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PINHEIRO, Rossana. Edificação da memória nos escritos de Martinho de Braga

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ROSSANA ALVES BAPTISTA PINHEIRO 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
EDIFICAÇÃO DA MEMÓRIA NOS ESCRITOS DE MARTINHO DE 
BRAGA: CAMINHOS DA EXPANSÃO DO CRISTIANISMO NA 
GALLAECIA DO SÉCULO VI 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
UNESP 
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA 
 
 
 
 
 
 
 
 
EDIFICAÇÃO DA MEMÓRIA NOS ESCRITOS DE MARTINHO DE 
BRAGA: CAMINHOS DA EXPANSÃO DO CRISTIANISMO NA 
GALLAECIA DO SÉCULO VI 
 
 
 
 
 
Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade 
de História, Direito e Serviço Social Júlio de 
Mesquita Filho para obtenção do título de mestre 
em história. (Área de concentração: História e 
Cultura Social) 
 
Orientadora: Profa. Dra. Néri de Barros Almeida 
 
 
 
 
 
 
FRANCA 
2004 
 
 
 
ROSSANA ALVES BAPTISTA PINHEIRO 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
EDIFICAÇÃO DA MEMÓRIA NOS ESCRITOS DE MARTINHO DE 
BRAGA: CAMINHOS DA EXPANSÃO DO CRISTIANISMO NA 
GALLAECIA DO SÉCULO VI 
 
 
Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de 
História, Direito e Serviço Social Júlio de Mesquita 
Filho para obtenção do título de mestre em história. 
(Área de concentração: História e Cultura Social) 
 
Orientadora: Profa. Dra. Néri de Barros Almeida 
 
 
Aprovada por: 
Banca Examinadora: 
 
Prof. Dr. Marcelo Cândido da Silva (USP) 
Profa. Dra. Márcia Regina Naxara (UNESP/Franca) 
Profa. Dra. Néri de Barros Almeida (UNICAMP) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Se Vos encontro sem a memória, estou esquecido de 
Vós. E como Vos hei de lá encontrar se me não lembro 
de Vós? 
 
Agostinho, Confissões 
 
 
 
Para liquidar os povos, começa-se por lhes tirar a 
memória. Destroem-se seus livros, sua cultura, sua 
história. E uma outra pessoa lhes escreve outros 
livros, lhes dá uma nova cultura e lhes inventa uma 
outra História. Em seguida, o povo começa 
lentamente a esquecer o que é e o que era. 
 
Milan Kundera, História do riso e do esquecimento 
Agradecimentos 
 
Nestes dois anos de mestrado, contei com a ajuda inestimável de diversas pessoas 
e instituições sem as quais o presente trabalho teria sido realizado mais dificilmente. Apesar 
de se tratar de uma lista considerável, não seria possível deixar de mencionar nenhuma delas 
pelo fato de terem contribuído diretamente para o desenvolvimento da dissertação que agora 
se apresenta. 
Primeiramente, gostaria de agradecer aos meus pais, Maria de Fátima Alves 
Baptista e Inocêncio Agostinho Teixeira Baptista Pinheiro pelo incentivo constante não só 
durante todo o período do mestrado mas desde há muito tempo. Sempre amáveis, amigos e 
dedicados, nunca hesitaram em fornecer assistência financeira, intelectual, emocional e 
existencial. Gostaria de agradecer à CAPES pela bolsa recebida durante dois meses e à 
Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pelo amparo material de 
outubro de 2002 até o presente momento, sem o qual a compra de livros, a participação em 
congressos e o provimento pessoal, sem dúvida alguma, teriam sido limitadores e prejudiciais 
ao desenvolvimento do trabalho. 
Contei ainda com o apoio pessoal e intelectual de diversas pessoas sempre 
dispostas a ajudar e a estabelecer um constante intercâmbio de materiais e idéias. Dentre elas, 
um agradecimento especial à Profa. Dra. Eliana Magnani Soares-Christen (CNRS/Auxerre). 
Com o curso Igreja e sociedade no Ocidente medieval, ministrado por ela na Universidade 
Estadual Paulista, campus de Franca, pude entrar em contato direto com diferentes materiais e 
métodos para o estudo da Idade Média. À Profa. Dra. Leila Rodrigues da Silva (UFRJ/Rio de 
Janeiro) pela colaboração desde à elaboração do primeiro projeto de pesquisa com sugestões 
valiosas e instigantes que propiciaram novas reflexões sobre os pressupostos e hipóteses da 
dissertação, bem como incentivaram novas interpretações do documento analisado. Agradeço 
ao Prof. Dr. Moacyr Novaes (USP/São Paulo) pela compreensão do problema da memória nos 
escritos de autores da Antigüidade Tardia, principalmente na obra de Agostinho, autor de 
extrema importância para a composição da cultura cristã ocidental. Às Profas. Dras. Susani 
França (UNESP/Franca) e Margarida Maria de Carvalho (UNESP/Franca) pelas sugestões e 
apontamentos no exame de qualificação. 
À Profa. Dra. Ana Paula Megiani Torres (USP/São Paulo) agradeço a indicação do 
auxílio dado pela Cátedra Jaime Cortesão com a finalidade de realizar pesquisas em terras 
lusitanas, oportunidade única para o aprofundamento das problemáticas suscitadas pelo objeto 
estudado. Da mesma forma, agradeço à Profa. Dra. Vera Lúcia Amaral Ferlini (USP/São 
Paulo), diretora da Cátedra Jaime Cortesão e ao Instituto Camões, que me agraciaram com tal 
auxílio. À Profa. Dra. Maria de Lourdes Sirgado Ganho (Universidade Católica 
Portuguesa/Lisboa) agradeço a gentil acolhida em Lisboa e os melhores momentos e as mais 
belas paisagens durante a estadia naquela cidade. Ao Prof. Dr. Luís Adão da Fonseca 
(Universidade do Porto) pela recepção no Porto. Ao Prof. Dr. Nuno Monteiro (Instituto de 
Ciências Sociais da Universidade de Lisboa) pelo acesso ao computador, sem o qual a 
dissertação não teria sido concluída a tempo. À Maria do Carmo (UFMG/Belo Horizonte) que 
tornou este contato possível, bem como a estadia em Lisboa mais agradável. Ao Prof. Dr. José 
Marques (Universidade do Porto) que disponibilizou duas horas de seu tempo para discutir o 
trabalho, com indicação de bibliografias e formas de abordagens que o deixassem mais 
interessante e ilustrativo. Às secretárias da biblioteca da Faculdade de Filosofia de Braga, 
Sandra e Conceição, que não mediram esforços e exceções para que eu tivesse acesso a todos 
os livros e revistas dos quais necessitava. Ao Sr. Augusto da Livraria Nova Diário do Minho 
por ter me presenteado com uma versão rara e esgotada da Vida de S. Frutuoso em português, 
com o simples intuito de incentivar o prosseguimento da pesquisa sobre a cristianização da 
Gallaecia. Devo muito ainda ao Prof. Dr. João Lupi (UFSC/Florianópolis), bracarense 
querido e amigo que foi um constante incentivador da pesquisa, ajudando ilimitadamente em 
todos os momentos que a ele recorri. 
Como não poderia deixar de ser, agradeço aos amigos do Grupo Memória e 
Parentesco na Idade Média da Universidade Estadual Paulista, Franca, que sempre estiveram 
interessados em ouvir e falar, com os quais compartilhei problemáticas, bibliografias, 
angústias e momentos de deleite pelas descobertas e idéias concernentes aos nossos trabalhos. 
A vocês, André Luís Pereira, Cláudia Regina Bovo, Iara D´Assunção e João Gomes da Silva 
Filho, meus sinceros agradecimentos pela generosidade e amizade. 
Gostaria ainda de agradecer à Profa. Dra. Néri de Barros Almeida que, ao aceitar a 
orientação deste trabalho, ofereceu a oportunidade de aproximação com o fascinante universo 
medieval e de o conhecer a partir da realização de um trabalho sério, ainda que feito muitas 
vezes na instabilidade. A ela agradeço a possibilidade de trabalhar livremente, desfrutando 
igualmente das inseguranças proporcionadas pela investigação histórica e da maravilha da 
descoberta e do conhecer. Seu entusiasmo, sua disponibilidade, sua competência e seu 
trabalho sempre constantes fizeram com que nossa passagem pelo mestrado em história 
medieval não se configurasse em um simples desenvolver de pesquisas singulares e isoladas, 
mas sim em uma rede extensa de contatos e investigaçõescom outros pesquisadores da área, 
que enriqueceu e fortaleceu nossa formação intelectual e profissional. Sua generosidade unida 
à sua rigidez e exigência no trato com as fontes e com a bibliografia tiveram sobre mim uma 
importância sempre crescente nestes seis anos de trabalho. E se os agradecimentos acima 
envolvem uma série de pessoas e instituições que contribuíram com o trabalho, muito do que 
aí está é fruto do empenho e do desprendimento com os quais a Profa. Dra. Néri de Barros 
Almeida sempre tratou todos os membros do grupo. Obrigada por tudo. 
Finalmente, gostaria de agradecer ao querido Rodrigo Chagas Brasil, sempre tão 
presente e amigo. Sua importância não é possível medir em palavras e por isso “entristeço-me 
de que minha língua não baste ao meu coração”. 
Resumo 
 
 
Palavras-chave: memória, esquecimento, superstição, cristianização, reino suevo, Martinho 
de Braga, De correctione rusticorum. 
 
