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OUTRAS LEITURAS LITERATURA TELEVISÃO JORNALISMO DE ARTE E CULTURA LINGUAGENS INTERAGENTES Maria Helena Martins (org.) Flávio Aguiar Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Maria Aparecida Baccega (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Todos os direitos desta edição reservados à Dulcilia Buitoni Outras leituras: literatura, televisão, jornalismo de arte e Editora SENAC São Paulo cultura, linguagem interagente / Maria Helena Rua Teixeira da Silva, 531 CEP 04002-032 Irene Machado Martins (organizadora). São Paulo : Editora Caixa Postal 3595 CEP 01060-970 São Paulo SP SENAC São Paulo : Itaú Cultural, 2000. Tels. (11) 3884-8122 / 3884-6575 / 3889-9294 Fax (11) 3887-2136 Vários autores. E-mail: eds@sp.senac.br Bibliografia. Home page: http://www.sp.senac.br ISBN 85-7359-163-3 (SENAC) e ao 1. de arte 2. Cultura 3. Jornalismo Itaú Cultural 4. Literatura 5. Televisão I. Martins, Maria Helena. Avenida Paulista, 149 LEI DE EDITORA INCENTIVO CEP 01311-000 - São Paulo - SP A CULTURA 00-3959 CDD-070.4497 Tel. (11) 238-1700 senac Home page: http://www.itaucultural.org.br Itaú para catálogo sistemático: 1. Jornalismo de arte e cultura 070.4497 © 2000, dos autores cultural SÃO PAULO DA CULTURAAs questões da crítica literária Flávio Aguiar Este ensaio esboça uma visão contextualizada das questões que inspi- raram e ainda inspiram parte significativa da crítica literária desde come- ço do século XX - algumas de antes ainda. A seguir, esboça um desenvolvi- mento prático dessas questões com um exercício crítico em torno do pro- blema do mal no romance Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, obra central da literatura brasileira neste mesmo século. A crítica Num livro clássico, Princípios de crítica literária, I. A. Richards defi- niu quais questões, a seu ver, ocupavam a crítica das artes. Adaptando-as para terreno estritamente literário, que é nosso objeto neste ensaio, terí- amos o seguinte elenco de perguntas: 1) O que confere valor à experiência de ler determinada obra? 2) De que modo esta experiência é melhor do que outra? 3) Por que preferir esta obra àquela? 4) Qual o melhor modo de fruir esta obra? 5) Por que uma determinada opinião sobre esta obra é melhor do que outra? Diz ele ainda que a estas somam-se algumas questões preliminares: 6) O que é um poema? Ou um romance, um conto, um drama, uma tragédia, uma comédia, uma tragicomédia, uma novela, uma crô- nica, e assim por diante? 7) Como se podem comparar diferentes experiências de leitura? 8) O que é, afinal, valor? O livro de Richards foi publicado em 1924. Nossa paisagem literá- ria de hoje é muito mais variegada, embora a dos anos 1920 de modo algum possa ser considerada estreita. Talvez algumas de suas perguntas tivessem 11. A. Richards, Princípios de crítica literária (2. ed. Porto Alegre: Globo, 1971). A tradução brasileira é de Rosaura Eichenberg, Flávio de Oliveira e Paulo Roberto do Carmo.Flávio Aguiar As questões da crítica literária questões mais complexas. Ao lermos um romance como será caso aqui de ser reformuladas. Por exemplo, a de número 3: Por que, dentre milhares neste ensaio -, veremos seres os personagens muito parecidos conosco, possíveis, escolher esta obra? Ou este conjunto de obras? Ou a de número 4: as pessoas, digamos, reais. Mas eles não são nós. Não agem, no fundo, como Em meio ao mar de ruído provocado por uma tempestade de opiniões nós, apesar de eventualmente autor ter se esforçado por fazê-los agir exa- desencontradas, em que prestar atenção, o que escutar? Vivemos um mo- tamente como nós. Pode-se dizer até que são melhores do que nós. Não mento caracterizado por uma imensidão de códigos, referenciais, modos, padecem da incoerência do nosso cotidiano; morrem com beleza; amam até modalidades, de diferentes culturas e épocas que se entrecruzam com velocidade espantosa, nunca vista antes. Encontramos lado a lado, e em pé fim; se atraiçoam, é por uma grande paixão, ou por motivos grandiosos, e de igualdade numa tábua valorativa das culturas e das modalidades cultu- neste mundo peculiar da obra de arte mesmo a mesquinharia mais sórdida rais, a epopéia grega e o baicai oriental; Os lusíadas e canto guarani; o torna-se mais grandiosa do que a mais espetacular pregação de virtude no cantar d'amigo medieval e barawi andino (canto em memória do amor nosso mundo real. Porque vilão mesquinho deve ser mesquinho até o fim. ausente); o conto afro da origem do mundo e sermão do Padre Vieira; e a E se for um vilão da cepa, ele será. Na arte, o vilão mais vilão será sempre Bíblia, o Corão, o Talmud, capital e todos outros livros que são ou mais virtuoso do que mais virtuoso santo na vida real. Há um comporta- foram sagrados. Ou seja: numa sociedade cujo ideal (proclamado com since- mento, portanto, que é próprio desse mundo, e que só a ele pertence. A esse ridade ou hipocrisia) é se afastar dos fanatismos e dos dogmas totalitários e conjunto de expectativas geradas e de gestos que com elas estejam de acor- construir-se democrática (sem muito sucesso, é verdade), e onde todos do, chamamos decoro. Um conceito