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SEMIPRESENCIAL Prof. Antonio Carlos Banzato Filosofia SUMÁRIO 1 CONCEITOS BÁSICOS 5 1.1 A CONSCIÊNCIA MÍTICA 5 1.2 O NASCIMENTO DA CONSCIÊNCIA FILOSÓFICA: OS PRÉ-SO- CRÁTICOS 7 1.3 A FILOSOFIA DE VIDA E O RIGOR DO PENSAMENTO FILOSÓ- FICO 12 1.4 DOGMATISMO, SENSO COMUM E PENSAMENTO IDEOLÓGICO 15 2 FILOSOFIA ANTIGA E MEDIEVAL 18 2.1 A RETÓRICA DOS SOFISTAS E AS PERGUNTAS DE SÓCRATES 18 2.2 PLATÃO E O MUNDO DAS IDÉIAS 22 2.3 A FILOSOFIA MEDIEVAL DE AGOSTINHO E TOMÁS DE AQUI- NO 27 3 FILOSOFIA MODEERNA E CONTEMPORÂNEA 32 3.1 O QUE SIGNIFICA MODERNIDADE? 32 3.2 RACIONALISMO E EMPIRISMO 33 3.3 O CRITICISMO DE KANT 39 3.4 O CONTRATUALISMO DE HOBBLES, LOCKE E ROUSSEAU 43 3.5 O POSITIVISMO DE COMTE 48 3.6 O MATERIALISMO HISTÓRICO E DIALÉTICO DE MARX 50 3.7 NIETZSCHE: A TRANSVALORIZAÇÃO DOS VALORES 55 3.8 PIERRE LÉVY: COMUNICAÇÃO EM REVOLUÇÃO 57 REFERÊNCIAS 64 APRESENTAÇÃO Caro aluno do EaD, Bem-vindo a essa nova modalidade de aprendizado. A Filosofia possui uma quantidade enorme de pensadores, incessantemente questionando, problematizando e confrontando idéias, destruindo e reconstruindo sistemas de pensamento. Atendendo ao caráter introdutório do curso, o objetivo é fornecer o panorama do pensamento filosófico desde o seu surgimento até os nossos dias. Estudaremos o nascimento da filosofia na Grécia Antiga e veremos, logo no início, a importância do pensamento filosófico no nosso cotidiano. Em seguida, passaremos a estudar as idéias de alguns dos mais significativos filósofos da Grécia Antiga, da Idade Média, da Era Moderna e, finalmente, identificaremos importantes filósofos contemporâneos. Nosso ponto de chegada? Esqueça. Filosofar, como já dizia o filósofo alemão Karl Jaspers, é estar sempre a caminho. A nossa disciplina tem os objetivos seguintes: a- diferenciar a consciência mítica da consciência filosófica e identificar a importância do pensamento filosófico em nosso cotidiano; b- identificar os principais pensadores da filosofia antiga e medieval, destacando aspectos de suas teorias sobre política e conhecimento; c- identificar alguns filósofos do início da modernidade e contemporâneos, destacando aspectos de suas teorias sobre conhecimento e política. Antonio Carlos Banzato A. Santos 5 1 CONCEITOS BÁSICOS 1.1 A CONSCIÊNCIA MÍTICA Quem nunca se perguntou se o mundo foi criado por uma mente superior ou se surgiu ao acaso? Estamos sós no universo? De onde viemos? Por que existimos? Quem nunca se espantou diante dos mistérios do mundo? A vida e a morte, os fenômenos da natureza ― às vezes belos, às vezes terríveis ― as estações do ano, a contínua alternância entre o dia e a noite, a infinitude do universo, a finitude dos seres vivos etc. É extensa a lista do espetáculo cotidiano que a natureza oferece aos nossos olhos, produzindo os mais variados sentimentos: medo, resignação, perplexidade, encantamento, incompreensão e outros. É bem verdade que o espantoso desenvolvimento do conhecimento científico nos últimos quatro séculos respondeu a diversas perguntas que pareceriam impossíveis de serem respondidas aos olhos dos antigos. Seria árduo e imenso o trabalho enumerar todas as magníficas descobertas científicas ocorridas desde a comprovação, no século XVII, de que a Terra gira em torno do Sol até as atuais e impressionantes descobertas da engenharia genética e da revolução informática. A ciência, porém, não responde a tudo. Diversas perguntas permanecem abertas, resguardando insondável mistério. E tudo aquilo que a ciência não consegue explicar racionalmente os seres humanos acabam por explicar miticamente. Se assim é com a nossa civilização ocidental, imagine agora os povos que nunca tiveram acesso àquilo que chamamos de conhecimento científico. Os habitantes da Grécia Antiga, do século XX ao século VIII antes de Cristo, assim como as tribos indígenas de todo o continente americano ― principalmente antes da chegada dos europeus ― são exemplos de culturas que têm na consciência mítica a forma de conhecimento predominante. 6 Sem acesso à medicina e à previsão meteorológica, por exemplo, qualquer doença ou qualquer fenômeno da natureza como enchentes, eclipses, falta de chuvas etc. são atribuídos aos deuses. E mesmo os rudimentares conhecimentos que, geralmente, esses povos têm sobre astrologia e sobre o poder de cura de certas ervas medicinais, são sempre marcados por rituais míticos. Os mitos, assim, expressam os temores e os desejos dos seres humanos em face do medo que as forças hostis da natureza lhes inspiram. Trata-se de uma forma de compreender a realidade e de conquistar, pelo menos provisoriamente, tranqüilidade e acomodação em um mundo assustador. O pensamento mítico, portanto, é a forma pela qual uma cultura passa e explicar aspectos essenciais da realidade. As perguntas sobre o funcionamento da natureza (que se mostra ameaçadora), a origem do mundo, a importância dos valores que modelam o comportamento do grupo etc. ganham uma resposta mítica, ou seja, uma resposta que apela ao sobrenatural, ao sagrado, à magia. Tudo aquilo que acontece aos homens é visto como fruto de uma vontade divina, exterior e superior ao mundo humano, e que apenas os magos ou sacerdotes são capazes de interpretar. Podemos dizer, por isso, que o pensamento mítico tem algo de paradoxal, pois ao mesmo tempo em que fornece explicações e respostas a perguntas angustiantes, recorre nessas explicações ao misterioso e sobrenatural, ou seja, àquilo que permanece além da compreensão humana, esbarrando desse modo na impossibilidade do desenvolvimento do conhecimento racional. Outro traço importante das narrativas míticas é que elas não são "inventadas" por ninguém. Não possuem um autor assim como não têm uma origem cronológica precisa. Antes disso, são o resultado da tradição cultural de um povo que, na maior parte das vezes, é transmitida 7 oralmente. Trata-se, ainda, de uma consciência comunitária, compartilhada por todo o grupo que aceita a "verdade" do mito sem discussões ou comprovações racionais. É por isso, também, que o mito não pode ser reduzido a uma "mentira". Ou o indivíduo faz parte de uma determinada cultura e aceita seus mitos como visão de mundo ― e, portanto como "verdade" – ou o indivíduo não pertence ao grupo e o mito perde seu sentido. A discussão ou o questionamento dos mitos só é possível com o distanciamento do indivíduo em relação à visão de mundo que o mito representa e consagra. Mas para que isso aconteça é necessária a transformação da própria sociedade. Foi exatamente o que começou a acontecer num determinado período da Grécia Antiga, como veremos a seguir. 1.2 O NASCIMENTO DA CONSCIÊNCIA FILOSÓFICA: OS PRÉ-SOCRÁTICOS A civilização micênica ― que se estendeu do século XX ao século XII a.C. ― era constituída por povos guerreiros que viviam do comércio e das pilhagens de guerras. Sua organização social era fortemente hierarquizada em torno da família real e da aristocracia palaciana, o que se refletia na hierarquia de suas divindades. Uma escrita chegou a ser desenvolvida nesse período, muito embora seu uso tenha se restringido aos escribas a serviço da família real. Por volta do século XII a.C., como resultado das guerras desse período, a civilização micênica foi destruída e houve uma retração social: o comércio cedeu lugar à economia rural, o sistema escravista recrudesceu, a escrita desaparece. A vida reorganiza-se no isolamento de clãs e de pequenas aldeias tribais. O poder político passa a ser exercido por uma aristocracia proprietária de terras. Contudo, a antiga unidade social, anteriormente encarnada pelo rei, se desfaz e a sociedade se torna lugar de desordem e de conflitos entre as diversas famílias aristocráticas e 8 entre a aristocracia e as camadas mais pobres da população.Muito da tradição mítica da civilização micênica se perde nesse período. Somente por volta do século IX ou VIII a.C. a escrita reaparece, resguardando porém um caráter sagrado. A Ilíada e a Odisséia, atribuídas a Homero, e a Teogonia, de Hesíodo (escrita no século VIII a.C.), são as maiores fontes do nosso conhecimento sobre os mitos gregos. Isso, como vimos acima, não significa que Homero ou Hesíodo tenham inventados os mitos. Na verdade, eles recolheram as narrativas míticas dos diversos povos que sucessivamente habitaram a Grécia desde a civilização micênica e as registraram em versos. Lentamente, algumas transformações decisivas foram se impondo. A partir do século VIII a.C. já se nota o renascimento do comércio, que ganha maior impulso com a invenção da moeda. A escrita finalmente deixa de ser privilégio daqueles que detêm poder político ou religioso e, uma vez dessacralizada, isto é, desligada das questões míticas, cheias de fórmulas mágicas e inacessíveis ao não-iniciados, transforma-se em instrumento de divulgação de idéias, expandindo o debate social e político. As antigas aldeias se unem, obrigando as diferentes tribos e clãs a conviverem no mesmo espaço. Assim nasce a organização social, que é uma característica da pólis, a cidade-estado grega. Se antes a estabilidade da vida social gravitava em torno da figura do "rei divino", que encarnava a vontade dos deuses, a vida na pólis adquire nova e decisiva característica, pois o centro da vida social passa a ser a ágora, isto é, a praça pública onde são realizadas as assembléias e onde, após ampla discussão e votação, são tomadas as decisões políticas sobre a vida da cidade. Não há mais um rei e a aristocracia não manda sozinha. O acesso ao poder é estendido a todos aqueles que são considerados cidadãos, ou seja, os homens adultos que não são nem estrangeiros nem escravos. Ainda que em Atenas, considerada o modelo da antiga democracia, apenas cerca de 10% da população fosse de cidadãos, é