por Martinho no momento de sua escrita, se era monge ou bispo 38 . Assim, teriam sido escritos no mosteiro de Dume as Sententiae, a tríade, os opúsculos e as poesias. Depois de sua sagração, os cânones, o De trina mersione e o Do correctione rusticorum 39 . O sermão foi escrito em forma epistolar em torno de 579 40 em consonância com as determinações do Segundo Concílio de Braga, realizado em 572, reunido com a finalidade de erradicar o paganismo e qualquer tipo de dubiedade litúrgica, canônica ou doutrinal na Gallaecia 41 . Nele, o bispo se propõe a apresentar a origem dos ídolos 42 que enganam os homens ignorantes e os conduzem ao afastamento e esquecimento de Deus. Neste percurso, Martinho de Braga enumera uma série de práticas realizadas pelos homens em sua ignorância de Deus. É justamente na condenação e na descrição das práticas supersticiosas que se atribui ao bispo de Braga uma vinculação ao modelo de Cesário de Arles. Isso tornaria o sermão inadequado como fonte de conhecimento da Gallaecia do século VI. 37 SÃO MARTINHO DE DUME. Opúsculos morais. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1998, p. 13. 38 A cronologia proposta por Luís Ribeiro Soares é a seguinte: entre 518 e 525 nascimento; 556 sagração episcopal; 561 Primeiro Concílio de Braga; 572 Segundo Concílio de Braga; 579 morte. SOARES, L., op cit, p. 15. 39 MACIEL, M. O De correctione rusticorum de Martinho de Dume. Bracara Augusta, XXXIV, 78 (91), 1980. 40 A incerteza no ano de escrita do sermão relaciona-se com o da morte do bispo. Segundo Gregório de Tours ele teria morrido em torno de 580 enquanto no Breviário do Cônego Soeiro aparece a data 20 de março de 579. 41 “E já que não há nessa província nenhum problema acerca da unidade da fé, devemos agora tratar mais especialmente de que se entre nós há algo repreensível, contrário à disciplina apostólica, por ignorância ou por negligência, acudindo aos testemunhos das Sagradas Escrituras, ou às disposições dos cânones antigos, corrijamos de comum acordo com um critério razoável tudo o que desagrade”. In: VIVES, J. Concílios visigóticos e hispano romanos. Madrid/Barcelona: CSIC-Instituto Enrique Flores, 1963, p. 79-80. 42 Ídolos que são, na verdade, os demônios. Rudi Künzel trata dessa problemática quando apresenta o debate entre Dieter Harmening e Jean-Claude Schmitt. Segundo o autor, foi o historiador alemão quem suscitou a hipótese de que depois de Cesário de Arles não teria sido escrito nada sobre as superstições que não se remetesse ao seu modelo: “as expressões formuladas por Cesário de Arles para descrever as crenças e ritos pagãos na Gália do Sul no século VI reaparecem nos estudos posteriores das regiões situadas mais ao norte. A explicação é simples: os sermões de Cesário serviram de exemplo aos pregadores posteriores” 43. Em contraposição a uma tese que desqualificaria as fontes pela sua vinculação a um modelo, Jean-Claude Schmitt 44 defende a idéia de que a recorrência das condenações às práticas supersticiosas seria um forte indício da pressão exercida pela cultura folclórica sobre a erudita. Ao reiterar a condenação destas práticas, os autores estariam fornecendo um testemunho da perenidade e da resistência de práticas ainda vivas e latentes nas sociedades submetidas ao processo de cristianização: “notemos que todos estes textos, não só os sermões, dependem em menor ou maior grau de Cesário de Arles, a tal ponto que Dieter Harmening negou que tivessem qualquer valor documental para o estudo das verdadeiras ‘superstições’ depois do século VI. O meu ponto de vista é um pouco diferente: se é inegável que estes textos retomam incansavelmente as mesmas fórmulas, pode observar-se, em primeiro lugar, que existem variantes no tempo assim como no espaço. De resto, a repetição dos mesmos cânones durante séculos revela com evidência a pressão contínua, pelo menos até ao século XII, de práticas e crenças bem reais, seja qual for a fidelidade dos testemunhos eclesiásticos”45. A desqualificação não parece ser o melhor caminho para compreender os escritos de Martinho de Braga. A resposta para a elucidação da questão deve ser procurada em outro 43 KÜNZEL, R. Paganisme, syncrétisme et culture religieuse populaire au haut moyen age. Réflexions de méthode. Annales, 4-5, 1992, p. 1057. 44 SCHMITT, J-Cl. História das superstições. Lisboa: Europa-América, 1997. 