fundamental para entender valor de cânones estão em discussão, como se coloca, afinal, a questão do valor? uma obra literária, até porque hoje muitos efeitos surpreendentes derivam Em que pesem toda essa pletora de mudanças vertiginosas e as adap- de quebras pertinentes do decoro, que geram ironia e despertam a reflexão. tações necessárias, as questões de Richards continuam sendo nossas. E ser- Antes de adentrarmos no romance, detenhamo-nos para uma palavra vem para definir o alcance da atividade crítica dentro do campo literário. sobre metodologia. A aproximação crítica de uma obra literária exige qua- Elas têm um centro um núcleo duro, diríamos hoje de onde se irradiam. tro operações fundamentais, que são: a paráfrase, a análise, a interpretação e É a visão de que a obra de arte a literária, aqui no caso se constitui num comentário. Pode haver outras operações, mas sem estas a crítica não se põe objeto único, diferente de todos os demais, que pode espelhar mundo em de pé por inteiro, embora nem sempre elas possam se completar em geral, volta, mas dele se distingue radicalmente. Merece, portanto, um tratamen- por falta de espaço. to específico, um preparo especial para ser apreciado. É autônoma, numa Por paráfrase, entendemos a reprodução da obra através da memória palavra, dentro do mundo que a cerca, que a rodeia, que a inspira, e que por do leitor. Ou seja, contar a estória, descrever poema, com as próprias vezes a ameaça com a censura, ou mesmo com a queima, como no regime palavras. Cuidado: esta não é uma operação passiva. É com os elementos da nazista. Para entrar na mesquita ou para receber a palavra de Oxum, cren- paráfrase que o leitor candidato a crítico começa a definir o seu próprio te tira os sapatos. Ao adentrar no mundo da arte, recebemos um convite perfil. Ou seja, diz para outro leitor futuro, que ele almeja para nos despirmos de nossos preconceitos, empreendermos viagens e co- e convencê-lo de sua leitura -, quem ele é, de que ponto de vista ele lê, o nhecermos paixões inolvidáveis. Poderíamos falar por páginas e páginas do que atraiu e 0 que valorizou naquela obra. Além disso, é pela paráfrase valor civilizatório de se compreender 0 valor da autonomia da obra de arte que depois informará a análise e a interpretação que podemos ver o enredo conceito cujo reconhecimento, ao lado de outros, trouxe dissabores e perse- de uma obra de ou a sucessão dos versos de um poema como uma guições para muitos artistas e críticos. estrutura simultânea, como se fosse um quadro aberto à nossa frente. É ela, Detenhamo-nos num aspecto prático. Toda obra de arte impõe um portanto, que nos abre 0 caminho para a visualização da forma particular de decoro peculiar. No nível mais simples, diríamos: de personagens cômicos, uma obra. esperamos gestos cômicos; de trágicos, trágicos; e assim por diante. Mas háAs questões da crítica literária Flávio Aguiar Por análise, entendemos a caracterização da forma particular de uma O que dizer do conto, por exemplo, gênero de larga vigência hoje pela sua obra, através da consideração de seus elementos internos e das relações que brevidade, que pode ter ao mesmo tempo a majestade de um romance, a mantêm entre si. Por exemplo, no caso de um romance: tempo, espaço, força lírica de um poema (mesmo que irônica), e a dramaticidade de uma personagens, foco narrativo, ponto de vista, natureza da ação se é que há tragédia (pensemos contos de Edgar Allan Poe, ou nos de Machado de ação, pois há ficções, e não só contemporâneas, que se caracterizam pela sua Assis)? falta ou impossibilidade pensemos no romance A náusea, de Jean-Paul Por interpretação, entendemos colocar tudo aquilo que a análise dos Sartre, cujo nome já diz tudo: neste romance foco principal recai sobre um elementos internos da obra nos sugere em relação com demais campos da pesquisador, na França, que, enquanto reúne dados sobre personagem his- arte e do conhecimento, a começar pela própria tradição literária, depois as tórico do passado, nos introduz a uma série de reflexões sobre 0 mal-estar da demais artes, a história, a sociologia, a psicologia, a filosofia, a antropologia existência, minorado apenas pela arte, e a impossibilidade de decifrar seu naquilo que puder ainda elucidar significado da própria obra. Neste significado. Podemos pensar em outros exemplos: Esperando Godot, peça de ponto chega-se, em geral, à discussão dos porquês. Por que, ao final de Samuel Beckett, em que personagens esperam indefinidamente outro Guarani, de Alencar, Peri narra para Ceci, no alto da palmeira em meio à que não vem e nunca virá; ou mesmo numa peça como Hamlet, de enchente, 0 mito tupi-guarani do dilúvio? Porque é da fusão dos mitos Shakespeare, cuja maior parte é ocupada pela dúvida do personagem em nativo e o cristão que, na visão de Alencar, deve nascer a nova cultura, a praticar efetivamente alguma ação de vingança ou justiça pelo assassinato nova pátria, assim como da fusão dos amores e das almas no caso, de uma do pai. branca e de um índio (que avançado era conservador Alencar!) é que Nem sempre a análise do foco narrativo coincide com a do ponto de deveria nascer a gente