A dissertação de mestrado intitulada Edificação da memória nos escritos de 
Martinho de Braga: caminhos da expansão do cristianismo na Gallaecia no século VI tem 
como objeto central o processo de cristianização pelo qual passou o reino suevo com a 
chegada de Martinho de Braga na região em 550. Para o desenvolvimento do trabalho, 
utilizou-se como fonte o sermão De correctione rusticorum escrito pelo bispo em cerca de 
579 a propósito do II Concílio de Braga de 572, presidido pelo bracarense. Tendo em vista as 
superstições aí enunciadas e condenadas, dividiu-se a pesquisa em três eixos centrais de 
análise. Primeiramente, tem-se a explanação das superstições relativas à apreensão e ao 
conhecimento do tempo, de que são exemplos os augúrios e as adivinhações, a nomeação dos 
dias da semana e as festividades. A elas, o bispo opõe outras formas vistas como mais 
eficazes e verdadeiras e estão inseridas em uma perspectiva cristã sobre o tempo, a começar 
pelo sentido dado à história humana. Em segundo lugar, a condenação de formas tradicionais 
de comemoração aos mortos, assinaladas na realização de banquetes fúnebres, cantos e danças 
em honra dos mortos, bem como em formas de enterramento pouco aconselháveis. Estas 
práticas são explicitadas a partir de uma nova concepção sobre a morte, que tem na 
ressurreição de Cristo e a de todos os corpos no momento do Juízo Final o seu ponto de apoio. 
É tendo em vista que haverá uma ressurreição para todos, momento no qual os maus serão 
separados dos bons, que o culto prestado aos mortos é considerado secundário na ajuda dada à 
salvação do morto. E por fim, o rito batismal, elemento essencial para a configuração de uma 
comunidade cristã, que deveria ser conduzida por bispos bem instruídos nos ensinamentos de 
Cristo. Estes eram considerados os guardiães da palavra de Deus e responsáveis por trazer a 
tona a memória do Criador e dos preceitos cristãos àqueles homens deles esquecidos porque 
ainda imersos no pecado praticado por Adão e Eva. É pela análise do sermão em conjunto 
com outros escritos de Martinho de Braga que se pode compreender seu empenho pastoral e 
os mecanismos dos quais se valeu a fim de promover a recondução do reino suevo ao 
catolicismo. Reino este cujos dirigentes eram até então arianos e cuja existência no Noroeste 
da Península Ibérica estava constantemente ameaçada por seus vizinhos visigodos e por 
disputas internas pelo poder. 
 
 
Abstract 
 
Key words: memory, forgetfulness, superstition, conversion to Christianity, suevo kingdom, 
Martinho de Braga, De correctione rusticorum. 
 
The Master’s dissertation entitled The Construction of memory in Martinho de Braga’s 
writing: ways in the expansion of Christianity in VI century Gallecia has as its main objective 
the process of conversion to Christianity which the suevo´s kingdom went through with 
Martinho de Braga’s arrival in that region in 550. For the development of the present work, 
the De correctione rusticorum sermon was used, a document written by the bishop around 
579. Its contents touch the 572 second Concilio de Braga which was chaired by the bishop of 
Braga. Taking into consideration the superstitions which were discussed and condemned in 
this document, the research was divided into three central axes of analysis. Firstly, an 
explanation of these superstitions as they relate to the apprehension and knowledge of time, of 
which the auguries and divinations, the nomenclature of the weekdays and festivities function 
as examples. To these, the bishop opposes others ways that he sees as more efficient and 
truthful, which are inserted in a Christian perspective concerning time, having as its starting 
point the sense given to human history. Secondly, the condemnation of traditional forms of 
death celebration signified by funeral banquets, chants and dances to honour the dead, as well 
as types of burial which are less advisable. These practices are tackled by a new conception of 
death, having Christ’s resurrection and that of all bodies in the Final Judgement day as its 
fundamental argument. Bearing in mind that there will be resurrection for all, moment in 
which the good will be separated from the evil and that the cult to the dead is considered 
secondary in the aid given to the salvation of the dead. Finally, the baptistic rite, the essential 
element in the configuration of a Christian community, which should be conducted by bishops 
who have been well instructed in God’s teachings. These were considered guardians of God’s 
words and responsible for bringing up the Creator’s memory. They were also in charge of the 
Christian precepts to the men who had forgotten them because they were still immersed in 
Adam and Eve’s sin. Through the sermon analysis in conjunction with other of Martinho de 
Braga’s writings, it is possible to comprehend his pastoral determination and the means which 
he used in order to promote the reconnection of the suevo kingdom to Catholicism. Until then 
the leaders of this kingdom had been Aryans, and its existence in the Northeast of the Iberian 
Peninsula was constantly threatened by its Visigoth neighbours and by internal power 
disputes. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Sumário 
 
 
 
 
 
 
Introdução 14 
 
Primeiro Capítulo: 
O tempo cristianizado: das Calendas de Janeiro ao Domingo 27 
 
Segundo Capítulo: 
Cristianização da memória: entre a comemoração dos mortos e uma nova perspectiva 
sobre a morte 51 
 
Terceiro Capítulo: 
Batismo: de portas abertas à salvação 78 
 
Considerações Finais 
Do pecado à salvação, do esquecimento à memória: caminhos da expansão do 
cristianismo na Gallaecia do século VI 108 
 
Referências Bibliográficas 114 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Introdução 
 
Situado entre Douro e Minho, o reino suevo teve um breve período de existência 
na Península Ibérica. Povos de origem germânica, oriundos da Panônia
1
, os suevos chegaram 
à região peninsular em 409 juntamente com alanos e vândalos. Com a partilha do território em 
411
2
, coube a eles a região da Gallaecia, sendo Braga a capital do reino por todo o período 
em que estiveram no Noroeste Peninsular
3
. Todavia, os historiadores não são unânimes na 
determinação da configuração geográfica do reino pelo fato da história dos suevos na 
Península Ibérica ser composta por avanços e retrocessos quanto à conquista e perda de 
territórios em um conflito constante com vândalos e depois com visigodos. Outro fator 
ilustrativo da dúvida sobre a posição do reino é percebido com a discussão levada a cabo 
pelos historiadores Jorge López Quiroga e Mônica RodríguezLovelle com José Leite de 
Vasconcelos tendo por base a leitura do Chronicon de Idácio de Chaves
4
, uma das fontes 
possíveis para o estudo dos suevos desde o período de sua instalação até 469
5
. A partir da 
análise do Chronicon, José Leite de Vasconcelos chegara à conclusão de que o reino suevo 
fazia fronteira com o vândalo no sentido Leste/Oeste e não Norte/Sul como até então havia 
sido considerado. Jorge López Quiroga e Mônica Rodríguez Lovelle rebatem seus argumentos 
e retomam a divisão Norte/Sul entre os reinos. Com ela, os suevos estariam estabelecidos 
 
1
 Armando Soares Vilaça determina a partir da análise do De moribus Germanorum de Tácito que na Panônia os 
suevos dominavam os territórios que iam do Báltico ao Danúbio e do Elba ao Vístula, isto é, situavam-se, 
juntamente com outros povos, em uma vasta área do centro da Germânia. In: VILAÇA, A. O reino dos suevos 
perante alguns estudos recentes. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1955, p. 05. (Tese de 
licenciatura). 
2
 Ibid. e LOPES QUIROGA, J; RODRÍGUEZ LOVELLE, M. De los romanos a los bárbaros: la instalación de 
los suevos y sus consecuencias sobre la organización territorial en el Norte de Portugal (411-469). In: Studi 
Medievali, Fase II, 1971, p. 531. 
3
 Os suevos ficam no Noroeste Peninsular de 411 até 585 quando são incorporados ao reino visigodo. 
4
 Diz Idácio de Chaves a respeito da divisão da Península Ibérica entre os germanos: “Ano 411. Os vândalos 
ocupam a Galécia; os Suevos (a região) situada no extremo ocidental do mar Oceano; os Alanos (ocupam) as 
províncias da Lusitânia e da Cartaginense; aos Vândalos, denominados Silingos, cabe-lhes em sorte a Bética”. 
IDÁCIO DE CHAVES. Crônica. Trad. José Cardoso. Braga: Universidade do Minho, 1982, p. 13. 
5
 LOPES QUIROGA, J; RODRÍGUEZ LOVELLE, M., op cit. 
entre Douro e Minho na região da Gallaecia
6
, tendo ao Norte os vândalos, situados acima do 
Rio Lima, e ao Leste
7
 a comunidade à qual pertencia Idácio, que se contrapunha ferozmente a 
qualquer tipo de submissão aos germanos para não perderem sua autonomia e principalmente 
seu sentido de romanidade
8
. 
Igualmente instável é a história religiosa dos suevos
9
, pois na Península Ibérica 
experimentaram o cristianismo e o arianismo. Em cerca de 448 são os primeiros povos 
germânicos a terem um rei católico
10
. Requiário, filho de Réquila, é convertido pelas mãos do 
bispo Balcônio de Braga antes mesmo de seu pai morrer e de assumir o reino
11
. Idácio de 
Chaves sublinha esta conversão, mas nem este fator faz com que o autor se posicione de modo 
favorável em relação aos suevos. Requiário, apesar de cristão, é visto pelo bispo de Chaves 
como um rei ambioso, cuja política está voltada para a expansão territorial do reino suevo e 
para a ampliação de seus poderes na Península Ibérica
12
. É tendo em vista esse propósito que 
Requiário chega à Bética
13
 e estabelece uma série de alianças com visigodos e romanos. 
Idácio demonstra o quanto o rei suevo não mantinha sua palavra e descumpria freqüentemente 
os acordos firmados, prosseguindo assim com sua política expansionista. Após a morte de 
 