45 Ibid, p. 40. lugar. Ao que tudo indica, a concepção cristã alto-medieval de conhecimento e escrita relacionava-se diretamente à noção de autoridade e, nesse caso, a retomada sistemática de escritos de grandes autores da Igreja garantia a legitimidade do discurso. Este parece ter sido o caso de Martinho de Braga quando de seus textos emana uma série de idéias e temas já tratados por outros autores como é o caso de Cesário de Arles para o problema das superstições 46 , de Agostinho quanto à cristianização do culto aos mortos 47 e à melhor forma de se ministrar o batismo e instruir os catecúmenos 48 . Sendo assim, ainda que o texto se apresente como um emaranhado de outros lugares, que são muito mais um lugar comum dentro da cultura escrita medieval do que indícios da realidade sócio-cultural para a qual o discurso se dirige, ainda que o sermão De correctione rusticorum, assim como as demais obras do bracarense, fosse a reprodução de um modelo, a seleção, a tessitura e a utilização dos argumentos são de Martinho de Braga a fim de atender a determinados interesses. Tanto o discurso atende a um público, a um objetivo e a uma finalidade, quanto à própria argumentação é produto de um contexto religioso, político e social específico. Essa é a conclusão referendada por Arnaldo Espírito Santo quando estabelece a relação entre os opúsculos de Martinho e a obra de Cassiano. É quando busca as influências de Cassiano nos escritos do bispo que o autor atinge a originalidade de sua escrita: “fica claro que de um modo geral Martinho altera o texto propositadamente, tendo a sua funcionalidade como motivação principal. […] Em suma, há uma camada do texto, a que poderíamos chamar camada informativa, como é o caso da atribuição dos apotegmas, em que a mais ligeira alteração pode ser significativa. Pelo contrário, na camada estilística, na disposição dos vários elementos narrativos, na passagem do discurso direto ao indireto e vice-versa, qualquer divergência em relação ao original significa quase sempre que Martinho usou o texto à sua 46 Questão tratada pelo primeiro capítulo dessa dissertação. 47 Discussão apresentada no segundo capítulo da presente dissertação. 48 Tema do terceiro capítulo dessa dissertação. maneira, alterando-o e recortando-o como bem entendeu. De uma coisa podemos estar certos, é que Martinho apenas pretendeu, com as suas intervenções, tornar a sua tradução clara, funcional e adaptada aos seus destinatários”49. Da mesma opinião é Miranda Barbosa quanto à relação de Martinho de Braga com Sêneca: “[a obra de Martinho não é um] trabalho original,mas compilação e ordenação de pensamento alheio […] [Ele] Não fez uma simples cópia, mas uma antologia, ordenada com certo critério e obedecendo a certos princípios”50. O presente trabalho propôs-se a estudar o sermão De correctione rusticorum como fonte privilegiada para compreender o processo de cristianização pelo qual passou o reino suevo durante o século VI, tendo em vista a edificação de uma memória cristã em contraposição às superstições. Com ele não se tem em mente fornecer conclusões definitivas, o que se pretende é antes sugerir caminhos que possibitem a compreensão da cristianização do reino suevo, que fez da região entre Douro e Minho a mais católica de Portugal. Limitou-se, aqui, à contribuição dada por Martinho de Braga, constantemente relembrado e exaltado como o Apóstolo dos suevos e personagem principal na conversão do reino a partir das alianças que estabeleceu com a monarquia e pela estruturação e fortalecimento da Igreja na região. O De correctione rusticorum foi analisado a partir do seu entrecruzamento com outros escritos do bispo 51 que permitissem a reflexão sobre a problemática aqui suscitada. As atas do Primeiro e Segundo Concílio de Braga também compõem o corpus documental, bem como os Capitula Martini. Outros autores importantes para a construção da doutrina cristã no período também foram pesquisados, em especial o bispo de Hipona, na medida em que suas obras esclarecem, se aproximam ou se distanciam do texto do bracarense. Percorrendo os caminhos da expansão do cristianismo na Gallaecia do século VI a partir dos escritos de Martinho de Braga, o primeiro capítulo discute as práticas supersticiosas 49 SANTO, A., op cit, p. 58 e 63. 50 BARBOSA, A., op cit, p. 263-264. 