brasileira. Aqui, nosso horizonte começa a esgarçar- vista, pois naquele se impõe a descrição do relacionamento entre sujeito e se e a perder-se na bruma das multidões: pois o ato interpretativo depende objeto, digamos, entre quem vê e que é visto; neste, se impõe um do conhecimento e das tendências do próprio crítico. detalhamento da posição da narrativa a VOZ, persona, que articu- Finalmente, o campo interpretativo nos leva ao que podemos chamar la a narração, e que não coincide com o autor, mesmo numa narrativa auto- de comentário: ou seja, tudo aquilo que vem de fora da obra (informações biográfica, compondo uma espécie de máscara, alter-ego, fantasma, impres- biográficas, políticas, sociais, de hábitos e costumes, de produção editorial, na narração, do ser vivo que a criou. No caso de um poema, atentaremos etc.), mas que pode ajudar a emoldurá-la em seu tempo, no conjunto da mais de perto para sonoridades, ritmos, caráter dos versos se houver -, obra de seu autor, e também no nosso tempo. Aquela frase irônica que aci- visualidade do texto, estrofes, jogos de pausas e silêncios, repetições de ma ficou, que avançado era 0 conservador é um comentário: pois se fonemas ou trocas súbitas, e assim por diante. Numa peça de teatro, a ação apóia no conhecimento das tendências políticas daquele autor, pondo-as de vem para primeiro plano (ou sua ausência, como em Esperando Godot, de encontro ao fato de que, mesmo dentro da timidez do nosso Romantismo, Samuel Beckett): junto com ela, os personagens, que fazem, o que dizem ele foi capaz de imaginar um projeto muito ousado para nossa pátria. Ainda que fazem, que os outros dizem de cada um deles, a força expressiva das mais se levarmos em conta preconceitos da sociedade brasileira do século palavras, os conflitos, o choque de idéias, que uma peça prevê como canto XIX e do XX, e provavelmente do XXI também. Encerremos este co- e espetáculo. Todos esses elementos possuem nomes específicos e algumas mentário do comentário: muitos críticos consideram que ele constitui parte vezes complicados, em diferentes teorias de crítica literária. É necessário não essencial da sua atividade. Outros até abominam-no, achando que o consultá-las, pois uma das obrigações do crítico é nunca desprezar estu- crítico deve deter-se nos limites estritos do texto, evitando até (os mais dos teóricos, mas saber traduzi-los, na sua prática, para um público mais ferrenhos) qualquer interpretação. Aqui é melhor parece mentira usar amplo e saber despertar o interesse desse público em aprofundar seus co- de bom senso. Se 0 comentário elucida, por que não usá-lo? Até mesmo se nhecimentos. E não esqueçamos que vivemos numa época de transgressões. ele diverte, amenizando a leitura, aqui e ali, por que não dispor dele? MasAs questões da crítica literária Flávio Aguiar com exagero, comentário é um convite à superficialidade. Na imprensa de artigos, resenhas, registros de palestras, livros, teses, textos em geral (e hoje hoje, tanto a impressa como as outras, vê-se, por vezes, um excesso de co- devemos acrescentar a mídia eletrônica) que ao longo do tempo foi produzi- mentário. No caso do cinema, então, nem se fala: ficamos sabendo quanto do sobre eles, mesmo os inéditos, se estiverem disponíveis. Do autor de custou o filme, quanto já rendeu, quanto vai render, se 0 diretor teve um uma tese universitária, espera-se que conheça tudo do estado da arte e da caso com a atriz, ou com o ator; mas, sobre o sentido do filme, muito pouco fortuna crítica de seu objeto de estudo. De um crítico de jornal, TV ou ou quase nada. E não é raro, no caso de uma obra de literatura, ficarmos outro meio, nem tanto; mas no mínimo ele deve conhecer as principais sabendo de tudo que seu autor (ou autora) pensa do mundo e de sua obra, vertentes e linhas de abordagem, as novas e as consagradas, da obra ou do quando não de sua preferência em vinhos, gravatas ou animais domésticos. autor. Caso contrário, poderá chover no molhado, ou arriscar-se ao ridículo Da obra, nada. Pois mesmo tudo 0 que um autor pensa de sua obra, depois de querer reinventar a roda. de pronta, passa a ser comentário: coisa interessante, mas externa. Em segundo lugar, esperamos fixar de modo mais nítido algumas Para encerrar esta parte: estas operações paráfrase, análise, inter- dessas visões já construídas e, a partir desse movimento, se tanto pudermos, pretação e comentário funcionam, em geral, de modo não estanque, isto é, abrir novas veredas interpretativas. Essa também é uma das dimensões do trabalham ao mesmo tempo. Ao fazermos a paráfrase, já estamos entrando trabalho crítico: atualizar a tradição, mesmo que para se contrapor a algu- na análise e sugerindo a interpretação e somos obrigados, para conduzir mas de suas certezas e, a partir daí, discernir ou mesmo vislumbrar novas análises e interpretações, a nos apoiarmos em paráfrases de trechos e aludir- possibilidades de leitura. Pois o significado de uma obra não morre, nem se mos a comentários significativos, e assim por diante. congela: cada momento, cada geração, cada leitor a verá de um ângulo úni- e inimitável. É próprio do crítico, no entanto, apontar ainda que de modo breve como se construiu a nova perspectiva, e o que ela realmente O mal pode acrescentar de novo. O trabalho crítico de fato profundo é cumulativo, cônscio da acumulação histórica que o precede: algo muito distante da bus- Já é mais que tempo de entrarmos no mundo de Grande sertão: vere- ca frenética por inaugurar novas modas que deletem, por assim dizer, as das.