inegável a novidade política nascente: a 9 aristocracia hereditária, os comerciantes, as camadas mais pobres da população se vêem indistintamente com direito de participar de discussões públicas e de votar, decidindo politicamente sobre o futuro da cidade. Em suma, junto com a pólis está nascendo a democracia, que se constrói no frágil equilíbrio entre as várias camadas sociais que habitam a mesma sociedade. E mais importante ainda: a política e o governo aparecem pela primeira vez na história como criação da vontade humana. O destino, que antes era traçado inexoravelmente pela vontade dos deuses, passa a ser responsabilidade dos cidadãos. Finalmente, as leis que regem o convívio social não são mais tabus, não é mais expressão da consciência mítica, mas sim o resultado impessoal de uma decisão coletiva, tomada abertamente após a discussão em praça pública. Todas essas mudanças contribuem de modo decisivo para o desenvolvimento do pensamento racional. A ágora é, por excelência, o espaço do logos, ou seja, da razão, do discurso, da palavra. A decisão sobre os assuntos públicos passa a depender, afinal, da capacidade de persuasão do orador e não da sua condição social ou econômica: vence quem sabe convencer melhor e, para tanto, é preciso valer-se de uma boa exposição de idéias. Podemos dizer que a política finalmente torna-se laica, ou seja, assunto dos homens e não dos deuses. É, pois, nesse ambiente de racionalidade que surgem os primeiros filósofos. Diante das inevitáveis perguntas que o ser humano sempre se fez sobre a origem do universo, da natureza, da vida, os primeiros filósofos não se contentam com as explicações oferecidas pelo pensamento mítico. A palavra grega physis, que é a origem etimológica de Física, é geralmente traduzida por natureza. Seu significado, porém, é mais amplo e refere-se ao processo de nascimento, crescimento e transformação da natureza. Quem indaga sobre a physis, indaga sobre o princípio ou fundamento de todas as coisas, 10 que os gregos chamavam de arché: haverá um princípio único que ordene todas as coisas do mundo? A resposta a essa pergunta, oferecida por Hesíodo em sua Teogonia, expressa, ainda, a consciência mítica: ele narra o nascimento do mundo e dos deuses; as forças da natureza são divinizadas e ganham contornos humanos: a Terra é Gaia; o Céu é Urano; o Tempo é Cronos etc. Esses seres nascem ora pela segregação, ora pela intervenção de Eros, responsável por aproximar os opostos. Os primeiros filósofos, porém, insatisfeitos com as explicações míticas, foram buscar uma explicação natural ― e não sobrenatural ― para o princípio de todas as coisas. A chave para a compreensão da arché estaria, portanto, na própria natureza e não, em algo fora do mundo, preso a uma realidade misteriosa e inacessível. A realidade, dessa forma, se abre à possibilidade do conhecimento e de explicações racionais. Isso dá origem ao pensamento filosófico-científico. Os filósofos opõem a Cosmologia à Cosmogonia dos mitos, Ainda que muito dos escritos pré-socráticos tenham se perdido, restando apenas fragmentos e citações de filósofos posteriores, sabemos que essa nova forma de pensar nasce por volta do século VI a.C., na Jônia, que era uma colônia fundada na costa asiática da Grécia, atual Turquia, mais especificamente na cidade de Mileto, que experimentava, então, grande florescimento comercial e cultural. Mileto havia se transformado em centro cosmopolita onde conviviam culturas distintas. É possível, assim, que as diversas e contrastantes tradições míticas tenham levado os primeiros filósofos à relativização dos mitos. Tales, nascido em Mileto, é considerado o primeiro filósofo. Ao recusar a explicação mítica, ele afirma que o princípio da physis é a água. Todo o universo e toda a natureza teriam se originado desse elemento, sendo possível encontrá-la em tudo aquilo que está vivo. É relevante, também, o caráter crítico do pensamento de Tales: diz-se que ele não só admitia como estimulava seus discípulos a desenvolverem outros pontos de vista, adotando, se possível, outros princípios 11 explicativos. Seu discípulo Anaximandro e, depois, Anaxímenes e Heráclito são os mais importantes filósofos pré-socráticos da Jônia. No transcorrer dos séculos VI e V a.C., o pensamento filosófico se difunde na Grécia. Pitágoras de Samos funda uma escola em Crotona, no sul da Magna Grécia (atual Itália). Xenófanes, Parmênides e Zenão representam a cidade de Eléia, também na Magna Grécia. Leucipo e Demócrito são de Abdera; Anaxágoras é de Clazomenas; Empédocles, de Agrigento. A denominação filósofos pré-socráticos é, ao mesmo tempo, cronológica e temática. Cronológica porque grande parte desses filósofos viveu antes de Sócrates, considerado um marco da filosofia; temática porque sua principal característica é a tentativa de explicação racional da origem do universo: seu objeto de reflexão é a physis. Em resumo: há uma ruptura entre a consciência mítica e a filosofia nascente. Ao contrário do que acontece com a explicação mítica, que é aceita pelo indivíduo sem questionamentos, a explicação filosófica é problematizadora e convida à discussão. Desse modo, abre-se espaço para a divergência e para o debate. Se Tales afirma que o elemento primordial de todas as coisas é a água, Anaxímenes afirma que é o ar. Demócrito, por sua vez, sustenta que é o átomo. Empédocles diz que são os quatro elementos: terra, ar, água e fogo. E assim sucessivamente. Em oposição à figura do sábio religioso, que detém a verdade do conhecimento mítico, os gregos inventam a figura do filósofo. Observa-se aí uma diferença de atitude diante do saber recebido: no mito, a inteligibilidade é dada; na filosofia ela é procurada. O filósofo, portanto, não é o dono da verdade, mas aquele que sai em sua busca, ou, como diria Pitágoras, é o amigo (philos)do saber (sophia), daí a origem do próprio termo filosofia: philos + sophia. 12 1.3 A FILOSOFIA DE VIDA E O RIGOR DO PENSAMENTO FILOSÓFICO Como definir Filosofia? Qual sua utilidade no nosso dia-a-dia? Qual sua importância para todos aqueles que não são filósofos e não fazem do pensamento filosófico um modo de vida? Essas são algumas perguntas freqüentes entre os estudantes de qualquer faculdade. Ao invés, porém, de se abrirem para o novo, é também significativa a parcela de alunos que resolve se proteger da filosofia afirmando, do fundo da sua caverna, que ela é muito subjetiva; é uma viagem incompreensível; não serve para nada que se relacione à vida prática. Antes, portanto, de começarmos a estudar alguns dos mais importantes filósofos desde a Antigüidade até nossos dias, vamos procurar responder às questões acima e desfazer os preconceitos mais comuns que abalam a já restrita popularidade da filosofia. Para Kant não é possível aprender o que é a Filosofia, só é possível aprender a filosofar. Merleau-Ponty, por sua vez, afirma que filosofar é reaprender a ver o mundo. Segundo Gramsci, "não se pode pensar em nenhum homem que não seja também filósofo, que não pense, precisamente porque pensar é próprio do homem". André Comte-Sponville, finalmente, arrisca: "filosofar é pensar sua vida e viver seu pensamento", e arremata: a filosofia é "uma prática teórica (mas não-científica), que tem o todo por objeto, a razão por meio e a sabedoria por fim. Trata-se de pensar melhor, para viver melhor". Quem nunca parou para pensar: como devo viver? Eis aí uma pergunta filosófica da maior relevância, ligada ao cotidiano de qualquer ser humano. Se você às vezes se faz essa pergunta e procura respondê-la de um modo inteligente está, bem ou mal, filosofando. Por que você resolveu fazer um curso universitário? Por que optou por este curso e não por outro? Por que a Unisa? Por que resolveu cursar a disciplina Filosofia pela Internet? Por detrás dessas escolhas estão os seus critérios e os seus valores que, suponho, foram 13 ponderados, pesados, avaliados até que você chegasse à sua decisão. Refletir sobre esses valores, procurar justificá-los racionalmente, é uma forma de filosofar. Pensar a sua vida não é viver de modo egoísta ou essencialmente introspectivo, mas pensá-la onde ela é vivida: na sociedade, na história, no mundo. Viver seu pensamento é, na medida do possível, agir com autonomia ao invés de sujeitar-se passivamente ao fluxo dos acontecimentos. Para que serve então a Filosofia? Para aprimorar a reflexão crítica, inerente a todo e qualquer ser humano! Pensar melhor, para viver melhor! A esse pensamento crítico chamamos "filosofia de vida". Trata-se mais de uma atitude do que de uma erudição. É isso o que eu procuro fazer na minha vida. É isso o que você pode fazer na sua! Basta coragem e disposição. Por que coragem? Ora, lembre-se dos pré-socráticos: eles rejeitavam as explicações míticas em voga na sua época. Isso quer dizer que ousavam questionar aquilo que para a maioria das pessoas era uma verdade absoluta, uma certeza, um dogma. Certamente encontravam muita resistência o que, convenhamos, nem sempre é fácil de suportar (Sócrates que o diga!). Há, porém, diferenças relevantes entre a filosofia de vida e o pensamento dos filósofos especialistas. Enquanto a filosofia de vida não exige rigor ― muito embora exija sempre espírito crítico! ―, a Filosofia propriamente dita se manifesta como um gênero à parte. O iniciante, às vezes, assusta-se com a linguagem dos filósofos. E alguns deles, principalmente a partir da modernidade, são de fato difíceis. Mas como tantas outras disciplinas, a filosofia também tem o seu rigor próprio, o seu jargão, os seus conceitos. Em filosofia, o uso preciso da linguagem é decisivo: é assim que os filósofos fogem da ambigüidade e evitam a subjetividade não de seu ponto de vista, mas de como o expressam. O filósofo, portanto, está acostumado a pensar