6
 Os autores dizem que Idácio de Chaves utiliza o termo Gallaecia em um duplo sentido. A Gallaecia divisão 
distrital romana que compreendia o Norte da Península Ibérica abrangendo as regiões de entre Douro e Minho, 
Trás os Montes e Galícia espanhola e a Gallaecia circunscrita aos domínios do distrito de Braga. Ibid., p. 533. 
7
 Região de Trás-os-Montes e Ourense. 
8
 A postura de Idácio frente aos suevos e aos visigodos é peculiar. O bispo de Chaves constantemente alude ao 
vandalismo e à barbárie dos suevos, enquanto os visigodos são muitas vezes encarados como sendo os herdeiros 
de Roma. Todavia, a postura do autor frente aos visigodos também se modifica no decorrer da obra: “Pouco 
depois de sua partida da Galécia, os suevos – como sempre falazes e perjuros no que diz respeito às suas 
promessas e à sua palavra – arrasam, como é habitual, diversas regiões da infortunada Galécia”. In: IDÁCIO DE 
CHAVES, op cit, p. 43. 
9
 VILAÇA, op cit; NASCIMENTO, A. Instrução pastoral sobre superstições populares. Lisboa: Cosmos, 1997; 
MATTOSO, J. História de Portugal: antes de Portugal. Lisboa: Estampa, 1997. 
10
 PINTO, Sérgio da Silva. Requiário de Braga: o primeiro rei católico do orbe latino. Bracara Augusta, 5, 1954, 
p. 44-60. 
11
 “Ano de 448. Réquila, rei dos suevos morre como pagão em Mérida, no mês de Agosto. (Logo) após sucede-
lhe no (governo do) reino seu filho Requiário – católico”. IDACIO DE CHAVES, op cit, p. 28. 
12
 “Ano de 448. (Processa-se essa sucessão) [a de Requiário] sem dúvida, a despeito da oposição de alguns dos 
membros da sua família, ainda que seja latente. Todavia, logo que tomou nas mãos as rédeas do reino, investe 
sem demora contra as regiões ulteriores no intuito de fazer pilhagens. Ano de 449. Requiário desposa a filha do 
rei Teodorico. Inaugurou auspiciosamente o seu reinado com o massacre do país basco”. Ibid, p. 29. 
13
 A Bética compreendia a região sul da Espanha, atual Andaluzia. Requiário chega até Mérida. 
Requiário, o rei Remismundo torna-se ariano por obra do bispo Ajax do reino visigodo
14
. Esta 
conversão é interpretada por José Mattoso como uma demonstração da influência dos 
visigodos sobre os suevos durante esse período
15
. 
Com a conclusão da crônica de Idácio e a morte do cronista, o reino suevo cai na 
obscuridade pela escassez de testemunhos escritos produzidos na região. Novas notícias 
voltam a surgir em meados do século VI, quando chega à Gallaecia um monge chamado 
Martinho, que desembarca no porto de Portucale em 550 e passa a desempenhar um 
importante papel, quer na estruturação da Igreja, quer em sua relação com a monarquia sueva 
que resulta na recondução do reino ao catolicismo. As razões de sua ida para a Gallaecia, bem 
como os dados de sua biografia, são pouco evidentes e muitas vezes chegam a conflitar entre 
si. O pouco que se sabe foi retirado da análise do epitáfio escrito pelo bispo de Braga em 
conjunto com escritos de Gregório de Tours, Venâncio Fortunato, Isidoro de Sevilha e o 
Breviário Bracarense do Cônego Soeiro
16
. A partir da leitura destas fontes, formaram-se duas 
correntes. Até a década de cinqüenta do século XX, considerava-se que o bispo havia nascido 
na Panônia
17
 e que recebera formação oriental quando de sua visita à Terra Santa. Seria então 
desde terras orientais que Martinho de Braga partira rumo à Gallaecia com uma breve estadia 
na Gália. 
 
14
 “Ájax, gálata de nação, tendo-se tornado apóstata, apesar de já demasiado velho, abraça o arianismo. Entre os 
Suevos, com o auxílio do seu rei, apresenta-se como inimigo da fé católica e da trindade divina. De uma região 
gaulesa habitada pelos Godos, foi transportado este veneno pestífero do inimigo do homem”. In: IDÁCIO DE 
CHAVES, op cit, p. 45. 
15
 “Em 448 ou 449, o rei Requiário, o principal condutor destas expedições de conquista, converter-se-á ao 
Catolicismo, o que não pode deixar de significar a progressiva assimilação da cultura latina pelos Suevos. Mais 
tarde, a conversão do mesmo povo ao arianismo, devido às pregações do bispo Ajax, a partir de 466, não 
significa o contrário, pois o arianismo era uma heresia cristã, mas apenas a progressiva influência visigoda na 
Península Ibérica. Uma influência, de resto, que devia também muito à própria assimilação da cultura latina 
pelos visigodos, da qual aquela confissão religiosa era uma componente importante”. In: MATTOSO, J., op cit, 
p. 279. 
16
 Luís Ribeiro Soaresestabelece as fontes disponíveis para o estabelecimento da cronologia de Martinho: 
Historia Francorum de Gregório de Tours, escrito entre 580 e 584; Carminum libri de Venâncio Fortunato; De 
viris illustribus (escrito entre 615 e 618), Chronicon (terminado em 616) e Historia Suevorum de Isidoro de 
Sevilha; e por fim o Breviário Bracarense do Cônego Soeiro, cópia feita no século XV de original do século 
XIV. SOARES, L. A linhagem cultural de S. Martinho de Dume. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 
1997, p. 13-21. 
17
 Região da atual Hungria. 
Monique
Highlight
Esta tese foi questionada em 1963 por Luís Ribeiro Soares. Em seu doutoramento, 
o autor sugeriu que o bispo não nascera na Panônia, tampouco fora formado no monasticismo 
oriental. Ao contrário, o autor postulou a romanidade de Martinho de Braga
18
 ao dar uma 
nova interpretação ao seu Epitáfio, bem como às passagens de Gregório de Tours e de 
Venâncio Fortunato. Em seu epitáfio, temos os seguintes dizeres: 
Das Panônias oriundo, no largo mar levado 
Ao seio da Galiza por desígnios de Deus, 
Martinho, ó Confessor, digam nestes átrios teus: 
‘Bispo, o culto instaurou, mais o sagrado ritual’, 
E a ti, Patrono, eu, servo, seguindo, eu que chamado 
Martinho fui no nome, não no mérito, igual, 
Eis-me agora de Cristo em paz aqui repousado
19
. 
 
A frase que deu margem aos diferentes posicionamentos sobre a origem de Martinho é 
Pannoniius genitus. Luís Ribeiro Soares sustentou, diferentemente do que acreditavam seus 
predecessores, que com essa referência o bispo de Braga apenas indicaria que era descendente 
de panônios e não que nascera na Panônia. Assim, ao invés de Das Panônias oriundo, o 
fragmento em questão deveria ser traduzido como Descendente de panônios. Para fazer valer 
seus argumentos, o autor recorre a dois outros textos que fornecem indicações sobre a 
trajetória e a biografia do bispo. Primeiramente, a passagem da Historia Francorum de 
Gregório de Tours que faz menção à morte do Martinho, bispo dos suevos
20
. O segundo 
escrito, de Venâncio Fortunato, apresenta Martinho como: Pannoniae, ut perhibent, veniens e 
parte Quiritis. Segundo o autor, ao dizer que o bispo vinha das “bandas de Roma”21 Fortunato 
 
18
 “Martinho seria então um romano, ao menos pela formação, pela cultura; atestam assim, aclarados por esta 
nova luz, a sua bela prosa rítmica, o seu celebrado senequismo e até o seu conhecimento do grego, e como chega 
à Galécia antes de 556 é mais do que provável que tivesse conhecido, ou pelo menos ouvido falar de Bento, 
passado à gloria da santidade três ou quatro anos antes de ter largado das bandas de Roma”. SOARES, L., op cit, 
p. 257-258. 
19
 MARTINHO DE BRAGA. Obras. Braga: Bracara Augusta, 1975, p. 9. 
20
 “Por esse tempo (580, 5º ano do reinado de Childeberto) também morreu São Martinho, bispo da Galiza. 
Tendo completado, pouco mais ou menos, trinta anos nesse estado sacerdotal (bispo), cheio de virtudes, partiu 
para o Senhor”. In: SOARES, L., op cit, p. 13. 
21
 Veniens et parte Quiritis. 
fornece um indicativo preciso que comprova a vinda de Martinho de Braga para a Gallaecia 
desde terras romanas, onde recebera sua formação monástica
22
. 
Na esteira de Luís Ribeiro Soares, alguns estudiosos passaram a aceitar a 
romanidade de Martinho de Braga e entre eles Arnaldo Monteiro Espírito Santo. Em sua tese 
de doutoramento apresentada em 1993
23
, o autor investiga a recepção das obras de Cassiano
24
 
no Noroeste Peninsular durante o século VI. Embora o objeto de sua pesquisa não seja 
propriamente o bispo de Braga, a partir da análise filológica de quatro de suas obras
25
, o autor 
fornece perspectivas interessantes sobre o contexto de sua formação
26
. A primeira delas é 
retirada da análise das Sententiae Patrum Aegyptiorum, texto escrito em grego e traduzido 
para o latim por Martinho de Braga para a instrução dos monges de Dume. A conclusão do 
autor é que o bispo não poderia ter tido sua formação no monasticismo oriental na medida em 
que desconhecia personagens importantes de seu cenário e possuía um grego mediano, 
verificados na constante alteração de nomes e significados
27
. 
 