² Não tenhamos ilusões: não se fará, aqui, neste espaço, uma análise e conquistas do passado. uma interpretação completas dessa obra opulenta. Mas esperamos e esta é Grande sertão: veredas é um de amor, de vingança e de inves- uma das dimensões do trabalho crítico espelhar o estado da arte, em pri- tigação sobre o destino transcendente do ser humano. É um cujas meiro lugar. Isto significa dar conta, mesmo que de modo limitado, da primeiras páginas são resistentes à leitura do iniciante, porque tem-se a riqueza de análises e interpretações que compõem o mundo da fortuna crí- impressão de não saber ao certo do que se está falando. Só mais para diante tica deste livro central em nossa literatura brasileira. Por estado da arte, a narrativa assume um direcionamento explícito. Assim mesmo, de acordo entendemos a situação atual da discussão sobre uma determinada obra (em com a tradição das antigas epopéias, a narrativa começa pelo meio da maté- outro contexto, poderia ser sobre uma questão política importante, uma ria. Depois, volta ao começo de tudo, retorna ao ponto abandonado e daí teoria científica, uma polêmica esportiva). Quer dizer: nos meios pertinen- segue, sim, mais célere, para o desfecho surpreendente hoje nem tanto, tes e concernidos (universitários, jornalísticos, editoriais, eletrônicos, cul- depois que romance teve uma adaptação para a TV e todo mundo turais, etc.) que está se discutindo sobre determinada obra. Por fortuna medianamente informado sabe que 0 guerreiro misterioso era na verdade crítica de uma obra ou de um autor, entendemos o conjunto de ensaios, uma guerreira amorosa. Se ordenarmos a matéria narrada, teremos de começar pela passagem do protagonista jagunço Riobaldo da infância para a adolescência e daí 2 As citações são da edição (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986). para a maturidade. Não, melhor dizendo, temos de começar pelo começoAs questões da crítica literária Flávio Aguiar que, na verdade, é fim de tudo. (Por aí já se pode ver a complexidade da letras, revelando aptidão. Aprende a atirar, adquirindo traquejo nas armas e questão do tempo no romance.) pontaria precisa, o que lhe valerá o apelido de "Tatarana", nome da lagarta Por volta de 1930, um viajante, letrado, culto, de passagem pelo que, de acordo com a crença, atinge com jato venenoso OS olhos do perse- sertão mineiro, chega à fazenda de um certo Riobaldo ex-jagunço, ex- chefe de bando -, que lhe conta, em aproximadamente três dias, a sua histó- guidor. Desconfiando ser filho de quem é, foge (pois despreza pai, que julga avarento e covarde), e acaba por encontrar-se com fazendeiro Zé ria. O romance, portanto, é narrado em primeira pessoa. narrador é o protagonista, e a narração adquire características também de testemunho Bebelo, que comanda tropas do governo para terminar com a jagunçagem. Afeiçoa-se a Zé Bebelo; ensina-o a ler. Acompanha-o, mas abandona suas (além de narrar o que fez, ele narra o que presenciou) e de confissão: Riobaldo conta para interlocutor (cuja palavra não "ouvimos") a respeito de suas tropas para juntar-se às dos jagunços, buscando seu chefe, Joca Ramiro, a dúvidas sobre a existência ou não do diabo. Ele quer que interlocutor, que quem admira desde primeiro encontro ainda na fazenda do pai. o ex-jagunço reputa como "mais culto" do que ele, confirme que o diabo Na fuga, encontra jagunço Reinaldo que vem a ser o menino de não existe, pelo menos assim, "em pessoa". Se existe, é dentro e pelo ho- sua infância. A afeição entre os dois é imediata, e cresce cada vez mais. Ao mem. Por que a insistência? Porque na sua vida Riobaldo fez um pacto com longo do tempo, Riobaldo adquire certeza de que a amizade tornou-se amor, diabo, ou pensa tê-lo feito, e decretar a não existência personalizada do que perturba a ponto de querer se matar. diabo é decretar a não realização do pacto. Nas lutas que se seguem, além de Joca Ramiro, ele encontra outro Dispondo-se agora os elementos narrados da vida de Riobaldo em jagunço que conhecera naquela noite: Hermógenes, homem de fúria e vio- ordem cronológica, começamos por ver sua tardia passagem, de menino lência, que se compraz em torturar seus prisioneiros, de quem se diz ser criado só pela mãe, da infância à adolescência, e sua precoce passagem desta pactário com diabo. Nessas lutas, as tropas do governo são derrotadas para a maturidade. A mãe morre e ele vai para a fazenda de um "padrinho", Bebelo é feito prisioneiro. que mais tarde sabemos ser o pai dele. Neste tempo de "menino-moço", um Segue-se uma cena inovadora naqueles tempos, no sertão do norte de acontecimento marcante ficou-lhe na memória: certo dia encontrou num Minas: salvo da morte imediata por intervenção de Riobaldo, Zé Bebelo vai porto de rio um estranho