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PAULO MERCADANTE Sertões Estudo de uma Região : A Mata Mineira ZAHAR EDITORESOS SERTÕES DO LESTE Estudo de uma Região: A Mata MineiraPAULO MERCADANTE Sertões DO Leste Estudo de uma Região: A Mata Mineira Paulo Pinheiro ZAHAR EDITORES RIO DE JANEIROCopyright 1973 by Paulo Mercadante 1973 Direitos para esta edição reservados por ZAHAR EDITORES Rua México, 31 - Rio de Janeiro Impresso no BrasilA minha mãe Adélia de Freitas Mercadante dedico este livroÍNDICE Introdução 11 I - Áreas Proibidas 15 II A População Gentílica 27 III - Devassamento da Bacia do Paraíba 37 IV - 0 Devassamento da Bacia do Doce 53 V - Tropas e Tropeiros 61 VI - A Paisagem do Sertão 67 VII - A Propriedade Rural 76 VIII - Crescimento Demográfico e Urbanização 83 IX - A Fazenda de Café 89 Festas e Tradições Populares 96 XI - 0 Coronelismo 101 XII - A Mata e a República Velha 112 XIII - A Paisagem Social 120 XIV Mineiro da Mata 129"Terra socialmente formada no Império, depois do grande surto setecentista, cafezais sem fim, lavouras ricas, mas igrejas pobres, cidades monótonas, sem a comovente beleza barroca das outras. Terra sem poetas, sem lendas antigas, sem mártires de velhas causas mortas." AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO Um Estadista da RepúblicaINTRODUÇÃO Os DESBRAVADORES ARROJARAM-SE aos perigos das Áreas Proibidas, a partir dos contrafortes da Mantiqueira. Conheceram a selva inóspita, cravaram mourões nos vales e encostas. Nada impediu avanço rio acima nem a correnteza, nem sumidouro. A região pouco a pouco é devassada, a conquista se faz pedaço por pedaço. Que era a Mata de então? Floresta violada apenas pelos rios. Indígena e mistério. Nela cresceriam fogos e fazendas. E na paisagem sem rota foram por fim sepultados pioneiros. Gigan- tes fundiam-se à terra, deitando raízes nos rincões e nos currais. Longe estava a Corte, e anseio de liberalismo re- vela-se nas Gerais. Em Santa Luzia, na aldeia banhada pelo rio das Velhas, extinguia-se sonho dos chimangos. Levas então desceriam. Rumava para Leste a gente sofrida da derrota política. Carregava, na fuga de re- presálias, haveres e família. Por todo 0 canto brotaram povoados. A casaria, como serpente, acompanhava as águas ao acaso. Na fazenda, próximo à sede, erguia-se a capela. Sem ouro das Minas, no rústico da selva, é rancho improvisado, ara sem atavio, apenas a mesa com a parafernália ja- cente. Apagava-se, na arquitetura e nos interiores, bar- roco das mãos crispadas e faces contorcidas. Tudo é tosco e modesto. Transpunha-se a metade do Oitocentos. Grupos co- meçaram a chegar do Paraíba. Filhos e netos de mi- neiros regressavam à província paterna. Os cafezais exaustaram solo fluminense e, tragando terras, avan- çavam a dentro.12 Os SERTÕES DO LESTE Do encontro de sedentários e adventícios nasceram as cidades da Mata. Minas de áurea terra, de sentimento de liberdade com litoral, em seus resíduos de sofistica- ção e decadência. Dois rios: das Velhas, trazendo a cultura do século XVIII, ideais de Tiradentes e Ottoni; Paraíba, negro e café. espírito dominador da Zona da Mata, teimosia ou reacionarismo deflui dessa união de barroco com decadência baronal. No fim do Oitocentos, a região alcança a maioridade. Trem de ferro diário, trazendo notícias e bens de con- sumo. O café distribuía-se por todos os cantos, espargia- se nos vales, grimpava pelas encostas. às ruas, próximas à estação da Leopoldina Railway, cheias de armazéns, a receber catadeiras em suas máquinas de dinheiro rolava; fizeram-se fortunas, as cidades cres- ceram. Na política, os doutores subiram, hábeis, conciliantes, respondendo com astúcia às manobras do governo. A la voura remanescia lastro, tradição e status do patriciado Na década de vinte há restos comuns em todas as comunidades, traços soltos da época pretérita. O Jardim, de árvores fortes, as ruas recém-calçadas, revelando desassossego das tropas de animais, a cruzar as cidades com sacos de aniagem. Alguma vez, um rebanho, a ma- nada revolta, invadindo o centro com estrépito e tumulto. Cavaleiros pelo dia, apeando do cavalo, de botas e espora, ou matutos trotando sem garbo. Os carros de boi em profusão, descarregando os macaqueiros che- gados dos distritos para as compras no varejo. Havia no tempo sobras de lutas e ressentimentos. Histórias e fatos misturando-se. Crimes e júris. As pretas velhas desfilavam casos com se fossem lendas. Maio dir-se-ia mês de deslumbramento. As festas religiosas ganhavam um esplendor à altura das tradições. hino a Maria, à sua pureza, ligava-se aos encantos das meninas. Para cada noite, as mãos de uma crianca coroa- vam Nossa Senhora. séquito caminhava em direção à igreja com luzes multicores. O altar armava-se num dos nichos, e após a reza, cântico. Maria, a ser coroa- da, prendia-se ao centro de um céu de estrelas douradas. Meia lua de prata cortava a abóbada entre as cores ver- melhas. Um pouco de barroco das Congonhas, renascido com graça nos Sertões do Leste.INTRODUÇÃO 13 Maio assistia alegremente às tradições. Nas festas religiosas, as barracas armavam-se com jogos de prendas. Ao redor do Jardim, em allegro com fogo, espetáculo das congadas incorporava à paisagem da fé a presença do negro. Mas na atmosfera de campanário a luta política endurecia corações. Ressentimentos e olhares sólidos. chefe do executivo descia pela rua principal. Vingavam- se os adversários no sarcasmo, sonhando com revanche. O foguetório explodia, saudando notícias e atenazando inimigos. A revolução distante, de tempos a tempos, re- virando OS poderes. Da capital à província a trajetória fa- zia-se por telegramas cifrados. De um lado a outro, cercas de arame farpado dividiam as esferas. poder separava homens adultos, tornava-os álgidos e duros. Os rios da Mata atravessam a paisagem e tempo. Desde as origens, cortam silenciosos as aldeias e cidades rumo do mar. Seguem para 0 Doce ou Parafba. Funchal Garcia ateou-os em épocas distanciadas, límpidos rolan- do na solidão dos descampados e turvos, mais tarde, quando a erosão lhes tingiu as águas. Temperamento agreste, sensibilidade sertaneja, traçou nas telas as ve- redas com gente quase afogada pela vegetação. Os ran- chos humildes perdem-se diante da ênfase com que carrega as tintas no traço do latifúndio. Por fim, às vésperas do Natal de 1929, ruía a gra- ciosa silhueta do golden age. Fios invisíveis engolindo as distâncias estenderam-se implacáveis. As pastagens começaram a invasão. * Teve a Zona da Mata, na história, curta vida de região próspera. A erosão corroeu solo por século e meio, desnudou as fraldas dos morros, gretou as riban- ceiras. A cultura do café exigia o sacrifício. O capoeirão foi derrubado no cabeço da serra, onde devia ter per- manecido para guardar a umidade e refrescar as terras. As queimadas, entretanto, faziam parte daquela cupidez de sôfregos aventureiros. De pouco valeram as adver- tências de Ribeirolles, há mais de cem anos, antevendo a decadência da província fluminense, quando ficassem desolados seus morros. Em meio à invasão dos cafe- zais, abundou no mesmo juízo sacerdote mineiro Cae-14 Os SERTÕES DO LESTE tano da Fonseca. Derruídas as capoeiras, cairia a fer- tilidade dos declives inferiores a gândaras dos montes. E a pena de Preston James exara a síntese do drama: homem, em sua ação modificadora do meio ambiente, atua às vezes com inteligência, mas, na maioria dos casos, de maneira cega, sem qualquer premeditação, apenas satisfazendo os seus interesses imediatos." E mal a Igreja se reformou, mal se pôs a lâmpada nas casas e nas ruas, investiu latifúndio para norte, deixando de vez a desesperança. Assim findou o ciclo do café com povoados esparsos ao redor de cidades. A Mata vale, porém, a pena de estudá-la quem a conheceu no afogo do crescimento, na esperança das suas manchas verdes. Hoje, quem a olha, de passagem pela rodovia, repara indiferente nos seus costumes e aspectos. Importa pouco desmazelo da gente nas estradas, as crianças às portas dos casebres, solitário caiçara. Cresce plaino na perspectiva da sobretarde, com 0 agreste do rio de águas barrentas. A Mata ora se transforma. A estrada de asfalto, com seus postos de gasolina, motéis e tráfego de cami- nhões, transfigura a paisagem provinciana. O rádio-de- pilha modifica a linguagem. A região austera, pura e dominadora, em breve morrerá. Entretanto, em sua metamorfose, ela não se extingue sem deixar os traços na fisionomia cultural da província e do País. Este livro procura senti-la, traçar-lhe perfil, rabis- car-lhe contorno. Aspectos e raízes locais, lendas e horizontes, motivos e temperamentos da gente, fusão de dois séculos são aqui abordados. Um mérito, pois, teria esforço do autor, se des- pertasse na gente da Mata interesse por seu passado e sua história, de forma que não se perdesse irremedia- velmente a valiosa cultura dos Sertões do Leste.I ÁREAS PROIBIDAS À PROCURA DO OURO e pedras preciosas, seguiram ban- deirantes, desde os primórdios da história colonial, rumo ao interior. Da baía da Guanabara teria saído, em abril de 1531, a primeira expedição a tocar a Mata das Minas Gerais. Calógeras tentou reconstituir-lhe 0 roteiro, e Derby admitiu a possibilidade da entrada. Eram quatro por- tugueses a explorar sertão da costa do Rio de Janeiro. Conta-nos Pero Lopes de Sousa, em seu Diário, que eles, durante sessenta dias, andaram cento e quinze léguas pela terra, sessenta e cinco delas por montanhas e cin- qüenta por um campo muito grande. Basílio de Ma- galhães duvidava de que apenas quatro homens pudes- sem aventurar-se a tão profundo Im- possível, porém, nunca seria que, transposta a serra dos Órgãos, houvessem os desbravadores vadeado Paraíba, pisando a terra mineira. 1 De pontos diferentes outros buscaram ainda as ca- beceiras do São Francisco, partindo ora do norte, ora do sul. Estimulados por cartas régias, a prometerem honra- rias e prêmios aos descobridores de riquezas, acompa- nhavam os cursos dos rios maiores e de seus afluentes. Contornaram, nas investidas, os Sertões do Leste, atual Mata Mineira e neles penetraram. 1 Pandiá Calógeras, As Minas do Brasil e Sua Legislação Geologia Econômica do Brasil, tomo I, págs. 17 e 19. Orville Derby, em Revista do Instituto Histórico de São Paulo, V, pág. 241. Ba- sílio de Magalhães, Expansão Geográfica do Brasil até Fins do Século XVII, Rio, 1915, pág. 9.16 Os SERTÕES DO LESTE Em 1554, Brás Espinhosa partia ao rebusco de ouro e prata. Residente em Porto Seguro, substituía no co- mando da expedição a Filipe de Guilhem, que se furtara à incumbência, com alegar idade e moléstia. Padre Manoel da Nóbrega seria também rendido por outro sacerdote, João de Aspilcueta de Navarro.