51 Não constam do corpus documental as Sententiae Patrum Aegyptorum, o opúsculo De Ira e Formula Vitae Honestae e os poemas In Basílica e In Refectorio. relacionadas a uma nova proposta de apreensão do tempo, quer histórico, quer cotidianamente vivido, a partir da condenação às adivinhações, aos augúrios, da sobreposição de festividades, ao apelo pela modificação na nomenclatura dos dias da semana e por fim, de um novo sentido dado à história humana. O segundo capítulo aborda a problemática do culto aos mortos tendo em vista a nova formulação da Igreja sobre a morte e o homem. O culto tradicional aos mortos é avaliado com vistas à ressurreição de Cristo e a de todos os corpos no momento do Juízo Final. E por fim, no terceiro capítulo faz-se referência ao batismo e aos batizados, dada a importância deste rito para a expansão e consolidação do cristianismo. Ele é bem enfatizado no De correctione rusticorum, pois este sermão é dedicado aos batizados e nele o bispo chama constantemente sua atenção para o compromisso realizado com Deus no ato do batismo que os obrigaria a se afastar das práticas supersticiosas pela escolha feita por Deus. Monique Highlight Capítulo I O tempo cristianizado: das Calendas de janeiro ao Domingo Caríssimos filhos, do que vos fizemos muito simplesmente um resumo, é preciso que vos lembreis, a partir de agora, daquelas coisas que vos dissemos e que, fazendo o bem, podeis esperar o futuro descanso no reino de Deus ou então (Oxalá não aconteça) agindo mal podeis esperar o fogo eterno no Inferno 52 . Em sua obra História das superstições 53 , Jean-Claude Schmitt diz que o termo superstição era utilizado pelos autores cristãos da Antigüidade Tardia para designar determinados comportamentos repreensíveis situados na esfera da religiosidade. Os autores da Patrística foram os primeiros cristãos a dele se utilizarem e herdaram dos latinos seu caráter pejorativo, pois por superstição compreendiam uma oposição ilícita e pervertida à religião oficial. Para Lactâncio, por exemplo, religio era derivado de re-ligare, pois apontava para uma ligação pessoal que obrigava (ob-liga) o cristão perante Deus, enquanto superstitio era a veneração dos mortos, a qual foram associadas as demais formas de paganismo que a Igreja desejava eliminar. A superstição passa a se contrapor à religião e a formar com o paganismo uma associação necessária. Com Agostinho, tem-se a junção definitiva da tríade superstição, paganismo e culto aos demônios. O supersticioso é aquele que voltado para as práticas do paganismo se obriga não com Deus, mas com os demônios 54 . A partir de então, superstição ganha um duplo significado: é simultaneamente resquício do paganismo no seio da sociedade de cristãos e domínio do diabólico sobre o mundo e sobre os homens. Da formulação do conceito passou-se à condenação. Os bispos reunidos em concílios começaram a denunciar as diversas práticas consideradas supersticiosas em sua luta diária contra a idolatria, o paganismo e a heresia. Esta condenação inseria-se em uma nova perspectiva trazida pelo processo de 52 SÃO MARTINHO DE DUME, op cit, p. 105. 53 SCHMITT, J-Cl., op cit. 54 Ibid., p. 18-26. cristianização que tinha no discurso cristão a pretensão da verdade, da universalidade e da inclusão de todos, inclusive daqueles situados até então à margem da dinâmica de romanização 55. Nesse sentido a “denúncia do que os clérigos chamavam ‘superstições’ e definiam simultaneamente como sobrevivências do paganismo e adoração dos demônios inscrevia-se para eles num programa muito mais vasto de reforma religiosa e moral; a sua vontade de impor uma ordem social era inseparável da preocupação propriamente pastoral de salvar as almas”56. O autor classifica as práticas supersticiosas em três eixos centrais. Em primeiro lugar, as que visavam o domínio dos espaços sagrados, sobretudo aquele do culto aos mortos; em seguida, eram supersticiosas as práticas relacionadas ao problema da fertilidade e da fecundidade dos homens, dos animais e das terras, constituindo-se na prática de feitiçaria, na produção de amuletos e no curandeirismo; e por fim, aquelas relativas à tentativa de apreensão e conhecimento do tempo de que são exemplos as adivinhações, os augúrios e a determinação do calendário. Esta última questão, a do tempo, de certa forma, abarcava os dois problemas anteriormente citados na medida em que ter controle sobre o tempo propiciava a reprodução da terra, dos animais e dos homens, o que permitia que a vida social, composta por vivos e mortos, tivesse continuidade. Com relação, especificamente, às superstições relacionadas ao tempo, tema central deste primeiro capítulo, o autor diz que a Igreja procurou cristianizar todas as suas esferas, proporcionando uma nova forma de classificação que se voltava, sobretudo, para o tempo histórico e escatológico direcionado à salvação, e para o tempo vivido cotidianamente pautado 55 Segundo Arnaldo Momigliano: “enquanto a organização política do Império se fazia cada vez mais rígida, inimaginativa e insatisfatória, a Igreja era móvel e ágil e oferecia espaço para aqueles aos quais o Estado era incapaz de absorver. Os bispos eram os centros de grandes organizações voluntárias. Fundavam e controlavam instituições de caridade. Defendiam seu rebanho contra os funcionários do Estado”. In: MOMIGLIANO, A. El cristianismo y la decadência Del Imperio Romano. Id (org). El conflicto entre el paganismo y el cristianismo en el siglo IV. Madrid: Alianza, 1989, p. 25. 