menino, corajoso, que 0 levou, com um barqueiro, a julgamento. Na chamada "cena do julgamento", Riobaldo revela a sua a atravessar rio São Francisco, onde o outro desaguava. Na outra margem, primeira grande qualidade de chefia: dom da palavra. Sua fala é decisiva encontraram um vagabundo que convida para fazer sexo com ele. Para para completar o salvamento do amigo-inimigo, que é exilado ao invés de surpresa dos outros dois, o menino enterra uma faca na coxa do passante, morto, como queria Hermógenes. Joca Ramiro manda para Goiás, com que sai desesperado. Tanto o acontecimento impressionou Riobaldo que a ordem de só voltar quando ele receber autorização ou morrer, o que afronta última palavra do romance será "Travessia", que, além de outros sentidos, Hermógenes. evoca aquele momento de iniciação à coragem e a uma nova vida. Esta "cena do julgamento" que é muito teatral, na verdade é o A partir da ida para a fazenda do padrinho-pai, os acontecimentos da ponto nodal do romance, ou seja, aquele ponto para 0 qual todas as linhas vida de Riobaldo começam não a se precipitar, mas a se armar. Numa noite narrativas e destinos convergem, nele se enovelam, e dali se rearranjam ele conhece bandos de jagunços que passam por lá, e ficam retidos em sua rumando para novos desdobramentos e o desenlace. Já se viu que é nela que admiração. A cena inesquecível deixa em sua memória a canção de um ja- Riobaldo começa sua trajetória para chefe. Logo a seguir, no descanso con- gunço, 0 Siruiz, que evoca uma vila do alto sertão para onde nunca se volta, secutivo, revela-se o amor de Riobaldo por Reinaldo, que ele descobre cha- que a vida é uma incógnita, e que "ao se dar batalha, leva-se junto cora- mar-se, na verdade, Diadorim. E no julgamento, Hermógenes, que desde ção" chaves que, lidas com atenção, decifram o destino de Ini- sempre parece encarnação do demônio, sente-se traído por Joca Ramiro, cia-se em seus primeiros amores e também que será fundamental nas matando-o logo a seguir.Flávio Aguiar As questões da crítica literária A partir daí, segue-se o "tempo da vingança" Ou da justiça, conforme está entre dois mundos: o da tradição oral do mundo rústico e da tradição 0 ponto de vista. Instigados por Diadorim, que era filho filha, na verdade literária (escrita) nacional, que fixou o sertão como uma das pedras funda- de Joca Ramiro, mas também levados por seu preito à honra e à lealdade, mentais da identidade cultural brasileira. Esta situação da linguagem espelha chefes e bandos fiéis à memória do líder empreitam a vingança contra a situação do próprio personagem, dividido entre valores do mundo ja- Hermógenes e seu aliado Ricardão, todos perseguidos pelas tropas do gover- gunço, que admira, e advindos do mundo letrado a que teve acesso, e as no que renovam suas tentativas de impor o poder do Estado no sertão. Neste propostas de modernização trazidas pelo atabalhoado mas também admirá- tempo, duas linhas de acontecimentos se destacam: há uma sucessão de chefi- vel Zé Bebelo, de quem ele (Riobaldo) se sente ao mesmo tempo criador e as, na tentativa de abater hermógenes. Sucedem-se Medeiro Vaz, de todos criatura, e a quem termina por dedicar afeto fraternal. O mundo de Grande 0 mais sisudo e grave no seu proceder; Marcelino Pampa, de mandato breve e sertão coloca, portanto, seus personagens numa situação de passagem: a de hesitante; Zé Bebelo, que retorna do exílio, de todos o mais ágil, mas o mais um sertão (Brasil) tradicional, ao mesmo tempo poético e violento, que se confuso. Nenhum consegue reduzir Hermógenes. abre para um processo de modernização. Esta, se introduz novos hábitos (como Ao mesmo tempo, Riobaldo termina por ver construída sua "teia de o julgamento), não significa a suspensão da violência; em contrapartida, amores". Além de Diadorim, cujo amor deslumbra e atormenta, descobre significa obrigatoriamente desencantamento do mundo, cuja aura de amar também Nhorinhá, mulher-dama (prostituta) de beira de caminho, e poeticidade só pode ser recuperada pela narrativa, ou seja, pela memória e Otacília, filha de fazendeiro, com quem se casará mais tarde, ao receber (ele) pelo poder das palavras. a herança pela morte do pai. Ora, eis-nos de volta às palavras. Em relação à obra de Rosa, isso não Riobaldo se convence de que, para derrotar Hermógenes, só outro surpreende. Há algo de solene na linguagem para este escritor. É como se o pactário. Busca então o lugar chamado de Veredas Mortas onde perfaz a mundo, a sua cifra, o seu segredo nela estivessem inscritos. Decifrar a lin- invocação e ritual. De lá, sai transfigurado, ou transtornado, assume a guagem é decifrar mundo. Não significa, como para outros escritores e chefia, provocando novo banimento de Zé Bebelo, e leva seus comandados à pensadores, que tudo seja texto ou redutível a discurso. Trata-se de que a vitória. Mas esta tem alto preço: no combate final, é Diadorim que mata vida cria até por antecipação uma chave na linguagem: se pudermos assassino de seu pai, mas ele-ela morre, retalhada pelos capangas do outro. encontrá-la, teremos em mãos um modo de discernir, compreender desti- Revela-se seu segredo e Riobaldo descobre