² Quando do aprestamento da bandeira, em 1553, já Tomé de Sousa fora trocado por Duarte da Costa no Governo-Geral. Brás Espinhosa, de quem Mem de Sá dizia ser homem de bem, de verdade e de bons espíri- tos, intentou a descoberta das minas. Durante meses caminhou as matas e campos, tocando a nascente do Jequitinhonha. Margeou-a e das cercanias de Diamanti- na atingiu São Francisco, prosseguindo por um de seus tributários da margem direita. Talvez pelo rio Pardo retornasse em 1555. Andara nessa marcha pró- ximo à Zona da Mata, e a experiência, enriquecida por buscas seguintes de Vasco Rodrigues Caldas, procuran- do entranhar-se pelo rio Paraguaçu, disporia a penetra- ção pela bacia do Doce. A entrada de Martim de Carvalho, realizada em 1567 ou 1568, esquadrinhou, durante oito meses, curso do Jequitinhonha, vagueando ainda por trato onde se ligam as bacias do precitado rio, do Doce, do Mucuri e do São Mateus. Dela nos fala Pero de Magalhães de Gândavo. Ao fim, teria Sebastião Fernandes Tourinho atingido Sertões do Leste. Nas andanças perdeu-se em mar- chas e contramarchas. O roteiro está descrito por Ga- 2 Diogo de Vasconcelos, História Antiga das Minas Gerais, Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1904, pág. 9. J. F. de Almeida Prado, A Bahia e as Capitanias do Centro do Brasil (1530-1626), tomo I, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1943, pág. 388. J. Capistrano de Abreu, Caminhos An- tigos e Povoamento do Brasil, ed., Livraria Briguiet, 1960, pág. 167. Basílio de Magalhães, op. cit., pág. 20. "Espinosa. Sobrenome de origem geográfica. Do esp. espinosa, espinhosa, se não é deformação do português. Há Espinhosa na toponímia portu- guesa." Antenor Nascentes, Dicionário Etimológico da Língua Por- tuguesa, tomo II (Nomes Próprios), Rio de Janeiro, 1952, pág. 102. 3 Não se sabe ao certo se antecedeu ou precedeu à de Tou- rinho. J. F. de Almeida Prado, op. cit., pág. 311. Capistrano de Abreu a considera anterior (op. cit., pág. 187). 4 Pero de Magalhães de Gândavo, Tratado da Terra do Brasil, Anuário do Brasil, Rio, 1924, pág. 59. Pandiá Calógeras, op. cit., tomo I, págs. 372 a 380.ÁREAS PROIBIDAS 17 briel Soares de Sousa. Conta-nos 0 autor do Tratado Descritivo do Brasil em 1587, que Tourinho, morador em Porto Seguro, com certos companheiros entrou pelo sertão, perambulando alguns meses à ventura, sem saber por onde, e meteu-se tanto pela terra a dentro que se achou em direito do Rio de Janeiro. Assim o percebe- ram pela altura do Sol, que Tourinho muito bem sabia tomar e por conhecerem a Serra dos Órgãos. Gabriel Soares refere-se noutro lanço à mesma ex- pedição, ao descrever 0 curso do Doce. Este rio, menta historiador, vem de muito longe e corre para o mar quase leste-oeste, pelo qual fez Tourinho uma entrada, navegando por diante até onde ajudou a maré. Transpondo um braço acima, chamado Mandi, barcou, caminhou por terra obra de vinte léguas e foi dar com uma lagoa, da qual nasce um rio que se mete no Doce. E serpeando esta gente ao longo dele, anda- ram quarenta dias com rosto a oeste. 6 Orville A. Derby admitiu duas expedições de Touri- nho. Na primeira, procedente do Cricaré, alcançou-se Juparanã e o trecho do Doce entre a lagoa e mar. Na segunda, explorou-se o rio, seu afluente Suaçuí e a região do Serro. As pedras verdes encontradas pode- riam ser do distrito diamantino, onde há minerais con- fundíveis com turquesas. Pode-se também interpretar a aventura como tendo Tourinho subido pelo Urupuca, descido pelo Itamarandiba até encontrar Araçuaí. Derby não cria em explorações ao sul do Doce. Se houvera, talvez, uma entrada pelo rio Com analisar itinerário do lusíada, Capistrano de Abreu, ressalvando a escassez de dados para a deter- minação dos pontos descritos na rota, supõe que duas tenham sido as empresas. Partiu a primeira da capi- tania de Porto Seguro, na diretriz de Espinhosa e Car- valho. Tomaria Jequitinhonha, dele se apartando nas 5 Gabriel Soares de Sousa, Tratado Descritivo do Brasil em 1587, Laemmert, Rio, 1851, pág. 60. (0 livro "é preciosa fonte de informação acerca do Brasil nos fins do século XVI". Álvaro Lins e Aurélio Buarque de Holanda, Roteiro Literário de Portugal e do Brasil, vol. 2, Civilização Brasileira, 1966, pág. 5.) 6 Gabriel Soares de Sousa, op. cit., pág. 69. 7 Orville Derby, Itinerário da Expedição de Espinhosa em 1533", apud Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, LXXII, pág. 33. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, vols. IV e V.18 Os SERTÕES DO LESTE zonas em que as cachoeiras amiudadas dificultavam a navegação. Teria daí procurado São Francisco, cuja bacia vagueou até alcançar algum afluente do Paraíba, nascido na Mantiqueira, que levasse a avistar a serra dos Seria a entrada havida por primeira, a mais ocidental, empreendida por quem não adquirira a experiência do sertão ou não entendera as explanações pouco precisas de seus guias. Quanto à segunda, navegou Doce até as suas mar- gens elevadas, onde ainda as cachoeiras não lhe obstruem leito. Entrou, em seguida, no Guandu (Mandi de Gabriel Soares de Sousa), desembarcando dele e seguin- do por terra umas vinte léguas em rumo OSO, até uma lagoa donde sai um rio em rumo leste, perlongado por setenta léguas, durante quarenta dias, em rumo de oeste, novamente ao Doce. A região teria sido pervagada pelos bandeirantes de Tourinho. Encontrando as nascentes do Manhuaçu, numa lagoa, desceram-no por mais de trinta léguas, to- mando oeste até alcançar o Doce. A trajetória para chegar às cercanias do Araçuaí, onde encontrou Touri- nho as esmeraldas, cortou 0 norte da Zona da Mata. As referências de Gabriel Soares de Sousa a Tou- rinho parecem ser a causa de atribuírem-se-lhe as duas expedições. Entretanto, segundo relato é, talvez, de- senvolvimento do primeiro. Inadmissível que em alguns meses pudesse ban- deirante, subindo o São Francisco ou o Doce, alcançar as imediações do Paraíba. A fim de avistar a serra dos Órgãos, teria de tomar qualquer outro curso e retornar pelos mesmos caminhos. A referência de Gabriel Soares de Sousa às andanças à ventura diz respeito, possivel- mente, ao trajeto do Guandu ao Manhuaçu. Antes de descer em direção ao Doce, a partir do último rio, é provável que Tourinho se impressionasse com a serra de Caparaó, vista do oeste, que certa semelhança tem com a serra dos Vinte anos após têm início as entradas do ciclo es- pírito-santense, orientando-se pelas rotas de Tourinho e Adorno. Mas as penetrações parece não buscarem as 8 J. Capistrano de Abreu, op. cit., pág. 189. 9 Diogo de Vasconcelos, História Antiga das Minas Gerais, Ouro Preto, 1901, pág. 14. Capistrano de Abreu, op. cit., pág. 169.ÁREAS PROIBIDAS 19 margens direitas do rio Doce e sempre tomarem seus afluentes esquerdos. Em 1693, cem anos depois, outra aventura dirige-se de Taubaté à Mata Oriental das Minas. Rodeado de cinqüenta homens companheiros, seguiu Antônio Rodrigues Arzão em procura de Itacolomi. De Itaverava marchou até a serra do Guarapiranga, agora chamada do Sanches. De lá divisou as grimpas de Arre- piados. Descendo em sua direção, fronteou com rio Piranga, onde vagavam puris, que lhe deram notícias do rio Casca, originário da cordilheira cobiçada. Mal guiado, passou pelo atual Visconde do Rio Branco, an- tigo Presídio, indo bater na serra do ou Brigadeiro, que 0 sertanista tomou, a olho, pela Itaco- lomi. Chegando ao Casca, estava a comitiva quase des- truída por males e combates. Nas cabeceiras do rio, tirou oitavas de ouro. Os puris dele se aproximaram, interessados em proteção contra os botocudos. Atacado de febre intermitente, carregado numa rede, Arzão arre- piou carreira pela margem do Xopotó em direitura ao Espírito Santo. As indicações de sua jornada legou-as ao concunha- do Bartolomeu Bueno de Siqueira, que, seguido pelos companheiros Miguel e Antônio de Almeida, retomou a trilha em princípios de 1694. Alcançou Itaverava, no- vamente encontrando indícios de ouro. Na mesma época, partia de Taubaté Coronel Salvador Fernandes Fur- tado, acompanhado pelo Capitão Manuel Garcia Velho. Dirigiram-se para 0 Doce, a chamada "Casa da Casca", à procura de índios. Tais investidas de apresamento e pesquisa de riquezas facilitariam a futura penetração nos Sertões do Leste.¹⁰ Perdeu-se a crônica de inúmeras arremetidas rumo ao Paraíba. Malogradas quase sempre, ficaram sem o merecido registro na História. Findo ciclo do descimento do gentio, caracteriza- do pelo cunho predatório, sobreveio bandeirismo pes- quisador. Aquelas primeiras incursões, rápidas em suas passagens, brutais e despovoadoras, não haviam deixado núcleos de povoamento. 10 Orville Derby propende para a inexistência da jornada de Arzão. Basílio de Magalhães (op. cit., págs. 99 e 101) aceita-a concordando com Calógeras.20 Os SERTÕES DO LESTE Já a bandeira de Fernão Dias Pais assumiria um papel de empresa permanente, no dizer de Afonso de Taunay. Em sua rota, fundava povoados, plantando roças, edificando pousadas e deitando raízes de coloni- zação. Tangenciando curso do Paraíba, invadiu ter- ritório mineiro pela garganta do Embaú. A bandeira, em seu pioneirismo, levaria à descoberta do ouro. Dela também nasceria caminho das Minas de Ca- taguá e do rio das Velhas. 11 Ao trajeto refere-se An- tonil, nos princípios do século XVIII. Marchando de sol a sol, pelo mais áspero dos picadões, conseguia-se alcançar as Minas Gerais em menos de trinta dias. Do Rio de Janeiro fazia-se então a derrota, por via marí- tima, até Parati. 12 Depois, por uma vereda, chegava-se ao vale do Alto Paraíba. Assim descreveria Andreoni: "De Parati a Taubaté. De Taubaté a Pindamonhangaba. De Pindamonhangaba a Guaratinguetá. De Guaratingue- tá às roças de Garcia Rodrigues. Dessas roças ao Ri- beirão, com oito dias mais de sol a sol, chegava-se ao rio das Velhas." 13 Porém a Mata não teria qualquer vínculo com Caminho Velho. Receberia, no século seguinte, ses- meiros das minas decadentes, mas graças a outro roteiro. 11 Minas dos Cataguás, isto é, dos índios habitantes dos cer- rados, e não Minas de Cataguases, como se nalguns autores. Teodoro Sampaio, Tupi na Geografia Nacional, edição, Bahia, 1928, pág. 183. A etimologia da palavra tem sido objeto de vários estudos. Daniel de Carvalho, Estudos e Depoimentos, Livraria José Olympio, Rio, 1953, pág. 23. "O Município de Cataguases", em Revista do Arquivo Público Mineiro, vol. VII, pág. 577. 12 "Artur de Sá, governador do Rio de Janeiro, teve de ir por terra desta cidade a Parati e de Parati a Taubaté, para transpor a Mantiqueira. Seguiu assim um trilha antiquíssima dos guaianases" (Capistrano de Abreu, op. cit., pág. 79) 13 João Antônio Andreoni (André João Antonil), Cultura e Opulência do Brasil, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1967, págs. 287 e 289. "No sítio de Simão Pereira, foi criada a freguesia de Nossa Senhora da Glória, em 1718. Cônego Trindade cita dois documentos que confirmam a criação da freguesia de Nossa Senhora da Glória, em 1718, na fazenda que foi de Simão Pereira e Estrada Geral do Rio de Janeiro." Waldemar de Almeida Barbosa, Dicionário de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1971, pági- na 501. Sá Fortes, denominação dada em homenagem ao Dr. Carlos de Sá Fortes à velha localidade de Registro Velho. Max de Vas- concelos, A Estrada de Ferro Central do Brasil, edição, Rio, 1928, pág. 60.ÁREAS PROIBIDAS 21 Assim, em fins do século XVIII, Garcia Rodrigues Pais, filho de Fernão Dias, dispõe-se a abrir uma estra- da que encurtasse a viagem da Capital do Sul às Re- giões das Minas. A oferta foi aceita pelo Governador Artur de Sá. No Caminho Velho estavam as suas roças nas cabeceiras do rio Paraopeba onde picadão começou a ser aberto em 1688. Venceu a Mantiqueira, encontrou Paraibuna, tor- nejou-o até a sua barra no Paraíba, e pela serra dos Órgãos alcançou Rio de Janeiro, passando pelo Re- gistro do Paraibuna, Simão Pereira, Matias Barbosa, Sá Fortes, Juiz de Fora, Antônio Moreira, Engenho, Pedro Alves. Partindo, assim, da Borda do Campo, Barbacena atual, onde se reuniam as veredas dos rios das Velhas, das Mortes e Doce, 0 caminho passaria próximo às Áreas Proibidas. 