22
 “Um pannoniis genitus, no seu epitáfio – um ablativo do etinômio pannonii, pannonorium, significando os 
panônios, o povo panônio, com genitus, designando progenitura –, vagamente corroborado por Fortunato e 
Gregório de Tours, não consente mais do que afirmar que era descendente de panônios, mas nunca que era 
natural da Panônia, como sistematicamente se tem traduzido. Gregório de Tours fala-nos de uma viagem aos 
lugares santos e da sua chegada à Galécia, vindo de uma região longínqua; Isidoro de Sevilha diz que navegara 
ex orientis partibus. Toda essa vaguidão – o acidente de uma viagem, o ter vindo por mar do Oriente – parece 
concretizar-se num verso de Fortunato a que pouca ou nenhuma importância se tem dado e que, leva a crer, 
contém a chave do enigma da sua vida anterior ao período galego: veniens e parte Quiritis (vindo das bandas de 
Roma). SOARES, L., op cit, p. 257. 
23
 ESPÍRITO SANTO, A. A recepção de Cassiano e das Vitae Patrum no século VI. Lisboa: Faculdade de Letras 
da Universidade de Lisboa, 1993. (Tese de doutoramento). 
24
 Instituições e Colações. Segundo o autor, os especialistas consideram as Instituições (escritas entre 419 e 429) 
anteriores às Colações (Primeira parte escrita após 419 e editada em cerca de 426, a segunda parte teria sido 
iniciada antes de 426 e a terceira parte após 426 e antes de 429). Ibid. 
25
 As quatro obras analisadas pelo autor são: Sententiae Patrum Aegyptiorum, Pro repellenda iactantia, Item de 
superbia e Exhortatio a humilitatis. 
26
 “Não temos a pretensão de vir, com um estudo de caráter marcadamento filológico, reformular em todos os 
seus pormenores um quadro interpretativo apoiado em informações coevas do próprio Martinho. Mas não 
podemos deixar de assinalar alguns fatos novos que, por um lado, vêm abalar toda a solidez deste edifício e, por 
outro lado, postulam uma revisão de todo o conjunto da problemática martiniana, incluindo as bases 
historiográficas em que se apóia e as interpretações culturais que a partir delas se têm feito”. ESPÍRITO 
SANTO, A., op cit, p. 406. 
27
 “Mas detendo-nos um pouco mais na tradução das Sententiae, ressalta com toda a evidência que a formação 
intelectual e doutrinal de Martinho, sobretudo a sua visão do monaquismo, é a de um monge de formação 
ocidental. Martinho não apenas adapta o texto a mentalidades e a um meio físico e humano diferentes, como ele 
próprio reage aos textos que traduz com a mentalidade de um ocidental. Além disso, nem o conhecimento que 
revela da língua grega está isento de falhas, nem os grandes nomes do monaquismo oriental lhe são familiares. 
Que Alonius passe a Antonius é um indício de que Martinho confunde nomes estranhos com nomes familiares, 
A segunda inovação proposta pelo autor é que Martinho de Braga conhecera as 
obras de Cassiano e as utilizara na redação de seus opúsculos Pro repellenda iactantia, Item 
de superbia e Exhortatio humilitatis. Todavia, diferentemente do que até então havia sido 
considerado, seu contato com Cassiano ocorrera já em território galego, uma vez que o bispo 
não o utiliza quando traduziu as Sentenças. Este fator modifica a imagem de um Martinho que 
trouxera consigo desde Oriente todos os códices e textos para que fossem traduzidos no 
Mosteiro de Dume. Se esta idéia poderia resultar em uma diminuição do prestígio que o bispo 
possuiu enquanto versado nas letras latinas e gregas e promotor de um florescimento cultural 
nunca visto noNoroeste Peninsular, ela também propõe uma elevação de Braga e seus 
arredores enquanto um destacado centro de cultura escrita e latina na Gallaecia
28
. 
A última conclusão a que chega o autor a partir de sua análise filológica é ainda 
mais inovadora do que aquela proposta por Luís Ribeiro Soares em 1963. Para Arnaldo 
Espírito Santo, o bracarense não era oriundo da Panônia e nem de Roma, mas sim da Gália. 
Somente assim, algumas filiações e amizades de Martinho poderiam ser explicadas: os 
contatos com Venâncio Fortunato e Gregório de Tours, as correspondências trocadas com a 
rainha Radegundes e com as freiras do mosteiro fundado por Cesário de Arles
29
, as 
influências ocidentais em seu pensamento, como é o caso de Cassiano, Sêneca, Agostinho e o 
próprio bispo de Arles, a adesão às discussões doutrinais do sul da Gália, como por exemplo, 
a problemática em torno do livre arbítrio e da graça divina
30
 e por fim, o culto prestado a 
Martinho de Tours, por ele trazido para a Gallaecia
31
. 
 
como é o do pai do monaquismo por excelência, cuja vida e feitos tinham sido divulgados no ocidente pela 
tradução da vida que dele escreveu Santo Atanásio”. Ibid., p. 407. 
28
 “Este Martinho que, na fase em que compôs a trilogia, fez de Cassiano o seu mestre de pensar e de escrever, a 
fonte de doutrina e de meios de expressão, desconhecia Cassiano quando traduziu as Sententiae Patrum. E 
ignorava-o tão completamente, lido, que nenhuma daquelas palavras típicas consagradas pelo marselhês na 
literatura monástica ocidental lhe ocorre espontaneamente na tradução das Sententiae. A conclusão que daí se 
tira é óbvia: Martinho leu Cassiano em Braga. Ou, dito de outra forma, o encontro de Martinho com a obra de 
Cassiano deu-se em Braga”. Ibid., p. 407. 
29
 Essas correspondências estão perdidas, mas são referidas por Isidoro de Sevilha. 
30
 Arnaldo Espírito Santo diz que Cassiano foi condenado em sua doutrina como semipelagianista, em 
decorrência da sua concepção de salvação tendo em vista a graça e o livre-arbítrio. É justamente esta questão que 
Arnaldo Espírito Santo é o primeiro a ressaltar a dubiedade do testemunho de 
Gregório de Tours sobre a ida de Martinho de Braga para a Gallaecia
32
. Em De virtutibus s. 
Martini
33
 o turonense narra a conversão dos suevos ao catolicismo em decorrência da 
promessa feita pelo rei Charrarico de que seria católico se as relíquias de S. Martinho de 
Tours curassem seu filho da lepra. Segundo o autor, nesta obra Gregório de Tours ressalta que 
o bracarense estaria na Gália quando os emissários do rei suevo para lá se dirigiram com a 
finalidade de pegarem as relíquias. Tivera então notícias do arianismo dos reis suevos, o que 
despertara sua vontade de ir à Gallaecia desempenhar seu papel pastoral, e chegara ao reino 
no mesmo dia em que as relíquias de seu homônimo de Tours. Na segunda referência
34
 
aparece um Martinho de Braga já enquadrado em um esquema hagiográfico e proveniente da 
Panônia e vindo para a Gallaecia desde Oriente. Nesta passagem, o bispo de Tours reforça 
sua consistente formação intelectual e sua importante atuação no reino suevo. Se no primeiro 
texto, Gregório de Tours afirma que Martinho de Braga chegou à Gallaecia ao mesmo tempo 
que as relíquias de Martinho de Tours, se ainda soubera do arianismo dos suevos quando 
estava na Gália e então desejara ir até o reino suevo, como poderia ter partido da Terra Santa e 
chegado ao mesmo tempo que as relíquias? “É evidente que Gregório de Tours se contradiz. E 
mais evidente é, ainda, que o importante para ele não é o fato histórico, mas o aproximar entre 
si os dois Martinhos e os dois reinos, um tópico tomado de Venâncio Fortunato. Aliás, a 
acreditar em Gregório de Tours, seria extremamente difícil de explicar, na sua primeira versão 
 
Martinho de Braga deixa de fora, propositadamente, segundo o autor, nas suas obras escritas sob influência de 
Cassiano. ESPÍRITO SANTO, A., op cit. 
31
 “Quer dizer, este Martinho Panónio, ‘ut perhibent’, aparece aqui como amigo íntimo de Venâncio Fortunato, 
como conhecido de Radegunda e de Agnes, por entre referências a Arles e ao monaquismo lerinense. 
Recordemos aqui uma observação que fizemos ao longo dos capítulos 2 e 3, a saber, que Martinho apresenta 
certos indícios de ser mais conhecedor das disputas teológicas em torno da graça e do livre arbítrio, que foram 
particularmente acesas no sul da França, do que dos ambientes monásticos do oriente. Se Martinho vem de fora 
da Galícia, a Frância e não a Panônia parece ser o lugar da sua proveniência, embora os seus antepassados, como 
tribo, o seu povo, possam ser oriundos da região da Panônia”. Ibid., p. 412. 
32
 As obras de Gregório de Tours que foram entrecruzadas são De virtutibus s. Martini e Historia Francorum. 
33
 De virtutuibus s. Martini. 
34
 Historia Francorum, Libri X. 
 
dos fatos, que Martinho tivesse saído do oriente no mesmo dia em que foram levantadas as 
relíquias de Martinho de Tours e tivesse chegado ao porto da Galícia ‘simul cum ipsis 
pignoribus’”35. 
A determinação da biografia de Martinho de Braga além de ser importante em si 
mesma visa responder uma problemática que tangencia a compreensão das relações de poder 
no período. Ao atribuir ao bispo a mesma origem dos suevos e considerar que teria vindo para 
a Gallaecia partindo da Terra Santa, a imagem que se forma é a de um monge comprometido 
com o projeto de Justiniano de reunir sob o seu comando os territórios que compunham o 
Império Romano antes da fixação das populações germânicas. O fato de ser um panônio faria 
de Martinho um interlocutor privilegiado na conversão dos suevos ao catolicismo e no 
estabelecimento de alianças com Justiniano e seu projeto de restauração da porção ocidental 
do Império Romano. Por outro lado, ao dizer que Martinho de Braga vinha das “bandas de 
Roma”, o que está em jogo é a busca pelo reconhecimento de relações entre os monges e o 
papado em uma proposta de conversão das terras longínquas que se valia dos monges como 
centros irradiadores do catolicismo. Esse seria o caso, por exemplo, de Gregório Magno e do 
monge Agostinho, responsável pela conversão dos saxões um século depois
36
. 
Para além das discussões em torno da biografia e das motivações de Martinho de 
Braga, outra não menos complexa é a que apresenta os escritos do bracarense como 
vinculados a modelos previamente estabelecidos que os tornaria pouco originais e legítimos 
para o conhecimento da região da Gallaecia e dos hábitos e tradições da população nortenha. 
São obras suas: a tradução das Sententiae Patrum Aegyptiorum, a tríade Pro repellenda 
iactantia, Item de superbia e Exhortatio a humilitatis, os opúsculos Formula Vitae Honestae e 
 
