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REVISTA DIREITO GV | SÃO PAULO | V. 14 N. 2 | 367-392 | MAIO-AGO 2018ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS
A “empresa-campo” e a produção
da “vida nua”: direitos humanos e o
trabalho escravo contemporâneo sob a
perspectiva biopolítica 
The “company-camp” and The producTion of “naked life”: human righTs and
conTemporary labor slave under The biopoliTical perspecTive
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth1 e Joice Graciele Nielsson2
Resumo
O artigo perspectiva a questão do trabalho escravo no Brasil contemporâneo a
partir do marco teórico da biopolítica – descortinado pela obra de Michel Foucault
e revisitado pelo projeto filosófico de Giorgio Agamben – e da metodologia do
estudo de caso. Busca-se responder ao seguinte problema de pesquisa: em que
medida a empresa que se utiliza de mão de obra escrava pode ser compreendida
como um espaço passível de subsunção ao conceito de campo delineado pela obra
agambeniana? O texto encontra-se dividido em duas partes: na primeira, apresen-
ta-se a questão relacionada ao transbordamento do estado de exceção na con-
temporaneidade, relacionando-a ao tema central do artigo; na segunda, a partir do
conceito de “campo” elaborado pela filosofia agambeniana, procura-se evidenciar
a figura da “empresa-campo” como espaço por excelência da produção da exceção
em relação ao sujeito reduzido à condição de escravo (“vida nua”). O “Caso Fazenda
Brasil Verde versus Brasil”, julgado recentemente pela CorteIDH, é então apre-
sentado como exemplo privilegiado para a análise empreendida.
Palavras-chave
Sistema Interamericano de Direitos Humanos; biopolítica; trabalho escravo; empre-
sa; campo.
Abstract
The article focuses on the issue of slave labor in contemporary brazilian reality
from the theoretical framework of biopolitics – unveiled by michel foucault’s
work and revisited by giorgio agamben’ s philosophical project – and the method-
ology of the case study. The following research problem is sought: could a
company that uses slave labor be considered a space subsumed to the concept of
the camp, as outlined by the agambenian work? if so, to what extent? The article
is composed in two parts: in the first one, the question is to the overflowing of the
state of exception in contemporaneity, relating it to the central theme of the arti-
cle; in the second, from the concept of “camp” elaborated by the agambenian
philosophy, we try to reveal the figure of the “firm-camp” as the space par excel-
lence of the production of the exception in relation to the subject reduced to the
condition of slave (“naked life”). The “fazenda brasil verde v brazil case”,
recently judged by the inter-american court of human rights, is then presented
as a prime example for the undertaken analysis.
Keywords
inter-american human rights system; biopolitics; slavery; company; camp.
1 Universidade Regional
do Noroeste do Estado
do Rio Grande do Sul
Ijuí – RS – Brasil
https://orcid.org/0000-0002-7365-5601
2 Universidade Regional
do Noroeste do Estado
do Rio Grande do Sul
Ijuí – RS – Brasil
https://orcid.org/0000-0003-3808-1064
Recebido: 30.04.2017
Aprovado: 09.03.2018
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/2317-6172201816
V. 14 N. 2
MAIO-AGO 2018
ISSN 2317-6172
http://dx.doi.org/10.1590/2317-6172201816
https://orcid.org/0000-0003-3808-1064
https://orcid.org/0000-0002-7365-5601
368:A “EMPRESA-CAMPO” E A PRODUÇÃO DA “VIDA NUA”
INTRODUÇÃO
Em outubro de 2016 o Brasil, mais uma vez, foi reconhecido no cenário internacional como
um país violador de Direitos Humanos. Depois dos emblemáticos casos envolvendo violên-
cia doméstica (Caso Maria da Penha), violência manicomial (Caso Damião Ximenes Lopes)
e prisional (Casos Presídio Central de Porto Alegre e Complexo Penitenciário de Pedrinhas),
o país foi protagonista do primeiro julgado sobre o tema da escravidão e do tráfico de pes-
soas da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) – órgão jurisdicional do Sis-
tema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos (SIDH).
Em sentença datada de 20 de outubro de 2016, a CorteIDH, ao jugar o caso “Fazenda
Brasil Verde versus Brasil”, condenou o Estado brasileiro a indenizar os trabalhadores resga-
tados na fazenda pertencente Grupo Irmãos Quagliato, situada no estado do Pará. Na sen-
tença, foi declarada a responsabilidade internacional do Estado brasileiro pelas violações aos
direitos estabelecidos na Convenção Americana de Direitos Humanos (notadamente aque-
les relacionados à proibição da escravidão e da servidão, à liberdade pessoal e à integridade
física, psíquica e moral da pessoa), fixando-se a soma de US$ 30.000 a título de indenização
por dados imateriais para cada um dos 43 trabalhadores que foram resgatados em fiscaliza-
ção ocorrida no ano de 1997 e a soma de US$ 40.000 a título de indenização para os 85
trabalhadores da fazenda resgatados em 2000.
A referida empresa – que opera no setor da criação de gado – já havia passado por mais
de 12 fiscalizações do Ministério do Trabalho até ser denunciada ao SIDH. Haviam sido reco-
nhecidas irregularidades e violações de direitos dos trabalhadores em todas as fiscalizações.
Além da falta de alojamentos adequados, foi detectada ausência de energia elétrica, alimenta-
ção de péssima qualidade e insuficiente – condições que implicavam constantes problemas de
saúde aos quais não era dada a devida atenção – e trabalho em jornadas muito acima das esta-
belecidas em lei. Também ficou evidenciado nessas fiscalizações que o material de trabalho
utilizado pelos trabalhadores era descontado de seus rendimentos, o que era utilizado como
mote para mantê-los atrelados à Fazenda em condições degradantes diante da dívida que se
avolumava cada vez mais. 
Mesmo tendo ciência dessas violações, o Estado brasileiro nada fez de concreto para cessá-
las ou preveni-las. No máximo, por meio da Justiça do Trabalho, a empresa foi condenada a
pagar verbas rescisórias aos trabalhadores resgatados. Nenhuma outra medida no sentido de
evitar a prática reiterada de violações de direitos foi tomada, o que levou a Comissão Pastoral
da Terra e o Centro pela Justiça e o Direito Internacional, dentre outras entidades – a partir do
levantamento de documentos e da busca de trabalhadores prejudicados –, a encaminharem o
caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o que ocorreu em 1998. 
Uma vez no âmbito do SIDH, o caso foi encaminhado pela CIDH à CorteIDH no ano
de 2015, que reconheceu, como salientado, a responsabilidade do Estado brasileiro em rela-
ção à violação sistemática de direitos dos trabalhadores resgatados nas fiscalizações ocorridas
na empresa.
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Este caso, que, pela sua dramaticidade, representa um importante paradigma acerca do
assunto, será analisado no presente artigo – a partir da metodologia do estudo de caso
(LLEWELLYN; NORTHCOTT, 2007; YIN, 2005) – para ilustrar que a temática do trabalho
escravo no Brasil, antes de notícia histórica, é uma realidade ainda presente – em que pese a
legislação trabalhista e penal nacional e internacional buscarem com veemência coibir tal prática.
Diante do exposto, a partir do marco teórico descortinado pela biopolítica, busca-se com
o presente estudo responder ao seguinte problema de pesquisa: em que medida a empresa que
se utiliza de mão de obra escrava ou em condições de trabalho análogas à do escravo pode ser
compreendida como um espaço passível de subsunção ao conceito de campo delineado pela
obra do filósofo italiano Giorgio Agamben? E mais: de que maneira esses espaços – campos –
se apresentam enquanto evidência da fissura que torna indiscernível o direito da violência,
demonstrando que o direito, em vez de um contraponto civilizatório em relação à barbárie,
nada mais representa, quando articulado às relações de exploração/dominação que articulam
sua aplicação/suspensão, do que um instrumento de produção da vida nua?
Para responder à objeção, o textoencontra-se dividido em duas partes. Na primeira, busca-
se estabelecer conceitos fundamentais da obra agambeniana, principalmente no que se refere à
(re)apropriação do conceito de biopolítica cunhado por Michel Foucault para analisar a questão
relacionada ao transbordamento do estado de exceção na contemporaneidade. Entende-se,
aqui, que essas duas categorias se apresentam como ferramentas conceituais relevantes para a
compreensão da temática do trabalho escravo na sociedade brasileira atual, em primeiro lugar
pela discriminação estrutural que o assunto revela e, em segundo, pelo fato de que, uma vez na
empresa que explora o trabalho escravo, o trabalhador vê-se completamente abandonado ao
poder do “soberano-empregador”, na medida em que seus direitos são sonegados diuturnamen-
te, mesmo sob o “manto jurídico”, evidenciando a indiscernibilidade entre direito e violência
descortinada pela filosofia agambeniana. 
Na sequência, o artigo pretende, a partir do conceito de “campo” elaborado pela filosofia
agambeniana, evidenciar a figura da “empresa-campo” como espaço por excelência da produção
da exceção em relação ao sujeito reduzido à condição de escravo (“vida nua”). Para tanto, utili-
za-se o “Caso Fazenda Brasil Verde versus Brasil”, julgado pela CorteIDH, como exemplo privi-
legiado, principalmente pelo fato de que foi reconhecido, neste caso, o alcance da discriminação
estrutural histórica no caso dos trabalhadores. Com efeito, trata-se da primeira vez em que a
CorteIDH reconhece a existência de uma discriminação estrutural histórica, em razão do con-
texto no qual ocorreram as violações de direitos humanos das vítimas da Fazenda Brasil Verde.