com maior rigor lógico e de um modo mais 14 sistemático que as pessoas comuns, além de conhecer a história e o desenvolvimento do pensamento. Esse conhecimento teórico, todavia, é apenas uma parte do filosofar. Ao eleger a dúvida como elemento desencadeador do processo crítico, a Filosofia se caracteriza como conhecimento instituinte, capaz de questionar sempre e infinitamente o saber instituído, provocando abalos e mudanças. A Filosofia trai a si mesma quando estanca em verdade inquestionável, afinal ela é a procura da verdade, não a sua posse. Por isso, como diz Jaspers, filosofar é estar a caminho: perguntas em Filosofia são essenciais, e cada resposta transforma-se numa nova pergunta. É por isso que ao estudar os clássicos precisamos tomar cuidado. Ler Filosofia não é assimilar passivamente as idéias dos grandes filósofos como se fossem um produto pronto e acabado; isso sim seria erudição estéril. Ler bem é ler antropofagicamente: só assim poderemos nos aproximar da Filosofia como processo, como reflexão crítica e autônoma da realidade vivida. O objeto da Filosofia? O todo. Isso não significa que todos os filósofos pensem sobre todos os assuntos possíveis. Mas qualquer assunto possível pode ser o objeto de estudo de um filósofo. E, sob uma perspectiva de conjunto, a Filosofia relaciona-se interdisciplinarmente com todas as formas do saber e agir humanos. Os filósofos, assim, podem ter como objeto de estudo o conhecimento, a política, a ética, a ciência, a religião, o direito, a justiça, os valores, o próprio ser humano etc. E já que falamos em ciência, convém, aqui, abrir um parêntese. A partir do século XVII, com a revolução metodológica iniciada por Galileu Galilei, a Filosofia e a Ciência, que até então andavam juntas, separam-se. Começa a nascer aí a noção moderna de conhecimento científico. Aos poucos vão se firmando as ciências particulares ―física, astronomia, química, biologia, psicologia, sociologia, economia etc. ―, cada uma delas com sua metodologia própria de estudo. A Ciência, assim, faz "recortes" do real e tende cada vez mais à especialização, ao saber fragmentado, ao estudo da parte e não do todo. Além disso, a Ciência está preocupada em fazer 15 juízos de fato, ou seja, pretende descobrir como os fenômenos ocorrem, quais suas relações e como prevê-los. Os resultados das investigações científicas se pretendem, por isso, impessoais e objetivos, tendendo à verificabilidade e à uniformidade das conclusões. A Filosofia, por sua vez, não renuncia ao ponto de vista da totalidade. Enquanto as ciências se especializam, a Filosofia levanta problemas cujas respostas exigem a capacidade de relacionar diversos aspectos do contexto no qual está inserido. Enquanto os cientistas se limitam a fazer juízos de fato, os filósofos resgatam a dimensão dos juízos de valor e, com isso, julgam o valor do conhecimento, preocupando-se não apenas em saber como é a experiência vivida, mas também como deveria ser. 1.4 DOGMATISMO, SENSO COMUM E PENSAMENTO IDEOLÓGICO Vamos, afinal, admitir que a Filosofia não é uma atividade apenas para iniciados. Muito pelo contrário: a filosofia de vida é condição para a autonomia intelectual de qualquer ser humano. Somente por meio dela questionamos as verdades sedimentadas e alteramos o rumo de nossa própria existência. Isso, porém, não é fácil. Há diversos obstáculos que impedem grande parte das pessoas de abandonarem suas pequenas certezas e suas cômodas verdades. O dogmatismo, o senso comum e o pensamento ideológico são alguns desses obstáculos. Vejamos cada um deles. O termo dogma possui diversas perspectivas. Vejamos algumas delas: o dogma mítico-religioso é uma verdade indiscutível que a razão não precisa explicar; o dogma valorativo deriva da falta de capacidade de um indivíduo de colocar em xeque seus próprios valores, que passam a ser consideradosuniversais; o dogma político é a maior ameaça às democracias. Menos intransigente que o dogmatismo, o senso comum é o conhecimento que herdamos 16 pela tradição e ao qual acrescentamos os frutos da experiência vivida na coletividade a que pertencemos. Trata-se de um conjunto de valores e idéias mais ou menos compartilhados socialmente e que nos permite interpretar a realidade e agir. O problema, porém, é que o senso comum não é resultado da reflexão e pode encontrar-se misturado a crenças e preconceitos. Como primeiro nível de conhecimento é ainda ingênuo, não-crítico, fragmentário, assistemático e incoerente, levando, muitas vezes, à ação conservadora e resistente às mudanças. O senso comum, todavia, pode ser superado não apenas pelas formas mais rigorosas do conhecimento como a Ciência e a Filosofia, mas também pelo exercício da filosofia de vida. O pensamento ideológico, finalmente, se apresenta muitas vezes como um discurso aparentemente mais bem elaborado do que o dogmatismo e do que o senso comum, por isso exigirá de nós um atenção um pouco mais detalhada. Já vimos que, em Filosofia, um conceito é uma construção que só faz sentido no interior de uma teoria, perdendo seu sentido quando indevidamente transportado para outra teoria. Assim, dois ou mais filósofos podem utilizar-se da mesma palavra para construir conceitos absolutamente distintos. É exatamente isso o que acontece ― ou aconteceu - com a ideologia. No início do século XIX, certa corrente filosófica chamou de ideologia a "ciência das idéias" ou a "ciência das ciências". Mas esse sentido caiu totalmente em desuso: ninguém, hoje em dia, defende a viabilidade de uma ciência das ciências. Já no uso cotidiano, chamamos de ideologia a nossa opinião ou posicionamento sobre determinado assunto. É assim que falamos em ideologia de esquerda ou de direita, em ideologia libertária ou repressora, em ideologia democrática ou bélica. Pense, por exemplo, na reeleição de George W. Bush à presidência dos Estados Unidos: sua campanha política foi toda marcada pela ideologia da guerra como forma de combate ao terrorismo. Há décadas, porém, a palavra é utilizada pela maioria dos intelectuais, das mais diversas áreas, em seu sentido marxista. Para entender isso, é preciso esquecer os dois sentidos acima 17 mencionados. A ideologia, afinal, é um conjunto de idéias (compostas por valores, princípios, crenças) que se explicam por suas condições históricas, Ou seja, as idéias que compunham a mentalidade feudal eram diferentes daquelas que compõem a sociedade capitalista. Da mesma forma, há diferenças entre a mentalidade da época da revolução industrial e a da revolução informática. Podemos dizer, portanto, que o discurso ideológico nunca é fruto da autonomia do pensamento, mas resultado de circunstâncias históricas que modelam ― inconsciente e acriticamente ― os valores e a visão de mundo daquele que fala. O sujeito sequer chega a perceber quais são os seus próprios valores, limitando-se a repetir como se fossem suas ―e como se fossem naturais e universais ― as idéias que, na verdade, compõem um pensamento social localizado no tempo e no espaço. Outro traço importante da ideologia é que ela reflete os valores da classe ou do segmento social dominante. A força do discurso ideológico consiste na capacidade de transformar em "universais" os valores que, no fundo, não passam de interesses particulares de um grupo específico. Assim, tanto dominados quanto dominadores incorporam o discurso e acreditam nele, não percebendo as lacunas que existem no discurso e que ocultam a maneira pela qual a realidade social foi produzida. Isso faz da ideologia não um conhecimento falso, mentiroso ou delirante, mas sim ilusório. Ou seja: o discurso ideológico não é uma mentira que alguém inventa deliberadamente com a oculta intenção de manter os seus privilégios, tampouco se confunde com um delírio se o entendemos como um pensamento desgarrado do real (e portanto falso) e, ao mesmo tempo, individual, singular, enclausurado em si mesmo. Um delírio, porém, transforma-se numa crença quando adquire a força de mover e comover todo um grupo. A crença, finalmente, pode engendrar discursos ideológicos, não em função de sua validade ou falta de validade, mas de sua capacidade de controlar comportamentos coletivos, reforçando crenças e estereótipos. 18 2 FILOSOFIA ANTIGA E MEDIEVAL 2.1 A RETÓRICA DOS SOFISTAS E AS PERGUNTAS DE SÓCRATES A cidade de Atenas, no século V a.C., encarna o auge da antiga democracia. Isso não é pouco, principalmente se lembrarmos que no século XII a.C. a civilização micênica foi destruída e, como resultado, o comércio e a escrita desapareceram, o sistema escravista recrudesceu e a economia, controlada por uma aristocracia proprietária de terras, voltou a ser fundamentalmente rural. Somente no século VIII a.C., na transição dos tempos homéricos para o período arcaico, é que o antigo mundo rural e aristocrático, assentado em tribos e clãs familiares, irá ceder espaço para as primeiras aglomerações urbanas. Com a lenta formação das pólis assiste-se, concomitantemente, ao renascimento do comércio. Uma vez enriquecidos, os comerciantes passam a defender seus interesses que, muitas vezes, se opõem aos da aristocracia. Após algumas importantes reformas políticas será, finalmente, implantada a democracia. Esse novo contexto social e político é fundamental para entender o pensamento de Sócrates e a atividade dos sofistas. Com eles, houve uma significativa mudança no teor das indagações filosóficas. Enquanto os pré-socráticos perguntava-se sobre a formação e a transformação da natureza (physis), buscando respostas racionais a essas questões (cosmologias), Sócrates é o primeiro filósofo a eleger problemas éticos e políticos como tema central de seus questionamentos, deslocando o objeto da filosofia da natureza para o próprio homem e para a comunidade em que vive. Nesse