então o verdadeiro sentido do no, quem sabe até mudá-lo. E a narração cumpre esse papel: pela construção seu amor agora para sempre perdido. Adoece, quando então Zé Bebelo, da memória, ela muda mundo. Não para o futuro, como normalmente se homem sem rancor, encaminha para um seu amigo de nome Quelemém pensa ou se quer; a narração muda mundo para trás, para o passado, (Clemente), cujos bons conselhos reaprumam jagunço, agora homem rico. condensando-o, transformando-o em experiência. Desta forma, ela muda a Riobaldo casa-se com Otacília e assume pacata (embora vigilante) vida de compreensão dos fenômenos no presente e combate 0 esquecimento, subli- fazendeiro, nas margens do rio Urucuia, o de sua preferência. Até que o mando as perdas. Daí, sim, ela abre novas possibilidades para 0 futuro interlocutor aparece e ele começa a reviver sua história, por meio do poder Depois da narração completa, nem Riobaldo nem 0 interlocutor serão mesmos. Nem nós mesmos. das palavras. O estranho poder das palavras: eis uma das chaves para se entrar mais A crítica estabeleceu com alguma segurança certos elementos sobre a fundo na densidade do mundo de Grande sertão. Seu estilo peculiar, entre mundo de Grande sertão. Um deles é que a imagem central da narração é a a fala e a escrita, é composto pela combinação do falar do homem rústico e da coisa dentro da outra. Esta metáfora-chave se estende desde as imagens do ponto de vista do escritor erudito. Pode-se dizer que o que se lê é 0 registro escrito de uma fala sertaneja, mas continuamente recriada pela pena 3 Ver Walnice Nogueira Galvão, As formas do falso: um estudo sobre as ambigüidades no Grande sertão: (hoje, diríamos teclado) do escritor urbano. A linguagem de Grande sertão veredas (São Paulo: Perspectiva, 1972) (Debates, 51). Ver sobretudo as páginas 117 e seguintes.As questões da crítica literária Flávio Aguiar mais simples até destino mais complexo dos personagens. Encontramo-la cessário que nela se neguem as condições Para viver com plenitu- em episódios aparentemente digressivos, como a narrativa de Maria Mutema, de, é necessário aceitar o risco inevitável, no fim das contas da morte. Se em que se conta a história da mulher que matou marido, derramando o sertão é pródigo, pode ser também inóspito, com paragens semelhantes ao chumbo derretido na sua orelha; mais tarde, é a bolinha de metal que tine inferno, como os desertos aterradores, os brejos que engolem partidas intei- no crânio desenterrado que comprova crime. Está presente em episódios ras de soldados, os lugarejos pesteados em decorrência do abandono e do aparentemente banais como no momento em que Riobaldo e Diadorim se isolamento. Na consciência de Riobaldo, essa negatividade que está pre- dirigem a um açude de água pura e descobrem que o lodo, no fundo, escon- sente no fluxo da vida, de tal modo que, sem ela, "a vida não anda" abre as de feio sapo. E está presente também no fato de que destino dos persona- portas para a presença do demoníaco. "O diabo no meio do redemunho" é a gens se constrói por um contínuo metamorfosear-se perante os olhos uns imagem que condensa, dentro da metáfora geral da "coisa dentro da outra", dos outros e do leitor. O jagunço Riobaldo pariu, pelo pacto, 0 chefe Urutu- selo deste ser que é, por si mesmo, contrariedade, negação a começar Branco e este pariu, aconselhado pelo compadre Quelemém, fazendeiro pela negação de seu próprio nome, pois ele tem uma variedade infinda de contador de histórias. O menino da Travessia é Reinaldo, que é moço denominações que ocultam a palavra danada: diabo. Mais uma vez, Diadorim, que é Maria Deodorina, a amada de amor inatingível. E é a lem- retornamos ao mundo da linguagem, cifra do mundo. brança dela, ou a culpa de tê-la perdido, que faz Riobaldo desatar a narrati- Mas aqui mesmo coloca-se a raiz do problema: se é verdade que va. Zé Bebelo quer desentranhar um sertão moderno do antigo; ao efetivar demoníaco está no mundo, é também verdade, portanto, que ele faz parte o julgamento, Joca Ramiro, chefe de chefes, provoca uma situação inusita- da vida. mal não está assim em sua presença apenas. O Mal, assim em da que vai, na prática, a longo prazo, concretizar aquilo que Zé Bebelo quis mas não pôde fazer: pela guerra de vingança, 0 sertão tradicional de fato maiúscula, estaria numa espécie de quintessência, de sumo, de sua presença chega a termo e vira memória. Hermógenes, descrito como "tigre assassim", sumo que apenas o homem consegue extrair, ou produzir. O mal, aí está, é uma espécie de capacidade que os homens têm de estragar a natureza boa que vive da rapinagem, se sente excluído desse "novo sertão" em das coisas. Neste ponto, Riobaldo difere muito pouco de todas as ortodoxias deslindamento do antigo. Corretamente, ele vê que o chefe está traindo tradicionais cristãs, que vêem mal como ausência do bem. Onde Deus é valores antigos e o mata, o que revira destinos do romance. O mundo decifrado pela linguagem e reconstruído pela memória renegado, Diabo impera, digamos assim. Mas a presença do mal só se possui um princípio de positividade. Este princípio, na consciência de transforma em Mal quando a