56 SCHMITT, J-Cl., op cit, p. 42. nos movimentos, ciclos e retornos das estações e dos astros 57: “as civilizações que tinham precedido o cristianismo prestavam igualmente, mas a sua maneira, grande atenção ao tempo e à suamedida; também lhe atribuíam valores que a Igreja não podia admitir e a que chamavam a ‘superstição’ da ‘observação’ do tempo”58. Nesse campo, o que os bispos e membros do clero fizeram foi condenar e oferecer uma proposta de vivência e interpretação do tempo, histórico e cotidiano, tendo por base as Escrituras e demais obras consagradas, em que tudo no tempo ganha um significado em Deus, Criador de todas as coisas viventes e existentes no mundo 59 . No sermão De correctione rusticorum de Martinho de Braga o termo superstição é utilizado ora em relação com o diabólico, ora com o paganismo. Este emprego pode ser verificado na seguinte passagem da obra: Recebi a carta da tua Santa Caridade, na qual me solicitas que escreva sobre a instrução dos rústicos que, apegados ainda às antigas superstições dos pagãos, prestam culto de veneração mais aos demônios que a Deus 60 . Primeiramente, diz o bispo que a instrução deve ser feita aos rústicos 61 que ainda estão apegados às antigas superstições dos pagãos. Depois, Martinho associa superstição à demonologia quando reafirma a idéia de que esses rústicos prestam culto mais aos demônios do que a Deus. Falso objeto de afeição, os demônios reapareceram no decorrer da narrativa e serão os responsáveis diretos pela existência de todas as práticas supersticiosas relacionadas pelo bispo. 57 Ao tempo cíclico constituído pela movimentação dos astros e das estações a Igreja teria sugerido ou sobreposto um tempo igualmente cíclico expresso pela liturgia, cuja característica principal era o recordar a passagem de Cristo sobre a Terra. 58 SCHMITT, J-Cl, op cit, p. 73. 59 Da mesma opinião é Jacques Le Goff, para quem: “A grande novidade do tempo cristão é afirmar, em combinação com o retorno do tempo litúrgico anual, o da História, o tempo histórico criado por Deus”. In: LE GOFF, J; SCHMITT, J-Cl. Tempo. Dicionário Temático do Ocidente medieval. Bauru: Edusc; São Paulo: Imprensa oficial do Estado, 2002, p. 534. 60 SÃO MARTINHO DE DUME, op cit, p. 93. 61 O termo rústico tal qual utilizado pelo bispo em seu sermão será objeto do terceiro capítulo desta dissertação. No segundo momento em que o termo superstição é utilizado, a justaposição entre cristianismo, paganismo e demonologia reaparece. Martinho alerta aos homens miseráveis e ignorantes de Deus o risco que correm ao fazerem uso das práticas supersticiosas na medida em que com elas reproduzem cotidianamente sua morte e alimentam voluntariamente o pecado de Adão no seu presente. O bracarense remete à ineficácia das práticas supersticiosas em contraposição à eficácia dos símbolos e instrumentos cristãos dados aos homens no momento do batismo: O homem miserável não tem nenhum motivo para fazer estas prefigurações e acreditar nelas, como acredita que, se no primeiro dia do ano estiver farto e alegre, assim permanecerá durante todo o ano. Tudo isso são invenções e práticas dos pagãos exigidas pelos demônios. Mas ai daquele homem que não tenha Deus propício e não tenha dada por Ele a abundância de pão e a segurança de vida! Eis que vós praticais estas superstições vãs, quer ocultamente, quer em público, e nunca haveis acabado com estes sacrifícios demoníacos. E porque é que eles não vos protegem, para que estejais sempre fartos, seguros e alegres?Porque é que, quando Deus está irado, não vos defendem os sacrifícios vãos do gafanhoto, do rato e de muitas outras atribulações que Deus vos envia quando está irado? Não compreendeis que os demônios vos mentem com estas práticas supersticiosas que em vão conservais e que vos iludem repetidamente quanto aos augúrios que esperais? 