exercício, irá divergir dos sofistas. O termo sofistas deriva de sophos, que significa originalmente "sábios". Como, porém, Sócrates e, mais tarde, Platão e Aristóteles criticaram duramente os sofistas, o termo acabou adquirindo uma conotação pejorativa. Tanto é que chamamos de sofisma o argumento que, 19 embora falso, possui a aparência da verdade e, portanto, o poder de induzir o outro ao erro. O sofista, nessa visão pejorativa, é o charlatão que tem por hábito - e por habilidade - construir argumentos com erros voluntários a fim de enganar ou embaraçar seu interlocutor. Hoje em dia, porém, a tendência é reconhecer a importância que os sofistas tiveram na história da filosofia. Foram eles, afinal, que justificaram o ideal democrático do século V a.C., elaborando teorizações que interessavam à nova classe dos comerciantes. Muito embora não tenham constituído uma "escola de pensamento" (pois divergiam muito entre si), os sofistas tinham algo em comum: eram estrangeiros (e portanto não eram considerados cidadãos de Atenas), não descendiam da aristocracia e não pertenciam a famílias de comerciantes enriquecidos. Para sobreviver, davam aulas e cobravam por isso. Ou seja, transformaram o seu saber em ofício, o que causou espanto para os padrões da época. Não foram poucos os que acusaram os sofistas de "mercenários do saber". A busca pela verdade - argumentavam seus detratores - não poderia se submeter aos interesses daquele que paga, exigindo como condição a independência. A contribuição dos sofistas, todavia, reside no fato de terem sistematizado o ensino, formando um currículo de estudos que incluía, entre outros pontos, a gramática, a retórica e a dialética. Tais estudos vinham ao encontro das exigências práticas do cidadão de uma sociedade democrática: para convencer não basta dizer o que se considera verdadeiro, é preciso demonstrá-lo pelo raciocínio. E para demonstrá-loé preciso falar bem, é preciso persuadir. Preocupados com a coerência lógica e com o rigor dos argumentos, e dando mais importância à forma da exposição do que ao próprio conteúdo, os sofistas se encarregam de iniciar os jovens na arte da retórica: instrumento que se torna indispensável na assembléia democrática. Se os sofistas preocupavam-se mais com a forma do que com o conteúdo dos argumentos, isso não se devia a uma falha de seu caráter. Sua intenção não era mentir deliberadamente, não 20 era enganar o interlocutor (ou, pelo menos, isso não se aplica à maioria dos sofistas e se eventualmente ocorreu foi uma exceção). Antes disso, os sofistas compartilham a idéia de que não há no mundo um único princípio que a tudo comande. Para eles, tudo resulta de convenções, inclusive os valores e a própria verdade. Quando Protágoras ― considerado o primeiro sofista ― afirma que o homem é a medida de todas as coisas está querendo dizer que se existe um consenso entre os homens, este resulta da convenção. A verdade, portanto, é vista como resultado de uma construção humana e não como a descoberta de algo absoluto. Sócrates (470-399 a.C.) nada deixou escrito. Tudo o que sabemos dele se deve aos relatos de seus discípulos, sendo Platão o mais importante de todos. Pela análise desses escritos, porém, é possível identificar alguns dos mais importantes traços da filosofia socrática. Os sofistas, como acabamos de ver, ensinavam a arte da retórica, ou seja, ensinavam o orador a expor seu ponto de vista com coerência e brilhantismo a fim de convencer seus interlocutores de que realmente tinha razão (o que, aliás, continua sendo útil em se tratando de assuntos políticos e jurídicos). Sócrates, por sua vez, faz exatamente o contrário: desenvolve um método de destruição das certezas e das convicções. Está preocupado em descobrir a essência das coisas e seu primeiro passo é admitir que não as conhece. É portanto um ignorante da essência que procura descobrir. Sua famosa frase "só sei que nada sei" é o ponto de partida para a procura, para a pesquisa. Sócrates resolve, então, interrogar todos aqueles que se consideram sábios. Porém, com suas hábeis e irônicas perguntas, põe a nu a ilusão do conhecimento, revelando que as pessoas se passam por sábias sem de fato o serem. Sua habilidade questionadora nada mais é do que uma imensa capacidade de colocar em xeque as crenças, os dogmas, as opiniões e o senso comum de seus interlocutores. 21 Essa fase inicial da investigação socrática tem por objetivo demonstrar que o nosso primeiro nível de conhecimento ― que é prático, intuitivo e imediato ― se revela muitas vezes insuficiente e inadequado, sendo possível aprimorá-lo e aperfeiçoá-lo por meio da reflexão. O aprimoramento da reflexão, por sua vez, dá-se por meio daquilo que Sócrates chamou de maiêutica. Não se assuste com essa palavra grega que significa literalmente "a arte de fazer o parto". Filho de uma parteira, Sócrates fez uma simples analogia entre o seu ofício e o ofício da mãe. Assim como ela ajudava outras mulheres a darem à luz uma criança, ele ajudava outros homens a darem à luz suas próprias idéias. Sócrates, com isso, quer reforçar que não é dono da verdade: ao destruir a ilusão do conhecimento de seu interlocutor, não aponta onde está o conhecimento verdadeiro (que ele também ignora). Apenas aponta para a deficiência do conhecimento do outro, estimulando-o a aprimorar suas próprias reflexões por meio da dialética, isto é, pela discussão no diálogo. Ou seja, o papel do filósofo não é transmitir um saber pronto e acabado. Não podemos concluir daí que Sócrates aceita qualquer ponto de vista e que toda e qualquer opinião deve ser respeitada. A filosofia, para Sócrates, nada tem a ver com o exercício da subjetividade do indivíduo. Antes disso, Sócrates (ao contrário dos sofistas), preocupa-se em descobrir um conhecimento que seja universal. Dessa preocupação, decorre a importância fundamental do conceito. Somente o exercício intelectual que leva à definição de um conceito poderia exprimir a essência ou a natureza de uma coisa, aquilo que a coisa é verdadeiramente. Para Sócrates, não bastam exemplos do que é ser corajoso ou do que é ser virtuoso. Ele quer saber o que é a coragem ou a virtude em si mesmas. Não foi por outro motivo que Sócrates tanto criticou os sofistas. Argumentava que as decisões políticas nas assembléias estavam sendo tomadas não com base em um saber, mas por influência dos mais hábeis em retórica, que poderiam não ser os mais sábios ou virtuosos. 22 Sua postura de incansável perguntador rendeu-lhe, porém, diversos inimigos: os poderosos, afinal, não gostavam nem um pouco de se verem expostos em sua ignorância. Resumo da ópera: foi acusado de corromper a juventude e de ensinar crenças contrárias à religião do estado e, num julgamento político e injusto, foi condenado à morte. Curiosamente a execução de Sócrates, quando ele contava 70 anos, coincide com a decadência da democracia ateniense, enfraquecida por intrigas, conspirações, corrupção e por uma crise de valores políticos e morais. 2.2 PLATÃO E O MUNDO DAS IDÉIAS Platão (428-347 a.C.) era um jovem de 29 anos quando Sócrates foi executado. A decepção com o regime democrático que, já em declínio, acabou por condenar seu mestre à morte, irá transparecer em toda a sua obra. O verdadeiro nome de Platão era Arístocles. Ateniense de família aristocrática, recebeu o apelido pelo qual ficou famoso por ter os ombros largos (os ossos que formam os ombros chamam-se omoplatas). Fiel a Sócrates, Platão compra a briga com os sofistas e continua denunciando aquilo que acredita ser o falso saber dos homens, principalmente no que se refere aos valores humanos. Desiludido, porém, com a democracia, afasta-se da participação política e elabora aquilo que viria a ser considerada a primeira grande sistematização do pensamento filosófico. Enquanto os sofistas defendiam que a verdade era fruto da convenção humana e ensinavam os homens a defender com brilhantismo qualquer ponto de vista, Sócrates ― preocupado em descobrir a essência das coisas ― se empenhava na produção de um "saber negativo", isto é, destruía a ilusão do saber, levando seus interlocutores a admitir que não conheciam a essência daquilo sobre o que falavam. Em suma: levava-os a reconhecer que não 23 sabiam coisa alguma. Platão, contudo, dá um passo além de seu mestre e ousa elaborar um "saber positivo", capaz de garantir a certeza do conhecimento e, conseqüentemente, de orientar a ação ética e política. Vejamos, então, algumas das perguntas que Platão procura responder: Como podemos conhecer a realidade? Qual o método, quer dizer, qual o caminho capaz de garantir que o conhecimento é válido e verdadeiro? Quais são os instrumentos mais adequados de que dispomos para chegar ao conhecimento: os sentidos ou a razão? O que queremos conhecer: o mundo material, mutável, perecível ou a realidade superior, a essência eterna e imutável? Finalmente: é possível conhecer a realidade, o mundo tal qual ele é? Para responder a essas questões, Platão preocupa-se desde o início com a clareza: é preciso criar definições, é preciso estabelecer com precisão o significado do que se diz, o significado das palavras, é preciso, em suma, criar conceitos. O método que Platão utilizou para criar conceitos foi a dialética. A dialética, portanto, responde à primeira pergunta: é o método platônico de superação da opinião (em grego, doxa). E qual o problema da opinião? É que ela expressa um ponto de vista baseado num juízo insuficiente (tenha-se ou não consciência dessa insuficiência). É mais uma crença do que um conhecimento, ou, se preferir, é um conhecimento falso, preconceituoso, sem um fundamento sólido. Os sofistas ― critica Platão ― defendem sem pudor qualquer pontode vista, isto é, qualquer opinião. Mas Platão não quer se limitar às opiniões: elas são múltiplas e podem variar de indivíduo para indivíduo. Ademais, algumas de nossas opiniões decorrem dos sentidos que, muitas vezes, nos enganam. 