35
 ESPÍRITO SANTO, A., op cit, p. 413. 
36
 “Pressente-se incontestavelmente por detrás de tudo isto uma linha de intenções que parece revelar uma 
política papal de aproveitamento do monacato no sentido do apostolado missionário e que projeta a basílica 
martiniana [Martinho de Tours] de Bento em Monte Cassino. Já foi notado por alguns historiadores que o fato de 
faltarem documentos sobre a ação missionária dos papas neste conturbado período da história da Igreja romana 
que é a primeira metade do VI século não significa a sua inércia nesse campo”. SOARES, L., op cit, p. 97. 
De Ira, os poemas In Basilica, In Refectorio e o Epitaphium, a participaçãonos Primeiro e 
Segundo Concílios de Braga, a compilação de setenta e dois cânones provenientes do Oriente 
intitulada Capitula Martini, a obra De trina mersione e o sermão De correctione rusticorum. 
Seus escritos podem ser classificados tendo em vista sua finalidade: de caráter ascético-moral 
as Sententiae e os opúsculos; de caráter canônico-litúrgico os cânones, a compilação e a obra 
sobre a tripla imersão e finalmente seus poemas
37
. Seus escritos também podem ser agrupados 
em torno da função desempenhada por Martinho no momento de sua escrita, se era monge ou 
bispo
38
. Assim, teriam sido escritos no mosteiro de Dume as Sententiae, a tríade, os opúsculos 
e as poesias. Depois de sua sagração, os cânones, o De trina mersione e o Do correctione 
rusticorum
39
. 
O sermão foi escrito em forma epistolar em torno de 579
40
 em consonância com as 
determinações do Segundo Concílio de Braga, realizado em 572, reunido com a finalidade de 
erradicar o paganismo e qualquer tipo de dubiedade litúrgica, canônica ou doutrinal na 
Gallaecia
41
. Nele, o bispo se propõe a apresentar a origem dos ídolos
42
 que enganam os 
homens ignorantes e os conduzem ao afastamento e esquecimento de Deus. Neste percurso, 
Martinho de Braga enumera uma série de práticas realizadas pelos homens em sua ignorância 
de Deus. É justamente na condenação e na descrição das práticas supersticiosas que se atribui 
ao bispo de Braga uma vinculação ao modelo de Cesário de Arles. Isso tornaria o sermão 
inadequado como fonte de conhecimento da Gallaecia do século VI. 
 
37
 SÃO MARTINHO DE DUME. Opúsculos morais. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1998, p. 13. 
38
 A cronologia proposta por Luís Ribeiro Soares é a seguinte: entre 518 e 525 nascimento; 556 sagração 
episcopal; 561 Primeiro Concílio de Braga; 572 Segundo Concílio de Braga; 579 morte. SOARES, L., op cit, p. 
15. 
39
 MACIEL, M. O De correctione rusticorum de Martinho de Dume. Bracara Augusta, XXXIV, 78 (91), 1980. 
40
 A incerteza no ano de escrita do sermão relaciona-se com o da morte do bispo. Segundo Gregório de Tours ele 
teria morrido em torno de 580 enquanto no Breviário do Cônego Soeiro aparece a data 20 de março de 579. 
41
 “E já que não há nessa província nenhum problema acerca da unidade da fé, devemos agora tratar mais 
especialmente de que se entre nós há algo repreensível, contrário à disciplina apostólica, por ignorância ou por 
negligência, acudindo aos testemunhos das Sagradas Escrituras, ou às disposições dos cânones antigos, 
corrijamos de comum acordo com um critério razoável tudo o que desagrade”. In: VIVES, J. Concílios 
visigóticos e hispano romanos. Madrid/Barcelona: CSIC-Instituto Enrique Flores, 1963, p. 79-80. 
42
 Ídolos que são, na verdade, os demônios. 
Rudi Künzel trata dessa problemática quando apresenta o debate entre Dieter 
Harmening e Jean-Claude Schmitt. Segundo o autor, foi o historiador alemão quem suscitou a 
hipótese de que depois de Cesário de Arles não teria sido escrito nada sobre as superstições 
que não se remetesse ao seu modelo: “as expressões formuladas por Cesário de Arles para 
descrever as crenças e ritos pagãos na Gália do Sul no século VI reaparecem nos estudos 
posteriores das regiões situadas mais ao norte. A explicação é simples: os sermões de Cesário 
serviram de exemplo aos pregadores posteriores” 43. 
Em contraposição a uma tese que desqualificaria as fontes pela sua vinculação a 
um modelo, Jean-Claude Schmitt
44
 defende a idéia de que a recorrência das condenações às 
práticas supersticiosas seria um forte indício da pressão exercida pela cultura folclórica sobre 
a erudita. Ao reiterar a condenação destas práticas, os autores estariam fornecendo um 
testemunho da perenidade e da resistência de práticas ainda vivas e latentes nas sociedades 
submetidas ao processo de cristianização: “notemos que todos estes textos, não só os sermões, 
dependem em menor ou maior grau de Cesário de Arles, a tal ponto que Dieter Harmening 
negou que tivessem qualquer valor documental para o estudo das verdadeiras ‘superstições’ 
depois do século VI. O meu ponto de vista é um pouco diferente: se é inegável que estes 
textos retomam incansavelmente as mesmas fórmulas, pode observar-se, em primeiro lugar, 
que existem variantes no tempo assim como no espaço. De resto, a repetição dos mesmos 
cânones durante séculos revela com evidência a pressão contínua, pelo menos até ao século 
XII, de práticas e crenças bem reais, seja qual for a fidelidade dos testemunhos 
eclesiásticos”45. 
A desqualificação não parece ser o melhor caminho para compreender os escritos 
de Martinho de Braga. A resposta para a elucidação da questão deve ser procurada em outro 
 
43
 KÜNZEL, R. Paganisme, syncrétisme et culture religieuse populaire au haut moyen age. Réflexions de 
méthode. Annales, 4-5, 1992, p. 1057. 
44
 SCHMITT, J-Cl. História das superstições. Lisboa: Europa-América, 1997. 
45
 Ibid, p. 40. 
lugar. Ao que tudo indica, a concepção cristã alto-medieval de conhecimento e escrita 
relacionava-se diretamente à noção de autoridade e, nesse caso, a retomada sistemática de 
escritos de grandes autores da Igreja garantia a legitimidade do discurso. Este parece ter sido 
o caso de Martinho de Braga quando de seus textos emana uma série de idéias e temas já 
tratados por outros autores como é o caso de Cesário de Arles para o problema das 
superstições
46
, de Agostinho quanto à cristianização do culto aos mortos
47
 e à melhor forma 
de se ministrar o batismo e instruir os catecúmenos
48
. Sendo assim, ainda que o texto se 
apresente como um emaranhado de outros lugares, que são muito mais um lugar comum 
dentro da cultura escrita medieval do que indícios da realidade sócio-cultural para a qual o 
discurso se dirige, ainda que o sermão De correctione rusticorum, assim como as demais 
obras do bracarense, fosse a reprodução de um modelo, a seleção, a tessitura e a utilização dos 
argumentos são de Martinho de Braga a fim de atender a determinados interesses. Tanto o 
discurso atende a um público, a um objetivo e a uma finalidade, quanto à própria 
argumentação é produto de um contexto religioso, político e social específico. 
Essa é a conclusão referendada por Arnaldo Espírito Santo quando estabelece a 
relação entre os opúsculos de Martinho e a obra de Cassiano. É quando busca as influências 
de Cassiano nos escritos do bispo que o autor atinge a originalidade de sua escrita: “fica claro 
que de um modo geral Martinho altera o texto propositadamente, tendo a sua funcionalidade 
como motivação principal. […] Em suma, há uma camada do texto, a que poderíamos chamar 
camada informativa, como é o caso da atribuição dos apotegmas, em que a mais ligeira 
alteração pode ser significativa. Pelo contrário, na camada estilística, na disposição dos vários 
elementos narrativos, na passagem do discurso direto ao indireto e vice-versa, qualquer 
divergência em relação ao original significa quase sempre que Martinho usou o texto à sua 
 
46
 Questão tratada pelo primeiro capítulo dessa dissertação. 
47
 Discussão apresentada no segundo capítulo da presente dissertação. 
48
 Tema do terceiro capítulo dessa dissertação. 
 
maneira, alterando-o e recortando-o como bem entendeu. De uma coisa podemos estar certos, 
é que Martinho apenas pretendeu, com as suas intervenções, tornar a sua tradução clara, 
funcional e adaptada aos seus destinatários”49. Da mesma opinião é Miranda Barbosa quanto à 
relação de Martinho de Braga com Sêneca: “[a obra de Martinho não é um] trabalho original,mas compilação e ordenação de pensamento alheio […] [Ele] Não fez uma simples cópia, mas 
uma antologia, ordenada com certo critério e obedecendo a certos princípios”50. 
O presente trabalho propôs-se a estudar o sermão De correctione rusticorum como 
fonte privilegiada para compreender o processo de cristianização pelo qual passou o reino 
suevo durante o século VI, tendo em vista a edificação de uma memória cristã em 
contraposição às superstições. Com ele não se tem em mente fornecer conclusões definitivas, 
o que se pretende é antes sugerir caminhos que possibitem a compreensão da cristianização do 
reino suevo, que fez da região entre Douro e Minho a mais católica de Portugal. Limitou-se, 
aqui, à contribuição dada por Martinho de Braga, constantemente relembrado e exaltado como 
o Apóstolo dos suevos e personagem principal na conversão do reino a partir das alianças que 
estabeleceu com a monarquia e pela estruturação e fortalecimento da Igreja na região. O De 
correctione rusticorum foi analisado a partir do seu entrecruzamento com outros escritos do 
bispo
51
 que permitissem a reflexão sobre a problemática aqui suscitada. As atas do Primeiro e 
Segundo Concílio de Braga também compõem o corpus documental, bem como os Capitula 
Martini. Outros autores importantes para a construção da doutrina cristã no período também 
foram pesquisados, em especial o bispo de Hipona, na medida em que suas obras esclarecem, 
se aproximam ou se distanciam do texto do bracarense. 
Percorrendo os caminhos da expansão do cristianismo na Gallaecia do século VI a 
partir dos escritos de Martinho de Braga, o primeiro capítulo discute as práticas supersticiosas 
 