62 Para além da associação necessária entre superstição, paganismo e demonologia, uma outra aparece: paganismo e rusticidade. Boa parte dos historiadores que estudam o processo de expansão do cristianismo do século IV ao VIII defende a idéia de que o paganismo ainda era forte no seio da rusticidade, vivenciado por uma população camponesa que mantinha suas relações ancestrais muito vivas e latentes no seu exercício cotidiano de religiosidade. Enquanto isso, as cidades, centros de civilização durante o Império Romano e sedes episcopais no início da Idade Média, eram os focos privilegiados da expansão do cristianismo. Estes centros culturais e de civilidade eram ambientes infinitamente superiores 62 SÃO MARTINHO DE DUME, op cit, p. 101. aos campos, cuja população lutava para sair da pré-história. Ao binômio campo/cidade vem se unir inevitavelmente o pagão/cristão. Um exemplo desta forma de consideração pode ser encontrado no texto de A. H. Jones que trata justamente das camadas que deram força ao cristianismo durante o período de rompimento das estruturas políticas e sociais do Império Romano: “Mas o lento progresso do cristianismo nas áreas rurais tem que atribuí-lo também ao inerente conservadorismo dos camponeses. Eles, em todas as épocas e em qualquer lugar, haviam feito resistência à mudança e se mantinham obstinadamente ligados a seu modo de vida tradicional. Inclusive nos séculos VI e VII, quando haviam sido convertidos em sua maioria, a Igreja na Gália e na Espanha, como mostram os repetidos cânones dos concílios contemporâneos, tinham grande dificuldade em suprimir os velhos ritos com os quais os camponeses, desde tempo imemorial, conjuravam a peste e incrementavam a fertilidade de seus rebanhos e campos”63. Aqui, os camponeses são desmaterializados enquanto agentes históricos e formam um bloco homogêneo, uma categoria que se iguala em diferentes momentos da história e regiões do mundo. O autor ressalta que há somente dois lugares onde se pode notar uma cristianização precoce dos campos: o Norte da África e o Egito. Na África, em decorrência da controvérsia donatista em cerca de 340 que torna o cristianismo dominante na área rural. No Egito, devido ao sistema bem estabelecido de paróquias rurais. Mesmo para os casos africanos e egípcios sobre os quais o autor fornece indicações para se pensar a existência do cristianismo nos campos, ele reafirma que os dados comprobatórios são débeis e que em outras regiões o paganismo ainda assolava os campesinos até épocas mais tardias. Até o presente momento foram encontrados dois autores que por vias diferentes chegam a conclusões interessantes a respeito da associação feita entre paganismo e rusticidade bem como sobre a relação entre paganismo e cristianismo. Embora sendo minoria 63 JONES, A. El transfondo social de la lucha entre el paganismo y el cristianismo. In: MOMIGLIANO, A. (org), op cit, p. 32. na historiografia, suas considerações são importantes porque apresentam argumentos que reforçam a tese do público rústico do sermão que será apresentada no terceiro capítulo da dissertação. O primeiro deles é Michel Roblin 64 que defende a idéia de que os termos paganus, pagus e rusticus foram interpretados de forma insuficiente e pouco convincente pela historiografia. Segundo ele, a chave para a elucidação do problema está na compreensão de paganus, primeiro em relação a gentilis e em seguida a pagus. Paganus não teria sido explicado de forma precisa pelos historiadores que primaram pela visão de um Ocidente rural resistente ao cristianismo e persistindo no paganismo tradicional e no culto ao imperador. Durante os três primeiros séculos da era cristã, a palavra gentilis fora empregada para designar os adeptos do culto pagão, e se referia tanto aos não cristãos como aos não judeus. O termo paganus, por sua vez,confiscado para o vocabulário religioso, passou a substituir gentilis que em seu emprego original não mantinha nenhuma relação com rusticus e com camponeses. Paganus, segundo o autor, derivaria de pagus conforme tem sido interpretado pela historiografia, mas isso não faria esses termos sinônimos de rústico: “Etmologicamente, pagus designa um marco fixado em terra, o pangere. A palavra significa então o território delimitado pelos marcos, o distrito; não é por definição uma circunscrição rural”65. Pagus, assim, poderia ser aplicado tanto para se referir ao campo quanto à cidade, pois com a utilização deste termo o que estaria em voga seria uma população específica concentrada tanto no campo quanto na cidade e não necessariamente a porção de terra situada no campo ou na cidade. Neste sentido, pagus manteria a esfera de significação de gentilis 66 . O segundo autor que contribui para o estabelecimento de uma nova relação entre os termos é Almeida Fernandes que em estudo sobre a origem das paróquias suevas sustenta a 64 ROBLIN, M. Paganisme et rusticité: un gros problème de mots. Annales, 8, ½, 1953, p. 173-183. 65 Ibid., p. 176. 