24 O conhecimento verdadeiro, por sua vez, é aquele que corresponde à essência das coisas, é o único apto a responder o que é algo. Deve ser, portanto, universal, aceito por todos independentemente de origem, classe, função ou interesses individuais. Esse conhecimento é chamado por Platão de ciência (ou, em grego, episteme). A admirável novidade expressa pelo pensamento de Platão é que ele não adota como ponto de partida do seu sistema filosófico nenhuma revelação externa, nenhuma autoridade divina nem algo que seja sobrenatural. Antes disso, parte da própria opinião, submetendo-a porém a um reexame crítico (lembre-se da dialética). Em seguida, leva às últimas conseqüências o discurso reflexivo, isto é, o discurso capaz de se voltar sobre o próprio discurso, preocupado em justificar-se e legitimar-se a si mesmo, chegando finalmente à verdade pela clareza, pela razão. A filosofia se converte, assim, numa análise crítica dos fundamentos, do discurso legitimador do conhecimento como "posse de uma representação correta do real". Com isso respondemos a segunda questão: a razão é mais refinada do que os sentidos para chegar ao verdadeiro conhecimento. Se você reparar respondemos também a terceira questão: o mundo material é mutável, é o mundo das opiniões e dos sentidos sujeitos ao engano, é o mundo do falso conhecimento dos sofistas; o mundo superior, das essências, por sua vez, é o que Platão almeja conhecer pela razão. E como, afinal, é possível conhecer a realidade, o mundo tal qual ele é? Para responder, Platão desenvolve a teoria das idéias. Teoria, nesse contexto, significa a capacidade de ver a "natureza essencial" das coisas em seu sentido eterno e imutável; é, pois, o caminho para conhecer a verdade. A "natureza essencial" de alguma coisa, por sua vez, corresponde àquilo que Platão chama de "idéia". Na alegoria da Caverna, Platão faz uma metáfora: o mundo no interior da caverna corresponde ao mundo sensível, isto é, ao mundo mutável dos fenômenos, da multiplicidade e do movimento. É um mundo ilusório e sujeito ao engano: pura sombra do verdadeiro mundo. 25 Os homens que passam entre a fogueira e os prisioneiros carregando objetos cujas sombras se projetam no fundo da caverna, criando a ilusão de que a projeção é a própria realidade, são os sofistas e os políticos atenienses que manipulam as opiniões dos homens comuns. Finalmente, aquele homem que se liberta e sai da caverna é o filósofo. O mundo externo é a metáfora do mundo inteligível ou mundo das idéias, ou, ainda, se você preferir, mundo das essências. A teoria filosófica é o único caminho para depuração dos sentidos que permite ao homem aproximar-se da contemplação das essências imutáveis. Para Platão, as idéias são as únicas verdades. O mundo dos fenômenos em que vivemos, portanto, é apenas a cópia do mundo superior. Um exemplo. Há diversos tipos de abelhas: grandes, pequenas, amarelas, negras etc. Mas essas variações só existem no mundo sensível, que é mutável e múltiplo. A essência ou idéia da Abelha, porém, é una, única, imutável e faz parte do mundo das idéias. Como é possível, contudo, ultrapassar a fronteira que separam esses dois mundos? Platão, para justificar tal dualismo, elabora a teoria da reminiscência, na qual supõe que o puro espírito já teria contemplado o mundo das idéias, mas tudo esquece quando se degrada ao se tornar prisioneiro do corpo, nascendo em nosso mundo. Assim, conclui Platão, conhecer é lembrar. A função dos sentidos, por sua vez, é despertar a alma para as lembranças adormecidas. Antes de encerrarmos, chamo a atenção para um detalhe importante. Na alegoria da caverna, o filósofo que se aproximou do mundo das idéias volta, em seguida, ao mundo sensível. Que conclusões podemos tirar disso? Como vimos no início, as corrupções que marcaram o declínio da democracia ateniense e a execução de Sócrates produziram em Platão uma enorme decepção levando-o a afastar-se da política. Esse afastamento, no entanto, não foi definitivo. Para Platão, a prática filosófica representa o "abandono provisório" do mundo sensível e a busca do mundo das idéias: se não temos condições da avaliar com clareza e eficácia a nossa prática quando nelas estamos imersos, é preciso romper com ela, olhá-la de outra esfera, avaliá-la de 26 longe para, somente depois, retornar com maior clareza. Com a filosofia, é certo, Platão enfatiza a teoria, mas não deixa que ela se transforme num fim em si mesmo, colocando-a à serviço de uma aplicação prática, baseada em princípios que vão além do imediato, da opinião. A filosofia se converte, desse modo, em condição racional da ação, conservando um interesse prático muito claro: a dimensão ética e política da existência humana. O filósofo, portanto, é, para Platão, aquele que sai da "caverna", mas não esquece o compromisso de retornar para alterar as relações humanas, conduzindo-as o mais próximo possível da verdade. A caverna, afinal, apesar de inferior, é o próprio mundo humano. Platão, finalmente, manifesta-se contrário à democracia, pois entende que o povo será sempre manipulado e enganado pelos políticos. A opinião, por mais equivocada que seja, parece a expressão da verdade quando bem defendida por um hábil orador e, assim, faz prevalecer interesses particulares em detrimento de interesses comuns. A tirania (governo violento e arbitrário) e a oligarquia (governo de uma minoria poderosa) também são rejeitadas, pois além de não garantirem decisões sábias, representavam uma volta indesejada ao passado. Como solução, Platão defende a construção de uma "sofocracia" (sophos, como já vimos, significa saber; krátos é governo; sofocracia é, literalmente, governo dos sábios). Nesse caso, sábios são os próprios filósofos que saem da caverna e, quando voltam, devem transformar-se nos governantes dos homens comuns, vítimas do conhecimento imperfeito. Ou, nas palavras do próprio Platão: "Os males não cessarão para os homens antes que a raça dos puros e autênticos filósofos chegue ao poder" (Carta VII). Na sociedade imaginada por Platão, a família e a propriedade deveriam ser eliminadas e a educação ficaria a cargo do Estado. As funções sociais de cada indivíduo seriam decididas de acordo com suas aptidões. Assim, os indivíduos com "alma de bronze", isto é, de sensibilidade mais grosseira, cuidariam da subsistência da cidade, dedicando-se ao artesanato, ao comércio e à 27 agricultura. Os indivíduos com "alma de prata", considerados os mais corajosos, cuidariam da defesa da cidade. Por fim, os indivíduos com "alma de ouro" seriam instruídos na arte de pensar a dois, isto é, na arte de dialogar. Estudariam filosofia até os cinqüenta anos quando, então, seriam admitidos no corpo supremo dos magistrados, a quem caberia o governo da cidade. 2.3 A FILOSOFIA MEDIEVAL DE AGOSTINHO E TOMÁS DE AQUINO No século II a.C. a Grécia já se encontra sob o domínio do Império Romano. A perda da autonomia das cidades gregas, contudo, não significou o aniquilamento de sua cultura mas, curiosamente, a sua expansão: os romanos reconheceram e difundiram o pensamento filosófico da Grécia Antiga. No plano político, porém, a vida sob o domínio do Império é drasticamente alterada: o cidadão não é mais aquele que participa coletivamente das decisões políticas em praça pública, redigindo leis e votando. Em Roma, diferentemente, são poucos os que detêm poder político. Tal fato acaba por gerar uma mudança no enfoque da Filosofia que, ao deixar de lado os problemas políticos, volta-se para o interior do homem, preocupando-se fundamentalmente com a vida privada e com as regras de condutasociais destinadas ao bom viver. No campo da ética, os filósofos romanos não chegaram perto da grandeza e originalidade dos gregos. Sua grande contribuição, contudo, refere-se ao direito. Foram eles os responsáveis ― ainda sob a influência da filosofia grega ― por elaborar um sistema jurídico impessoal, sistemático e técnico. É ainda sob o domínio do Império Romano que nascerá Jesus. Após sua crucificação surgem diversos seguidores de Cristo, todos inicialmente combatidos pelo Império. Lentamente, o cristianismo, tornado religião, foi se difundindo em diversas comunidades sem, contudo, possuir uma unidade. Ameaçada não apenas pelo Império, mas também pelas divergências internas, foi necessária a criação de uma unidade institucional que desse à nova 28 religião a identidade capaz de proporcionar maior integração entre as comunidades cristãs. Nesse processo, a Filosofia grega terá importância fundamental, contribuindo com a formulação de uma doutrina única ou ortodoxa,que significa, literalmente, doutrina correta, rechaçando-se as doutrinas divergentes como heréticas, isto é, que contrariam os dogmas da Igreja. Diversos teólogos se opõem à utilização da filosofia grega, alegando tratar-se de um pensamento pagão, ou seja, alheio à mensagem cristã e, portanto, pernicioso, perigoso. Outros teólogos, por sua vez, sustentam que a filosofia grega é uma preparação racional para a fé, podendo desempenhar um papel legítimo, desde que submetida aos textos sagrados. Essa tensão que se estabeleceu entre a teologia e a filosofia ficou conhecida como o conflito entre razão e fé e permeou as discussões religiosas entre os séculos II e V da nossa Era, marcando, também, a decadência do Império Romano. A patrística, surgida nesse contexto, é a filosofia dos Padres da Igreja, também conhecidos como apologistas. Seu objetivo: combater as heresias e justificar a fé. Sua estratégia: mesclar fé e razão, subordinando esta àquela. O principal nome da patrística é Agostinho (354-430). Nascido em Hipona, uma província