14 Em 1700 já representava a picada desenvolvimen- to de vereda indígena, porém de difícil passagem para cavalgaduras. Seria, no século XVIII, rumo do ouro buscando porto e da mesma forma a rota dos negros e dos produtos manufaturados. 15 Mais tarde, uma va- riante, denominada "por terra", dispensando trajeto da baía da Guanabara até Porto da Estrela, passaria por Iguaçu, onde encontra a serra, unindo-se no alto dela ao Caminho Novo, no local hoje chamado Encru- zilhada. Outra variante, aberta nos primeiros anos do século passado, destaca-se da estrada por terra, em Pau Grande, e se dirige mais para oeste, alcançando território mineiro por Valença e Rio Preto. Estudando velhos caminhos fluminenses, esclarece Basílio de Ma- galhães que em 1819 a 1820 a Junta do Comércio do Rio de Janeiro mandou construir uma estrada a partir do Caminho Novo, em Iguaçu, e, em vez de atravessar a serra da Viúva, passou por outra parte, então deno- minada serra da Estrada Nova. Seguia-se daí para Vas- souras, onde, subindo à esquerda ao lugar chamado 14 J. Capistrano de Abreu, Capítulos da História Colonial (1500-1800), ed., Briguiet, 1953, pág. 233. Diogo de Vascon- celos, História Antiga das Minas Gerais, Imprensa Oficial, Belo Horizonte, 1904, pág. 158. Daniel de Carvalho, op. cit., pág. 45. Albino Esteves, "Aspectos Históricos e Geográficos Evolução Social", em Sinopse Estatística do Município de Juiz de Fora, Estado de Minas Gerais, Rio, IBGE, 1950. 15 A. P. Canabrava, João Antônio Andreoni e sua Obra, Com- panhia Editora Nacional, São Paulo, 1967, pág. 92.22 Os SERTÕES DO LESTE Desengano e à direita e ao ponto conhecido por Comér- cio, ambos às margens do Paraíba, ia encontrar as vias comuns já existentes para Valença, Rio Preto e para vale do Paraibuna. Tal variante é simbólica, diz Caio Prado Júnior, da transformação operada em Minas, que de mineradora se tornava agrícola e pastoril. 16 A Mata era então desconhecida. Vista do litoral, pareciam-lhe impenetrável os sertões. Na verdade, após a fundação do Rio de Janeiro, seguida de seu desenvolvimento, os índios começaram a afastar-se, sobretudo os numerosos e aguerridos ta- moios. A colonização, desimpedidas as áreas de perigo, marchou com relativa rapidez até Baixo Paraíba. Aí estancava avanço. No outro lado do rio, estavam os puris. Desde a confluência com Paraibuna até quase a foz do Pomba, tornava-se ele limite daquele avanço de civilização. A descoberta do ouro nos sertões do Centro dar-se-ia nos finais do século XVII, mas devassamento e con- seqüente povoamento não provocaram a profundidade para vales dos afluentes esquerdos do Paraíba. Em demanda das minas, os emigrantes, partissem de São Paulo ou do Rio de Janeiro, tomavam a estrada de Matias Barbosa, de onde caminhavam em direção à atual cidade de Baependi. De tal circunstância resultaria con- servar-se convizinha ao litoral fluminense, durante um século e meio, uma floresta virgem habitada apenas por índios e animais. A tira de selva, muito estreita nas imediações de Mar de Espanha, ia sempre alargando-se para o norte, até juntar-se à imensa floresta capixaba. Matas impenetráveis a estender-se por vales e monta- nhas, cobrindo os flancos e cumes das serras e forman- do uma barreira natural ao povoamento dos Sertões do Leste. Apesar da proximidade da Costa, a ocupação não se fizera. ouro lá não existia, ou pelo menos nunca aflorou nas bacias dos seus rios. Então, em vez de a corrente imigratória 17 seguir à direita ao encontro do 16 Caio Prado Junior, Formação do Brasil Contemporâneo, ed., 1953, pág. 243. Afonso de E. Taunay, História do Café no Brasil, vol. IV, tomo II, Rio, 1939, pág. 386. 17 Orlando Valverde, "Estudo Regional da Zona da Mata de Minas Gerais", em Revista Brasileira de Geografia, janeiro-março de 1958, pág. 25.ÁREAS PROIBIDAS 23 Paraíba, espalhou-se pelo norte, pelo sul, e desprezou a parte rica de florestas denominada Áreas Proibidas. Acresce a isto concorrer-se outro fator à conser- vação da barreira. A administração vedava povoa- mento, por política fiscal, a fim de proteger erário. Procurava-se manter a ligação da capitania ao Rio de Janeiro apenas por uma rota, com fito de resguardar a Coroa do descaminho e contrabando. Este o cuidado principal, sustenta Caio Prado Júnior, motivo por que tão pouco progredira a ocupação da Mata, nome que se deu à zona em oposição ao resto da capitania onde faltava a densa cobertura florestal característica.¹⁸ Havia consciência do papel protetor daquelas flores- tas contra a ação dos sonegadores, haja vista a referên- cia que Governador Luís da Cunha Meneses fazia a tais sítios: "Sertão para a parte de Leste, denominado Áreas Proibidas, na hipótese de servirem os ditos ser- tões de uma barreira natural a esta capitania para se- gurança de sua fraude..." Constante das medidas legais contra os descaminhos figurava o embrenhamen- to por picada, caminhos ocultos ou pouco A Zona da Mata seria, destarte, mantida pelas vi- cissitudes do ciclo minerador. Na segunda metade do século XVIII, acentua-se a decadência das Minas Gerais. Sobre o assunto discor- reu Oliveira Martins em página significativa. Arruina- ra-se a província e habitantes atônitos diante do irremediável. Mantinham-se, a princípio, indecisos, sem se convencerem da queda de jazigos cada vez menos produtivos. Em conseqüência, povoados e cidades paralisavam-se. "Vila Rica atravessava em 1804 uma fase de estagnação. As lavras exaustas haviam redu- zido grande parte da população a um estado muito pró- ximo da miséria. Da famosa Idade do Ouro restavam, praticamente, os vestígios materiais nos morros esbu- racados e nos córregos sinuosos onde renitentes faisca- dores teimavam em buscar recursos para sobrevivência. Dava-lhe certo alento a circunstância de ser a capital 18 Diogo de Vasconcelos, História Média de Minas Gerais, Im- prensa Oficial, Belo Horizonte, 1918, pág. 258. Caio Prado Junior, op. cit., pág. 71, nota 6. 19 Hélio Viana, "A Economia Mineira no Século XVIII", Primeiro Seminário de Estudos Mineiros, Belo Horizonte, 1957, pág. 81.24 Os SERTÕES DO LESTE administrativa da Capitania, que implicava a presença obrigatória de funcionários civis e militares com seu séquito de familiares e dependentes." 20 Após delírio da exploração aurífera, nada podia comprazer, e mesquinha afigurava-se aos velhos mine- radores a atividade agrícola. A paisagem já revelava a perplexidade. O desânimo alcançara campo escasso de pastagens e casas em ruínas. O minerador alimen- tava a crença de veio novo, da saudosa era de riqueza. Seriam precisos, porém, muitos anos para convencer-se de que metal acabara, de que 0 remédio era retor- no à agricultura. José João Teixeira Coelho, mais lúcido dos estu- diosos da decadência dos veeiros, indicou as causas ao Governo da Capitania. A análise do Desembargador re- feria-se à pobreza dos mineiros, à escassez de escravos, ao regime fiscal e de monopólio, ao mau método de minerar e a outras circunstâncias. 21 Eschwege redu- ziu-as à franquia ilimitada das minas e à ausência de leis montanísticas adequadas. Os mineiros só aprovei- tavam que podiam separar de um modo imperfeito. Metade do ouro perdia-se na extração e na própria casa de fundir. 22 Em fins do século XVIII quase se extinguiram os veeiros. De dezoito mil arrobas no período que medeia entre 1752 e 1787, desceu o produto para três mil e quinhentas nos primeiros vinte anos do século XIX. A lavra passara a absorver o resultado líquido da la- voura. Um velho depoimento registra a que se redu- zira uma granja de média importância. "A casa era uma barraca miserável, com muros de taipa de barro, sem vidraça, roída pelo tempo e mal defendida contra as chuvas. O chão era a terra úmida e negra, sem la- drilhos nem sobrado, saturada de imundícies e endure- cida pelo perpassar dos moradores, homens e cevados, 20 Herculano Gomes Matias, Um Recenseamento na Capitania de Minas Gerais, Vila Rica, 1804. 21 José João Teixeira, "Instrução para Governo da Capitania de Minas Gerais de 1780", Revista do Instituto Histórico e Geográ- fico Brasileiro, tomo XV, 1852. 22 W. L. von Eschwege, "Extrato de uma Memória sobre a Decadência das Minas de Ouro da Capitania de Minas Gerais e sobre Vários Outros Objetos Montanísticos", em História e Memórias da Academia Real das Ciências de Lisboa, 1868, tomo IV, parte II, vol. 105, págs. 257 e segs.ÁREAS PROIBIDAS que viviam numa promiscuidade repugnante. Por camas, enxergas duras para amos, um couro ou uma es- teira sobre chão para os servos. A ninhada das crian- ças alegrava-se seminua, esfarrapada e descalça, as mu- lheres enfezadas e pobremente vestidas, e chefe da casa, indolentemente embrulhado na capa, com os socos nos pés, vigiava trabalho dos negros, lavando cas- calhinho com a sempre mantida esperança da descober- ta de um depósito abundante de ouro." As dívidas cresciam. O metal cada vez mais redu- zido. E vinte anos foram necessários para decidir-se mineiro a abandonar a exploração das minas estéreis e entregar-se à lavoura. Desenganada de ouro, diz Capistrano de Abreu, buscou a população outros meios de subsistência: cria- ção de gado, agricultura de cereais, plantação de cana, de fumo etc. Em Minas Novas, até onde havia avan- çado esforço aurífero, a cultura de algodão substi- tuía. Disto resultara, na terceira metade do XVIII, um crescimento demográfico a conservar o nível do desenvolvimento anterior e facilitar mais tarde a pe- netração à Zona da Mata pelo vale do 23 Saint-Hilaire traçou, em linhas gerais, quadro ini- cial da maior parte das vilas mineiras. Seus povoadores foram atraídos pelo ouro que se extraía an- tigamente, em abundância, do leito do rio, e vêem-se, ainda hoje, sobre as margens, alguns montes de cas- calho, resíduos das lavagens, mas o ouro se esgotou, os braços faltaram e OS habitantes terminaram por re- nunciar definitivamente ao trabalho das lavagens. Vivem agora do produto das suas Mas 0 deslocamento dos geralistas processa-se rumo ao território fluminense. Contornando as Áreas Proi- bidas, chegava aquela gente ao litoral, cujo desenvolvi- mento agrícola se intensifica. Célebre ficaria no pla- nalto de Minas a expressão foi para a Mata do Rio, ainda há um século empregada. O surto cafeeiro ace- lerava 0 povoamento compacto, dinâmico, contínuo, po- 23 J. Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial, op. cit., pág. 247; Caio Prado Júnior, "Formação do Brasil Con- temporâneo", op. cit., pág. 71. 24 Auguste de Saint-Hilaire, Viagem às Nascentes do Rio Francisco e pela Província de Goiás, tomo I, Companhia Editora. Nacional, São Paulo, 1944, pág. 53.26 Os SERTÕES DO LESTE dendo ser classificado como expansão do tipo "mancha de óleo", idêntico ao das fazendas de gado e somente com estas contrastando do ponto-de-vista da dispersão, já que se apresenta mais Penetrando, o café ocupou extensa área propícia a sua floração. Toda a vasta zona dos municípios de Resende, Barra Mansa, Barra do Piraí, Vassouras, Valença, Paraíba do Sul, Carmo, Pádua, Itaocara, Monte Verde, São Fidélis, cobriu-se de mineiros que, nos finais do século XVIII e começo do século XIX, abandonaram a mineração. Em 1840, Francisco Leite Ribeiro relatava a Gardner: "Os apelidos Monteiro de Barros, Teixeira Leite, Bastos, Pita de Castro, Barbosa de Castro, Vieira de Resende, Dutra, Corte Real, Moreira de Faria, Junqueira, Cam- pelo, Lobato e tantos outros que ainda hoje figuram entre os fazendeiros dessa região, indicam a descendên- cia de famílias mineiras da época mineradora." Honório Silvestre descreve-nos movimento demo gráfico, chamando a atenção para a circunstância de que café não prendeu os montanheses no território fluminense. Este levariam às Florestas da Mata, campo escolhido para o desdobramento das novas energias. 