66 “À mesma época [durante o Baixo Império], gens continuava a ser utilizado na sua acepção larga e concernente a povo, tribo, nação, gente, com todavia uma nuança moral e humana que lhe fez qualificar desfavoravelmente os conjuntos étnicos considerados sob seu aspecto intelectual ou ético, muito mais que das nações no interior da palavra”. Ibid, p. 177. tese de que quando no Paroquial suevo 67 o termo pagus é utilizado, a grande tônica é a diferenciação entre ele e a paróquia considerada ecclesia. A divisão passa por critérios religiosos, mas do que propriamente territoriais. Os pagi, para o autor, seriam os locais de permanência do arianismo que deveriam ser reconduzidos ao cristianismo: “Quando, portanto, o Paroquial põe, de um lado, as ecclesiae, e, de outro, nitidamente a elas contrapostos, os pagi, outra coisa não pode o fato significar que a existência de paroécias ainda na fé ariana, ao tempo da organização desse documento, claramente anti-herético, por ser de inspiração martiniana”68. Dessa maneira, pagus não seria utilizado no Paroquial suevo para definir e delimitar uma circunscrição territorial tendo em vista a oposição campo/cidade, mas sim para demonstrar a ausência de ortodoxia. Se o termo for interpretado de tal maneira, também pode ser modificada a interpretação do paganus dele oriundo e reinterpretada a associação entre paganismo e rusticidade para o período. Se os autores cristãos da Antigüidade Tardia se valem de formulações que servem em grande medida para reforçar sua didática e sua pastoral como é o caso para os termos rusticus e paganus, como interpretar esta questão para o sermão De correctione rusticorum de Martinho de Braga? Se no sermão, o termo paganus vem sempre associado às práticas supersticiosas que são levadas a cabo pelos homens rústicos e ignorantes, uma análise do papel dos rústicos no sermão permite estabelecer novas relações na compreensão da associação entre os termos não como demonstrativo de que o paganismo estava concentrado nos campos e resistia à expansão do cristianismo, mas sim de que, no discurso do bispo, a associação aparece mais como expressão de um passado que deve ser substituído por um presente em que o cristianismo e o culto ao “verdadeiro Deus”, uno e trino, tem lugar. Pode-se dizer, portanto, que o binômio fundamental quando se trata da 67 Documento redigido entre 572 e 582/585 que traz a lista de paróquias existentes no reino suevo durante esse período. 68 FERNANDES, A. Paróquias suevas e dioceses visigóticas. Viana do Castelo, 1968, p. 52. análise da justaposição entre paganismo e rusticidade e do conflito entre paganismo e cristianismo não é campo/cidade, mas sim conhecimento/desconhecimento da doutrina cristã. Tanto pagãos quanto rústicos fazem o contraponto aos batizados, que, depois de terem tido sua memória reavivada pelas palavras do bispo 69 e de terem contraído um pacto com Deus, devem ser fiéis a ele como garantia de salvação e entrada ao Paraíso. Neste sentido, Martinho de Braga parece utilizar o termo rústico de forma similar a seus precedentes Gregório de Tours e Cesário de Arles 70 . A consideração do problema das relações entre paganismo e cristianismo, bem como a análise da paulatina sobreposição entre paganismo e rusticidade não diz respeito, portanto, à negação ou afirmação de um processo de ruralização existente na Europa ocidental desde o século III e acentuado nos IV e V 71 . Se todas as camadas da população podem ser consideradas habitante dos campos, a divisão campo/cidade não se apresenta como a mais adequada para se pensar o tema das sobreposições no sermão de Martinho de Braga. O que parece estar em pauta é a tentativa de dar um novo direcionamento da conduta da sociedade, que parte da educação e instrução, em primeiro lugar, dos clérigos 72 e em seguida do monarca, para então, a partir destes dois eixos centrais, expandir-se aos outros membros da comunidade. Para além da negação ou afirmação da existência de uma população concentrada nas villae e dispersas pelo campo da Gallaecia, o que se pretende comprovar é que o sermão 69 “Por isso vos rogamos, caríssimos irmãos e filhos, que tenhais presente em vossa memória estes preceitos que Deus se dignou outorgar, através de nós, humildes e pequenos, e penseis no modo de salvar as vossas almas, a fim de não vos preocupardes tão-só com esta vida presente e com a transitória utilidade deste mundo, mas para que recordeis aquilo em que prometestes acreditar no símbolo, ou seja, a ressurreição da carne e a vida eterna”. SÃO MARTINHO DE DUME, op cit, p. 109. 70 BROWN, P. A ascensão do cristianismo no Ocidente. Lisboa: Presença, 1999. 71 LE GOFF, J. Para um novo conceito de Idade Média. Lisboa: Estampa, 1980. 