1 A BIOPOLÍTICA E O ESTADO DE EXCEÇÃO AGAMBENIANOS COMO (POSSÍVEIS)
FERRAMENTAS CONCEITUAIS PARA A COMPREENSÃO DO TRABALHO ESCRAVO NO
BRASIL CONTEMPORÂNEO
A contemporaneidade assiste a uma implicação cada vez maior da vida natural do homem nos
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mecanismos e cálculos do poder, fenômeno ao qual Michel Foucault (2010; 2012) atribuiu
o nome de “biopolítica”. Esta categoria foucaultiana assume o papel de importante ferramen-
ta conceitual para o diagnóstico e também para a compreensão das crises políticas da contem-
poraneidade, bem como do fenômeno da manutenção das mais diversas formas de opressão,
como aquela que se constitui no tema central do presente estudo: o trabalho escravo.
Para o filósofo italiano Giorgio Agamben (2010, p. 118), o irromper da biopolítica repre-
senta a culminância de um processo: “antes de emergir impetuosamente à luz do nosso século
[século XX], o rio da biopolítica, que arrasta consigo a vida homo sacer, corre de modo subter-
râneo, mas contínuo”. Seu reflexo mais contundente é, segundo o autor, a transformação do
estado de exceção em regra, de modo que ele tende a se apresentar como o paradigma domi-
nante na política contemporânea. Tal situação ameaça transformar radicalmente “a estrutura e
o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição”, dado que o estado
de exceção se apresenta “como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutis-
mo” (AGAMBEN, 2004, p. 13). Pode-se afirmar, portanto, que a exceção é uma espécie de
exclusão singular no que se refere à norma geral: “aquilo que é excluído não permanece, em
razão disso, fora de relação com a norma, mas mantém esse relacionamento sob a forma da sus-
pensão” (WERMUTH, 2015, p. 66).
Em relação à temática sob análise isso fica bastante evidente quando se constata que, embo-
ra haja uma série de legislações e esforços sendo construídos a fim de abordar a temática e
supostamente combater a trabalho escravo contemporâneo – seja em âmbito doméstico, seja em
âmbito internacional (Convenções 29, 105 e 182 da Organização Internacional do Trabalho –
OIT, especialmente) –, estas não têm efetividade. Estão suspensas a partir da exceção, de modo
que a prática permanece uma constante, sob os olhos das instituições públicas e da sociedade. 
Nesse sentido, cumpre salientar que, no Brasil, quem reduz alguém à condição análoga
à de escravo pratica crime tipificado pelo art. 149 do Código Penal – na redação que lhe
foi dada pela Lei n. 10.803/2003 –, que comina uma pena privativa de liberdade de dois a
oito anos, mais multa e pena correspondente à violência, a quem submete o trabalhador: a)
à realização de trabalhos forçados; b) à jornada exaustiva; c) a condições degradantes de
trabalho. Também incide nas penas quem: a) restringe, por qualquer meio, a locomoção do
trabalhador em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto; b) cerceia o uso
de meios de transporte pelo trabalhador a fim de retê-lo no local de trabalho; c) mantém vigi-
lância ostensiva no local de trabalho ou, ainda, se apodera de documentos ou objetos pessoais
do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. Ainda, quando o crime é cometido
contra criança ou adolescente, ou por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou
origem, a sobredita pena é aumentada pela metade.
Mesmo assim, verifica-se que, no país, empresas de grande porte tem reiteradamente
sonegado direitos trabalhistas legalmente assegurados, no intento de, assim, aumentar seus
lucros, em um movimento denominado por Martins e Kempfer (2013) “dumping social”.
Nesse movimento, o trabalhador é reduzido a um “objeto” nas mãos do empregador, na medida
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em que a necessidade de garantir um meio de sustento próprio e da sua família faz com que se
submeta a condições de trabalho desumanas e degradantes, que ferem a dignidade da pessoa
humana, e que, obviamente, justamente por se configurarem como uma das modalidades de
trabalho em condições análogas à de escravo, afrontam a legislação trabalhista consolidada no
país a partir da década de 1940 do século passado. Em relação à escravidão rural, Figueira
(2007) salienta que existe uma relação de promiscuidade entre os escravagistas e as autoridades
públicas, ou porque estas últimas se encontram diretamente envolvidas com o “negócio” da
escravidão, ou porque são coniventes com a sua prática, o que permite afirmar que, a partir de
ambas as formas, a perpetração da escravidão passa a ser endógena ao Estado.
Em que pese o tema ser (ainda) recorrente em dias atuais no país, o trabalho em condições
análogas a de escravos no Brasil está historicamente relacionado ao tráfico interno de pessoas:
trabalhadores sempre foram e continuam sendo aliciados nas regiões Norte e Nordeste do país
e levados para as grandes metrópoles – notadamente São Paulo. Esse movimento, contempo-
raneamente, também tem sido observado em relação aos imigrantes de outros países da Amé-
rica Latina que, uma vez no Brasil, são aliciados para o trabalho em fábricas – especialmente na
confecção de roupas (MARTINS; KEMPFER, 2013). Essa conduta também é tipificada como
crime pelo Código Penal – que estabelece pena de detenção de um a 3 três anos e multa a quem
“aliciar trabalhadores, com o fim de levá-los de uma para outra localidade do território nacio-
nal” (art. 207) –, mas, em termos práticos, não tem obstaculizado a sua prática.
De acordo com o Manual do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), intitulado “Traba-
lho Escravo no Brasil em Retrospectiva”,
nas oficinas de costura são encontrados diversos trabalhadores migrantes, em sua maioria
vindos de países como Paraguai, Bolívia e Peru, que trabalham por mais de 14 horas diárias
para ganhar valores próximos ao salário mínimo, ou mesmo abaixo deste, e sem as mais
básicas condições de segurança e saúde. Na maioria das vezes, para chegar ao Brasil, esses
trabalhadores acabam contraindo dívidas que são descontadas dos salários já baixos,
acarretando situações de servidão ede restrição da liberdade de locomoção, por dívida.
Essa situação se agrava em virtude do desconhecimento das leis nacionais e da falta dos
documentos brasileiros, já que a maior parte dessa migração se dá informalmente, sem o
controle das autoridades de fronteira. Não é raro acontecerem agressões físicas e morais,
ameaças e outras vulnerações de direitos humanos (BRASIL, 2012).
A vedação legal e a prática reiterada dessas ações permitem uma aproximação à teoria da
exceção agambeniana, segundo a qual “a norma se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-
se desta”, de modo que o estado de exceção não representa “o caos que precede a ordem, mas
a situação que resulta da sua suspensão”. Em outras palavras, “não é a exceção que se subtrai à
regra, mas a regra que, suspendendo-se, dá lugar à exceção e somente deste modo se constitui
com regra, mantendo-se em relação com aquela” (AGAMBEN, 2010, p. 24-25).
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Se o estado de exceção se refere a um “estado da lei” caracterizado pelo vigor da norma que
não se aplica, porque não tem “força”, atos – no caso, regulamentos e determinações internas
das empresas que violam a legislação trabalhista e penal – que não possuem valor de lei adqui-
rem essa sua “força”. Nesse sentido, pode-se afirmar, com Agamben (2004, p. 61), que “o esta-
do de exceção é um espaço anômico onde o que está em jogo é uma força de lei sem lei”, no
âmbito do qual, “para aplicar uma norma, é necessário, em última análise, suspender sua apli-
cação, produzir uma exceção”. No campo do trabalho em condições análogas à de escravo no
Brasil contemporâneo, o estado de exceção “marca um patamar no qual lógica e práxis se inde-
terminam e onde uma pura violência sem logos pretende realizar um enunciado sem nenhuma
referência real” (AGAMBEN, 2004, p. 63).
Neste sentido, Nascimento (2016) acentua que transformar o estado de exceção em uma
técnica de governo ou de gerenciamento significa que a governabilidade dos nossos governos
nacionais, ainda que imersos na aura dos ideais republicanos ou democráticos, depende do
respeito às regras que determinam o seu funcionamento, mas depende também da sua trans-
gressão quando necessário, exigindo a adoção de medidas que contrariem o direito vigente na
normalidade, a fim de conservar o sistema. Deste modo, constitui-se em um recurso sempre
disponível, superando os obstáculos de limitação do poder instituído, descerrando as vias para
todo tipo de violência ao permitir a suspensão de direitos e garantias, e “com a vantagem de
fazê-lo com escólio em um instituto do próprio direito, mantendo-se sempre a imagem de um
estado jurídico pleno” (NASCIMENTO, 2016, p. 21).
Portanto, a alçada da exceção ao patamar de uma técnica de governo ou gerenciamento
comum dá a ela um caráter cada vez maior de normalidade, e não de uma medida excepcional,
deixando emergir sua natureza de paradigma constitutivo da ordem jurídica. Enquanto dispo-
sitivo original, desde sempre se constituiu em elemento presente às constituições políticas e
jurídicas, somente sendo possível ao direito constituir-se com a pretensão de ser definitivo,
acompanhado desta, enquanto um dispositivo1 paralelo da biopolítica. Em virtude de ser dis-
positivo, a exceção não depende da decretação formal do estado de exceção para se manifestar
e pode surgir entre nós mesmo sem seu nome próprio. 