25 Afonso de E. Taunay, História do Café no Brasil, vol. 3, tomo I, Departamento Nacional do Café, Rio, 1939, pág. 278. Fábio Lucas, Intérpretes da Vida Social, Belo Horizonte, 1968, pág. 56. Dulce Maria Alcides Pinto, "Povoamento", em Grande Região Leste, Geografia do Brasil, I, IBGE, Rio, 1965, pág. 209. Artur César Ferreira Reis, Épocas e Visões Regionais do Brasil, Manaus, 1966, pág. 398.II A POPULAÇÃO GENTÍLICA REPORTAM-SE os PRIMEIROS cronistas aos índios goitacás, habitantes das planícies ao sul do Paraíba. Na classi- ficação de von den Stein, formam um grupo étnico autônomo, à maneira dos tupis e dos jês. 26 Descreve- ram-nos von Martius e Ehrenreich, juntamente com os puris, coroados e coropós, como de origens afins. A atual tendência é localizá-los no grupo jê. 27 Acordes neste juízo Rivet, Jorge Bartolaso Stella e Júlio Trajano de Moura, que classificam os coroados, puris e goitacás como grupos em que se dividem OS jês. 28 Léry situava-os no litoral, entre rios Macaé e Pa- raíba, considerando Metraux que Maq-hé seria um curso de água que se lançava próximo a Macaé. 29 Coincide a informação com a do Padre Anchieta, que descre- via como sorte de gente da mais feroz existente por toda a Costa. A aceitarmos os goitacás como jês, teriam marchado, como os tapuias dos primeiros cronistas, para leste, 30 do oeste, isto é, das proximidades do leito do São Fran- 26 Rodolfo Garcia, "Capítulos sobre a Etnografia na Introdução ao Dicionário Histórico e Geográfico e Etnográfico do Brasil", I, 1922, pág. 250. 27 Artur Ramos, Introdução à Antropologia Brasileira, vol. Casa do Estudante do Brasil, Rio, 1951, pág. 112. 28 Estêvão Pinto, Os Indígenas do Nordeste, Companhia Edi- tora Nacional, São Paulo, 1935, pág. 129. 29 Alfred Metraux, "Les Indiens Waitaka" "A propos d'un manuscrit inédit du cosmographe André Thevet", Journal de la So- cieté des Amér., Paris, XXI, 1929. 30 Estêvão Pinto, op. cit., pág. 132.28 Os SERTÕES DO LESTE cisco. Do trato costeiro, onde se tinham fixado, foram expulsos pelos tupis-guaranis. Anteriormente, acaso em período remoto, teria havido secessão na comunidade tribal, haja vista a diferença de linguagem observada por Karl von den Stein. As vicissitudes, e ainda as lutas intestinas, acabariam criando diferenças de carac- teres físicos, que talvez possa explicar a situação dos puris. Posto se assemelhem fisicamente coropós ou cropós, coroados ou croatos e goitacás, já puris, de modo geral, eram entroncados, baixotes e, não raro, musculo- Maximiliano descreveu-os de cabeça grande, rosto largo, maçãs quase sempre salientes. 31 Tal disparidade de caracteres físicos não elimina a possibilidade de ori- gens comuns. É quase certo que todos faziam parte das antigas populações que ocupavam a costa brasileira. Expulsos pelos portugueses, por dos abeirados da foz do Paraíba, internaram-se dispartidos nas florestas do Estado do Rio. Temendo, em seguida, tamoios dispersos, as tribos goitacás abandonaram os sítios e empreenderam a marcha de embrenhamento, servindo-se dos afluentes do Paraíba do Sul. Pelo Paraibuna, pelo Pomba e res- pectivos subafluentes, a partir dos primeiros anos do século XVIII ou dos últimos do século precedente, tais tribos retirantes alcançariam Sapé e as fraldas da Man- tiqueira. Bem próximo do Caminho Novo, de onde sairiam depois sertanistas e faiscadores, abeirariam os Sertões do Leste. Pelo Muriaé atingiram Caran- gola, espalhando-se por planícies e serras. Diogo de Vasconcelos exara roteiro indígena em direção ao Pomba, Miragaia, Serra da Onça e Piranga, a partir do vale inferior do Paraíba. Os relatos do Padre Manuel de Jesus Maria e Marlière coincidem com tal hipótese. Salvar-se-iam por mais de dois séculos aquelas tribos procedentes da orla marítima. Escondiam-se nos sítios, onde a perseguição do colonizador encontrava as bar- reiras naturais da floresta. Em outro meio, distantes 31 Maximiliano, Príncipe de Wied-Neuwied, Viagem ao Brasil nos Anos de 1815 a 1817, ed., Companhia Editora Nacional, São Paulo, págs. 108 e 109. 32 Robert Southey, History of Brazil, Londres, 1810, pág. 665.A POPULAÇÃO GENTÍLICA 29 dos descampados, tiveram, porém, de se adaptar. Novos costumes e meio de vida adequados às condições do Interior. Na direção do Oeste seguem os selvagens. No ri- beirão da Meia-Pataca, em cujas cabeceiras tem a desig- nação de córrego da Neblina, próximo à atual cidade de Cataguases, encontrariam os sertanistas, no século XVIII, os coroados. Subindo pelo rio Pomba, estavam OS aldeamentos às margens direitas do Alto Rio Doce, onde já se achavam em som de guerra famigerados botocudos. 33 Nas cabeceiras do córrego Caeté, nome que tem o Xopotó na serra de São Geraldo, indígenas caetés vi- viam mansamente no meado do século XVIII. 34 Aliás, neste vale, onde se acha atual Município do Visconde do Rio Branco, distribuíam-se coroados pelas cercanias das serras e ribeirões, em permanentes conflitos com botocudos do Alto Doce, durante os séculos XVIII e XIX. 35 Aldeias indígenas são também encontradas no começo do século passado, às margens do rio Ubá, no atual município do mesmo nome. 36 Próximo ao rio Itabapuana, local habitado por nô- mades, hostis ao branco, e também nas vertentes do Muriaé, teve Maximiliano, no século passado, notícias de puris. Neste rio encontrou antigo povoado de índios. 33 Coroado, designativo do selvagem habitante do sertão do Pomba, também chamado croato, coroato, isto é, rijo como crauá. "Alusão à força muscular desses tapuias que tinham a mesma resistência das cordas de seus arcos, os quais eram tecidos das fibras de nossa bromeliácea crauá ou Nélson de Sena, Corografia de Minas Gerais, Rio, 1922. tribos, particular- mente os botocudos, raspam a cabeça e não conservam senão um tufo de cabelos no alto. Parece que antigamente este costume era mais geral. Os coroados foram assim chamados pelos portugueses unicamente por causa disto..." Rugendas, Viagem Pitoresca pelo Brasil, Rio, 1937, pág. 108. 34 Universal, Ouro Preto, 154, 7 de julho de 1828. Suplemento ao número 217 do Minas Gerais, 14 de setembro de 1913. 35 Oíliam José, Visconde do Rio Branco Notas para a sua História, Rio Branco, 1952, págs. 29 e 30. Botocudos. Assim cha- mados porque furavam os lábios, principalmente 0 inferior, pondo no buraco um botoque. 36 Folha do Povo, Ubá, 25 de janeiro de 1940, pág. 4. Desem- bargador Martins de Oliveira, "Cem Anos que Ubá Viveu", Ubá, 3 de julho de 1957, Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Hori- zonte, 1905, ano X, pág. 405.30 Os SERTÕES DO LESTE guarulhos. 37 Capistrano de Abreu considerava últi- mos como pertencentes ao vasto grupo distribuído pelo litoral, por uma e outra aba da cordilheira marítima e da Mantiqueira, estendendo-se para 0 norte até talvez o Jequitinhonha. As incursões de outras tribos, inclu- sive goitacás, produziram-lhes largos rombos, persistin- do a sua presença, entretanto, tanto no Baixo como no Alto Paraíba, até que as epidemias e perseguições os liquidassem. 38 No século XVIII mantinham-se puris nas cerca- nias dos Monos, no atual município de Leopoldina. Lá os encontrariam faiscadores, retirantes das minas em decadência. Por todo 0 sertão do Pomba fixavam-se os croatos e coropós. Desirmanados, naqueles vales e serras do Interior, adquiriram, na passada dos séculos, variações de linguagem e maneiras, que os tornariam diversos de seus ascendentes. O modo por que cortaram a cabe- leira valeu-lhes, da parte dos portugueses, a denomina- ção de coroados. Não podiam as condições de vida nas florestas permitir hábito de cabelos soltos, já que embaraçavam movimento entre a vegetação. Não pa- rece, pois, procedente a dúvida de Maximiliano ao refu- tar a Corografia Brasílica de que não seriam descen- dentes dos antigos goitacás, visto que os últimos usa- vam cabelos compridos, enquanto aqueles os cortavam em pequena coroa. 39 O nome de coroado é o único que se encontra nas Memórias Históricas de Saint-Hilaire soube que a nação se compunha de duas tribos reunidas: os tampruns e os sararicoes. Casal e Walsh escreveram que a população de Valença se formava de quatro hor- das: puris, os araris, os pitas e os chumetos. À medida que se processava a colonização do ter- ritório fluminense, com lavoura organizada e ocupação do território, trazia como conseqüência 0 deslocamento 37 Maximiliano, op. cit., pág. 128. Tribo de gente barriguda. Do tupi wa'ru, indivíduo comedor, e sufixo português, -ulho. Teodoro Sampaio, op. cit., pág. 211. 38 J. Capistrano de Abreu, Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil, ed., 1960, pág. 38. 39 Maximiliano, op. cit., pág. 103. 40 "Memórias Históricas de Pizarro", apud Saint-Hilaire, Viagem às Nascentes do Rio São Francisco e pela Província de Goiás, tomo I, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1944, nota 17.A POPULAÇÃO GENTÍLICA 31 dos coroados para além das margens esquerdas do rio Paraíba. Por volta de 1819, Saint-Hilaire observava que cinco anos antes possuíam os índios toda a região, pró- xima a Rio Preto, quando nenhum branco tinha a ragem de mostrar-se. 41 Os coroados, no século XVIII, fomentavam ataques freqüentes ao território das paróquias próximas ao Pa- raíba. Em 1789 foram repelidos, sofrendo pesadas perdas, pelo Capitão Inácio de Sousa Werneck, tendo então Vice-Rei do Rio de Janeiro aproveitado a opor- tunidade para tentar a catequese. Nasceu dessa con- tingência a aldeia de Nossa Senhora da Glória de Va- lença, em honra ao Vice-Rei Fernando José de Portugal. Lá campeavam coroados. A descrição que dele nos fez Saint-Hilaire, em 1816, demonstra que eram já simples rebotalhos dos antigos e valentes guerreiros. Feios e desagradáveis, preguiçosos e tristes, indiferentes, apenas se interessavam pelo que se lhes dava de pre- sente. Revelavam uma espécie de timidez simplória, ouviam que se lhes dizia de cabeça baixa e, sem que houvesse motivos, caíam, às vezes, em gargalhadas. Estes índios, prossegue Saint-Hilaire, perambulavam a esmo nas florestas por trinta léguas da capital, sem conser- var habitações fixas. 42 Vê-se, portanto, pela descrição do sábio francês, que os indígenas remanescentes se degradavam. Na mesma época, por volta de 1815 a 1817, Maximiliano encontraria às margens do Paraíba índios coroados, coropós e puris. Registrou a luta entre selvagens, tendo sabido, de pessoas fixadas no local, das práticas de represálias contra os brancos. À margem esquerda do rio Pomba encontravam-se então, em estado primitivo, índios coropós, em porfia com puris. O Príncipe visitou os últimos nas flo- restas fluminenses, atual cidade de São Fidélis. "Eram todos baixos, não tendo mais de cinco pés e cinco po- legadas de altura. Em geral, homens como mulheres, 41 Auguste de Saint-Hilaire, Viagem às Nascentes do Rio São Francisco e pela Província de Goiás, I, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1944, pág. 40. 42 M. Auguste de Saint-Hilaire, Aperçu d'un voyage dans l'intérieur du Brésil, La Province Cisplatine et les Missions dites du Paraguay, Paris, 1823, pág. 4.32 Os SERTÕES DO LESTE eram robustos e de membros musculosos." Avançando para norte, atingindo rio Itabapuana, habitado por nômades, hostis ao branco, e também pelas vertentes do Muriaé, teve notícias dos índios puris. Acrescenta que as florestas estavam cercadas de índios independen- tes e hostis. 