72 Como membros de uma instituição saída da Paixão de Cristo e sagrada por ser a materialização da misericórdia de Deus no seu movimento de descendência rumo à humanidade, os clérigos precisavam ser bem instruídos e diferenciados do restante da população. Daí o esforço de Martinho de Braga em educar esse clero desde sua maneira de vestir, de se portar e de se alimentar, até a condenação de sua participação em práticas idolátricas juntamente com os leigos. Os cânones dos Primeiro e Segundo Concílio de Braga e dos Capitula Martini dão vários exemplos dessa instrução. Ver ainda GUERREAU-JALABERT, A. Spiritus et caritas. In: HERITIER-AUGE, Fr; COPET-ROGIER, E. La parenté spirituelle. Paris: Editions des archives contemporaines, 1995, p. 133-203. do bracarense não tinha em vista a instrução dos camponeses, mas sim o das elites, condutoras privilegiadas de toda a comunidade. Essa temática retornará no terceiro capítulo da dissertação. A condenação das práticas supersticiosas tanto no sermão quanto nos cânones dos Primeiro e Segundo Concílio de Braga insere-se na substituição cultural e na tentativa de expandir o cristianismo no território da Gallaecia. Dentre as práticas supersticiosas mais condenadas estão aquelas voltadas para a apreensão e conhecimento do futuro. Nos cânones é possível ainda vislumbrar um quadro de práticas relacionadas com a comemoração dos mortos. Nos dois casos, há em Martinho de Braga uma constante busca pela sobreposição de eficácias e da demonstração de que os instrumentos cristãos e seus ensinamentos, dados aos catecúmenos no momento do batismo, são o que de fato garantema fartura, a felicidade e a prosperidade nessa vida e, mais importante, exteriorizam o pacto realizado entre o homem e Deus. Martinho de Braga não se limita a condenar, mas sempre propõe novos pressupostos pautados na Escritura e em grandes nomes da Igreja e da cultura clássica latina, que devem servir à reflexão, bem como ao encaminhamento da conduta. Todas as superstições voltadas para a ordenação do tempo estão inseridas em uma narrativa que tem a história da humanidade como primeira faceta do tempo a ser considerada 73 . Ela é a aglutinadora das práticas supersticiosas que se situam em seu interior na medida em que serve de justificativa e de explicação para sua origem. Percebe-se na fonte uma constante mudança nos tempos verbais, bem como a utilização de advérbios temporais que garantem a afirmação de que as superstições estão inseridas em um passado idolátrico que não tem mais lugar no seio da comunidade de batizados. Este fato ocasiona uma 73 “Fosse qual fosse o modo de tratar o passado, escreviam [os historiadores medievais] num mundo – e para um mundo – que tinha idéias próprias quanto à natureza do passado útil, o passado normal, funcionalmente relevante, e o passado recordado coletivamente”. Ao estudar os historiadores medievais, a pergunta deve ser quais aspectos do passado eles quiseram apresentar. FENTRESS, J. & WICKHAM, Ch. Memória social. Lisboa: Teorema, s\d, p. 179. correspondência não linear entre passado, presente e futuro na obra, ao mesmo tempo em que a história comporta uma perspectiva linear de direcionamento do homem rumo a um futuro próximo de extinção da própria história, em um fim escatológico determinante e definidor do destino humano tal qual o homem para si preceituou 74 . Na concepção do bispo, Deus criou o Céu, a Terra e as criaturas espirituais, que chamou de anjos, para habitarem o Céu e louvarem a Deus 75 . O primeiro dentre eles não honrou a Deus, seu Criador, considerando-se igual a ele em uma tentativa de igualar o desigual, de subverter uma ordem estabelecida. Este fato teve uma dupla conseqüência: a queda do Primeiro Arcanjo e de seus aliados, os demônios, e em segundo e não menor plano, a criação do homem. O homem é criado, na gênese de Martinho de Braga, com a finalidade de substituir os demônios no louvor a Deus. Com isto, a necessidade de obediência e submissão, já estimulada quando da criação dos anjos, é reafirmada: Depois da queda dos anjos, agradou a Deus moldar o homem do barro da terra e pô-lo no Paraíso; e disse-lhe que, se seguisse o preceito do Senhor, subiria, sem morrer, àquele lugar celeste, de onde caíram os anjos rebeldes, mas, se transgredisse o preceito de Deus, ficaria sujeito à morte 76 . A transgressão ao preceito de Deus resulta em morte, temporalidade e, sobretudo, esquecimento de Deus para os descendentes de Adão e Eva. O gênero humano é maculado 74 “Caríssimos filhos, do que vos fizemos muito simplesmente um resumo, é preciso que vos lembreis, a partir de agora, daquelas coisas que vos dissemos e que, fazendo o bem, podeis esperar o futuro descanso no reino de Deus ou então (oxalá não aconteça) agindo mal podeis esperar o fogo eterno no Inferno. Com efeito, a vida eterna e a morte eterna dependem do arbítrio do homem. O que cada um escolher para si mesmo, será isso que terá”. SÃO MARTINHO DE DUME, op cit, p. 105. 