Deste modo, pode-se afirmar que “a exceção é o dispositivo original através do qual o
direito se refere à vida e a inclui em si por meio de sua própria suspensão”, no qual suspen-
são designa a possibilidade de pôr fim à vida ou promovê-la, e que “uma teoria do estado de
372:A “EMPRESA-CAMPO” E A PRODUÇÃO DA “VIDA NUA”
Como dispositivo, “compreende uma rede, que pode ser composta de elementos heterogêneos articula-1
dos, que envolve uma disposição estratégica inscrita em um jogo de poder, destinada a capturar e contro-
lar todo gesto e toda palavra dos viventes” (NASCIMENTO, 2016, p. 21). Dispositivo é, portanto, uma
armadilha que visa à captura, gerando atração e podendo assumir diferentes aspectos a depender da con-
juntura na qual está inserido; uma vez estabelecida a captura, o dispositivo estabelece uma relação de depen-
dência e fazer cair em um círculo vicioso que se presume invencível.
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exceção é condição preliminar para se definir a relação que liga e, ao mesmo tempo, abandona
o vivente ao direito” (AGAMBEN, 2004, p. 10). A filosofia agambeniana percorre esse caminho
justamente para demonstrar como a exceção permite a ligação entre o direito e a vida, permite
o cancelamento da vida em nome do direito, enquanto a “forma extrema da relação que inclui
algo unicamente através da sua exclusão” (AGAMBEN, 2010, p. 22). Embora pareça contradi-
tório, “não é impossível vislumbrar situações que envolvam, em um mesmo ou diversos atos,
uma inclusão que seja concorrente de diversas exclusões, ou mesmo um ato que seja ao mesmo
tempo inclusivo e exclusivo” (NASCIMENTO, 2016, p. 22). 
Isso porque a figura da exceção nos moldes agambenianos permite compreender como, em
determinadas circunstâncias, ocorre a suspensão do direito sobre certas pessoas ou grupos,
transformando a sua vida em “vida nua”, ou seja, vida vulnerável, facilmente controlável e, não
raro, impunemente eliminável.2 Evidentemente o trabalhador que vê seus direitos vilipendia-
dos pode ser aproximado a este conceito cunhado pela filosofia agambeniana, uma vez que se
transforma em uma vida “sem valor”, ou seja, em mero “objeto” nas engrenagens das cadeias
produtivas – revelando a discriminação estrutural reconhecida pela CorteIDH no caso Fazenda
Brasil Verde, como se demonstrará na sequência.
E se o estado de exceção é a regra, o espaço que se abre a partir dele é o que podemos cha-
mar, com Agamben (2010), de “campo”,3 o lugar exato em que a situação extrema se converte
no próprio paradigma cotidiano. Toda exceção tem historicamente criado seus espaços predi-
letos de recrutamento da vida humana, seus campos. Suspendendo-se o ordenamento jurídico
dentro de um determinado território, o próprio território parece exigir a abertura de espaços
que não se comuniquem com o ambiente comum. Configura-se o campo, portanto, de acordo
com o autor, como o espaço que se abre quando o estado de exceção se torna a regra, um espaço
373:A “EMPRESA-CAMPO” E A PRODUÇÃO DA “VIDA NUA”
Para a compreensão da sua acepção de “vida nua”, Agamben (2010) faz uma releitura da filosofia clássica,2
a fim de trazer à luz os conceitos de zoé e bíos. Nessa dicotomia, zoé designa o simples fato de viver, ou
seja, a mera existência enquanto vida nua, ao passo que bíos designa a “vida qualificada”, a vida do indiví-
duo ou do grupo. A retomada dessa distinção serve para ilustrar justamente a condição de determinados
seres humanos na contemporaneidade, evidenciando a relação inclusão (daqueles que vivem uma vida “qua-
lificada”) versus exclusão (daqueles que são relegados à condição de banimento, ou seja, que vivem uma vida
“desqualificada”) que caracteriza a política contemporânea.
Mesmo não sendo objeto da presente pesquisa, cumpre salientar que a proposta de Agamben, ao empreen-3
der a pesquisa Homo Sacer (desenvolvida nas obras: Homo Sacer I – O poder soberano e a vida nua [2010],
Estado de exceção [2004] e O que resta de Auschwitz [2008]), é justamente preencher uma “lacuna” dei-
xada pelas investigações desenvolvidas por Michel Foucault e Hannah Arendt. Segundo Agamben (2010),
Foucault, mesmo tendo definido o conceito de biopolítica, deixou de lado a análise do campo de concen-
tração que, na sua ótica, como salientado, apresenta-se como expressão por excelência da biopolítica moder-
na; Arendt, por sua vez, mesmo tendo elaborado um aprofundado estudo acerca dofenômeno do totali-
tarismo, em nenhum momento debateu o assunto a partir de uma perspectiva biopolítica.
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aberto toda vez que o dispositivo da exceção for acionado com esta finalidade, independente-
mente da decretação formal do estado de exceção. 
Portanto, identificar os espaços e locais em que tais campos apareceram e aparecem na
contemporaneidade será, em grande medida, a tarefa daqueles que buscam interpretar nosso
tempo. Nesse sentido, dentro dos limites do presente artigo, pretende-se, na sequência, iden-
tificar o espaço da empresa que se utiliza da mão de obra escrava como um espaço de “campo”,
na medida em que a redução do trabalhador a uma situação de mero “objeto” (produção da
“vida nua”, desqualificada, portanto), nesse ambiente, se dá.
2 O TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO E A EMPRESA-CAMPO:
UMA ANÁLISE A PARTIR DO CASO “FAZENDA BRASIL VERDE VERSUS BRASIL” SUBMETIDO
À CORTEIDH
Agamben (2010, p. 164), consoante o exposto no tópico precedente, em seu projeto filosó-
fico, conclama a “olhar o campo não como um fato histórico e uma anomalia pertencente ao
passado, mas de algum modo, como a matriz oculta, o nómos do espaço político em que ainda
vivemos”. Enquanto localização deslocadora, o campo é a matriz oculta da política em que
ainda vivemos. Ele revela, portanto, o “puro, absoluto e insuperado espaço biopolítico (e
enquanto tal fundado unicamente sobre o estado de exceção)” como paradigma oculto do
espaço político da modernidade, do qual “deveremos aprender a reconhecer as metamorfo-
ses e os travestimentos” (AGAMBEN, 2010, p. 119).
Na sua identificação do que é um “campo”, Agamben (2010) sugere uma figura jurídi-
co-política inerente ao Estado moderno: um pedaço do território que é colocado fora do
ordenamento jurídico normal, mas não é, por causa disso, simplesmente um espaço exter-
no. Aquilo que nele é excluído é, segundo o significado etimológico do termo exceção,
capturado fora, incluído através da sua própria exclusão. Mas aquilo que, deste modo, é
antes de tudo capturado no ordenamento, é o próprio estado de exceção. Na medida em
que o estado de exceção é, de fato, desejado, ele inaugura um novo paradigma jurídico-
político, no qual a norma torna-se indiscernível da exceção. O campo é, então, a estrutura
na qual o estado de exceção, em cuja possível decisão se baseia o poder soberano, é reali-
zado normalmente.
A filosofia agambeniana abandona, assim, definitivamente, a dicotomia legal/ilegal. Em
Agamben (2004; 2010), a argumentação vai em outra direção, na medida em que a consta-
tação da generalização dos mecanismos de suspensão do direito aponta um fenômeno mais
profundo: trata-se da transformação das técnicas de poder e de dominação, que articulam
a aplicação do direito e sua suspensão como ferramenta de manutenção do status quo. Nessa
chave de compreensão, o direito não é o contraponto civilizatório. Pelo contrário, o direito,
articulado às relações de exploração/dominação que o constituem e o produzem, faz parte
do processo de produção da vida nua.
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No estado de exceção descortinado por Agamben, torna-se impossível distinguir a trans-
gressão da lei e a sua execução: nele, o que está de acordo com a norma e o que a viola coin-
cidem sem resíduos. O nexo original entre violência e direito é mantido. A violência exer-
citada no estado de exceção, portanto, não conserva nem simplesmente põe o direito, “mas
o conserva suspendendo-o e o põe excetuando-se dele” (AGAMBEN, 2010, p. 69). Em
outras palavras, 
é como se o direito contivesse uma fratura essencial entre o estabelecimento da norma e
sua aplicação e que, em caso extremo, só pudesse ser preenchida pelo estado de exceção,
ou seja, criando-se uma área onde essa aplicação é suspensa, mas onde a lei, enquanto tal,
permanece em vigor (AGAMBEN, 2004, p. 48-49).