opção do homem consegue deter 0 fluxo da Riobaldo, é associado a Deus, ao amor, ao culto idealizado ou não às vida. Assim é com o Hermógenes, de certa forma. Aos olhos de Riobaldo, mulheres. Riobaldo cultua Nossa Senhora da Abadia, sua padroeira; adora ele aparece como a encarnação do mal 0 pactário porque nele, algo, Diadorim, embora a natureza de seus sentimentos só vá se desvendar com- Algo, uma espécie de avesso do humano, mas ainda humano, vai-se desen- pletamente no fim; e ama com firme desejo, mas com certa reverência, vá- tranhando e mostrando a todos o que todos, no fundo, podem vir a ser. rias das mulheres que encontra. Aquele princípio também é associado a Hermógenes não se contenta em ter desavença com seu chefe; mata-o à várias imagens da natureza circundante: água, rio, pássaros, e assim por traição, o que, no mundo dos jagunços, é tão desonroso quanto roubar cava- diante. Deus é movimento, é fertilidade, é fluxo como, no plano humano, los ou insultar a mãe de alguém. Não se contenta em guerrear; compraz-se a narrativa é fluxo de reconstrução da memória. em torturar os prisioneiros; não satisfeito, tem seu maior prazer, na verda- Como a linguagem, fluxo da vida comporta em si um princípio de de, em afiar a faca da tortura diante do futuro Hermógenes se negatividade. Para instaurar-se, por exemplo, 0 mundo da memória, é pre- recusa a aceitar a transição, a passagem; pactário, quer reter a vida em si, ciso, de certo modo, negar mundo do presente, suspendê-lo, mesmo que para si, fechando corpo, fechando a História, a vida e seu fluxo de transfor- seja para depois a ele retornar-se enriquecido. Para que a vida flua, é ne- mações.As questões da crítica literária Flávio Aguiar Se a presença do mal se resumisse em torno do Hermógenes e de seus Riobaldo não consegue entender Diadorim como mulher em parte aliados, ou do que a presença deles impõe, como a busca do pacto por Riobaldo por causa da violência que ele-ela leva consigo: se o narrador descreve para vencer pactário, o problema até que seria simples e o romance, talvez, Hermógenes como tigre, descreve Diadorim como onça e como cobra. Vio- não tão denso quanto é. Podemos nos permitir um trocadilho: o problema e lência, para Riobaldo, é coisa de homem. Não vê a violência feminina como o que faz do mal um problema é que ele está em toda parte. E que talvez não possível: a outra nascendo dentro do aparente um. Em outro plano, vê-se seja ele a ausência do bem, como queria a teologia tradicional; mas seja bem que Riobaldo se empenha, além da vingança, em terminar com a violência na verdade a ausência do mal. Ou seja, para operar-se o bem, associado à no sertão, levando adiante 0 plano de Zé Bebelo. Quer acabar com os pluralidade da vida, seus desdobramentos, seu fluxo infindo, é necessário con- desmandos da jagunçagem estupros, assassinatos, as torturas (tudo jurar o mal. Como se conjura mal? Pela memória, pela transformação do aquilo que praticaram na fazenda do Hermógenes, diga-se de passagem). vivido em experiência, que pode fazer parte do patrimônio coletivo e tornar- Mas este sertão novo que nasce dos escombros do antigo traz, na verdade, se aquisição de liberdade aqui, associada ao conhecimento e à iniciação às novas formas de violência. Os antigos chefes desapareceram ou se acomoda- profundezas da vida e aos avessos da linguagem. ram; mas, em seu lugar, vicejam novas formas de luta política, como a per- A frase mais explícita sobre a presença do mal em Grande sertão: vere- seguição à Coluna Prestes, explicitamente mencionada no romance, e figu- das, o mal em ação, não pertence à esfera direta do Hermógenes, mas à do ras como a do delegado Jazevedão, que se compraz em pisar pés nus próprio Riobaldo. Consta do momento em que este, na chefia, leva seu (pobres, portanto) dos prisioneiros. bando a atravessar vitoriosamente o Liso do Sussuarão verdadeiro Portal Como reflexão sobre o mal, dentro do ponto de vista liberal de seu do Inferno e a cair de inopino sobre a fazenda do inimigo. Diz ele: autor, preocupado com destino transcendente do homem, que procura ler (decifrar) nos refolhos da linguagem, Grande sertão traz em si também uma Aqueles que estavam lá eram homens ordinários derreteram debaixo do pé de meus exércitos. que foi um desbarate! Como que já estavam de asas quebra- reflexão sobre a violência. Tanto sobre a violência particular da sociedade das, nem provaram resistências; deles mal ouvi uns tiros. E a gente, nós, estou- brasileira, em que vê a substituição de formas arcaicas de confronto por ramos para o centro, a surto, sugre, destrambelhando na polvorada, feito rodeio outras mais sofisticadas, como a violência do conjunto da sociedade huma- de vento. Assaz. Do que fiz, desisto. Todos não fizeram? Volvido, receei que na. O romance, afinal, é publicado onze anos após o fim da Segunda Guerra Diadorim não me aprovasse; mas Diadorim concordou com os fatos, em armas, Mundial, e num período em que se buscava conjurar o dito "atraso" da em frente. que se matou e estragou de gente humana e bichos, até boi sociedade brasileira pela construção de uma sociedade moderna, tendo por manso que lambia