43 As condições de vida nas florestas, as lutas inter- nas, com as implicações sociais e lingüísticas inerentes a tais vicissitudes, fariam que se reduzissem as varia- ções entre croatos, coropós e puris. Pois nos alianças e nos aprisionamentos, adviria um complexo de caracteres comuns a dificultar a elucidação da origem dos mencionados silvícolas. Pequenas tornam-se então as diferenças étnicas, sociais e culturais entre eles, tanto os da Mata Mineira como os da Região Oeste do Espí- rito Santo. Viviam em estágio primitivo de organização políti- ca e social. Dispunham de um chefe, o cacique, mais apto pelas condições físicas e intelectuais. Em seguida, na hierarquia tribal, sucedia caraí, feiticeiro a quem competiam as ligações com espíritos. A poligamia era regime familiar. A mulher pertencia a quem a mantivesse dominada. Quanto aos costumes, utilizavam-se do fogo (tatã) obtido pelo atrito de pedaços de pedras. Viviam da caça e da pesca, mostrando-se violentos na guerra. Ali- mentavam-se de carne, milho, mandioca, preparados em panela de barro. Da farinha de milho aprontavam as mulheres uma bebida, eivir ou viru. Von Martius descreveu-lhe preparo: "Moradia em comum de diver- sas famílias de coroado, na mata virgem perto da fa- zenda de Guidoval, no rio Xopotó. Algumas mulheres pisam o milho em cochos abertos por meio do fogo em toros de madeira; outras, tomam a farinha torrada na panela, mastigam-na e de novo a restituem como meio de fermentação para com isso preparar uma be- bida intoxicante. Outro grupo, só de homens, ocupa-se de diferentes modos, em volta do fogo, onde se prepara a farinha. Alguns índios descansam em rede." 44 43 Maximiliano, op. cit., pág. 107. Manoel Martins do Couto Reis, Descrição Geográfica, Política e Corográfica do Distrito dos Campos Goitacases. 44 Von Martius, Viagem pelo Brasil, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1938, págs. 386, 389.A POPULAÇÃO GENTÍLICA 33 Os croatos eram navegadores e habilidosos. Os que moravam, por exemplo, na Aldeia da Pedra, nas divisas de Minas Gerais com Estado do Rio, e que foram catequizados pelo Padre Ângelo da Silva Pessanha, na- vegavam em canoas no rio Paraíba do Sul, levando ma- deira para Campos. Não se pode admitir, como ponto pacífico, a ori- gem jê dos índios cropós, croatos e puris. O vocabu- lário comum de que se utilizavam os dois últimos evi- dencia a influência de raízes tupis. Já os cropós pos- suíam linguagem diversa. 45 Nélson Coelho de Sena admitia que os croatos e puris tivessem vindo de Goiás, passando pelo Triângulo Mineiro e territórios paulistas e fluminenses, tendo as- cendência tupi. Também Maximiliano observara a afini- dade dos puris com tupis, na denominação de tupă dada ao trovão. Realmente, muito se distinguiam dos cropós. Fer- reira de Resende, residente em Leopoldina no século passado, deixou-nos em suas memórias algumas páginas sugestivas. Descreveu-os pacíficos, vivendo em estado de completa nudez. Desconheciam a rede, fazendo leito da própria terra. Não possuíam tabas, limitando-se as suas habitações a pequenos ranchos de beiradas ao chão e que não passavam de duas simples forquilhas finca- das à terra. Sobre elas atravessavam um pau em forma de cumeeira, e sobre esta depois se encostavam alguns outros paus, "que fazendo as vezes de caibros, e sendo afinal cobertos com qualquer coisa sobre o qual a água pudesse correr, vinha por este modo a ficar servindo ao mesmo tempo de teto e parede". 46 Tais ranchos eram fracos e grosseiros, cobertos de folhas de palmito. "Esses mesmos índios tinham um gênero de coberta que com facilidade e em falta de agasalho levavam muito as lampas a esses mesmos ran- chos. E essas cobertas, que eu não sei se eram sim- plesmente transitórias ou se tinham alguma coisa de mais ou menos permanente, vinham a reduzir-se a isto: em fincarem eles no chão algumas cabeças de palmitos, cujas folhas ficando bem juntas e todas mais ou menos 45 Revista do Arquivo Público Mineiro, ano IX, págs. 159 e segs 46 Francisco de Paula Ferreira de Resende, Minhas Recordações, Livraria José Olímpio Editora, Rio, pág. 386.34 Os SERTÕES DO LESTE inclinadas para um único lado acabavam por lhes for- necer uma tal ou qual guarida, que embora muito pouco sólida e nada tivesse de muito impermeável, nem por isso deixava de lhes servir para ali passarem algumas noites ou para ali se abrigarem durante dia contra rigor das intempéries." Viviam de pesca e caça. Para lambaris e peixes pequenos, faziam uso de uma linha sem anzol com uma isca de algumas minhocas amarradas. Quando tenta- vam peixes maiores, em águas mais volumosas, recor- riam à rede, feita com fio de tucum ou embira que se tira da embaúba branca. Nada plantavam. Ignoravam de todo em todo a agricultura. Procuravam mel da abelha, frutos de árvores, raízes. Das últimas, pareciam gostar da cara- tinga, espécie de cará mais duro que comum. Arran- cavam-nos da terra com qualquer instrumento que apa- recesse, e as mais das vezes com as próprias mãos. Não dispunham para atividades senão da pedra de raio, que engastavam num pau, instrumento primitivo. Facas e foices e arcos de barril só posteriormente lhes foram dados pelos adventícios, e rapidamente aprende- ram a manejá-los. Também do contato com branco aprenderam a plantar favas mangalê, batatas-doces, bananas-da-terra, rasgando a terra com cavadeira de pau. Mas de tudo davam cabo ainda em estado verde. Os puris eram grandes corredores. Daí a facilidade com que se entregavam à caça. Pela mataria, armados de arco e flecha, feitos de pontas de taquaras, quicê e ubá, e agachados, caçavam veados, antas, porcos-do-mato, pacas, cutias, jacus etc. Os costumes, na região, confirmam-lhes o baixo nível de cultura. Furavam grande parte deles a orelha e os lábios, pintavam o corpo com tinta azul. De pro- priedade não tinham qualquer idéia, circunstância que explica a ausência de reação ao domínio das terras pelos entrantes. Quando Ferreira de Resende chegou à atual cidade de Leopoldina, puris selvagens ainda perambulavam nas imediações do município. Visitou um pequeno aldea- mento dos tebas, na estrada que ia para 0 rio Pardo. Recorda memorialista as palavras de Varnhagen a respeito dos aimorés de Porto Seguro. Não cons-A POPULAÇÃO GENTÍLICA 35 truíam tabas nem tujupares; não conheciam a rede e dormiam no chão sobre folhas; não agricultavam, an- davam em pequenos magotes; não sabiam nadar, mas corriam muito, eram antropófagos, falando uma língua inteiramente desconhecida e tinham usos estranhos. Tudo induz a acreditar, dizia Varnhagen, que eram da mesma nação representada pelos chamados agora puris. As informações de Varnhagen coincidem com os costu- mes dos puris, exceto a parte relativa ao horror à água e a ferocidade antropofágica. Os da Mata Mineira eram nadadores de primeira força. Dessa divergência Ferrei- ra de Resende indaga, ressalvando a sua condição de leigo no assunto, não seriam OS puris algum ramo da nação tupi? Apenas que posso dizer, prossegue, é que OS primeiros entrantes davam à moléstia chamada opilação o nome de canguari, que me parece ser tupi e que vim ouvir pela primeira vez. Este nome, porém, pode ter sido importado, bem como o das aves, das árvores e dos frutos, que são iguais aos dos outros lugares. Um dos rios, entretanto, que passa mais perto daqui é Pirapetinga, este que me parece ser pura- mente tupi e que não existe nos lugares donde vieram os primeiros colonizadores, para que um tal nome pu- desse ser No Baixo Paraíba e no vale do Muriaé ficavam re- manescentes de guarulhos, guarus ou guarutos, cujo designativo comilões se lhes devia à enorme vo- racidade. Parecem ter provindo dos campos de goitacá. Os botocudos, habitantes nas matas às margens do rio Doce e seus afluentes, eram, em geral, altos, de ca- belos pretos e lisos, de olhos também pretos, e nariz grande. A língua não parecia ter qualquer ligação com tupi-guarani. Do Piranga ao rio Branco, dominavam os airuãs, ocupando vale do antigo Guarapiranga. Próximos es- tavam abaíbas (gente ruim), na serra do Araponga, atual município de Viçosa, e, em pleno sertão no século XVIII, viviam os arrepiados, com seus cabelos em trun- fa, no alto da cabeça, e xopotó, gentio valente que deu nome ao rio nos altos vales do rio Doce. Hordas botocudas tiveram outras denominações. Os batuns, camaraxos, gentios que vagavam nos finais 47 Idem, op. cit., 387.36 Os SERTÕES DO LESTE do século XVIII, entre 0 Jequitinhonha e Doce, ca- pochos, cataranhas, chonins, cujo nome ficou conserva- do no ribeirão do município de Peçanha, "engerecé-mung" e "Herequere", também às margens do mesmo 48 Havia ainda outros nomes: "Imburu", "nac-nanuk", "zamplan", habitantes abaixo da foz do Piracicaba, al- deados por Marlière. Habitavam ocas de construção primitiva, alimentan- do-se de caça, milho cozido, peixe e mel de abelha. Pouco entendiam a respeito das plantas medicinais; também não sabiam nadar. Admitiam a poligamia, eram supersticiosos, atribuin- do aos puris as desgraças que ocorriam. Enterravam os mortos com as suas armas, cobrindo as covas de cinzas. Lançavam mantimentos, frutas e água, plantan- do também junto do morto mandioca e milho. Acredi- tavam na existência de entes poderosos, dedicando-lhes danças. Também ao Sol e à Lua prestavam um culto permanente. Nos combates, atacavam de emboscada, durante a noite. Suas flechas farpadas apavoravam adversários. 48 Designação genérica dos habitantes das matas de ambas as margens do rio Doce e afluentes, desde Espírito Santo até o sertão mineiro. Denominavam-se também imato, por causa do enfeite imato ou rodela, botoques nos lábios e roletes de pau nos lóbulos da orelha e asas do nariz. Nelson de Sena, Os Índios do Brasil, Belo Horizonte, 1908, Imprensa Oficial. G. W. Freireyss, "Viagem a Velhas Tribos de Selvagens na Capitania de Minas Gerais, Per- manência entre elas; descrição de seus usos e costumes", Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, vol. VI, 1900-1901, págs. 236 e segs. A hipótese de parentesco estreito entre os botocudos e o homem de Lagoa Santa tem sido refutada pelos estudos re- centes. Marília de Carvalho Melo e Alvim, "Diversidade Morfológica entre os Índios Botocudos do Leste Brasileiro (século XIX) e 0 Homem de Lagoa Santa", Boletim do Museu Nacional, n.s., Antro- pologia, 23, Rio.III O DEVASSAMENTO DA BACIA DO PARAÍBA JÁ NA FASE MINERADORA tem início devassamento das chamadas Áreas Proibidas. A aventura partia ao sertão, desafiando a densidade da mata e a suspeita do des- caminho. Era acesso por rios e caudais, veredas e atalhos. Fluvial avanço, dava-se a entrada por meio de rústicas embarcações, adiantando-se canoeiro paulatino rio acima ou, em descendo, atento às súbitas corredeiras. Desdobra-se balcedo, e quando aventureiro se deti- nha, a exploração era feita com exagero de cuidado. Romper pela matarama, desfazendo dificuldades, enfren- tando perigosos animais, tudo consistia em risco, sobre- tudo quando afadigados abriam a clareira para re- pouso. A princípio, era a busca do metal precioso. Rasga- se a picada sem destino, rompendo macega, transpondo banhado, improvisando passagem para súbito retorno, quantas vezes, ao sinal do atalaia ou de mistério não decifrado. O rumo, quando escolhido, fundava-se em termos de vagos informes, ouvidos de catecúmenos ou de batedores experimentados, porém imaginosos e bron- Os afoitos acabavam de esbarrar com a natureza selvagem. índio era óbice àquelas investidas. Às vezes, dian- te do sertanista, ele surgia de fito na destruição e no incêndio, matando invasor sem piedade. Pelas matas, de longe em longe, irrompiam coropós, botocudos e puris. Quase sempre relutantes às tentativas de aproxi- mação, infensos, reagiam em grita a simples presença de faiscadores a descer para os vales.38 Os SERTÕES DO LESTE Ao ultrapassar as fragas da Mantiqueira, 0 Caminho Novo de Garcia Pais iria permitir, por volta dos últi- mos anos do século XVIII, que pelo Alto Rio Doce, rompendo por bocainas e chavascais, se alcançasse a Zona da Mata. Anônimos desbravadores ganham ao viés atalhos à esquerda do caminho, procurando con- tatos com os aborígines dos aldeamentos mais próxi- mos. Buscavam, a princípio, ouro de aluvião, abarra- cando em qualquer lugar, perto de ribeiros. Para povoar 0 território se multiplicam as conces- sões de sesmarias no curso do século XVIII. Entre anos de 1710 a 1822 total ultrapassaria 6.642, com 4.257 léguas quadradas, de tamanho que variava, se- gundo Gerber, entre máximo de 48 léguas e mínimo de 60 braças quadradas. 