Essa constatação sinaliza para o fato de que a produção da “vida nua” não é externa ao direi-
to, mas, ao contrário, está contida paradoxalmente em seu modo de funcionamento. Barsalini
(2011, p. 3) apreende o paradoxo agambeniano ao construir a seguinte sentença: “determinar
a suspensão da regra (a exceção) significa garantir a continuidade da regra, na medida em que
tal determinação se justifica pela ameaça que sofre o estado da não exceção”. Nas palavras de
Nascimento (2012, p. 114), no estado de exceção a “aplicação divorcia-se da norma. O que
resta é somente um excesso de aplicação inconsistente e materialmente opressivo, sem qual-
quer referência à norma”. A partir desta perspectiva é que se pode afirmar que se está virtual-
mente na presença de um campo cada vez que uma estrutura assim se cria. 
A um ordenamento sem localização, processa-se uma localização sem ordenamento, um
estado de exceção permanente, no qual “a lei é o arbítrio do soberano”, de modo que “a vida
humana que cai sob a condição da exceção se torna em verdadeiro homo sacer. É a vida nua sobre
a qual vigora a vontade soberana como lei absoluta e a exceção como norma de sua existência”
(RUIZ, 2012, p. 14).
Na medida em que seus habitantes foram despojados de todo estatuto político e reduzidos
integralmente à vida nua, o campo é também o mais absoluto espaço biopolítico jamais realiza-
do, no qual o poder não tem diante de si senão a pura vida, sem qualquer mediação. Por isso,
o campo é o próprio paradigma do espaço político, no ponto em que a política se torna biopo-
lítica e o homo sacer se confunde virtualmente com o cidadão (AGAMBEN, 2010). A produção
da vida nua não é, porém, um fato extrapolítico natural, que o direito deve limitar-se a cons-
tatar ou reconhecer; ela é antes, no sentido que se viu, um limiar em que o direito se transmuta
a todo momento em fato e o fato em direito, e no qual os dois planos tendem a tornar-se indis-
cerníveis. Nesse sentido, aduz Agamben (1998, p. 53-54) que:
será un campo tanto el estadio de Bari, donde en 1991 la policía italiana hacinó provisoriamente
a los inmigrantes clandestinos albaneses antes de devolverlos a su propio país, como el velódromo
de invierno en el que la autoridad de Vichy acogió a los judíos antes de entregárselos a los alemanes;
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tanto em campo de prófugos en la zona fronteriza con España en el que murió preso en 1939 Antonio
Machado como las zonas de espera de los aeropuertos internacionales franceses en las que permanecían
retenidos los extranjeros que pedían que se los reconociera con el estatuto de refugiados. En todos estos
casos, un lugar aparentemente anodino (por ejemplo, el Hotel Arcades em Roissy) delimita en realidad
un espacio en el cual el ordenamiento normal es de hecho suspendido, y en cual los extranjeros pueden
ser retenidos en la zona de espera antes de la intervención de la autoridad judiciaria. 
Diante do exposto, como já salientado na introdução, a provocação que o presente artigo
visa a responder reside na compreensão da empresa que se utiliza de mão de obra escrava ou
em condições de trabalho análogas à do escravo como um espaço passível de subsunção ao
conceito de campo delineado pela filosofia agambeniana. Para ilustração da tese aqui esposa-
da, será abordado o Caso “Fazenda Brasil Verde versus Brasil”, submetido à jurisdição da Cor-
teIDH – já descrito na introdução –, em cujo julgamento se reconheceu que o Brasil violou
inúmeros direitos estabelecidos pela Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH),
em especial a proibição da escravidão e da servidão, assim como as garantias à liberdade pes-
soal e à integridade (física, psíquica e moral) da pessoa. 
Referido caso foi escolhido porilustrar, na esteira do pensamento de Walter Benjamin
(2012), a necessidade de se repensar o conceito de história. Com efeito, assim como o
anjo da história benjaminiano, o pavor que as experiências com o escravismo provocam ao
“olharmos para trás” na história (da humanidade e, particularmente, do Brasil), arregala
os olhos de quem vê, impelido pelo “vento do progresso”, as mesmas atrocidades sendo
cometidas nas sociedades contemporâneas. Parte-se, portanto, da ideia de que o escravis-
mo no Brasil não representou apenas um “intervalo” provisório que se destinava a desin-
tegrar-se na medida em que o progresso retomasse seu curso “natural”: pelo contrário, a
opressão e a exclusão representados pela sociedade escravocrata configuram regra e não
exceção na história dos oprimidos. Para o filósofo judeu, a tarefa do historiador consiste
sempre em “trazer à tona novas identidades, fazer uma outra leitura dos documentos,
colocar possibilidades novas de diálogo entre presente e passado”, o que significa “romper
com a concepção mecanicista e linear da história”. Trata-se, em síntese, de compreender
a história como algo “aberto” e, em virtude disso, como algo que suscita diversas interpre-
tações, de modo que nada do que aconteceu possa ser considerado “perdido” para a histó-
ria (TURINI, 2004, p. 110).
Para estabelecer a linha de raciocínio que orientará a discussão, observar-se-ão, incial-
mente, cinco características que, de acordo com Nascimento (2016), servem para ilustrar
o que se poderia considerar como campo na atualidade: 
1 - O dispositivo excepcional que causa a sua abertura pode ser acionado de diversas
maneiras, seja pela via legiferante, seja pela via administrativa, seja pela via policial, ou
mesmo por uma via meramente discursiva; 
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2 - Ainda que em tese resulte da suspensão temporal do ordenamento jurídico, o campo
tende a adquirir uma disposição espacial permanente; 
3 - O campo designa um espaço de indeterminação jurídica, no qual o que diz a lei e o
que é permitido ou proibido não estão bem definidos; 
4 - Em razão da característica anterior, o transeunte do campo fica inteiramente submisso
à decisão de quem, nesse espaço, exerce o poder enquanto “soberano”; 
5 - A estrutura de exceção que permite perceber a abertura e a presença do campo é
modulável, é capaz de reciclar-se e adaptar-se a distintas situações, sofrer metamorfo-
ses, encontrar formas diversas em contextos diversos. 
Portanto, cabe demonstrar de que modo a empresa contemporânea pode constituir-se em
uma espécie de campo, ao transformar-se em espaço de exceção que permite a perpetuação
(permanente) das mais abjetas formas de escravidão, assumindo uma a uma as características
elencadas por Nascimento (2016). 
Quanto à primeira característica, Nascimento (2016) destaca que o dispositivo excepcio-
nal que causa a sua abertura pode ser acionado de diversas maneiras, seja pela via legiferante,
seja pela via administrativa, seja pela via policial, ou mesmo por uma via meramente discur-
siva. Como veremos, tendo em vista a escravidão contemporânea no Brasil, pode-se perce-
ber que todos estes mecanismos de acionamento podem e são utilizados nos mais diversos
momentos. Especialmente pela via administrativa institucional, pela qual o próprio Estado
permite ou mesmo impulsiona tal prática, exercendo seu típico biopoder. 
É, portanto, no contexto biopolítico que se pode questionar: de que modo é possível que
tais práticas se constituam em uma tradição que perdura por séculos no país? Por que as leis
trabalhistas – e penais – já existentes no Brasil, assim como os Tratados Internacionais prote-
tivos, não são suficientes para resguardar os direitos dos trabalhadores? Por que a Constituição
Federal não age em um campo suficientemente abrangente para resguardar de maneira efetiva
os direitos de seus cidadãos? Como é possível ser o Brasil um dos países que aplicam medidas
para acabar com os regimes de escravidão, e ainda apresentar, de acordo com Borba e Camara
(2016), em torno de 155.300 pessoas que vivem em tais situações? Tais questionamentos
colocam no centro do debate a atuação estatal, e mais do que isto, a questionam: a quem de
fato se curvam os interesses do Estado?
Um exemplo neste sentido refere-se à recente recusa do governo brasileiro em publicar
a chamada “Lista Suja” do trabalho escravo. Chamada oficialmente de “cadastro de emprega-
dores que tenham mantido trabalhadores em condições análogas à de escravo”, constitui-se
em um importante instrumento de combate ao trabalho escravo. Sua publicação estava sus-
pensa desde 2014, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) acatou o pedido feito pela Asso-
ciação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), argumentando que não havia a
garantia do direito de defesa das empregadoras. Seguiu-se um debate judicial que culminou na
edição de alterações na forma como a lista seria divulgada, agora contendo apenas os nomes
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dos empregadores com todos os recursos administrativos esgotados.4 Cumprindo-se as exigên-
cias do STF para a divulgação da lista, o Governo Federal recusou-se a publicá-la, o que só
ocorreu mediante liminar concedida ao Ministério Público do Trabalho, obrigando que o docu-
mento, elogiado pela Organização das Nações Unidas, voltasse a se tornar público. 
Ora, tal posicionamento pode ser claramente encarado como uma chave permissiva, de
abertura para espaços permanentes de exceção dos quais se originam campos, neste caso espe-
cífico, empresas-campos, espaços nos quais a massificação dos lucros e da produtividade se dá
pela exploração, autorizada, de vidas transformadas em “vidas nuas”. Deste modo, considera-
se que a característica abordada por Nascimento (2016) é preenchida no caso da escravidão
contemporânea no Brasil. Aqui, especialmente a atuação estatal/administrativa constitui-se em
dispositivo capaz de acionar a abertura do estado de exceção – revelando a indiscernibilidade
entre direito e violência, uma vez que esta abertura se dá em plena vigência do texto constitu-
cional de 1988 – e dar início aos chamados campos ou, mais especificamente, autorizando as
empresas-campo a se instaurem e se perpetuem em nome da maximização do lucro, sob a lógi-
ca do biopoder. 