49
 SANTO, A., op cit, p. 58 e 63. 
50
 BARBOSA, A., op cit, p. 263-264. 
51
 Não constam do corpus documental as Sententiae Patrum Aegyptorum, o opúsculo De Ira e Formula Vitae 
Honestae e os poemas In Basílica e In Refectorio. 
relacionadas a uma nova proposta de apreensão do tempo, quer histórico, quer cotidianamente 
vivido, a partir da condenação às adivinhações, aos augúrios, da sobreposição de festividades, 
ao apelo pela modificação na nomenclatura dos dias da semana e por fim, de um novo sentido 
dado à história humana. O segundo capítulo aborda a problemática do culto aos mortos tendo 
em vista a nova formulação da Igreja sobre a morte e o homem. O culto tradicional aos 
mortos é avaliado com vistas à ressurreição de Cristo e a de todos os corpos no momento do 
Juízo Final. E por fim, no terceiro capítulo faz-se referência ao batismo e aos batizados, dada 
a importância deste rito para a expansão e consolidação do cristianismo. Ele é bem enfatizado 
no De correctione rusticorum, pois este sermão é dedicado aos batizados e nele o bispo 
chama constantemente sua atenção para o compromisso realizado com Deus no ato do 
batismo que os obrigaria a se afastar das práticas supersticiosas pela escolha feita por Deus. 
Monique
Highlight
Capítulo I 
O tempo cristianizado: das Calendas de janeiro ao Domingo 
 
 
Caríssimos filhos, do que vos fizemos muito simplesmente 
um resumo, é preciso que vos lembreis, a partir de agora, 
daquelas coisas que vos dissemos e que, fazendo o bem, 
podeis esperar o futuro descanso no reino de Deus ou 
então (Oxalá não aconteça) agindo mal podeis esperar o 
fogo eterno no Inferno
52
. 
 
Em sua obra História das superstições
53
, Jean-Claude Schmitt diz que o termo 
superstição era utilizado pelos autores cristãos da Antigüidade Tardia para designar 
determinados comportamentos repreensíveis situados na esfera da religiosidade. Os autores da 
Patrística foram os primeiros cristãos a dele se utilizarem e herdaram dos latinos seu caráter 
pejorativo, pois por superstição compreendiam uma oposição ilícita e pervertida à religião 
oficial. Para Lactâncio, por exemplo, religio era derivado de re-ligare, pois apontava para 
uma ligação pessoal que obrigava (ob-liga) o cristão perante Deus, enquanto superstitio era a 
veneração dos mortos, a qual foram associadas as demais formas de paganismo que a Igreja 
desejava eliminar. A superstição passa a se contrapor à religião e a formar com o paganismo 
uma associação necessária. Com Agostinho, tem-se a junção definitiva da tríade superstição, 
paganismo e culto aos demônios. O supersticioso é aquele que voltado para as práticas do 
paganismo se obriga não com Deus, mas com os demônios
54
. A partir de então, superstição 
ganha um duplo significado: é simultaneamente resquício do paganismo no seio da sociedade 
de cristãos e domínio do diabólico sobre o mundo e sobre os homens. Da formulação do 
conceito passou-se à condenação. Os bispos reunidos em concílios começaram a denunciar as 
diversas práticas consideradas supersticiosas em sua luta diária contra a idolatria, o paganismo 
e a heresia. Esta condenação inseria-se em uma nova perspectiva trazida pelo processo de 
 
52
 SÃO MARTINHO DE DUME, op cit, p. 105. 
53
 SCHMITT, J-Cl., op cit. 
54
 Ibid., p. 18-26. 
cristianização que tinha no discurso cristão a pretensão da verdade, da universalidade e da 
inclusão de todos, inclusive daqueles situados até então à margem da dinâmica de 
romanização
55. Nesse sentido a “denúncia do que os clérigos chamavam ‘superstições’ e 
definiam simultaneamente como sobrevivências do paganismo e adoração dos demônios 
inscrevia-se para eles num programa muito mais vasto de reforma religiosa e moral; a sua 
vontade de impor uma ordem social era inseparável da preocupação propriamente pastoral de 
salvar as almas”56. 
O autor classifica as práticas supersticiosas em três eixos centrais. Em primeiro 
lugar, as que visavam o domínio dos espaços sagrados, sobretudo aquele do culto aos mortos; 
em seguida, eram supersticiosas as práticas relacionadas ao problema da fertilidade e da 
fecundidade dos homens, dos animais e das terras, constituindo-se na prática de feitiçaria, na 
produção de amuletos e no curandeirismo; e por fim, aquelas relativas à tentativa de 
apreensão e conhecimento do tempo de que são exemplos as adivinhações, os augúrios e a 
determinação do calendário. Esta última questão, a do tempo, de certa forma, abarcava os dois 
problemas anteriormente citados na medida em que ter controle sobre o tempo propiciava a 
reprodução da terra, dos animais e dos homens, o que permitia que a vida social, composta 
por vivos e mortos, tivesse continuidade. 
Com relação, especificamente, às superstições relacionadas ao tempo, tema central 
deste primeiro capítulo, o autor diz que a Igreja procurou cristianizar todas as suas esferas, 
proporcionando uma nova forma de classificação que se voltava, sobretudo, para o tempo 
histórico e escatológico direcionado à salvação, e para o tempo vivido cotidianamente pautado 
 
55
 Segundo Arnaldo Momigliano: “enquanto a organização política do Império se fazia cada vez mais rígida, 
inimaginativa e insatisfatória, a Igreja era móvel e ágil e oferecia espaço para aqueles aos quais o Estado era 
incapaz de absorver. Os bispos eram os centros de grandes organizações voluntárias. Fundavam e controlavam 
instituições de caridade. Defendiam seu rebanho contra os funcionários do Estado”. In: MOMIGLIANO, A. El 
cristianismo y la decadência Del Imperio Romano. Id (org). El conflicto entre el paganismo y el cristianismo en 
el siglo IV. Madrid: Alianza, 1989, p. 25. 
56
 SCHMITT, J-Cl., op cit, p. 42. 
 
 
nos movimentos, ciclos e retornos das estações e dos astros
57: “as civilizações que tinham 
precedido o cristianismo prestavam igualmente, mas a sua maneira, grande atenção ao tempo 
e à suamedida; também lhe atribuíam valores que a Igreja não podia admitir e a que 
chamavam a ‘superstição’ da ‘observação’ do tempo”58. Nesse campo, o que os bispos e 
membros do clero fizeram foi condenar e oferecer uma proposta de vivência e interpretação 
do tempo, histórico e cotidiano, tendo por base as Escrituras e demais obras consagradas, em 
que tudo no tempo ganha um significado em Deus, Criador de todas as coisas viventes e 
existentes no mundo
59
. 
No sermão De correctione rusticorum de Martinho de Braga o termo superstição é 
utilizado ora em relação com o diabólico, ora com o paganismo. Este emprego pode ser 
verificado na seguinte passagem da obra: 
Recebi a carta da tua Santa Caridade, na qual me solicitas que 
escreva sobre a instrução dos rústicos que, apegados ainda às antigas 
superstições dos pagãos, prestam culto de veneração mais aos 
demônios que a Deus
60
. 
 
Primeiramente, diz o bispo que a instrução deve ser feita aos rústicos
61
 que ainda estão 
apegados às antigas superstições dos pagãos. Depois, Martinho associa superstição à 
demonologia quando reafirma a idéia de que esses rústicos prestam culto mais aos demônios 
do que a Deus. Falso objeto de afeição, os demônios reapareceram no decorrer da narrativa e 
serão os responsáveis diretos pela existência de todas as práticas supersticiosas relacionadas 
pelo bispo. 
 
57
 Ao tempo cíclico constituído pela movimentação dos astros e das estações a Igreja teria sugerido ou 
sobreposto um tempo igualmente cíclico expresso pela liturgia, cuja característica principal era o recordar a 
passagem de Cristo sobre a Terra. 
58
 SCHMITT, J-Cl, op cit, p. 73. 
59
 Da mesma opinião é Jacques Le Goff, para quem: “A grande novidade do tempo cristão é afirmar, em 
combinação com o retorno do tempo litúrgico anual, o da História, o tempo histórico criado por Deus”. In: LE 
GOFF, J; SCHMITT, J-Cl. Tempo. Dicionário Temático do Ocidente medieval. Bauru: Edusc; São Paulo: 
Imprensa oficial do Estado, 2002, p. 534. 
60
 SÃO MARTINHO DE DUME, op cit, p. 93. 
61
 O termo rústico tal qual utilizado pelo bispo em seu sermão será objeto do terceiro capítulo desta dissertação. 
 