49 Às margens do Caminho Novo estavam as sesma- rias, cujas concessões visavam, em pleno fastígio do ouro, a garantir a formação de lavouras que permitis- sem suprir bandeirantes em suas jornadas às minas. Para descanso do viageiro, e abrigo nas longas cami- nhadas, pousos nasciam ao comprido da grande via. Furnas e casas-fortes para segurança das riquezas trans- portadas, capelas para oração. Numa delas, obtida em 1709, por Domingos Gonçalves Ramos, na atual cidade de Santos Dumont, então despontou um agrupamento com casario disperso, futuro arraial de João Gomes, nome de um lavrador adquirente. Nas terras aparecem ranchos onde viajantes do Caminho Novo se abriga- vam. Próximo, cresceu lavoura e criação. Levanta-se, mais tarde, a primitiva capela de São Miguel e Almas, cuja construção deve-se talvez ao velho João Gomes. 50 A capela, à margem do Caminho, é dedicada a São Mi- guel e Almas, protetores invocados dos bandeirantes na perigosa travessia da Mantiqueira. 49 Henrique Gerber, Noções Geográficas e Administrativas da Província de Minas Gerais, Rio, 1863. 50 Múcio de Abreu e Lima, "Origem da Cidade de Santos Dumont", Sol, 13-2-1948. Santos Dumont. Célia Cortes de Fi- gueiredo Murta, Santos Dumont, IBGE, 1967. Sol, edição de 11 de maio de 1947. "O Centenário da Cidade de Santos Dumont", em Diário, Belo Horizonte, 23 de setembro de 1947. Diogo de Vas- concelos, História Antiga das Minas Gerais, Belo Horizonte, 1904, pág. 259.DEVASSAMENTO DA BACIA DO PARAÍBA 39 À orla do Paraibuna vão brotando localidades diver- sas, como as atuais cidades de Simão Pereira, Chapéu- -d'Uvas, Matias Barbosa. Em 1714 0 Governador D. Brás Baltasar da Silveira propôs a divisão da capitania em quatro comarcas: a primeira, a de Vila Rica de Ouro Preto; a segunda, a de Vila Real de Sabará; a terceira, a do Rio das Mortes; e a quarta, a do Serro Frio. A terceira abrangia toda a extensão desde o Paraopeba e Congonhas rumo ao sul até Paraibuna (onde começava a capitania do Rio de Janeiro) e a serra da Mantiqueira (raiz das duas capi- tanias de Minas Gerais e São Paulo). O território à esquerda do Caminho Novo, às margens do Paraibuna, era relativamente montanhoso, de ameno clima, e cor- tado pelos afluentes do Paraibuna. Por suas margens a flora da região era rica de plantas medicinais, e na mata próxima havia jacarandá, cedro, braúna, enfim madeiras de construção e marcenaria. Quanto à fauna, a selva era por capivaras, veados, pacas e porcos-do-mato. 51 Já se tentara também dar começo à catequese na- queles sítios, no primórdio do século XVIII, com a cria- ção, por Carta Régia de D. João V, da Freguesia de São Manuel dos Rios Pomba e Peixe, subordinada ao Bispado de São Sebastião do Rio de Janeiro. Porém as entradas sempre partem do Caminho Novo, independentes das medidas oficiais. Diogo de Vasconcelos registra que então já habita- vam muitos colonos à beira do Caminho Novo, de distâncias em distâncias davam pousada e rancho aos viandantes". 52 Guarda-Mor Garcia Rodrigues Pais já estava em sua sesmaria da Paraíba, no lugar atual da cidade. A sua casa estava à margem esquerda do rio, e as plantações empregavam cem homens. À direita havia a venda e 0 rancho para os tropeiros. Pouco adiante ficava Simão Pereira de Sá, depois Coronel Matias Barbosa da Silva, depois o Alcaide-Mor Tomé Correia e Manuel de Araújo, entre cujas sesmarias flo- resceu mais tarde Juiz de Fora. Naquele tempo havia um funcionário, nomeado pelo Governo, encarregado da Justiça em lugares distantes. 51 Sinopse Estatística do Município de Juiz de Fora, Rio, IBGE, pág. 28. 52 Diogo de Vasconcelos, op. cit., pág. 259.40 Os SERTÕES DO LESTE onomástico juiz-de-fora liga-se a tal circunstância, se- gundo alguns pesquisadores. 53 Nomeado em 1707, João Carlos Ribeiro Silva teve a residência na Alcaidemoria, à margem esquerda do rio Paraibuna. Volvidos alguns anos, transferiu-se para um sobrado que mandou cons- truir, e que existiu até poucos anos. A Fazenda Velha, como era denominada, foi pouso e passagem, durante dois séculos, de forasteiros e sertanistas. Nela se al- bergou Tiradentes, em suas viagens de alferes e propa- gandista da Inconfidência. 54 A iniciativa de catequese parece caber à zona do rio Xopotó. No meado do século XVIII, por volta de 1757, próximo ao sítio da atual cidade de Senador Fir- mino, o Capitão Francisco Pires Farinho lograva paci- ficar alguns coroados da região. 55 Poucos os lavrado- res e sertanistas que chegavam então às imediações do rio Turvo. Ao local aparece um sacerdote com fito de catequizar ameríndio. Padre Joaquim Martins, português de nascimento, alcança sertões do Xopotó.⁵⁶ 53 Paulo Japiaçú, em Jornal, Diários Associados, 28 de junho de 1956 (número dedicado a Juiz de Fora). As pesquisas efetuadas no arquivo da antiga fazenda Pera, hoje Tapera, por Antônio da Silveira Tristão, revelam que o juiz-de-fora teria sido o antigo ma- gistrado Dr. João Carlos Ribeiro da Silva (1708 até 1764). Antônio Armando Pereira, Lince, ano 1945, março, abril e maio de 1956, 1.273 a 1.275, Juiz de Fora. 54 Rodrigo Melo Franco de Andrade tentou salvá-la da fúria de nosso tempo, acorrendo ao pedido que lhe fazia Lindolfo Gomes. Baldados os esforços, pois um engenheiro de Prefeitura, considerando tratar-se de obra "de valor somente histórico", sugeriu que as picaretas do Prefeito a derrubassem, destruindo assim portão de entrada das Áreas Proibidas (Jornal do Comércio, 31-5-1950). 55 Códice S.C. 347, março X, Arquivo Público Mineiro, apud Marlière, Civilizador, Itatiaia, Belo Horizonte, 1958, Oíliam José, pág. 78. Carvalho Franco, Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brusil, São Paulo, 1954, pág. 147. A penetração resultara pro- vavelmente das incursões de bandeirantes de Taubaté. Em 1759, na margem esquerda do Xopotó, atual Alto Rio Doce, José Álvares Maciel obteve uma sesmaria. Lá ficou, fazendo a doação de um patrimônio para a Capela. Revista do Arquivo Público Mineiro, XXI. 56 Em 1691, Francisco Rodrigues de Siqueira e Manoel Pires Rodovalho exploraram a região, segundo Códice Matoso. Afonso de Taunay, Relatos Sertanistas, s.d., pág. 41. Nos primeiros anos do século seguinte, segundo vários autores, de Taubaté teria partido João de Siqueira Afonso para a região. A região de Guarapiranga foi povoada a partir da segunda metade do século XVIII. Códice 112, Arquivo Público Mineiro. sertanista Salvador Fernandes Furtado de Mendonça entre 1701 e 1706 ordenou que seus filhos AntônioO DEVASSAMENTO DA BACIA DO PARAÍBA 41 Mas somente no final de 1765 (14 de setembro), por ordem do Governador da Capitania, D. Luís Diogo Lobo da Silva, confirmou-se a nomeação do Padre Ma- nuel de Jesus Maria para o cargo de Diretor dos Índios da Aldeia dos Rios Pomba e Peixe. Natural de Casa Branca, termo de Ouro Preto, o reverendo era filho de branco com preta africana de Angola. Em Vila Rica fora sacristão. Nos fins da década de sessenta, em 1767, alguns agricultores afinal se reuniam para assistir à primeira missa celebrada naquelas plagas, num altar pequeno coberto de folhas de palmeiras. Era a Aldeia de Pomba e de Peixe que se Jesus Maria pôs-se à empreita da catequese, aden- trando-se nos sítios próximos, apagando com feitos ca- ridosos a desconfiança dos silvícolas. O sacerdote era tenaz, não se limitando à atividade religiosa. Reivindi- cava medidas de administração. Há pedidos insistentes seus, junto às distantes autoridades, no sentido de obter a abertura de um caminho de cavalo para o rio Xopotó.⁵⁸ O Padre fez construir, com a ajuda dos primeiros lavradores, igreja e casa dos índios, denominada Casa do Rei. Repontam, nesta época, certas preocupações com a catequese por parte das autoridades. Em 1776, de Mariana determinava-se a obrigação de um tributo em oitavas de ouro com fito de custeio da conquista dos índios puris e botocudos da região do Presídio e Conceição do e Feliciano explorassem o sertão de Guarapiranga. Valdemar de Almeida Barbosa, Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1971, pág. 483. No atual município de Cipotânea, estabeleceu-se Salvador Fernandes Furtado com mineração e en- genhos de cana, por volta de 1710. Augusto de Lima Júnior, A Capitania de Minas Gerais, ed., 1937, pág. 55. 57 Sinopse Estatística Municipal, Departamento Estadual de Estatística, Belo Horizonte, 1956. "Na primeira metade do sé- culo XVIII, o Capitão-Mor Luís Borges Pinto explorou a região, aprisionando e assassinando selvagens. Em 1750, capitão Inácio de Andrade repetiu as mesmas façanhas. Afinal, o Governador Lobo da Silva conseguiu um sacerdote para a admirável missão de pacificar os indígenas." Revista de História e Arte, 3 e 4, Belo Horizonte, págs. 35 e 36, apud Valdemar de Almeida Barbosa, op. cit., pág. 411. 58 1767. Códice S-C, 103, pág. 530, Arquivo Público Mineiro. 59 Revista do Instituto Histórico do Rio de Janeiro, vol. VI.42 Os SERTÕES DO LESTE Após trinta e cinco anos de apostolado, faleceu na mesma freguesia de São Manoel dos Sertões 0 Padre Jesus Maria. A presença da poaia, planta medicinal, salienta Ca- pistrano de Abreu, facilitaria 0 comércio com índios, tornando possível a tentativa bem sucedida da passa- gem do Alto Rio Doce para Pomba. Coroados, coro- potos, extratores da erva, estabeleceram contatos com os aventureiros. Na zona da ipecacuanha, rápida se fez a penetração. Em 1780, Miguel Henriques, o Mão-de- Luva, chegava às minas de Cantagalo pelo caminho do Pomba. 60 Levas de sertanistas internavam-se no vale, descendo rios, rumo aos aldeamentos do atual muni- cípio de Guarani, entravam pelos afluentes do Pomba ou beiradeavam ribeirão do Tijuca. Tal êxodo de geralistas levaria o Governo à criação de postos fiscais. Nesta época, afrouxava-se a política protetora da Metrópole com relação aos Sertões do Leste. O Gover- nador Luís da Cunha Meneses determinava-lhe a explo- ração, abria-os ao povoamento, por não lhe parecer haver terras inúteis "pela falta de se conhecer as utilidades que se poderão tirar das mesmas". Encarregou Sar- gento-Mor do Regimento de Dragões, Pedro Afonso Gal- vado de S. Martinho, de examinar as Áreas Proibidas a fim de reconhecer como se deveriam levantar barrei- ras eficazes à segurança dos reais interesses. Seria tam- bém por essa portaria que Governador ordenaria ao Alferes Joaquim José da Silva Xavier, então incumbido na ronda da mata, que acompanhasse Sargento-Mor no exame das possibilidades auríferas das terras e de sua capacidade de acomodação de gente. A ambos, sar- gento e alferes, cumpriam o reconhecimento de estradas e caminhos que abertos estivessem de ligação entre Minas Gerais e Rio de Janeiro. De tal missão resultaria o do núcleo de Mão-de-Luva, Manuel Henriques, afinal preso e re- metido para Vila Rica com os seus companheiros de faiscagem. 