Como observa Figueira (2000, p. 36), ao abordar o tema do trabalho escravo em fazendas
do norte do país, nunca, no Brasil, os governos – militar ou civil – atacaram o problema do tra-
balho escravo de frente, agindo sempre de “forma pontual, libertando escravizados, intercep-
tando o tráfico de pessoas, multando empresas pela violação das leis trabalhistas, mas muito
raramente utilizaram medidas de direito penal”. Nesse contexto, “o crime de desrespeito aos
direitos humanos não foi coibido nem recebeu punição, mesmo nos casos em que houve vio-
lência física, tortura e homicídio”. No que diz respeito às ações preventivas, estas, na ótica do
autor, também sempre deixaram a desejar, uma vez que “não houve medidas estruturais como,
por exemplo, uma legislação que permitisse a expropriação do imóvel envolvido no crime”.
Com efeito, nos casos denunciados, “existia a possibilidade legal da desapropriação, que rara-
mente era feita”, e, quando feita, a medida “era acompanhada por cálculos do valor do imóvel
acima do valor do mercado, premiando o proprietário em vez de puni-lo”.
Tal fato não passou despercebido à CorteIDH no Caso Fazenda Brasil Verde. Na sentença
condenatória restou evidenciado que, mesmo tendo a Fazenda passado por 12 fiscalizações do
Ministério do Trabalho, nas quais foram denunciadas irregularidades e graves violações de
direitos humanos dos trabalhadores – que levaram, inclusive, ao resgate de alguns deles–, o
Estado Brasileiro, mesmo ciente da gravidade do quadro, nunca condenou ninguém e tampou-
co tomou medidas contundentes no sentido de prevenir outras violações. Em virtude disso, a
CorteIDH entendeu que foram cumpridos todos os requisitos para a responsabilidade do Brasil
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Documento disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/29/politica/1490822084_983546.4
html>. Acesso em: 29 fev. 2017. 
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http://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/29/politica/1490822084_983546.html
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por omissão, a saber: “i) a existência de um risco real e imediato; ii) o conhecimento estatal
deste risco; iii) a especial situação das pessoas afetadas, e iv) as possibilidades razoáveis de pre-
venção” (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2016, p. 57-58). 
Diante disso, o órgão jurisdicional do SIDH concluiu que: 
no período entre a denúncia e a fiscalização, o Estado não conseguiu coordenar a
participação da Polícia Federal ativamente na referida fiscalização, além da função de
proteção da equipe do Ministério do Trabalho. Tudo isso demonstra que o Estado não atuou
com a devida diligência requerida para prevenir adequadamente a forma contemporânea de
escravidão constatada no presente caso e que não atuou como razoavelmente era de se
esperar, de acordo com as circunstâncias do caso, para pôr fim a esse tipo de violação
(CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2016, p. 89-90).
A segunda característica do campo contemporâneo, conforme apontado por Nascimento
(2016), vincula-se ao fato de que, ainda que em tese este resulte da suspensão temporal do
ordenamento jurídico, o campo tende a adquirir uma disposição espacial permanente. Nova-
mente aqui, a empresa-campo, perpetuadora do estado de exceção da escravidão pode ser
enquadrada: tanto no que concerne às empresas empregadoras quanto aos seres humanos, já
muito mais próximos de verdadeiros homines sacri, a vinculação ao campo no qual prevalece
a exceção tende a se perpetuar, e tornar-se permanente. 
No caso dos trabalhadores, pesquisa realizada pela OIT (2011) revelou que, dos entre-
vistados, 59,7% das pessoas encontradas em condição de trabalho escravo já haviam passado
por essa situação anteriormente, configurando uma alta taxa de reincidência. Destes, 44,5%
foram impedidos de deixar o serviço porque não lhes foi fornecido transporte à fazenda que
é distante ou de difícil acesso; dívidas impediram o abandono para 32,8%; a existência de
seguranças armados foi motivo para 15,1% dos trabalhadores; e castigos físicos foram rela-
tados por 11,8%. 
Para compreender tal quadro, deve-se considerar os fatores que permeiam a partida dos
jovens que acabam enredados nas teias do aliciamento e do endividamento que os aprisionam
a condições degradantes de trabalho e, paralelamente, o processo de desenraizamento social,
no qual, aos poucos, são apagados os laços com a família deixada para trás e com os seus lugares
de origem. 
Normalmente, enfatiza Costa (2008), o trabalhador escravizado é jovem, vindo do meio
rural ou das periferias das grandes cidades, ou ainda migrantes. A precária situação econô-
mica pressiona a família que, sem condições de manter todos os membros, transforma a pro-
cura por trabalho, qualquer que seja, em necessidade. Impulsionado pela fuga da miséria, ou
pelo sonho de enriquecer, são recrutados e aliciados por empregadores ou por seus prepos-
tos, chamados de “gatos”, e convidados a trabalhar em regiões distantes de seu domicílio. Ini-
cia-se aí um processo contínuo de endividamento e isolamento, aprofundado pela retenção de
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documentos, vigilâncias e ameaças constantes, constituindo uma situação degradante e cer-
ceadora da liberdade dos trabalhadores (COSTA, 2008).
À medida que as tarefas para as quais foram recrutados terminam, eles permanecem sem ter
como sair do local ou são abandonados nas cidades próximas sem dinheiro. Muitos perdem com-
pletamente o contato com seu local de origem e famílias, o que, agravado pela vergonha do insu-
cesso econômico e a desmoralização a que foram submetidos, impede a sua volta. Sem dinheiro
e desligados dos laços de pertencimento, são acolhidos novamente em pequenas pousadas, onde
assumem novas dívidas que serão novamente pagas por um “gato”. É reiniciado o círculo vicioso
do endividamento, e os trabalhadores tornam-se, assim, “peões de trecho”.5 Nesta espiral, 
o trabalho escravo gera o isolamento afetivo econômico e geográfico do trabalhador.
Transformado no “peão de trecho”, ele é desconectado dos laços sociais que o tornavam
parte de um todo que conferia sentido às suas ações. Cativo da rede do endividamento
progressivo, o “peão de trecho” personifica, desse modo, o desenraizamento social que
acirra a vulnerabilidade do trabalhador e o torna um não-cidadão, destituído de importância
social e valor político (COSTA, 2008, p. 187).
Estabelece-se, desse modo, o ciclo da escravidão contemporânea, no qual os trabalhadores
permanecem sem se inserir em outra opção de sobrevivência (COSTA, 2008). No entanto, não
são apenas os trabalhadores que se tornam permanentemente enredados nas teias do estado de
exceção estabelecidos pelas empresas-campo. Estas, do mesmo modo, tendem a repetir e per-
petuar esta situação ao longo de sua existência.
Como demonstra o emblemático caso que originou a condenação do Estado Brasileiro
diante da CorteIDH, na Fazenda Brasil Verde, “i) existiam ameaças de morte aos trabalhadores
que queriam abandonar a fazenda; ii) os trabalhadores eram impedidos de sair livremente; iii)
não existiam salários ou estes eram ínfimos; iv) existia endividamento com o fazendeiro, e v)
as condições de moradia, saúde e alimentação eram indignas”. Sobre esses fatos, a CIDH já
havia concluído “que o dono e os administradores da fazenda dispunham dos trabalhadores
como se fossem de sua propriedade” (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMA-
NOS, 2016, p. 57).
Quanto à terceira característica: o campo designa um espaço de indeterminação jurídica,
onde o que diz a lei e o que é permitido ou proibido não estão bem definidos, esta, claramente
380:A “EMPRESA-CAMPO” E A PRODUÇÃO DA “VIDA NUA”
O “peão de trecho” refere-se ao trabalhador que, sem residência fixa, sobrevive de trabalhos temporários.5
Entre um trabalho e outro, ele permanece em algum município em busca de novas oportunidades, desligado
das antigas relações familiares e sem construir novas. Nesse trânsito constante, ele cria débitos em pensões e
bordéis, mantendo-se preso à rede de endividamento e ao trabalho coercitivo. Em geral, o “peão-de-trecho”
é analfabeto, sem qualificação profissional e tem problemas de alcoolismo (COSTA, 2008).
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pode ser vislumbrada na realidade brasileira. Como afirmam Borba e Camara (2016, p. 20),
“o Brasil é um dos países que aplicam medidas para acabar com os regimes escravocratas de
trabalho, no entanto, ainda apresenta juridicamente dificuldades para objetivar essa reali-
dade, e dentre brechas legais, localizar e combatê-la”.
Nesta esfera, cabe destacar as infindáveis disputas legislativas, judiciais e discursivas sobre
o que, de fato, constitui o chamado trabalho escravo contemporâneo. A respeito dos muitos
resgates de trabalhadores divulgados no Brasil, na maioria das vezes não fica claro sobre o que
exatamente está se tratando, uma penumbra que atinge também a literatura sobre o tema, o
campo legislativo e o campo judicial (GOMES; LEMOS, 2013). 