No segundo momento em que o termo superstição é utilizado, a justaposição 
entre cristianismo, paganismo e demonologia reaparece. Martinho alerta aos homens 
miseráveis e ignorantes de Deus o risco que correm ao fazerem uso das práticas supersticiosas 
na medida em que com elas reproduzem cotidianamente sua morte e alimentam 
voluntariamente o pecado de Adão no seu presente. O bracarense remete à ineficácia das 
práticas supersticiosas em contraposição à eficácia dos símbolos e instrumentos cristãos dados 
aos homens no momento do batismo: 
O homem miserável não tem nenhum motivo para fazer estas 
prefigurações e acreditar nelas, como acredita que, se no primeiro 
dia do ano estiver farto e alegre, assim permanecerá durante todo o 
ano. Tudo isso são invenções e práticas dos pagãos exigidas pelos 
demônios. Mas ai daquele homem que não tenha Deus propício e não 
tenha dada por Ele a abundância de pão e a segurança de vida! Eis 
que vós praticais estas superstições vãs, quer ocultamente, quer em 
público, e nunca haveis acabado com estes sacrifícios demoníacos. E 
porque é que eles não vos protegem, para que estejais sempre fartos, 
seguros e alegres?Porque é que, quando Deus está irado, não vos 
defendem os sacrifícios vãos do gafanhoto, do rato e de muitas outras 
atribulações que Deus vos envia quando está irado? Não 
compreendeis que os demônios vos mentem com estas práticas 
supersticiosas que em vão conservais e que vos iludem repetidamente 
quanto aos augúrios que esperais?
62
 
 
Para além da associação necessária entre superstição, paganismo e demonologia, 
uma outra aparece: paganismo e rusticidade. Boa parte dos historiadores que estudam o 
processo de expansão do cristianismo do século IV ao VIII defende a idéia de que o 
paganismo ainda era forte no seio da rusticidade, vivenciado por uma população camponesa 
que mantinha suas relações ancestrais muito vivas e latentes no seu exercício cotidiano de 
religiosidade. Enquanto isso, as cidades, centros de civilização durante o Império Romano e 
sedes episcopais no início da Idade Média, eram os focos privilegiados da expansão do 
cristianismo. Estes centros culturais e de civilidade eram ambientes infinitamente superiores 
 
62
 SÃO MARTINHO DE DUME, op cit, p. 101. 
 
 
aos campos, cuja população lutava para sair da pré-história. Ao binômio campo/cidade vem se 
unir inevitavelmente o pagão/cristão. Um exemplo desta forma de consideração pode ser 
encontrado no texto de A. H. Jones que trata justamente das camadas que deram força ao 
cristianismo durante o período de rompimento das estruturas políticas e sociais do Império 
Romano: “Mas o lento progresso do cristianismo nas áreas rurais tem que atribuí-lo também 
ao inerente conservadorismo dos camponeses. Eles, em todas as épocas e em qualquer lugar, 
haviam feito resistência à mudança e se mantinham obstinadamente ligados a seu modo de 
vida tradicional. Inclusive nos séculos VI e VII, quando haviam sido convertidos em sua 
maioria, a Igreja na Gália e na Espanha, como mostram os repetidos cânones dos concílios 
contemporâneos, tinham grande dificuldade em suprimir os velhos ritos com os quais os 
camponeses, desde tempo imemorial, conjuravam a peste e incrementavam a fertilidade de 
seus rebanhos e campos”63. 
Aqui, os camponeses são desmaterializados enquanto agentes históricos e formam 
um bloco homogêneo, uma categoria que se iguala em diferentes momentos da história e 
regiões do mundo. O autor ressalta que há somente dois lugares onde se pode notar uma 
cristianização precoce dos campos: o Norte da África e o Egito. Na África, em decorrência da 
controvérsia donatista em cerca de 340 que torna o cristianismo dominante na área rural. No 
Egito, devido ao sistema bem estabelecido de paróquias rurais. Mesmo para os casos africanos 
e egípcios sobre os quais o autor fornece indicações para se pensar a existência do 
cristianismo nos campos, ele reafirma que os dados comprobatórios são débeis e que em 
outras regiões o paganismo ainda assolava os campesinos até épocas mais tardias. 
Até o presente momento foram encontrados dois autores que por vias diferentes 
chegam a conclusões interessantes a respeito da associação feita entre paganismo e 
rusticidade bem como sobre a relação entre paganismo e cristianismo. Embora sendo minoria 
 
63
 JONES, A. El transfondo social de la lucha entre el paganismo y el cristianismo. In: MOMIGLIANO, A. 
(org), op cit, p. 32. 
na historiografia, suas considerações são importantes porque apresentam argumentos que 
reforçam a tese do público rústico do sermão que será apresentada no terceiro capítulo da 
dissertação. O primeiro deles é Michel Roblin
64
 que defende a idéia de que os termos 
paganus, pagus e rusticus foram interpretados de forma insuficiente e pouco convincente pela 
historiografia. Segundo ele, a chave para a elucidação do problema está na compreensão de 
paganus, primeiro em relação a gentilis e em seguida a pagus. Paganus não teria sido 
explicado de forma precisa pelos historiadores que primaram pela visão de um Ocidente rural 
resistente ao cristianismo e persistindo no paganismo tradicional e no culto ao imperador. 
Durante os três primeiros séculos da era cristã, a palavra gentilis fora empregada 
para designar os adeptos do culto pagão, e se referia tanto aos não cristãos como aos não 
judeus. O termo paganus, por sua vez,confiscado para o vocabulário religioso, passou a 
substituir gentilis que em seu emprego original não mantinha nenhuma relação com rusticus e 
com camponeses. Paganus, segundo o autor, derivaria de pagus conforme tem sido 
interpretado pela historiografia, mas isso não faria esses termos sinônimos de rústico: 
“Etmologicamente, pagus designa um marco fixado em terra, o pangere. A palavra significa 
então o território delimitado pelos marcos, o distrito; não é por definição uma circunscrição 
rural”65. Pagus, assim, poderia ser aplicado tanto para se referir ao campo quanto à cidade, 
pois com a utilização deste termo o que estaria em voga seria uma população específica 
concentrada tanto no campo quanto na cidade e não necessariamente a porção de terra situada 
no campo ou na cidade. Neste sentido, pagus manteria a esfera de significação de gentilis
66
. 
O segundo autor que contribui para o estabelecimento de uma nova relação entre 
os termos é Almeida Fernandes que em estudo sobre a origem das paróquias suevas sustenta a 
 
64
 ROBLIN, M. Paganisme et rusticité: un gros problème de mots. Annales, 8, ½, 1953, p. 173-183. 
65
 Ibid., p. 176. 
66
 “À mesma época [durante o Baixo Império], gens continuava a ser utilizado na sua acepção larga e 
concernente a povo, tribo, nação, gente, com todavia uma nuança moral e humana que lhe fez qualificar 
desfavoravelmente os conjuntos étnicos considerados sob seu aspecto intelectual ou ético, muito mais que das 
nações no interior da palavra”. Ibid, p. 177. 
tese de que quando no Paroquial suevo
67
 o termo pagus é utilizado, a grande tônica é a 
diferenciação entre ele e a paróquia considerada ecclesia. A divisão passa por critérios 
religiosos, mas do que propriamente territoriais. Os pagi, para o autor, seriam os locais de 
permanência do arianismo que deveriam ser reconduzidos ao cristianismo: “Quando, portanto, 
o Paroquial põe, de um lado, as ecclesiae, e, de outro, nitidamente a elas contrapostos, os 
pagi, outra coisa não pode o fato significar que a existência de paroécias ainda na fé ariana, ao 
tempo da organização desse documento, claramente anti-herético, por ser de inspiração 
martiniana”68. 
Dessa maneira, pagus não seria utilizado no Paroquial suevo para definir e 
delimitar uma circunscrição territorial tendo em vista a oposição campo/cidade, mas sim para 
demonstrar a ausência de ortodoxia. Se o termo for interpretado de tal maneira, também pode 
ser modificada a interpretação do paganus dele oriundo e reinterpretada a associação entre 
paganismo e rusticidade para o período. Se os autores cristãos da Antigüidade Tardia se valem 
de formulações que servem em grande medida para reforçar sua didática e sua pastoral como 
é o caso para os termos rusticus e paganus, como interpretar esta questão para o sermão De 
correctione rusticorum de Martinho de Braga? Se no sermão, o termo paganus vem sempre 
associado às práticas supersticiosas que são levadas a cabo pelos homens rústicos e 
ignorantes, uma análise do papel dos rústicos no sermão permite estabelecer novas relações na 
compreensão da associação entre os termos não como demonstrativo de que o paganismo 
estava concentrado nos campos e resistia à expansão do cristianismo, mas sim de que, no 
discurso do bispo, a associação aparece mais como expressão de um passado que deve ser 
substituído por um presente em que o cristianismo e o culto ao “verdadeiro Deus”, uno e 
trino, tem lugar. Pode-se dizer, portanto, que o binômio fundamental quando se trata da 
 
67
 Documento redigido entre 572 e 582/585 que traz a lista de paróquias existentes no reino suevo durante esse 
período. 
68
 FERNANDES, A. Paróquias suevas e dioceses visigóticas. Viana do Castelo, 1968, p. 52. 
 
análise da justaposição entre paganismo e rusticidade e do conflito entre paganismo e 
cristianismo não é campo/cidade, mas sim conhecimento/desconhecimento da doutrina cristã. 
Tanto pagãos quanto rústicos fazem o contraponto aos batizados, que, depois de terem tido 
sua memória reavivada pelas palavras do bispo
69
 e de terem contraído um pacto com Deus, 
devem ser fiéis a ele como garantia de salvação e entrada ao Paraíso. Neste sentido, Martinho 
de Braga parece utilizar o termo rústico de forma similar a seus precedentes Gregório de 
Tours e Cesário de Arles
70
. 
A consideração do problema das relações entre paganismo e cristianismo, bem 
como a análise da paulatina sobreposição entre paganismo e rusticidade não diz respeito, 
portanto, à negação ou afirmação de um processo de ruralização existente na Europa ocidental 
desde o século III e acentuado nos IV e V
71
. Se todas as camadas da população podem ser 
consideradas habitante dos campos, a divisão campo/cidade não se apresenta como a mais 
adequada para se pensar o tema das sobreposições no sermão de Martinho de Braga. O que 
parece estar em pauta é a tentativa de dar um novo direcionamento da conduta da sociedade, 
que parte da educação e instrução, em primeiro lugar, dos clérigos
72
 e em seguida do 
monarca, para então, a partir destes dois eixos centrais, expandir-se aos outros membros da 
comunidade. Para além da negação ou afirmação da existência de uma população concentrada 
nas villae e dispersas pelo campo da Gallaecia, o que se pretende comprovar é que o sermão 
 