75 Na consideração da criação, Martinho de Braga se diferencia de Agostinho ao estabelecer uma seqüência para o ato criador. O hiponense, por outro lado, defende que a criação é um ato único, tendo Deus criado tudo simultaneamente que depois, com a introdução do tempo, passa a se diferenciar e se distinguir. No Livro XI das Confissões o bispo de Hipona diz que: “tudo se diz simultânea e eternamente. Se assim não fosse já haveria tempo e mudança e não a verdadeira eternidade e verdadeira imortalidade”, para no Livro seguinte completar: “Desta terra invisível e informe, deste caos, deste quase- nada, fizestes tudo aquilo de que é formado (ou não) o mundo mutável onde aparece esta mobilidade, na qual se pode sentir e medir o tempo[...] E por isso o Espírito, Mestre do vosso servo, quando recorda que no princípio criastes o céu e a terra, cala-se perante o tempo. Fica em silêncio perante os dias. O céu do céu, criado por Vós no princípio, é, por assim dizer, uma criatura intelectual, que, apesar de não ser coeterna convosco, ó Trindade, participa contudo da vossa eternidade”. AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 316/317 e 348, respectivamente. 76 SÃO MARTINHO DE DUME, op cit, p. 95. com o pecado dos seus ancestrais originais que, persuadidos pelos demônios, transgrediram o mandamento de Deus e, por seu ato de soberba pretenderam ser como deuses 77 . Tem início a história da humanidade, marcada pela Queda e pela busca por redenção, pelo pecado praticado e pela possibilidade de salvação 78 . Desta forma, a humanidade inicia sua caminhada de retorno a Deus e de retomada de sua memória, visto ter sido o esquecimento do Criador um dos frutos do pecado e da transgressão. Ainda no âmbito da história humana, o segundo episódio escolhido pelo bracarense para dar fundamento à sua narração é o dilúvio e a salvação de Noé. Neste ponto, alguns aspectos para a construção da história humana devem ser considerados. A ira de Deus é um primeiro elemento. Deus, irado com os homens que dele estão esquecidos e que por isso praticam muitos crimes, envia um dilúvio que faz perecer todo o gênero humano descendente de Adão e Eva. Nesta passagem fica explicitada a concepção de Martinho de Braga acerca da transmissão do pecado a todos os homens que provém de Adão e Eva 79 : O primeiro homem chamou-se Adão e a sua mulher, que Deus criou da carne do próprio homem, chamou-se Eva. Destes dois seres humanos descendem todos os homens. Estes, esquecidos de Deus, seu 77 “Depois se deu conta de que o homem, criado da poeira por Deus, estava a ocupar o lugar de beatitude que ele próprio perdera; foi instigado pela inveja e atacou o homem com a mesma arma da soberba pela qual foi derrubado. Com efeito, dissera para si próprio: Serei como o Altíssimo; disse a Adão e Eva: Sereis como deuses”. Ibid., p. 75. 78 Segundo Marc Bloch: “diferentemente dos outros tipos de cultura, ela (nossa civilização ocidental) sempre esperou muito de sua memória. [Tudo a leva a isso: tanto a herança cristã como a herança antiga. Os gregos e os latinos, nossos primeiros mestres, eram povos historiógrafos. O cristianismo é uma religião de historiador. Outros sistemas religiosos fundaram suas crenças e seus ritos sobre uma mitologia praticamente exterior ao tempo humano; como Livros sagrados, os cristãos têm livros de história, e suas liturgias comemoram, com os episódios da vida terrestre de um Deus, os faustos da Igreja e dos santos. Histórico, o cristianismo o é ainda de outra maneira, talvez mais profunda: colocado entre a Queda e o Juízo, o destino da humanidade afigura-se, a seus olhos, uma longa aventura, da qual cada vida individual, cada ‘peregrinação’ particular, apresenta, por sua vez, o reflexo; é nessa duração, portanto dentro da história, que se desenrola, eixo central de toda meditação cristã, o grande drama do Pecado e da Redenção”. BLOCH, M., op cit, p. 42. Manteve-se na citação os colchetes e enxertos em conformidade com o texto original. 79 A consideração de que o pecado havia sido transmitido de Adão a seus descendentes é um dos aspectos que diferenciava o cristianismo do pelagianismo, combatido por Agostinho e Paulo Orósio.
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