De um modo geral, as denúncias apontam situações de falta de cumprimento dos direitostrabalhistas, configurados nas extensas horas de trabalho, sem pagamento; falta de registro da
carteira; condições de higiene e salubridade inadequadas; e violências cometidas pelos empre-
gados dos contratantes/fazendeiros/empresários, práticas diversas de tortura: chicoteamen-
to, coronhadas, acorrentamento, partes do corpo mutiladas, assassinatos e humilhações ver-
bais e ameaças, tudo acompanhado pela presença de “seguranças”, como elemento que
garantiria da coerção. Por conta desta variedade de violências e seus contextos, cada prática
ganha visibilidade com uma denominação, dependendo do contexto em que se dão (GOMES;
LEMOS, 2013).
É com base nesta confusão, em muito proposital, entre o significado dos termos, especial-
mente aquela entre trabalho escravo e trabalho análogo ao escravo, que o biopoder, tem recor-
rentemente atacado a imposição de limites à exploração do trabalho. Em alguns casos, fala-se
simplesmente que não há trabalho escravo no Brasil (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL
DO TRABALHO, 2011), em outros, produzem-se ataques à legislação brasileira, criticando os
conceitos nela empregados. Atualmente, em termos legislativos, o Estado brasileiro instituiu
um limite para a existência da própria relação de trabalho, expresso no artigo 149 do Código
Penal, já abordado no tópico precedente. Caso seja detectada sua transgressão, deverá ser des-
feita a relação.
São diante dos conceitos de trabalhos forçados, jornada exaustiva, condições degradantes,
restrição à locomoção etc. que surgem as lacunas, disputas e indeterminações legais que per-
mitem sua perpetuação. Se até o momento tem prevalecido a interpretação literal do artigo,
que apresenta o fator degradante como condição suficiente para caracterização da condição
análoga à de escravo, há correntes que defendem a interpretação de que só haveria tal condição
com a coerção individual direta do empregador.6 Esta segunda opção implicaria desconsiderar
381:A “EMPRESA-CAMPO” E A PRODUÇÃO DA “VIDA NUA”
Sales e Filgueiras (2013) destacam o caso que envolvia trabalhadores que cuidavam de um zoológico, alo-6
jados em barracão de lona, e no qual a sentença de um Juiz Federal assim estabeleceu: “não há evidências
de que os trabalhadores, embora submetidos a condições de trabalho e moradia degradantes, não pudes-
sem abandonar o local no momento em que quisessem”. Conclui que não há crime, que só ocorreria se
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que, para além da ação individual da empresa-campo, há sempre uma teia biopolítica que per-
mite o acionamento do estado de exceção e que viabiliza a submissão de trabalhadores à água
envenenada por agrotóxicos, aos salários atrasados, aos alojamentos de lona preta, à ausência
de banheiros, à inexistência de locais para refeição, à retenção dos salários, ao fornecimento de
comida estragada, a jornadas intermináveis; enfim, submete trabalhadores a condições que aqui
denominamos de escravidão contemporâneas, transformando-os em vidas nuas, ou seja, desca-
ráveis e, portanto, matáveis. 
Essa última percepção ressalta os perigos das interpretações individualizadoras dos casos de
escravidão vigentes. Embora cada indivíduo seja portador de um valor singular, tal história não
se resume às ações e aos fatos referentes ao sujeito singular, mas sim, expõe uma trama cultu-
ral, social, política e econômica na qual estruturas de biopoder interagem. 
Nesse ponto, a CorteIDH, no julgamento do Caso Fazenda Brasil Verde, salientou, mani-
festando concordância com o decidido pelo Tribunal Especial para Serra Leoa e a Corte de Jus-
tiça da Comunidade Econômica da África Ocidental, assim como pelo Tribunal Penal Interna-
cional ad hoc para a antiga Iugoslávia, 
que, para determinar uma situação como escravidão nos dias atuais, deve-se avaliar, com
base nos seguintes elementos, a manifestação dos chamados “atributos do direito de
propriedade”: a) restrição ou controle da autonomia individual; b) perda ou restrição
da liberdade de movimento de uma pessoa; c) obtenção de um benefício por parte
do perpetrador; d) ausência de consentimento ou de livre arbítrio da vítima, ou sua
impossibilidade ou irrelevância devido à ameaça de uso da violência ou outras formas
de coerção, o medo de violência, fraude ou falsas promessas; e) uso de violência física
ou psicológica; f) posição de vulnerabilidade da vítima; g) detenção ou cativeiro, i)
exploração” (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2016, p. 72).
Se o campo designa um espaço de indeterminação jurídica, onde o que diz a lei e o que é
permitido ou proibido não estão bem definidos, conforme vislumbrou-se, a quarta caracterís-
tica do campo contemporâneo é acionada, colocando o andante permanente destes espaços, as
vidas abjetas e matáveis, inteiramente submissas à decisão daquele que faz as vezes de soberano.
E é ao soberano a quem cabe a competência de decidir sobre o estado de exceção, estando habi-
litado a decidir sobre a suspensão dos limites e garantias estabelecidos na Constituição na medi-
da em que julgar necessário. 
Um exemplo marcante e emblemático para iniciar a reflexão sobre o alcance deste poder
sobre a vida totalmente transformada em abjeta é aquele narrado por Costa (2008). A autora
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demonstrada “privação de liberdade, isto é, que esteja claro que a vítima só se sujeita ao trabalho porque
é impedida de deixar o local, em razão de coação por parte do agente”.
refere-se ao caso de um trabalhador escravizado que, após uma tentativa de fuga, foi capturado
por um funcionário da fazenda em que trabalhava, e como punição, ele foi obrigado a realizar
sexo oral nesse funcionário diante de todos os trabalhadores, configurando-se uma carga sim-
bólica de degradação não apenas física, mas moral até então inimagináveis, e que só se tornam
possíveis porque na outra ponta, ou seja, do lado oposto das vidas matáveis, vislumbra-se o dis-
curso de sustentação do campo impetrado pelo “soberano”. Muitos destes relatos, afirma Costa
(2008, p. 190), não revelam sequer constrangimentos morais, e revelam a magnitude do poder
que os sustenta: 
J.A. (fazendeiro) ao receber uma jornalista do Le Monde garantiu que não utilizava
mão-de-obra escrava. “Manifestou surpresa pela Igreja Católica demonstrar compaixão
pelos peões e não por ele, um ‘desbravador’, que, com suor construíra um expressivo
patrimônio. Sentia-se injustiçado, pois beneficiava os pobres oferecendo trabalho. Para
ele tudo era simples: quem deve é obrigado a pagar, mesmo trabalhando sob coerção
física; enquanto não saldar a dívida, deve ser retido na fazenda”. 
Da mesma forma, quando seus nomes são incluídos na “lista suja”, tais “soberanos” apresen-
tam-se como indivíduos produtivos, altruístas, desbravadores e pioneiros, cujos empreendi-
mentos buscam o crescimento do país por meio da geração de empregos e impostos, referin-
do-se às práticas de trabalho escravo e aos mecanismos de controle e coerção exercidos contra
os trabalhadores como “irregularidades trabalhistas” corriqueiras. 
Neste universo, o exercício do poder não está restrito às relações hierárquicas entre “sobe-
ranos” e “escravos”, entre donos de empresas e empregados, entre fazendeiros e seus trabalha-
dores, mas é parte de uma estrutura maior, marcada pela politização da vida, em que o corpo
é o sujeito da política. Nela, a vida natural do homem está implicada nos mecanismos e nos cál-
culos de poder, o que envolve a decisão sobre as vidas que deixam de ser politicamente rele-
vantes. Sendo irrelevantes e, portanto, destituídas de valor e importância social, tornam-se
nuas e, como tal, impunemente eliminadas por um poder soberano que decide sobre seu valor,
tal como o exemplo citado anteriormente sobre a violência sexual exercida contra o trabalha-
dor parecerevelar: a mais completa desumanização a que estão submetidos os escravos con-
temporâneos por parte dos que lhe são hierarquicamente superiores. 
O poder soberano, nesse sentido, está personificado no fazendeiro, no dono da empresa,
no chefe, amparado por uma hierarquia estabelecida no interior destes locais que visa a asse-
gurar o controle, o cuidado e o usufruto das vidas escravizadas, evidenciando a estrutura bio-
política por trás da cadeia de mando dessas propriedades. Tal hierarquia, afirma Costa (2008),
varia segundo a atividade nela desenvolvida e sua abrangência e, por trás (ou acima), está o pro-
prietário, dono absoluto do poder.
Fora dos empreendimentos, a soberania dos proprietários, sejam fazendeiros ou empre-
sários urbanos, é reconhecida pela força política que possuem. Seja por meio da ocupação de
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cargos eletivos nas esferas de poder municipais, estaduais ou federais, seja, de forma indireta,
por possuir estreitos laços com representantes dos seus interesses nos referidos cargos. Além
disso, podem contar com a conivência da polícia, que pode atuar como parte dos instrumen-
tos de repressão utilizados contra os trabalhadores.7Tamanha força política e econômica lhes
garante impunidade e promove a reincidência, tornando a vida e os corpos dos trabalhadores
o local, por excelência, da sua atuação. Deixá-los morrer, ordenando sua execução ou retiran-
do-lhes as condições de sobrevivência (água, comida, alojamento, cuidados médicos), torna-
se “prática corriqueira” plenamente justificada. 