pertencente ao Império Romano, converte-se ao cristianismo aos 32 anos e, em 395, torna-se bispo. Quando morre, na primeira metade do século V, sua cidade já está cercada pelos vândalos: é a dissolução do Império. Cronologicamente, Agostinho é, ainda, um pensador do período antigo. Sua obra, porém, reflete as mudanças históricas de sua época e prenuncia o importante papel cultural exercido pelo cristianismo ao longo da Idade Média, além de contribuir para a consolidação da filosofia cristã. Após sua morte foi canonizado pela Igreja, passando a ser chamado pelos cristãos de Santo Agostinho. A aproximação rigorosa e sistemática que Agostinho elaborou entre o cristianismo e a filosofia de Platão ficou conhecida como platonismo cristão. O dualismo característico da teoria das idéias e da teoria da reminiscência é recuperado e transformado por Agostinho na teoria da 29 iluminação, da qual decorre a noção de interioridade, que prenuncia o conceito de subjetividade do mundo moderno. Para Agostinho ―assim como para Platão ― o conhecimento supõe algo anterior aos sentidos e à própria linguagem. No lugar, porém, do mundo das idéias, Agostinho coloca Deus. A teoria da reminiscência, por sua vez, é substituída pela teoria da iluminação. Vejamos como. Platão argumenta que não é possível ensinar a Virtude: trata-se antes de "lembrar" sua essência (contemplada no mundo das idéias por todo ser humano antes de nascer). Agostinho concorda com Platão: a Virtude não pode ser ensinada! Veja o que diz o filósofo cristão sobre o conhecimento: No que diz respeito a todas as coisas que compreendemos, não consultamos a voz de quem fala, a qual soa por fora, mas a verdade que dentro de nós preside à própria mente, incitados talvez pelas palavras a consultá-la. Quem é consultado [...] é Cristo, que habita [...] no homem interior. E ainda: “ [...] quem nos ouve conhece o que eu digo por sua própria contemplação e não através de minhas palavras." Em sua última obra, A Cidade de Deus, Agostinho formula uma concepção histórica com um sentido, com uma direção, com início, meio e fim. O evento inicial da história é a Criação, seguida por sucessivas rupturas e alianças com o Criador, desde a expulsão e queda de Adão e Eva do Paraíso até o juízo final e a redenção. A aliança entre Deus e o homem é representada pela cidade divina que, ao final, prevalecerá, pois é a finalidade da história. Os momentos de ruptura da aliança correspondem à prevalência provisória da cidade terrena, que é também a cidade do pecado. A influência de Agostinho é fundamental para a consolidação da Igreja que, menos preocupada em combater os bárbaros (até porque não possuía condições de derrotá-los pelas armas), passa a convertê-los, iniciando o processo de cristianização da Europa ocidental. É também com o auxílio do pensamento agostiniano que a Igreja, a "detentora terrestre das chaves 30 da cidade de Deus", mantém a supremacia do poder espiritual sobre o poder temporal durante a Idade Média. O poder temporal, aliás, sem a centralização anteriormente proporcionada pelo Império, se fragmenta. Com isso, as cidades transformam-se em lugares inseguros. As pessoas refugiam-se no campo e deixam de fazer viagens. O comércio praticamente desaparece. A economia torna-se agrária e de subsistência. A população, de servos a nobres, torna-se cada vez mais analfabeta. Acentuam-se as disputas políticas entre duques, condes e barões, que montam suas próprias milícias e muitas vezes detêm mais poder que o próprio rei.Em um mundo assim fragmentado, a Igreja representa um elemento agregador e de forte influência. Grande parte da cultura greco-romana, afinal, é conservada nos mosteiros. E os monges, os únicos letrados da Idade Média, tornam-se os responsáveis por elaborar a fundamentação religiosa dos princípios morais, políticos e jurídicos da sociedade medieval. No século XIII, quando nasce Tomás de Aquino (1225-1274), o panorama medieval se encontra em franca transformação. O renascimento do comércio estimula o surgimento de novos núcleos urbanos. Desde a criação da universidade de Direito de Bolonha, em 1088, não cessam de surgir novas universidades espalhadas pela Europa. A demanda por educação aumenta consideravelmente, atendendo não apenas aos anseios eclesiásticos, visando à formação de uma elite para combater os "hereges", mas também civis, pois a vida urbana exige pessoas qualificadas para ocupar os cargos do governo e da administração pública. Quando as dificuldades decorrentes da tensão entre a teologia cristã e a filosofia grega transformam-se em assuntos universitários, tem início a escolástica, ou literalmente: doutrina da escola, marcada, a princípio, pelo platonismo agostiniano. Todavia, o renascimento do comércio intensifica as viagens e, com isso, o contato com outras culturas. A filosofia árabe, bastante avançada para a época, traz ao ocidente cristão a obra de Aristóteles. A novidade intelectual, porém, é vista pela Igreja com severas restrições ― a 31 concepção filosófica do estagirita é ao mesmo tempo rigorosa e divergente da teologia elaborada até então ― e, ameaçada, apressa-se em condenar trechos dos textos aristotélicos. Não obstante, seu pensamento é bem acolhido no ambiente universitário, que procura desenvolver-se com liberdade e autonomia. A obra de Tomás da Aquino é resultado de sua carreira como professor universitário. Seduzido pela obra de Aristóteles, procura demonstrar a sua compatibilidade com a filosofia cristã, tornando-se, assim, o maior nome da escolástica. Como cristão, Tomás de Aquino se revela um pensador racionalista e extremamente rigoroso. A função da Filosofia, contudo, continua sendo a de servir à fé. Seu propósito intelectual é provar racionalmente a existência de Deus. Para tanto, argumenta que a definição de Deus como sendoa própria perfeição nada prova , pois a definição é uma idéia e nada garante que ela exista de fato na realidade. Argumenta, ainda, que a existência divina não é auto-evidente, mas precisa ser demonstrada. O ponto de partida para o conhecimento racional, Deus é, de acordo com Tomás de Aquino, o mundo sensível, percebido pelos sentidos: por meio deles todo e qualquer ser humano apreende a existência auto-evidente do movimento das coisas, por exemplo, um dado inegável da realidade. O movimento, contudo, é sempre causado por alguma outra coisa. E para que a série das causas não se estenda ao infinito e possa ser compreendida pela razão, é preciso chegar à noção de causa primeira. É aí que o frade dominicano, ao se deixar influenciar pela obra de Aristóteles, adapta-a ao cristianismo: a primeira causa eficiente do movimento de todo o universo, e que é também a sua causa primeira, é Deus. Além de produzir uma síntese da obra aristotélica, adaptando-a aos dogmas cristãos, Tomás de Aquino influencia-se também pela visão política do filósofo grego, estudando questões como a natureza do poder e das leis. Chega, ao final, à conclusão de que a realização humana se 32 aprimora na cidade e que o plano político é a instância possível para o governo não-tirânico aliar ordem e justiça. Ainda que Tomás de Aquino faça a ressalva de que o Estado conduz o ser humano até certo ponto e que, a partir daí, é necessária a atuação indispensável da Igreja, mantendo, portanto, o poder temporal da Igreja acima do poder temporal dos reis, já se nota uma atenuação dessa hierarquia. Não deixa de ser um prenúncio da desarticulação entre política e religião, que ocorrerá no Renascimento, como veremos no próximo tema. 3 FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA 3.1 O QUE SIGNIFICA MODERNIDADE? A Idade Média estendeu-se do século V ao século XIV da nossa era. Mil anos, portanto. A partir do século XV a Igreja começa a perder parte de seu poder para os reis, cada vez mais fortes. Inglaterra, França, Portugal e Espanha se constituem em monarquias nacionais. À perda de influência da nobreza e do clero, corresponde a ascensão de uma nova classe social: a burguesia. Dedicados às finanças e ao comércio, os burgueses passam a apoiar a coroa em troca de proteção aos seus negócios. Os séculos XV e XVI constituem, assim, o Renascimento: período de intensas transformações. Uma das mais notáveis é o declínio da perspectiva teocêntrica ― tipicamente medieval ― e o desenvolvimento da mentalidade antropocêntrica: o indivíduo volta a ser valorizado em sua integralidade. O humanismo renascentista, ao defender a independência e a liberdade de pensamento, e ao retomar sob um nova perspectiva algumas idéias e valores da Antigüidade greco-romana, 33 rompe com a visão filosófico-religiosa da Idade Média e prepara o terreno para o desenvolvimento da modernidade nos séculos XVII e XVIII. Se, porém, o termo Renascimento remete à retomada de algumas idéias e valores da Antigüidade, o conceito de modernidade merece maior atenção. Ao que tudo indica, a origem etimológica do vocábulo moderno deriva do advérbio latino modo, que significa agora, neste instante, no momento, ou seja, designa o que nos é contemporâneo. Por isso, nos habituamos a relacionar o conceito de modernidade àquilo que é novo, que rompe com a tradição. No dia-a-dia, o termo moderno adquire um sentido positivo de mudança, transformação, progresso (um cinema moderno, por exemplo, é um cinema bem equipado, com tecnologia de última geração e design arrojado). Historicamente, contudo, a modernidade é o período compreendido entre os séculos XVII e XVIII. Trata-se de um período diretamente relacionado à supervalorização do indivíduo e da idéia de progresso. 