orvalhos, até porco magro em beira de chiqueiro. mal regeu. Deus que de mim tire, Deus que me negocie.. À modelo ou as democracias burguesas do Ocidente ou as sociedades socialis- tas então em expansão confronto que conduziria a novas formas extremas As palavras anunciam que se invade a própria sede do mal: são anjos de violência e opressão. de asas quebradas que lá estão. Mas se invade com o quê? Com Ele próprio como se as forças invasoras levassem redemoinho feito rodeio de vento que é o oco, a morada do negativo, do contra-ser. E aí 0 mal regeu. O que faz crítica e 0 mal lembrar dito evocado por este romance: Querer 0 bem com demais força, de Grande sertão: veredas ilumina período notável de nossa vida cultural incerto jeito, pode já estar sendo se querendo mal, por principiar: a coisa dentro e literária. Relança temas e motivos do nosso tradicional regionalismo em da outra. nova escala e dimensão. Com livros como Dr. Fausto, de Thomas Mann, põe em questão temas centrais de nossa civilização, em momento agônico, quan- 4 Guimarães Rosa, op. cit., 455. 5 p. 9. do, logo após a Segunda Guerra, pensamento, perplexo, tinha de lidarAs questões da crítica literária Flávio Aguiar com o fardo da descoberta de que mal holocausto, o nazi-fascismo JAMESON, Frederic. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo Trad. Maria Elisa estava em seu coração, não em alguma pátria longínqua de gente descrita Cevasco. São Paulo: Ática, 1996. Para se entrar no crícica na como selvagem e atrasada. Neste contexto, 0 romance de Rosa abriu-se para das portas este Por nacureza ele considerar toda uma vertente de ocultismo, de alquimia, de revelações her- encontro de de méticas, que sempre foram vistas como heréticas em nossa história de raiz Quanco com indispensive! a cristã e ocidental. Novas formas de destruição, sob a forma da Guerra Fria, pairavam sobre e sob a humanidade. Hoje as formas de destruição são ou- AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Trad. Suzi Sperber e George Sperber. São Paulo: Perspectiva, 1976. (Estudos, 2.) tras, ou vêm de outras fontes, morta a Guerra Fria. Fica, para nós, a sua enconcra-se análise de da do Ocidence desde a come- palavra densa de em cenário tão conturbado, povoado por vinganças e pela do século A partir de mostra como pode-se recompor visão da suspeita de que há algo de definitivamente torto na alma humana ter de obra mesmo de uma época. revelado uma extraordinária e inigualável história de Pensamos que este breve ensaio responde, de forma inicial, é claro, JAKOBSON, Roman. e comunicação. Trad. Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. àquelas questões adaptadas da obra de Richards. Para encerrar, umas poucas 14. ed. São Paulo: Cultrix, 1995. Denere livros que expõem teorias de abordagem dos textos da palavras sobre a última, a questão do valor. linguagem. este dos mais criacivos instigantes, pelo livre inventivo com que valor de uma obra destas está em mobilizar, de modo inesgotável, apresenta seus como pela análise de poemas que toda uma tradição literária brasileira e do Ocidente em renová-la, em atualizá-la de modo criativo, abrindo-a para outras dimensões iniciando o CANDIDO, Antonio. Na sala de aula: caderno de análise literária. São Paulo: Ática, 1985. leitor num mundo único e irreprodutível, de onde ele pode retornar a este, (Série Fundamentos, 1.) em mais liberdade do que antes. E é função da crítica acompanhar este Neste livro, Candido conduz com agudeza análises de poemas movimento de vaivém, seja de modo inicial, como aqui, seja em ensaios outros clássicos da literatura brasileira, baseando-se em longa experiência de pro- que, com segurança e clareza de exposição. as leituras tradicionais mais alentados e especializados, e ajudando a discernir as ri- dos cextos abordados. quezas deste outro mundo, como partes iluminadas do espírito humano, mes- mo quando seu tema seja a opressão e a treva. Por essas e por outras por CANDIDO, Antonio; ROSENFELD, Anatol; PRADO, Décio de Almeida; GOMES, Paulo convidarem o espírito a viagens em liberdade é que o encontro de arte e Emílio Salles. A personagem de São Paulo: Perspectiva, 1968. (Debates, 1.) crítica, no sentido forte da palavra, será sempre o espantalho da palavra Este livro trata de como se deve personagens de romances. cinema, além de uma abordagem sobre a do processo autoritária, ou totalitária. Além destes livros, podem-se encontrar sugestões de análises breves em meu livro A palavra no purgatório: literatura e cultura nos anos 70 (São Paulo: Boitempo, 1997), e, quanto a textos de dramaturgia, no livro de Bibliografia comentada João Roberto Faria, 0 teatro na estante: estudos sobre dramaturgia brasileira e Na breve relação dos livros aqui apresentados, procuramos privilegiar estrangeira (Cotia: Ateliê, 1998). os de sentido prático, isto é, aqueles que apresentam trabalhos de crítica literária que podem sugerir ao leitor modos de fazê-la. Ao mesmo tempo, nestas obras o leitor poderá encontrar indicações bibliográficas que 0 leva- rão ao encontro de outras realizações e das teorias subjacentes.

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