Neste modelo, a desumanização se dá pela redução do escravo a um conjunto de estereó-
tipos negativos compartilhados pelos “soberanos”, e que passam a justificar sua exploração.
Perigoso, preguiçoso, vingativo, mentiroso, bêbado e desrespeitador das famílias, como apon-
tou Costa (2008), são adjetivos utilizados para (des)qualificá-los e, com isso, remetê-los à figu-
ra do estranho, do estrangeiro ou daquele que é “de fora”. São estes os estigmas que acompa-
nham aqueles desconectados dos laços sociais reconhecidos como positivos, e tal qual os
imigrantes estrangeiros ilegais, os trabalhadores escravos passam a figurar na condição de não
cidadãos (COSTA, 2008). Como resultado, a vida, agora estabelecida como vida nua, começa
a morrer simbólica ou socialmente a partir do colapso de suas condições, constituindo um não
lugar onde todas as barreiras disciplinares acabam ruindo. 
Segundo Agamben (2010, p. 155), “condenados à morte e habitante do campo são, portan-
to, de algum modo inconscientemente assemelhados a homines sacri, a uma vida que pode ser
morta sem que se cometa homicídio”. Essas cesuras biopolíticas são apreendidas por Figueira
(2000, p. 44), quando salienta que, como pano de fundo do imaginário do escravagista, existe
a concepção de que alguns seres humanos são objetos de negociação, podem ser comercializa-
dos e dominados, sendo que “a identidade desses homens que se tenta coisificar, pode não ser
a cor da pele, nem a religião; mas, a pobreza, a exclusão às riquezas e ao bem-estar, reservados
a outros”. Esse quadro revela que “os valores proclamados na Revolução Francesa, ou nas diver-
sas declarações de Direitos Humanos de países e de organismos internacionais, podem ser e
continuam sendo letra morta em muitos lugares”.
Nos termos do presente estudo, isso significa dizer que as declarações de direitos, ao mesmo
tempo em que podem ser compreendidas como instrumentos de garantia de direitos indivi-
duais e liberdades públicas, também podem ser vistas como instrumentos de ressignificação
384:A “EMPRESA-CAMPO” E A PRODUÇÃO DA “VIDA NUA”
O sucesso dos fazendeiros que se instalaram no estado do Pará, por exemplo, dependia, em grande medi-7
da, da sua capacidade de transformar em seus aliados as polícias militar e civil. As milícias privadas dos
fazendeiros são, até hoje, frequentemente formadas e mantidas com a participação de policiais. As princi-
pais vítimas das milícias são trabalhadores rurais, religiosos, ambientalistas, militantes em defesa dos
direitos humanos e dirigentes sindicais do campo que procuram defender os direitos daqueles com baixas
rendas e submetidos à exploração das mais diversas ordens (COSTA, 2008).
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e investimento político da vida nua no corpo do Estado-nação. Essas declarações possuem, por
um lado, uma função emancipatória, mas, por outro, elas também integram o dispositivo de
abandono da vida nua à violência dos mecanismos de poder (AGAMBEN, 2004; 2010). Assim,
“ao lado da função emancipatória das declarações de direitos fundamentais, seria também
indispensável perceber que elas integram o dispositivo de abandono da vida nua à violência dos
mecanismos de poder” (GIACOIA JUNIOR, 2008, p. 284).
Nesse sentido, no caso Fazenda Brasil Verde, a CorteIDH constatou que:
a partir do momento em que os trabalhadores recebiam o adiantamento em dinheiro
por parte do gato, até os salários irrisórios e descontos por comida, medicamentos e
outros produtos, originava-se para eles uma dívida impagável. Como agravante a esse
sistema, conhecido como truck system, peonaje ou sistema de barracão em alguns países,
os trabalhadores eram submetidos a jornadas exaustivas de trabalho, sob ameaças e
violência, vivendo em condições degradantes. Além disso, os trabalhadores não tinham
perspectiva de poder sair dessa situação em razão de: i) a presença de guardas armados;
ii) a restrição de saída da Fazenda sem o pagamento da dívida adquirida; iii) a coação
física e psicológica por parte de gatos e guardas de segurança e iv) o medo de represálias
e de morrerem na mata em caso de fuga. As condições anteriores se potencializavam
em virtude da condição de vulnerabilidade dos trabalhadores, os quais eram, em
sua maioria, analfabetos, provenientes de uma região muito distante do país, não
conheciam os arredores da Fazenda Brasil Verde e estavam submetidos a condições
desumanas de vida (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,
2016, p. 79).
Por fim, quanto à quinta característica, Nascimento (2016) afirma que a estrutura de exce-
ção que permite perceber a abertura e a presença do campo é modulável, capaz de reciclar-se
e adaptar-se a distintas situações, sofrer metamorfoses, encontrar formas diversas em contex-
tos diversos, mas sempre perdurar. Esta característica, especialmente, é uma das que mais tem
marcado os processos de escravidão, desde os tempos mais remotos até os dias atuais: sua capa-
cidade de adaptação e sobrevivência.
Como núcleo comum do fenômeno, Borba e Camara (2016) apontam a submissão a um
trabalho forçado, ameaças de punição, uso de coação, restrição da liberdade pessoal, reten-
ção do trabalhador no local de trabalho, por meio de vigilância ostensiva ou da apropriação
de seus documentos e de seus objetos pessoais, e sua configuração se foca na privação da
liberdade. A escravidão moderna, portanto, pode assumir várias formas, sendo chamada de
tráfico humano, trabalho forçado, escravidão ou práticas análogas, servidão por dívida,
casamento forçado, venda e/ou exploração de crianças, dentre outros. 
Além destas diversidades, no Brasil as situações ocorrem tanto na zona rural do país, nas
áreas da pecuária, da exploração madeireira, da mineração e das plantações de cana-de-açúcar,
385:A “EMPRESA-CAMPO” E A PRODUÇÃO DA “VIDA NUA”
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quanto na zona urbana, especialmente na fabricação de vestuário8 e na construção civil, com a
mão de obra caracterizada pela migração de regiões pobres do país, ou de migrantes interna-
cionais, buscando maiores e melhores oportunidades de vida. 
Diante de um fenômeno mutante, maspersistente, Borba e Camara (2016) reafirmam as
diferenciações entre a época da escravidão legal, nos séculos passados, e a escravidão ilegal
atual. Agora, a forma de trabalho escravo mais encontrada no país é a da servidão por dívida.
Na escravidão histórica, o custo de conseguir um escravo era alto, fazendo com que ele fosse
considerado um investimento a ser amortizado com o passar dos anos. Os “novos” escravocratas
não precisam investir muito para conseguir mão de obra. Basta o anúncio de uma “oportunida-
de de emprego” e vários trabalhadores farão fila para segui-los. Em comum, ambos se asseme-
lham no que toca ao trabalho forçado ou obrigatório, em que sua liberdade é tolhida e o seu
direito de ir e vir é monitorado por pistoleiros ou “gatos” armados, feito os capitães do mato
de outrora, e ainda em relação às condições degradantes de habitação, em que os alojamentos
de lona de plástico ou palha são espécies de senzalas, cuja alimentação é deficiente, as instala-
ções sanitárias são precárias e a água bebida não é potável.
Um fato, porém, que merece destaque, afirmam Borba e Camara (2016, p. 26), é que ape-
sar de as diferenças étnicas não serem mais fundamentais na escolha da mão de obra, há uma
maior incidência de negros que as demais etnias. Isso ocorre “devido ao histórico social de desi-
gualdade da população negra, realidade que não se alterou substancialmente mesmo após a assi-
natura da Lei Áurea”, visto que “o Estado e a sociedade não garantiram condições para os liber-
tos poderem efetivar sua cidadania, o que ocasionou, atualmente, na existência de mais negros
pobres do que brancos pobres no Brasil”. A seleção dos “escravos modernos” da�-se, principal-
mente, pelo nível socioeconômico mais humilde e, por isso, existe a predominância de pessoas
negras em tal situação de trabalho, mesmo que a raça não seja mais considerada um pré-requi-
sito (BORBA; CAMARA, 2016, p. 26).
Trata-se, aqui, evidentemente, da “discriminação estrutural” revelada e considerada pela
CorteIDH no julgamento do Caso Fazenda Brasil Verde. Em seu Voto Fundamentado, o juiz da
CorteIDH, Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot, coloca o tema da escravidão contemporânea
no Brasil como uma espécie de “herança histórica” decorrente da incapacidade do Estado em
386:A “EMPRESA-CAMPO” E A PRODUÇÃO DA “VIDA NUA”
Os flagrantes são comuns no setor de confecções de roupas. Nos últimos anos, há diversos exemplos de res-8
gates de empregados que trabalhavam para a Zara, C&A, Marisa, Pernambucanas, GAP, dentre outras gran-
des marcas nacionais e internacionais. Para ilustrar as condições de trabalho impostas, foi constatado em São
Paulo, em 2010, que a rede de lojas Marisa estava diretamente articulada à exploração criminosa de 16 boli-
vianos e um peruano – endividados, sem carteira assinada, alojados em local com instalações elétricas expos-
tas e extintores vencidos ao lado de tecidos. As jornadas de trabalho começavam às 7h e chegavam até as 21h
(HASHIZUME, 2010).