3.2 RACIONALISMO E EMPIRISMO O francês René Descartes (1596-1650) nasceu numa época de transição, em meio ao "fogo cruzado" de um novo pensamento que se anunciava e do pensamento tradicional, que ainda sobrevivia de maneira muito forte. Não é exagero dizer que a filosofia cartesiana inaugura o pensamento moderno. Situando-se, porém, num período de transição, ela possui ao mesmo tempo elementos de ruptura e de continuidade em relação à filosofia antiga e medieval. Importante deixar bem claro que a ruptura com a tradição não significa que o filósofo a ignora, mas sim a critica. Ou melhor: ele aborda os temas da filosofia tradicional sob uma nova perspectiva. 34 De acordo com Descartes, nada garante que o saber cotidiano, adquirido pela tradição ou pela experiência, sem maiores preocupações com o método, seja de fato um conhecimento verdadeiro. Antes disso, pode tratar-se apenas da consolidação de erros acumulados através dos anos. Não foi outra coisa, a propósito, o que Descartes testemunhou em sua época: a ciência de inspiração aristotélica havia perdurado por aproximadamente dois mil anos, mas ruiu aos pés do modelo de ciência inaugurado por Copérnico, Galileu e Kepler, desautorizando, inclusive, o discurso oficial da Igreja, cuja autoridade ficou irremediavelmente abalada. Como, a partir de então, seria possível garantir a certeza do conhecimento? Descartes volta-se para dentro de si mesmo: ele aposta no poder crítico da razão. Logo no início de uma de suas mais importantes obras, o Discurso do Método, ele afirma que o bom senso é natural ao homem e compartilhado por todos. O erro, por sua vez, resulta do mau uso da razão. Para evitá-lo, conclui, é preciso desenvolver um método, isto é, um caminho, um procedimento capaz de garantir a certeza do conhecimento. Fascinado pela matemática devido à sua certeza e ao seu caráter auto-evidente (a verdade matemática mostra em si mesma o seu próprio fundamento), Descartes a elege como modelo metódico para chegar à certeza também em outras esferas do saber como a Física, a Moral e a Metafísica. Em outras palavras: seu objetivo é alargar o campo de eficácia da razão por meio de um método de aplicação universal, capaz de fundamentar a unidade do saber. Em certo sentido, Descartes se coloca na contramão de seu tempo. Nos períodos de crise, em que a tradição ainda não morreu e a novidade ainda não se impôs, é compreensível que a maioria das pessoas se sintam mergulhadas num mar de incertezas. Daí a simpatia que seus contemporâneos nutrem pelos filósofos céticos da Antigüidade. Descartes, ao contrário, pretende encontrar uma certeza básica e absoluta, imune às dúvidas céticas. A etapa inicial da argumentação cartesiana elege a dúvida como recurso metodológico. A chamada dúvida metódica coloca tudo em xeque: as crenças, as opiniões, os 35 sentidos, o conhecimento adquirido pela tradição, pela experiência, pela autoridade etc. Descartes chega, então, a criar a "dúvida hiperbólica" (exagerada): e se a realidade for uma ilusão; e se o mundo foi criado por um gênio maligno ou por um deus enganador que se diverte brincando de enganar meus sentidos? Ao elevar a dúvida até o limite, Descartes abre o caminho para chegar à sua primeira certeza: se existe um gênio maligno que gosta de me iludir é necessário, então, que eu exista. E, por mais que o gênio maligno me engane, jamais poderá fazer com que eu não seja nada. Sendo assim: se eu duvido, é porque eu penso. Se eu penso, é porque eu existo. Daí, sua celebre afirmação: "penso, logo existo" (em latim: cogito, ergo sum). Resumindo: para duvidar é necessário pensar. A existência do ser pensante, portanto, não está sujeita à dúvida: trata-se de uma certeza básica, originária. Ao atingir, porém, a certeza da existência da substância pensante, Descartes continua duvidando do corpo. Ter certeza sobre a existência do corpo significaria ir além do pensamento puro, dependeria dos sentidos, da experiência, do conhecimento adquirido. Mas nada disso pode ser garantido pela certeza do cogito, isto é, do pensamento. Difícil, aliás, nãolembrar aqui do filme The Matrix. Para garantir a passagem do mundo interno para o externo, Descartes lança mão da chamada "prova ontológica da existência de Deus". A existência da dúvida, argumenta o filósofo, prova a carência de conhecimento do ser humano, que se percebe imperfeito e finito. Dúvida = imperfeição e finitude humana. As idéias de perfeição e infinitude, por sua vez, não podem ser fruto da mente humana, afinal a razão e o bom senso garantem que uma idéia nunca pode ser maior do que a sua causa. Desse modo, um ser finito não pode causar a si mesmo a idéia de infinitude. Assim, perfeição e infinitude são idéias inatas, causadas nos homens por um ser perfeito e infinito, ou seja, Deus. Se Deus possui todas as perfeições em grau infinito, deve possuir também o atributo da existência, 36 portanto, conclui Descartes, Deus existe (pensar em Deus como inexistente seria, para Descartes, pensá-lo sem um atributo da perfeição, o que é impossível para o raciocínio por ele sustentado). Deus = Perfeição e Infinitude. Uma vez comprovada racionalmente a existência de Deus, bem como sua perfeição e infinitude, conclui-se que Deus é bom e não pode produzir um mundo que seja uma ilusão. Os erros do entendimento humano decorrem de nossas imperfeições que, apesar de tudo, podem ser atenuadas por um método rigoroso. Deus é, assim, a ponte que leva das idéias ao real. A filosofia cartesiana é, portanto, uma filosofia dualista, que separa corpo e mente. A realidade da alma ― que Descartes chama de substância pensante - é completamente separada da realidade do corpo ― a substância extensa. É, também, uma filosofia idealista e racionalista: a desconfiança que nutre pelos sentidos leva-o a recusá-los como ponto de partida do conhecimento; este, por sua vez, se constitui a partir das idéias, submetidas sempre ao crivo da razão. Há, assim, isolamento do “eu" (solipsismo) em relação a todo o mundo externo, incluindo o próprio corpo: a consciência está condenada à certeza solitária de si mesma. Não podemos esquecer, contudo, que o objetivo de Descartes é fundamentar a possibilidade do conhecimento científico. Afirmar a existência de Deus foi o modo que Descartes encontrou para superar seu idealismo em direção a uma filosofia realista, capaz de estabelecer a ponte entre o mundo interior e o exterior e, com isso, fundamentar o conhecimento científico. Em suma: Descartes rompe com a tradição filosófica ao preocupar-se com o desenvolvimento de uma metodologia rigorosa, capaz de fundamentar a ciência nascente e, nesse sentido, se faz moderno. Todavia, ao invocar Deus para não cair no ceticismo que pretendia refutar, Descartes conserva um aspecto da filosofia tradicional, qual seja, o recurso à metafísica. John Locke (1632 - 1704) defendia uma teoria do conhecimento que, posteriormente, ficou conhecida como empirismo. A palavra empeiria vem do grego e significa "experiência". Em 37 sua obra Ensaios sobre o entendimento humano, opõe-se a Descartes e combate a tese das idéias inatas. Para o filósofo inglês, o processo de conhecimento nunca é anterior à experiência. Antes o contrário: é sempre o resultado das elaborações que fazemos de nossa experiência, sentidos e impressões sobre o real. Locke, portanto, não adota uma abordagem racionalista, ou seja, o ponto de partida do conhecimento não é a razão. Antes disso, ele afirma que a mente do ser humano, ao nascer, é uma tábula rasa, isto é, uma folha em branco, vazia, e que a experiência vai, aos poucos, fornecendo os dados para a futura elaboração do conhecimento. Se não fosse assim, as crianças já estariam aptas a encontrar em si as idéias inatas. Ademais, observa Locke, a idéia de Deus não se encontra em toda parte ou, no mínimo, há povos que não desenvolvem a representação de um Deus como ser perfeito. Sendo assim, Locke sustenta que há duas fontes possíveis para o desenvolvimento do conhecimento: a sensação e a reflexão. A sensação é resultado dos estímulos externos e fornece elementos para o desenvolvimento das idéias simples. A reflexão, por seu turno, se reduz à elaboração interna das sensações, produzindo as idéias complexas. As idéias simples são as que resultam da percepção da qualidade das coisas, como solidez, extensão, cor, som, sabor etc., que são relativas e subjetivas, podendo variar de sujeito para sujeito. Finalmente, por meio da análise, o sujeito ata e desata as idéias simples, produzindo idéias complexas. Estas são formadas exclusivamente pelo intelecto e não têm validade objetiva: são nomes que criamos para ordenar as coisas. Seu valor é prático e não, cognitivo. Ao aceitar a sensibilidade como ponto de partida do conhecimento, Locke rejeita a Metafísica e conclui que não podemos conhecer as coisas em sua essência. Em outras palavras: podemos ter opiniões sobre o mundo natural, mas não conhecimento verdadeiro. 38 Se compararmos o racionalismo cartesiano com o empirismo de Locke, podemos dizer que este privilegia a experiência sensível como fonte inicial do processo de conhecimento enquanto Descartes privilegia a razão. Isso não quer dizer que o racionalismo despreza a experiência sensível, mas que ela está sujeita a enganos e, portanto, o verdadeiro conhecimento se elabora no espírito. O empirismo, por sua vez, não despreza o uso da razão. Apenas subordina o seu uso ao resultado da experiência. As conseqüências de se adotar uma teoria ou outra são enormes. Os racionalistas confiam na possibilidade de se atingir verdades universais e eternas. Os empiristas admitem que o conhecimento se inicia sempre a partir de uma realidade em constante transformação e, com isso, acabam por questionar o caráter absoluto da verdade, concluindo que tudo é relativo ao espaço, ao tempo, ao humano. Foi, contudo, o filósofo escocês David Hume (1711-1776) quem levou ao limite o pensamento empirista. Assim como Locke, Hume descarta a possibilidade de se conhecer a essência das coisas. O espírito, ou a essência do ser humano, enquanto algo imutável, não pode ser conhecido. Não há metafísica possível. Tudo que resta é a natureza humana, entendida não como substância, mas reduzida às maneiras pelas quais a mente associa idéias. O que importa, para Hume, é investigar como se dão tais associações. O conhecimento, pode-se argumentar, inicia-se na experiência e depende de nossa capacidade racional de compreender as relações de causa e efeito da natureza. Hume, porém, coloca sob suspeita as relações de causa e efeito que pensamos encontrar na natureza. O fogo queima? É o que a experiência nos confirma. A regularidade da natureza e as relações de causa e efeito dos fenômenos naturais, contudo, não existem senão em nossa mente. Não se trata de uma verdade absoluta, mas de um pressuposto indispensável ao processo de conhecimento. 