61 percurso do Sargento-Mor revela, segun- do observação de Diogo de Vasconcelos, como País já estava sulcado de caminhos. 60 J. Capistrano de Abreu, Capítulos da História Colonial, ed., Livraria Briguiet, Rio, pág. 247. 61 Simão de Vasconcelos, História Média de Minas Gerais, Imprensa Oficial, Belo Horizonte, 1918, pág. 263.O DEVASSAMENTO DA BACIA DO PARAÍBA 43 Deixando 0 Alferes em sua exploração, Sargento- Mor marchou, atravessou Sertões do Leste, chegan- do à beira do Paraíba, nas imediações de Porto do Cunha, estabelecido para Registro. Para prosseguir a obra de Jesus Maria, na região do antigo Presídio, atual Visconde do Rio Branco, ali chegou e viveu entre croatos Padre Francisco da Silva Campos, sacerdote ordenado em São Paulo e na- tural de Barra Longa. Administrou aos íncolas rudi- mentos de agricultura, ensino de cultivo de cana e fa- brico do açúcar. 62 Subindo pelo Pomba, penetravam os sertanistas no vale do Xopotó. No meado do século XVIII a coloni- zação da área se intensifica. Estabeleciam-se os adven- tícios em pobres casebres cobertos de colmo e folha- gens, onde, alguns anos depois, já pacificados croa- tos, surgiria um arraial que receberia nome de São João Batista do Presídio. A pacificação dos silvícolas originaria diversos po- voados. Exploradores em busca de ipeca e poaia che- gavam à região, atraindo índios para escambo. Numa das representações do Padre Manuel de Jesus Maria há referências a aspectos condenáveis de tal co- mércio. 63 Abre-se depois, lembra-nos Caio Prado Júnior, para- lelamente ao rio Doce, uma variante terrestre que se destinava à condução do gado de Minas Gerais ao Espí- rito Santo. 64 A estrada tem início no trecho mineiro. Da região de Vila Rica as picadas se estenderam até a cidade de Ponte Nova, às margens do rio Piranga. Se- gundo a tradição, nome deve-se à ponte levantada pela Comissão a fim de alcançar a margem direita do rio no ponto em que se estreita, oferecendo acesso mais Construída a obra de arte, fixou-se numa pa- rada o primeiro núcleo de habitantes. A mata foi atra- vessada. Um sacerdote, João do Monte de Medeiros, 62 Cônego Raimundo Trindade, Breve Notícia dos Seminários de Mariana, Mariana, 1953, pág. 64. 63 Oíliam José, Fatos e Figuras de Visconde do Rio Branco, Leopoldina, Minas Gerais, 1956. 64 Caio Prado Júnior, Formação do Brasil Contemporâneo, ed., São Paulo, pág. 244. 65 Ponte Nova, Minas Gerais, IBGE, Texto de Maria de Lourdes Freitas Cianella, ed., 1967.44 Os SERTÕES DO LESTE cederia, por doação, em 1770, um terreno entre cór- rego Vau-Açu e a sesmaria da Fazenda da Vargem para patrimônio de uma capela. 66 Com avançar sobre charcos e serrarias, enfren- tando perigos de ciladas, forasteiros afoitavam-se às terras banhadas pelos afluentes do Pomba. comér- cio da poaia facilitava a penetração. Os índios rece- biam pelas ervas a aguardente introduzida em seus al- deamentos. De pouco valera a advertência dos sacer- dotes. A arrancada dos poiaeiros acentua-se ano a ano. Provocava-se devassamento e conseqüente povoação, mas o comércio infrene, desapiedado e brutal levava o selvagem ao extermínio. Os principais documentos do começo do re- gistram as circunstâncias trágicas da colonização destes sítios. Arredio e temeroso, esquivara-se a princípio o ameríndio a entrar em entabulações com os adventícios. Para vencer a dificuldade natural, OS aventureiros lan- çaram mão da aguardente. Em meados de cem anos o aborígine estaria liquidado. A aldeia do Xopotó, desenvolvendo-se no local, seria chamada posteriormente de Presídio, atual Visconde do Rio Branco. Segundo a tradição, lá existia expianto de criminosos políticos. Não há, no entanto, qualquer do- cumento que se refira a tal prisão. Valendo-se mesmo de depoimento de moradores valetudinários, absteve-se o Padre Dario Schettini de emitir um juízo a respeito.⁶⁷ Há outra versão sobre a origem do arraial. Naquele tempo eram as cabeceiras do córrego Caetés, nome do ribeirão Xopotó em suas nascentes, na serra de São Geraldo, habitadas por várias tribos caetés. Mansas, delas procuraram aproximar-se vários desbravadores. Mas alguns, afinal, com eles se desentenderam. Rebe- laram-se índios, recebendo castigos e represálias. 66 Mário Clímaco, "Ponte Nova, Histórico de sua Fundação", Revista Acaiaca, 78, 1956, pág. 17. João Dornas Filho, Figuras da Panorama, Belo Horizonte, pág. 64. Arquivo da Arqui- diocese de Mariana. Jarbas Sertório de Carvalho, Pássaro Guara- piranga, fbis Rubra e Outros Motivos a Serem Venerados, Ponte Nova, 1962, pág. 15. Manoel Inácio Machado de Magalhães, "Trecho da História de Ponte Nova", Ponte Nova, 5, dezembro de 1942. José Schiavo, "História da Comarca de Ponte Nova", Diário, Belo Horizonte, 26-11-1948. 67 Tradição local.DEVASSAMENTO DA BACIA DO PARAÍBA 45 Foram postos numa prisão, e daí derivaria nome de Presídio. 68 Procedente de outros pontos, mas sempre do centro minerador, obliquando à direita e à esquerda, em cres- cido número, gente nova surgia à demanda de terra. O desencanto da faiscagem já tornava aqueles aventu- reiros em pretendentes de terras para a lavoura. Par- tindo de Guarapiranga, atual Piranga, Mariana, Itabira, várias famílias apoderaram-se de terras então devolutas, nelas estabelecendo propriedades agrícolas. Os povoados vão nascendo no processo dessa grande migração. Um pequeno núcleo, às margens do rio Tur- vo, aproximadamente nos fins do século XVIII, seria, vinte anos após, a Freguesia de Santa Rita do Turvo, cidade atual de Viçosa. A gente que povoou a região procedia de Mariana e de Ouro Preto. Subiam adventícios, muitos deles portugueses já desiludidos com as Gerais, às montantes dos rios Turvo e Xopotó, atravessando regiões sesmadas. Nas matas, dispartindo-se, deram origem a novos núcleos em Calam- bau, Dores do Turvo, Conceição e Rosário da Aliança. Apesar de pobres e pedregosas a montante, as terras prestavam-se ao amanho em suas baixadas úmidas e irrigá- veis, nos vales tributários dos rios Ubá e Paraopeba. Nas serras de Santo Antônio das Marianas a lavou- ra seria de cereais, cana e tabaco. As reservas da mata no planalto e na serra do Divino garantiam a qualidade das terras, de vermelho claro nos altos e cinzentas nas baixadas e planícies. A descer pelo rio Pomba, ainda no final do Setecen- tos, José Furtado de Mendonça edificou a casa de uma fazenda Roça Grande. Adquiriu, mais tarde, terrenos próximos, doando-os à Cúria a fim de ser criado um curato. A capela seria edificada, recebendo nome de Capela Rio Novo de Baixo, invocando-se para padroeiro o nome de São João 68 O Mineiro, 30 de dezembro de 1913. "Em 1791, assumiu aí as funções de capelão 0 Padre Francisco da Silva Campos; foi outro extraordinário apóstolo, que dedicou sua existência à catequese e defesa dos índios." 69 Estudo dos fatores de produção nos municípios brasileiros e as condições econômicas de cada um. Estado de Minas Gerais, Município de Ubá, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1923, pá- ginas 5 e 7. 70 Tradição local. 0 Padre José Vicente César informa que Domingos Henriques Gusmão e Jacó Domingues transferiram-se de46 Os SERTÕES DO LESTE Naqueles sítios, sertanistas penetravam em direi- tura a ravinas que confluíam ao córrego Canjica, cujas águas subiam até ao ribeirão da Roça Grande. A mor- raria a dividir sítios do atual município de Guarará levava-os naturalmente ao vale do rio São João. Conhe- ceriam, nas caminhadas, as roças à fímbria do rio Ubá e A catequese já iniciada permitiu a fixação dos agri- cultores. Nos princípios do século XVIII fazem-se doa- ções de sesmarias em ambas as margens do ribeirão do Ubá.⁷² Então, alguns exploradores alcançaram um rio pe- queno, cujo curso era de atual forma irregular, indo para a frente e para trás, que recebeu 0 nome de Caran- guejo. Prosseguindo a descida, mais abaixo encontraram um rio maior, sem aquelas curvas. Tratava-se de outro, que provocou de um dos aventureiros a exclamação de que era rio novo. Às margens nasceria depois, nos princípios do século, um núcleo A terra era fértil, o rio navegável, e o núcleo em pouco tempo se transfor mou em povoado. Pelas regiões ribeirinhas irrompem os sertanistas. De Borda do Campo, dois peões, acompanhados pelas mulheres, deitam acampamento às margens de um rio sereno. Fazem o capão em derredor da choupana e olham com surpresa a abundância de tartarugas em suas águas remansadas. Depois se desentendem. Parte um deles, Antônio José da Costa, de canoa rio abaixo. Anos depois, descendo o rio numa exploração, João Maqueira, outro, encontra cunhado fixado em casebre distante. Abra- çam-se comovidos naquele mundo da selva. Ao redor da palhoça, aberta por Antônio José da Costa, o roçado vai crescendo, e pelas margens do Cágado as plantações dilatam-se até ribeirão São João. Anos depois, ao sopé de uma colina, surge afinal um rancho de tropeiros. Capela Nova para a freguesia de São Manoel do Pomba, onde se fixaram. Edificaram então a capela dedicada a São João Nepomuceno. Pedro José Vicente César, 0 Inesperado, Capela Nova, apud Val- demar de Almeida Barbosa, op. cit., pág. 464. 71 Gustavo Barroso, "A Fundação de São Januário de Ubá", Cruzeiro, 2 de fevereiro de 1957. Revista do Arquivo Público Mineiro, XIII, pág. 867. 72 Códice S.G. 275, Arquivo Público Mineiro. 73 Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, vol. XXVII, pág. 51. Rio, 1959.O DEVASSAMENTO DA BACIA DO PARAÍBA 47 A rancharia cresce com 0 tempo, toma a forma de rua. Seria a futura Mar de Espanha.⁷⁴ O avançamento sem-fim para 0 Leste, rumo às terras fluminenses, prosseguia pelos vales dos afluentes do Pa- raíba, deixando pelo caminho gente fixada. Os da caminhada estendiam-se pelo sertão do Leste, no des- bravamento e povoação da mata. Nos fins do século XVIII primeiros aventureiros exploram a região do atual município de São José d'Além- Paraíba. A criação do Porto do Cunha, segundo a tradi- provém do nome do barqueiro que fazia o trans- porte entre as margens do Paraíba. Os entrepostos de Sapucaia, Rio Preto e Barra do Pomba já então existiam. Os tropeiros trilhavam todos quadrantes até porto de Magé. Diante da capela do povoado de Sant'Ana, em Porto Velho, no Estado do Rio, desenvolve-se um intenso movimento de tropas. Atravessavam em barca- ças Paraíba, transportando animais e cargas. Apare- ceu, nesta época, a lavoura do Padre Miguel Antônio de Paula, ocupando extenso trato de terra, estendendo-se de Cachoeira de Sapucaia até além do Remanso. O padre doaria mais tarde uma área para a construção da igreja do povoado nascente, futuro São José Em 1813 chegaria à Zona de Mata Guido Tomaz Marlière. Francês de nascimento, pouco se sabe das ra- zões que trouxeram ao Brasil. Seria preso em 1811, já em Vila Rica, agregado ao posto de tenente e gra- duação de capitão ao Regimento de Cavalaria das Minas Gerais e remetido ao de polícia no Rio de Janeiro, sob suspeita de emissário de Bonaparte e de agente subversivo. Em liberdade pouco depois, seria, no posto de tenente-coronel, nomeado comandante das divi- sões militares do rio Doce e Encarregado da Civilização e Catequese dos Índios. Iniciaria, então, a obra de desbravador e catequista dos sertões da mata.