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efetivamente erradicar essa modalidade de violência, elucidando o conceito de “discriminação
estrutural” utilizado no julgamento:
apesar de a escravidão ter sido abolida (1888), a pobreza e a concentração da propriedade
das terras foram causas estruturais que provocaram a continuação do trabalho escravo no
Brasil e, ao não terem terras próprias nem situações laborais estáveis, muitos trabalhadores
no Brasil se submetiam a situações de exploração, aceitando o risco de cair em condições
de trabalho desumanas e degradantes. Em 2010, a OIT considerou que existiam
aproximadamente 25.000 pessoas submetidas a trabalho forçado no território brasileiro.
Além disso, foi provado que a maior quantidade de vítimas de trabalho escravo no Brasil
são trabalhadores originários das regiões dos estados que se caracterizam por serem os
mais pobres, com maiores índices de analfabetismo e de emprego rural (Maranhão, Piauí,
Tocantins), entre outros. Os trabalhadores destes estados se dirigem àqueles com maior
demanda por trabalho escravo: Pará, Mato Grosso e Tocantins. Os trabalhadores, em sua
maioria homens pobres, afrodescendentes ou mulatos, entre 18 e 40 anos, são recrutados
em seus estados de origem por “gatos” para trabalhar em Estados longínquos, com a
promessa de salários atrativos (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS, 2016, p. 27).
Com efeito, no julgamento do Caso em comento, pela primeira vez a CorteIDH reco-
nheceu que os fatos que deram origem à denúncia perante o SIDH estavam diretamente rela-
cionados à posição econômica das vítimas que se encontravam na Fazenda Brasil Verde. No
parágrafo 339 da sentença, a CorteIDH reconhece que os trabalhadores se encontravam
em uma situação de pobreza, que provinham das regiões mais pobres do país – e, conse-
quentemente, com menor desenvolvimento humano e perspectivas de trabalho e emprego
–, que eram analfabetos e tinham pouca ou nenhuma escolarização, situação que “os colo-
cava em uma situação que os tornava mais suscetíveis de serem aliciados mediante falsas pro-
messas e enganos”. Trata-se, segundo a CorteIDH, de uma situação que “possui origens his-
tóricas e era conhecida, pelo menos, desde 1995, quando o Governo do Brasil expressamente
reconheceu a existência de ‘trabalho escravo’” (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS, 2016, p. 89).
O que se vislumbra deste cenário é que, apesar das diferenças conjunturais, históricas e
sociológicas entre as diversas formas de escravidão surgidas ao longo do tempo, e aquelas que
existem atualmente, é possível vislumbrar, em todas, o caráter extremamente exploratório do
trabalho, e mais do que isso, o caráter biopolítico que configura a vida produtiva no Brasil. Por
isso, o trabalho escravo contemporâneo não pode ser analisado apenas como mais um crime,
ou uma prática isolada, mas é parte de uma estratégia de poder estatal/capitalista que estabe-
lece no “fazer viver e deixar morrer” biopolítico sua estratégia de perpetuação, enquanto
estratégia modulável, cuja exceção que dá ensejo ao campo é capaz de reciclar-se e adaptar-se
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a distintas situações, sofrer metamorfoses, encontrar formas diversas em contextos diversos,
mas sempre perdurar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo, a partir do marco teórico descortinado pela biopolítica – conforme delinea-
da pela obra foucaultiana e (re)visitada na contemporaneidade pela filosofia de Giorgio Agam-
ben – buscou compreender em que medida, na contemporaneidade, a empresa que se utiliza
da mão de obra escrava pode ser equiparada a um “campo”, permitindo o neologismo “empre-
sa-campo” para designar espaços de exceção no que se refere às normas – nacionais e interna-
cionais – de proteção dos direitos do trabalhador. Como método de abordagem do tema, uti-
lizou-se o estudo de caso, a partir da análise da sentença proferida pela CorteIDH no julgamento
do Caso Fazenda Brasil Verde versus Brasil.
A partir da análise das categorias filosóficas empregadas na pesquisa (biopolítica e estado
de exceção, nos termos cunhados pelo projeto filosófico agambeniano), permitiu-se evidenciar
que o espaço “empresa-campo” se abre, no Brasil, no momento em que se reúnem algumas con-
dições/características, todas presentes no Caso analisado, e que permitem compreender como
o direito, articulado às relações de exploração/dominação que o constituem e o produzem, faz
parte do processo de produção da vida nua.
Nesse sentido, foi possível constatar, primeiramente, que o dispositivo responsável pela
abertura desses espaços pode ser acionado de diversas maneiras – legiferante, administrativa,
policial, ou mesmo por uma via meramente discursiva. No caso brasileiro, entende-se que
todas elas viabilizam a criação de espaços de exceção no que se refereà produção da “vida nua”
do trabalhador. No caso específico analisado (Fazenda Brasil Verde), ficou demonstrado que a
exceção foi criada na medida em que o Estado brasileiro, mesmo ciente das condições degra-
dantes de trabalho no âmbito da fazenda de gado situada no norte do país – revelada pelas
constantes fiscalizações ocorridas no local a partir da atuação do Ministério do Trabalho –,
manteve-se inerte no que se refere à tomada de medidas contundentes para cessar/evitar as
violações. Eis a indiscernibilidade entre direito e violência que caracteriza o estado de exce-
ção agambeniano.
No que diz respeito ao critério temporal, demonstrou-se que, ainda que o campo, em tese,
resulte da suspensão temporal do ordenamento jurídico, ele tende a adquirir uma disposição
espacial permanente. Isso significa, no caso do trabalho escravo no país, que – mesmo tendo
sido empreendidos esforços no sentido de sua erradicação – trata-se de prática que, de fato,
acompanha a história do país mesmo após a “abolição” da escravidão pela Lei Áurea. Jamais o
trabalho escravo – nas suas diversas modalidades – deixou de existir no Brasil, o que ficou reco-
nhecido na sentença proferida pela CorteIDH no caso analisado.
Também se evidenciou que o campo designa um espaço de indeterminação jurídica, ou
seja, um espaço no qual o texto da lei e o que é permitido ou proibido não estão bem definidos,
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o que se revela, no caso do trabalho escravo no Brasil, a partir da incapacidade do Estado –
pela via legal e administrativa – em efetivamente “alcançar” os espaços de violação de direitos
dos trabalhadores em situação de escravidão. Trata-se, aqui, concomitantemente, da constata-
ção da quarta característica que permite evidenciar uma situação de campo na contempora-
neidade, ou seja, aferir em que medida o indivíduo capturado neste espaço fica inteiramente
submisso à decisão de quem, nele, exerce o poder na condição de “soberano”. No caso inves-
tigado, a CorteIDH permitiu compreender a presença, na Fazenda Brasil Verde, de um espaço
anômico, na medida em que os trabalhadores nela capturados subsistiam em condições de
extrema vulnerabilidade, absolutamente vinculados à figura dos “soberanos” que impediam a
sua saída do espaço, utilizando-se, para tanto, da estratégia do endividamento.
Por fim, restou evidenciado que a estrutura de exceção que permite perceber a abertura e
a presença do campo é modulável, ou seja, é capaz de reciclar-se e adaptar-se a distintas situa-
ções, sofrer metamorfoses, encontrar formas diversas em contextos diversos. Essa caracterís-
tica é justamente aquela que permite que o trabalho escravo seja uma realidade ainda presente
na sociedade brasileira, revelando aquilo que pioneiramente foi levado em consideração pela
CorteIDH no julgamento do caso: a discriminação estrutural. Revela-se, aqui, a importância
deste julgado, na medida em que constitui o primeiro caso no qual o órgão jurisdicional do
SIDH reconheceu e determinou expressamente a responsabilidade internacional de um Estado
por perpetuar uma situação estrutural histórica de exclusão.
Feitas essas considerações, é possível asseverar, em síntese conclusiva, que a utilização do
trabalho escravo no Brasil contemporâneo permite uma aproximação ao conceito de “campo”
desenvolvido pela obra filosófica de Giorgio Agamben, na medida em que se compreende que
– conforme sobejamente demonstrado a partir do Caso Fazenda Brasil Verde versus Brasil, jul-
gado pela CorteIDH – ainda vigem no país espaços nos quais a vontade do “soberano” em
auferir lucros não encontra barreira alguma, de modo que os trabalhadores inseridos nesses
espaços transformam-se em meros “objetos”, vidas absolutamente descartáveis, a serviço
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Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth 
DOUTOR EM DIREITO PÚBLICO PELA UNIVERSIDADE DO VALE
DO RIO DOS SINOS (UNISINOS). PROFESSOR DO PROGRAMA DE
PÓS-GRADUAÇÃO – MESTRADO EM DIREITOS HUMANOS – DA
UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO
GRANDE DO SUL (UNIJUÍ). PROFESSOR DOS CURSOS DE
GRADUAÇÃO EM DIREITO DA UNIJUÍ E DA UNISINOS.  
madwermuth@gmail.com 
Joice Graciele Nielsson 
DOUTORA EM DIREITO PÚBLICO PELA UNIVERSIDADE DO VALE
DO RIO DOS SINOS (UNISINOS). PROFESSORA DO CURSO DE
DIREITO DA UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (UNIJUÍ). 
joice.gn@gmail.com 
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