69
 “Por isso vos rogamos, caríssimos irmãos e filhos, que tenhais presente em vossa memória estes preceitos que 
Deus se dignou outorgar, através de nós, humildes e pequenos, e penseis no modo de salvar as vossas almas, a 
fim de não vos preocupardes tão-só com esta vida presente e com a transitória utilidade deste mundo, mas para 
que recordeis aquilo em que prometestes acreditar no símbolo, ou seja, a ressurreição da carne e a vida eterna”. 
SÃO MARTINHO DE DUME, op cit, p. 109. 
70
 BROWN, P. A ascensão do cristianismo no Ocidente. Lisboa: Presença, 1999. 
71
 LE GOFF, J. Para um novo conceito de Idade Média. Lisboa: Estampa, 1980. 
72
 Como membros de uma instituição saída da Paixão de Cristo e sagrada por ser a materialização da 
misericórdia de Deus no seu movimento de descendência rumo à humanidade, os clérigos precisavam ser bem 
instruídos e diferenciados do restante da população. Daí o esforço de Martinho de Braga em educar esse clero 
desde sua maneira de vestir, de se portar e de se alimentar, até a condenação de sua participação em práticas 
idolátricas juntamente com os leigos. Os cânones dos Primeiro e Segundo Concílio de Braga e dos Capitula 
Martini dão vários exemplos dessa instrução. Ver ainda GUERREAU-JALABERT, A. Spiritus et caritas. In: 
HERITIER-AUGE, Fr; COPET-ROGIER, E. La parenté spirituelle. Paris: Editions des archives 
contemporaines, 1995, p. 133-203. 
 
do bracarense não tinha em vista a instrução dos camponeses, mas sim o das elites, condutoras 
privilegiadas de toda a comunidade. Essa temática retornará no terceiro capítulo da 
dissertação. 
A condenação das práticas supersticiosas tanto no sermão quanto nos cânones dos 
Primeiro e Segundo Concílio de Braga insere-se na substituição cultural e na tentativa de 
expandir o cristianismo no território da Gallaecia. Dentre as práticas supersticiosas mais 
condenadas estão aquelas voltadas para a apreensão e conhecimento do futuro. Nos cânones é 
possível ainda vislumbrar um quadro de práticas relacionadas com a comemoração dos 
mortos. Nos dois casos, há em Martinho de Braga uma constante busca pela sobreposição de 
eficácias e da demonstração de que os instrumentos cristãos e seus ensinamentos, dados aos 
catecúmenos no momento do batismo, são o que de fato garantema fartura, a felicidade e a 
prosperidade nessa vida e, mais importante, exteriorizam o pacto realizado entre o homem e 
Deus. Martinho de Braga não se limita a condenar, mas sempre propõe novos pressupostos 
pautados na Escritura e em grandes nomes da Igreja e da cultura clássica latina, que devem 
servir à reflexão, bem como ao encaminhamento da conduta. 
Todas as superstições voltadas para a ordenação do tempo estão inseridas em uma 
narrativa que tem a história da humanidade como primeira faceta do tempo a ser 
considerada
73
. Ela é a aglutinadora das práticas supersticiosas que se situam em seu interior na 
medida em que serve de justificativa e de explicação para sua origem. Percebe-se na fonte 
uma constante mudança nos tempos verbais, bem como a utilização de advérbios temporais 
que garantem a afirmação de que as superstições estão inseridas em um passado idolátrico que 
não tem mais lugar no seio da comunidade de batizados. Este fato ocasiona uma 
 
73
 “Fosse qual fosse o modo de tratar o passado, escreviam [os historiadores medievais] num mundo – e para um 
mundo – que tinha idéias próprias quanto à natureza do passado útil, o passado normal, funcionalmente 
relevante, e o passado recordado coletivamente”. Ao estudar os historiadores medievais, a pergunta deve ser 
quais aspectos do passado eles quiseram apresentar. FENTRESS, J. & WICKHAM, Ch. Memória social. Lisboa: 
Teorema, s\d, p. 179. 
 
correspondência não linear entre passado, presente e futuro na obra, ao mesmo tempo em que 
a história comporta uma perspectiva linear de direcionamento do homem rumo a um futuro 
próximo de extinção da própria história, em um fim escatológico determinante e definidor do 
destino humano tal qual o homem para si preceituou
74
. 
Na concepção do bispo, Deus criou o Céu, a Terra e as criaturas espirituais, que 
chamou de anjos, para habitarem o Céu e louvarem a Deus
75
. O primeiro dentre eles não 
honrou a Deus, seu Criador, considerando-se igual a ele em uma tentativa de igualar o 
desigual, de subverter uma ordem estabelecida. Este fato teve uma dupla conseqüência: a 
queda do Primeiro Arcanjo e de seus aliados, os demônios, e em segundo e não menor plano, 
a criação do homem. O homem é criado, na gênese de Martinho de Braga, com a finalidade de 
substituir os demônios no louvor a Deus. Com isto, a necessidade de obediência e submissão, 
já estimulada quando da criação dos anjos, é reafirmada: 
Depois da queda dos anjos, agradou a Deus moldar o homem do 
barro da terra e pô-lo no Paraíso; e disse-lhe que, se seguisse o 
preceito do Senhor, subiria, sem morrer, àquele lugar celeste, de onde 
caíram os anjos rebeldes, mas, se transgredisse o preceito de Deus, 
ficaria sujeito à morte
76
. 
 
A transgressão ao preceito de Deus resulta em morte, temporalidade e, sobretudo, 
esquecimento de Deus para os descendentes de Adão e Eva. O gênero humano é maculado 
 
74
 “Caríssimos filhos, do que vos fizemos muito simplesmente um resumo, é preciso que vos lembreis, a partir de 
agora, daquelas coisas que vos dissemos e que, fazendo o bem, podeis esperar o futuro descanso no reino de 
Deus ou então (oxalá não aconteça) agindo mal podeis esperar o fogo eterno no Inferno. Com efeito, a vida 
eterna e a morte eterna dependem do arbítrio do homem. O que cada um escolher para si mesmo, será isso que 
terá”. SÃO MARTINHO DE DUME, op cit, p. 105. 
75
 Na consideração da criação, Martinho de Braga se diferencia de Agostinho ao estabelecer uma seqüência para 
o ato criador. O hiponense, por outro lado, defende que a criação é um ato único, tendo Deus criado tudo 
simultaneamente que depois, com a introdução do tempo, passa a se diferenciar e se distinguir. No Livro XI das 
Confissões o bispo de Hipona diz que: “tudo se diz simultânea e eternamente. Se assim não fosse já haveria 
tempo e mudança e não a verdadeira eternidade e verdadeira imortalidade”, para no Livro seguinte completar: 
“Desta terra invisível e informe, deste caos, deste quase- nada, fizestes tudo aquilo de que é formado (ou não) o 
mundo mutável onde aparece esta mobilidade, na qual se pode sentir e medir o tempo[...] E por isso o Espírito, 
Mestre do vosso servo, quando recorda que no princípio criastes o céu e a terra, cala-se perante o tempo. Fica em 
silêncio perante os dias. O céu do céu, criado por Vós no princípio, é, por assim dizer, uma criatura intelectual, 
que, apesar de não ser coeterna convosco, ó Trindade, participa contudo da vossa eternidade”. AGOSTINHO. 
Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 316/317 e 348, respectivamente. 
76
 SÃO MARTINHO DE DUME, op cit, p. 95. 
com o pecado dos seus ancestrais originais que, persuadidos pelos demônios, transgrediram o 
mandamento de Deus e, por seu ato de soberba pretenderam ser como deuses
77
. Tem início a 
história da humanidade, marcada pela Queda e pela busca por redenção, pelo pecado 
praticado e pela possibilidade de salvação
78
. Desta forma, a humanidade inicia sua caminhada 
de retorno a Deus e de retomada de sua memória, visto ter sido o esquecimento do Criador um 
dos frutos do pecado e da transgressão. 
Ainda no âmbito da história humana, o segundo episódio escolhido pelo 
bracarense para dar fundamento à sua narração é o dilúvio e a salvação de Noé. Neste ponto, 
alguns aspectos para a construção da história humana devem ser considerados. A ira de Deus 
é um primeiro elemento. Deus, irado com os homens que dele estão esquecidos e que por isso 
praticam muitos crimes, envia um dilúvio que faz perecer todo o gênero humano descendente 
de Adão e Eva. Nesta passagem fica explicitada a concepção de Martinho de Braga acerca da 
transmissão do pecado a todos os homens que provém de Adão e Eva
79
: 
O primeiro homem chamou-se Adão e a sua mulher, que Deus criou 
da carne do próprio homem, chamou-se Eva. Destes dois seres 
humanos descendem todos os homens. Estes, esquecidos de Deus, seu 
 
77
 “Depois se deu conta de que o homem, criado da poeira por Deus, estava a ocupar o lugar de beatitude que ele 
próprio perdera; foi instigado pela inveja e atacou o homem com a mesma arma da soberba pela qual foi 
derrubado. Com efeito, dissera para si próprio: Serei como o Altíssimo; disse a Adão e Eva: Sereis como deuses”. 
Ibid., p. 75. 
78
 Segundo Marc Bloch: “diferentemente dos outros tipos de cultura, ela (nossa civilização ocidental) sempre 
esperou muito de sua memória. [Tudo a leva a isso: tanto a herança cristã como a herança antiga. Os gregos e os 
latinos, nossos primeiros mestres, eram povos historiógrafos. O cristianismo é uma religião de historiador. 
Outros sistemas religiosos fundaram suas crenças e seus ritos sobre uma mitologia praticamente exterior ao 
tempo humano; como Livros sagrados, os cristãos têm livros de história, e suas liturgias comemoram, com os 
episódios da vida terrestre de um Deus, os faustos da Igreja e dos santos. Histórico, o cristianismo o é ainda de 
outra maneira, talvez mais profunda: colocado entre a Queda e o Juízo, o destino da humanidade afigura-se, a 
seus olhos, uma longa aventura, da qual cada vida individual, cada ‘peregrinação’ particular, apresenta, por sua 
vez, o reflexo; é nessa duração, portanto dentro da história, que se desenrola, eixo central de toda meditação 
cristã, o grande drama do Pecado e da Redenção”. BLOCH, M., op cit, p. 42. Manteve-se na citação os colchetes 
e enxertos em conformidade com o texto original. 
79
 A consideração de que o pecado havia sido transmitido de Adão a seus descendentes é um dos aspectos que 
diferenciava o cristianismo do pelagianismo, combatido por Agostinho e Paulo Orósio.

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