⁷⁶ Até en- tão, observa Luís Pedreira do Couto Ferraz, indomável 74 Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, vol. XXVI, pág. 39, Rio, 1959. 75 Almanaque do Município de Além-Paraíba, 1935. Fausto Gonzaga, "Além-Paraíba", Correio da Manhã, 27 de setembro de 1957. 76 Oíliam José, Marlière, 0 Civilizador, Itatiaia, Belo Horizonte, 1958, pág. 23. Afrânio de Melo Franco, Guido Tomás Marlière, Apóstolo das Selvas Mineiras, Imprensa Oficial, Belo Horizonte, pág. 25. Revista do Arquivo Público Mineiro, ano XI, 1905-1907.48 Os SERTÕES DO LESTE era ódio que nutriam os indígenas pelos colonos. Os últimos também caçavam índios com violência. Suce- diam-se as represálias. Aqueles atacavam OS colonos, ateando fogo aos paióis de milho, devastando plantações e assassinando famílias inteiras. Neste entretanto, dá começo Marlière ao seu sistema de catequese, mandando dizer ao Governo que preferia balas de milho às de chumbo, até então empregadas para subjugar silvícolas. Marlière instalaria seu quartel-general no lugar denominado Serra da Onça, chamando-o Guidoval. O es- tabelecimento facilitou as comunicações entre aldea- mentos próximos, cujo trajeto se fazia por picada aberta na selva pelos próprios índios. Mandou construir, às margens do Xopotó, um rancho de sapé para abrigo dos viajantes. Ali surgiria Arraial do Rancho do Sapé, onde moradores fizeram construir uma igreja, atual mente a cidade de Quando Marlière chegou ao lugar denominado Porto dos Diamantes, em 1828, lá havia um arraial com trinta e oito fogos de brasileiros e várias aldeias de índios coroados, coropós e puris. A origem do agrupamento, segundo versão corrente, deve-se a vários padres que lustro antes aportaram ao local, atraído por notícias de diamantes no rio Pomba. Moreira Pinto refere-se à ori- gem do povoado, fixando-a no começo do século XIX. (A denominação de Meia-Pataca dada ao ribeirão, esten- dida ao povoado, liga-se à história de garimpeiros que, acampados, colheram o peso de meia-pataca de ouro em uma só bateada nas areias. De um córrego, chamado das Lavras, afluente esquerdo do Meia Pataca, foi o ouro extraído, guardando em seu nome testemunho da mine- ração.) Marlière fez a solene aceitação de terrenos que lhe fazia Sargento das Ordenanças Henrique de Azevedo para fim de instituir uma capela e fundar a povoação. Traçaria, pois, usando das atribuições do Diretório, os limites do novo arraial. A notícia do evento publicou-a o jornal de Ouro Preto. Daí em diante perdeu a povoa- ção o nome primitivo de Porto dos Diamantes, passando a chamar-se Arraial do Meia-Pataca. 77 Guidoval, Minas Gerais, IBGE. Texto de Lúcia Maria Lou- reiro Werneck, 1966. Sapé era 0 nome primitivo. 78 Universal, 154, Ouro Preto, 7 de julho de 1828.DEVASSAMENTO DA BACIA DO PARAÍBA 49 Marlière seria semeador de povoados pelas bandas do rio Pomba. As atuais cidades de São Geraldo, Gui- ricema, Ubá, Guidoval, resultaram-lhe da ação pacifica- dora. Da Várzea do Presídio partiam lavradores às terras ferazes de São Geraldo, já que cessara a ameaça de hos- tilidade indígena. Alguns anos mais tarde erguia-se uma capela em louvor de São José, onde permaneceu o po- voado até 1880. Próximo, outro arraial seria beneficiado pela pacifi- cação do gentio. O fundador do atual Guiricema teria sido furriel José Lucas Pereira dos Santos, vindo de Campos dos Goitacases nas alturas de 1810, com tamília e escravaria, à região do rio Bagres. Em suas roças empregou índios, razão por que se desentendeu com Marlière, já empenhado na pacificação de todas as tribos. Mas em 1825 o furriel constituiu patrimônio da capela e obteve, tempo depois, por ato imperial, autoridade sobre puris.⁷⁰ Em 1815 a ação pacificadora de Marlière ligava-se ainda à atual região do município de Ubá, onde, ao lado de aldeias indígenas, às margens do rio, viviam alguns núcleos de portugueses. Requereram então ao Diretor- Geral das Divisões a criação de uma capela, que se comprometeram construir a expensas próprias. A tradição registra que Capitão-Mor Antônio Januá- rio Carneiro declarara ter propósito de doar terras para patrimônio da nova capela. Marlière o considera o principal interessado. Em 1823 a povoação recebia a primeira visita do bispo de Prossegue, no primeiro quartel do século XIX, a audaz entrada, feita em busca de terras de sesmarias. Tropeiros já sulcavam os pontos conhecidos. Certa vez (diz a história que a tradição conservou), puseram, à noite, o feijão ao fogo, mas, por culpa do cozinheiro, jogaram-no fora, exclamando: "Feijão Cru". No local, após algum tempo, cresceria um povoado. Por volta de 1832, nele se rezaria a primeira missa, numa capela co- berta de bicas de palmito e levantada no alto de um 79 Oíliam José, op. cit., pág. 193. 80 Frei D. José da Santíssima Trindade, "Pastoral", de 9 de junho de 1823, em Revista do Arquivo Público Mineiro, ano XII, 1907, pág. 599. Revista do Arquivo Público Mineiro, ano X, 1905, pág. 405. "A Fundação da Primitiva Capela de São Januário", em Folha do Povo, Ubá, 25 de janeiro de 1940, pág. 3.50 Os SERTÕES DO LESTE oiteiro. Seria Leopoldina. Nesta, todas as famílias pio- neiras, que chegam para a lavoura, procedem das velhas cidades do A jusante do Pomba, em pequena armação, Cons- tantino José Pinto, seguido por quarenta homens, che- gou ao rio Muriaé, em cujas águas desceu até pouco abaixo dos rios Glória e Preto. Lá encontrou puris, com quem manteve contatos. O sertanista procurava raízes e ervas medicinais, observando a riqueza da região e facilidade do trato com 0 gentio. Decidiu levantar seu abarracamento a fim de promover escambo com os selvagens. O ponto de desembarque recebeu nome de Armação, e de Rosário local escolhido para estabe- lecer-se. Constantino, natural de Barbacena, era radicado em Presídio, onde possuía terra e família. De Marlière havia recebido cargo de diretor dos puris, cujo aldeamento teve início com demarcação, a 3 de setembro de 1819, das terras destinadas à sustentação dos Com tempo foram aumentando as construções de Rosário, e outros exploradores sendo atraídos. A povoa- ção nascente receberia nome de Quartel de Robinson Crusoé, dado por Marliére, que para lá mandou João do Monte, um de seus Inicia-se nesta época 0 devassamento do vale do Carangola. O estranho nome dado ao rio, subafluente do Paraíba, deve-se provavelmente à curiosa circunstância de serem as margens juncadas de carás, que nos laga- mares, após as cheias, eram retidos pelo capim "angola".84 Forma-se uma concentração de criadores de gado nos extensos pascigos ribeirinhos. Por córregos afluentes se 81 Mauro de Almeida Pereira, Os Almeidas, os Britos e os Netos em Leopoldina (Genealogia), Belo Horizonte, 1966, pág. 13. 82 Oíliam José, Marlière, 0 Civilizador, op. cit., pág. 76. Couto Reis descrevia em 1785 o que eram os sertões do Muriaé, "horrorosos e pestíferos". A tal superfície chamava-se Deserto das Montanhas, op. cit. solo das terras altas que examinei no rio Muriaé eram de boa qualidade, que não se dava com as terras baixas." Charles Frederick Hartt, Geologia e Geografia Física do Brasil (Visita à Região em 1865), São Paulo, 1941, pág. 72. 83 Revista do Arquivo Público Mineiro, vols. XI, XII, 1811 a 1829. 84 Tradição local. Carangola, IBGE, Texto de Paulo Schnetzer, 1966. Carangola Ilustrada, junho, 1952. Globo, Rio, 13-4-1967.DEVASSAMENTO DA BACIA DO PARAÍBA 51 distribuem criadores, reunindo-se na atual cidade de Tombos, cujo nome se deve à cachoeira com tríplice queda que acidenta 0 curso do rio. Um dos fazendeiros, Maximiliano José Pereira de Souza, doaria parte de sua propriedade para abertura do patrimônio do povoado, em 1849. 85 Bem próximo, na cidade de Carangola, já havia um pequeno núcleo de lavradores. Tentara-se, no final do século XVIII ou princípios de XIX, uma garimpagem no rio que rega a cidade. Faiscadores procedentes da re- gião do Serro, galgando Caparaó, chegaram a pontos próximos do ribeiro de São Mateus, na atual cidade de Faria Lemos. O sítio era dominado pelos puris, que facilitava em grande parte a tarefa de pesquisa. Não encontrando metal, verificaram, no entanto, a fertili- dade das terras e deram início à agricultura. Inúmeros aventureiros vão assim chegando, nas primeiras décadas do século, atraídos por caça, pois comércio de peles se fazia de modo lucrativo com a praça de Campos. Formar- se-ia, afinal, um núcleo, por volta de 1833, denominado Arraial Novo.⁸⁶ Seria ponto de encontro de gente vinda do Serro, através dos afluentes direitos do Doce e dos aventureiros que, pelo rio Muriaé, chegavam do vale do Glória e Pomba. Em 1840 surgiram os Lanes, procedentes da barra do Muriaé, acampando no local onde se encontra hoje a Praça da Matriz Coronel Maximiliano. Cresce povoado. As matas são derrubadas, inicia- se cultivo de cana, de arroz e de outros cereais. Havia poaia por toda a parte, extraída pelos puris, já relacio- nados aos traficantes, que conduziam a mercadoria para a praça de Campos. Em 1842, homenageando os liberais de Teófilo Ottoni, o povoado receberia Santa Luzia como padroeira. A circunstância explica-se pela presença de chimangos da região mineradora. Após os Lanes, chegaram outras famílias, como os Batalhas, de Cantagalo, os Vasconcelos, do Serro, os Frossards, da colônia suíça de Nova Fri- 85 Dados Históricos, Geográficos, Demográficos, Administra- tivos, Políticos, Econômicos e Sociais, Prefeitura Municipal, Tombos, 1932. 86 Gazeta do Carangola, 1950. Tradição local.52 Os SERTÕES DO LESTE burgo, 87 Pereiras de Sousa, do Rio Novo, os Pedrosas, de Ouro Preto, os Machados, de Santa Bárbara, os Soa- res, de Mercês do Pomba, a família Carlos, de Catagua- 87 Data de 1818 a primeira tentativa oficial de colonização estrangeira: a fundação da colônia de Nova Friburgo, com a intro- dução de dois mil suíços, localizados na fazenda de Queimado, muni- cípio de Cantagalo. M. Diegues Júnior, Migração Urbana e Indus- trialização, Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, 1964, pá- gina 30. 88 Tradição local.IV DEVASSAMENTO DA BACIA DO DOCE Os DESBRAVADORES CHEGARAM, ainda, da região minerado- ra. Às margens dos ribeirões e rios, iam lenta e firme- mente penetrando, destruindo os cerrados para a picada sem rumo. Ao verem as serras, de longe, quedavam-se no cálculo dos picos elevados e através de depressões e convales para elas rumavam, vadeando os rios ou neles navegando em canoas improvisadas. Nas cabeceiras do Doce e de seus afluentes estavam as lavras de Ouro Preto, Mariana, Itabira e Serro Frio, regiões que a partir dos últimos anos dos Seiscentos se povoaram rapidamente. À medida que decaía ciclo minerador, no século seguinte, abalançaram-se aven- tureiros em direção às bacias do Araçuaí, Jequitinhonha. Na primeira delas formavam-se as Minas Novas, enquan to que na segunda os primeiros exploradores encontra- ram diamantes. Pois, se as cabeceiras do Doce eram tão ricas, deveriam ser também as regiões mais baixas do rio Senhores da região do Cuieté, botocudos começa- ram a sentir a ameaça nos seus domínios. Na década de trinta do século XVIII, chegando até as proximidades de Mariana, espalharam terror e devastação pelas zonas de Furquim e Barra Longa. Então se conjugam aventura e defesa. Em 1734, o Mestre-de-Campo Matias Barbosa foi incumbido de organizar uma bandeira a fim de combater os botocudos, devendo descer Doce. O Governador Antônio de No- ronha deu início à abertura de picada para alcançar-se

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