39 Se todas as vezes que me encostei-se ao fogo, queimei-me, se o mesmo aconteceu com todas as outras pessoas, sou capaz de prever, pressupondo a regularidade da natureza, que, no futuro, se entrar novamente em contato com o fogo, mais uma vez me queimarei. O hábito, e nada mais do que o hábito, nos leva a formular a noção de causa e efeito que, todavia, não é um dado da natureza. A razão, portanto, é limitada para conhecer as coisas. O máximo que ela consegue é fazer relações a partir do hábito. Conclusão. O verdadeiro e o absoluto são inatingíveis. E mais: as afirmações metafísicas carecem de provas e fundamentos. Reside nisso, aliás, o ceticismo de Hume. Uma certeza é um conhecimento plenamente demonstrado, que não admite dúvidas. Mas o que não admite dúvidas? Tudo o que conhecemos depende da nossa sensibilidade, dos nossos instrumentos de medição, de teorias, de conceitos. O conhecimento humano começa e termina no mesmo lugar: a- todo conhecimento parte necessariamente dos sentidos e da razão; b- toda certeza esbarra necessariamentenas limitações dos sentidos e da razão. 3.3 O CRITICISMO DE KANT Immanuel Kant (1724-1804) foi um dos principais nomes do Iluminismo alemão. De início, seduzido pelo racionalismo, torna-se leitor de Hume e compreende que não só é possível como aconselhável colocar a razão em dúvida, chegando, por isso, a dizer que Hume o despertou de seu "sono dogmático". Dogmático é aquele que aceita sem questionamentos ―sem crítica, portanto ― algumas idéias. É nesse sentido ― denuncia Kant ― que toda a filosofia anterior a Hume incorreu no erro dogmático, pois aceitou, sem questionar, sem criticar, que conceitos tais como: Deus, alma, 40 infinito e finito, causa e efeito, matéria e forma, substância etc., pudessem ter uma realidade em si mesma que fosse, de algum modo, apreensível pela razão. Ou, dito de modo inverso: nada prova que as idéias produzidas por nossa razão correspondam exatamente a uma realidade externa, que existe em si e por si. Dessa forma, ao elaborar a sua teoria do conhecimento, Kant coloca a razão em um "tribunal" a fim de avaliar cuidadosamente o que pode ser conhecido de modo legítimo e qual o tipo de conhecimento que não tem fundamento. Sua Crítica da razão pura, como o nome indica, tem o objetivo de avaliar criticamente até que ponto é possível falar em "razão pura", independentemente da experiência individual. Por esse motivo, aliás, seu método é conhecido como criticismo. A ambição filosófica de Kant é superar a dicotomia entre o racionalismo e o empirismo. Para tanto, propõe aquilo que ele mesmo chama de uma "revolução copernicana" em Filosofia. De acordo com Kant, toda filosofia anterior, incluindo racionalistas e empiristas, cometeram o mesmo erro: elaboraram teorias do conhecimento partindo da realidade (podemos dizer: dos objetos, das coisas) e não da razão. Ou seja: colocaram os objetos no centro do processo de conhecimento e deixaram os sujeitos girando em torno deles. Acreditaram, ainda, que a realidade era racional, podendo ser conhecida integralmente pelas idéias da razão. A "revolução copernicana" em Filosofia inverteu o jogo; deslocou os objetos do centro do processo de conhecimento e em seu lugar colocou o próprio sujeito do conhecimento. Ora, se o Iluminismo procurou elevar a razão ao status de Sol" capaz de iluminar as trevas da ignorância, cumpria colocar esse "Sol" no centro do conhecimento e indagar: a- O que é a razão? b- O que é a experiência? c- O que elas podem e não podem conhecer? 41 O erro dos racionalistas (entre eles Descartes) foi o de supor que as idéias são inatas, o que não se pode provar; o erro dos empiristas (entre eles Locke e o próprio Hume) foi o de supor que a "estrutura da razão" é adquirida pela experiência. Kant procura superar o impasse. A razão, afirma, é uma estrutura vazia, sem conteúdo, pura forma. Essa estrutura não é adquirida pela experiência nem é subjetiva. Antes disso, é inata (todo ser humano nasce com ela) e, assim, universal. A estrutura da razão, portanto, é anterior à experiência, ou, como diz Kant, usando um termo latino, é a priori: é uma condição para que, posteriormente, o conhecimento seja atingido. Se a razão é uma estrutura formal, é a experiência, por sua vez, que fornecerá a matéria, isto é, o conteúdo (variável) do conhecimento. Ou melhor: o conhecimento racional é a síntese que a razão realiza entre uma forma universal inata e um determinado conteúdo oferecido pela experiência. De acordo com Kant, a estrutura a priori da razão é constituída pela forma da sensibilidade (isto é, a capacidade da percepção sensorial) e pela forma do entendimento (isto é, a capacidade da inteligência ou do intelecto). A função da razão, separada da sensibilidade e do intelecto, não é conhecer coisa alguma, mas regular e controlar a sensibilidade e o intelecto. A partir dos dados da experiência (conteúdo variável), colhidos pela sensibilidade e pelo intelecto (estrutura inata e universal), a razão produz uma síntese, quer dizer, organiza as percepções transformando-as em conhecimentos intelectuais ou conceitos. Para se explicar melhor, Kant desenvolve os conceitos de juízos analíticos, juízos sintéticos e juízos sintéticos a priori. No juízo analítico o predicado, isto é, a qualidade, a característica, faz parte da própria existência do sujeito; ele não produz conhecimento, apenas descreve o próprio sujeito. Um exemplo: o triângulo possui três lados . O predicado "três lados" independe da experiência, é 42 universal e necessário: é, como diz Kant, a priori. Outros exemplos: "o calor é uma medida de temperatura dos corpos"; "a água é um elemento". Quando, porém, o predicado nos dá novas informações sobre o sujeito e permite a síntese entre ambos, fazemos um juízo sintético. Veja: "o calor dilata os corpos" ou "a água ferve a 100 graus centígrados". O que acontece nesses enunciados? Os predicados "dilata os corpos" e "ferve a 100 graus" são informações novas sobre os sujeitos "corpos" e "água" respectivamente. No juízo sintético, portanto, nota-se uma relação causal entre sujeito e predicado. Em resumo, o juízo analítico é uma verdade da razão.O juízo sintético, porém, não pode ser considerado uma verdade de fato, pois os hábitos associativos de nossa mente (por exemplo: "a água ferve toda vez que chega aos 100 graus centígrados") foram colocados sob suspeita desde Hume. E Kant, por sua vez, admite a insuficiência do hábito ― e portanto da experiência – para se atingir um conhecimento verdadeiro, universal e necessário. Para superar o impasse, Kant introduz a idéia de juízo sintético a priori, isto é, um tipo de juízo cuja síntese depende da estrutura universal e necessária da razão e não da variabilidade das experiências individuais. A noção de causalidade, por exemplo (assim como a de quantidade e de qualidade, entre outras), não é dada pelos sentidos. Trata-se, como diz Kant, de uma categoria do entendimento, ou seja, a causalidade não tem uma existência em si mesma, ela não está na natureza; antes disso, faz parte da estrutura a priori da razão. Ou, ainda: a noção de causalidade é uma síntese a priori feita pela razão humana e que permite a elaboração de enunciados universalmente válidos, independente da experiência. Concluindo: todo conhecimento começa pela experiência, mas resulta, em última instância, das relações estabelecidas entre as impressões (que possibilitam a experiência) e a estrutura a priori da razão (que permite a elaboração do juízo sintético a priori). Ou seja, o conhecimento é uma composição entre a matéria (resultado da experiência) e a forma (estrutura a 43 priori da razão). Ao levar seu rigoroso raciocínio às últimas conseqüências, Kant conclui pela impossibilidade de conhecermos os seres da metafísica, afinal não temos qualquer experiência sensível sobre eles. Assim, finaliza Kant, não podemos conhecer a coisa-em-si, não podemos conhecer a essência, a substância (o noumenon, como diz o filósofo) das coisas. Tudo o que podemos conhecer são os fenômenos (phainomenon), isto é, aquilo que "aparece" para nós. A realidade, portanto, não é exterior ao intelecto. Antes o contrário: o mundo dos fenômenos só existe na medida em que "aparece" para nós e, nesse sentido, participamos de sua construção. A Filosofia de Kant, com isso, esbarra no idealismo. Ainda que reconheça a importância da experiência como fornecedora da matéria do conhecimento, é a razão, com sua estrutura a priori, que constrói a ordem do universo. 3.4 O CONTRATUALISMO DE HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU A modernidade foi, também, um período de intensas transformações políticas. E apesar das diferenças, às vezes radicais, que diferenciam os pensadores modernos entre si, há elementos que os une em uma mesma constelação intelectual. A descoberta do Novo Mundo e das tribos selvagens no início
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