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Introdução à Esquizoanálise 
Gregório Baremblitt 
 
Belo Horizonte: Biblioteca Instituto Félix Guattari, 2003, 138p 
 
2.edição 
 
 
 
 
 
 
 
Baremblitt, Gregório [2003]. Introdução à Esquizoanálise 2.ed, Belo Horizonte: 
Biblioteca Instituto Félix Guattari, 2003, 138p 
 
 8 
Apresentação – 2.a Edição 
É com gratidão e satisfação que o Instituto Felix Guattari de Belo Horizonte apresenta 
a segunda edição do "Introdução à Esquizoanálise" de Gregorio F. Baremblitt. 
Os exemplares da primeira edição se esgotaram com uma rapidez que não 
esperávamos, e os leitores, especialmente alunos universitários, os de nossos cursos e 
outros interessados na obra de Deleuze e Guattari nos solicitaram uma ampliação da 
mesma. Essa estimulante demanda fez com que a presente edição seja de um nÚmero 
limitado de exemplares e possa ser considerada como preliminar de uma terceira, 
muito mais extensa, que está no prelo. 
O autor considerou necessário acrescentar a essa segunda edição um apêndice no qual 
se trata de temas, preferencialmente incluídos em "Mil Platôs", que foram pouco 
desenvolvidos na primeira. 
Fazemos presente aqui nosso agradecimento ao staff do Instituto Felix Guattari pela 
eficiente e generosa colaboração nas tarefas de tradução, correção e montagem do 
presente texto, assim como por valiosas sugestões recebidas para o conteÚdo do 
mesmo: Oalva A . Lima, Érika Rianni, Irene Ferreira do A . Oliveira, Luciana Tonelli, 
Neuza Beatriz H. G. Pereira e Patrícia Ayer de Noronha. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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In Memoriam de Felix Guattari* 
Este evento é especialmente emocionante para mim por vános motivos. Ele é 
emocionante no sentido das emoções entusiásticas, porque as idéias de Guattari têm 
sido fundamentais em minha formação e, como pretendo explicar, também em minha 
vida cotidiana, pessoal. 
Mas também é um momento duplamente triste porque estarnos reunidos para 
prestar homenagem a uma figura que faleceu em uma idade e com uma vitalidade que, 
fazia-nos pensar, poderíamos aguardar muito ainda de sua capacidade produtiva. Por 
outro lado, uma grande amiga nossa, Sonízia Maria de Castro Máximo, que foi a 
gestora de todo esse encontro, também faleceu, de forma ãbsolutamente inesperada, 
vítima de um acidente de trânsito: Sendo assim, hoje estou aqui para falar a vocês no 
marco da perda de dois grandes amigos, e tentaremos transformar esta situação de luto 
em, pelo menos, um encontro produtivo, que nos permita superar essa tristeza. 
Felix Guattari, em uma vida relativamente breve, conseguiu desenvolver 
tantas atividades, produzir tanto, criar tanto, que falar acerca desta vida, em um tempo 
curto, é uma tarefa quase impossível. Mas faço questão de falar de todas e de cada 
uma das coisas que ele fez, embora apenas mencionando-as, enumerando-as. Eu acho 
que, entre todos os méritos que Guattari tem ou teve, o fundamental é o de fazer ver 
ao mundo, este mundo um tanto cético, um tanto decepcionado no qual nós vivemos, 
este mundo utilitarista, pragmatista (no mal sentido da palavra), este mundo, em 
muitos sentidos, medíocre e cínico, que é possível viver de uma maneira produtiva, de 
uma maneira brilhante, de uma maneira heróica. Não dentro das modalidades do 
heroísmo revolucionário clássico, mas abrindo a perspectiva de um novo tipo de 
heroísmo... um heroísmo mais amoroso, mais moderado, como Guattari mesmo o 
chamou, em algum livro, "uma nova suavidade". Então, parece-me importante 
detalhar tudo o que Guattari fez, porque uma das queixas que eu formulo, e que sei 
que muitas pessoas formulam em nosso meio, é de que "não têm tempo" para fazer 
grandes coisas. É interessante poder 
Conferência proferida por Gregorio F. Barcmblitt na Aliança Francesa em 26/1 0/92, 
como homenagem póstuma a Felix Guattari. 
 
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exaltar, poder examinar a vida de uma pessoa que tinha tanto ou menos . tempo que 
nós. E, sem dúvida, foi capaz de fazer uma quantidade de coisas que deixaram o 
mundo diferente depois de ele ter passado por onde passou. 
Guattari faleceu aos sessenta e dois anos de idade, na noite de 28 de agosto 
passado, no hospital onde ele trabalhava muitos anos, desempenhando tarefas 
clínicas. Ele nasceu em trinta de abril de mil novecentos e trinta, em Colombes, 
França. Sua escolaridade foi muito irregular e difícil. Estudou farmácia e filosofia, 
mas não conseguiu formar-se em nenhum desses dois cursos. Na Segunda Guerra 
Mundial participou de um movimento destinado a construir albergues juvenis, 
moradias para os refugiados de guelTa. Dentro de suas tarefas políticas, ele teve 
contato com muitas figuras intelectuais da França, e se encontrou com duas 
especialmente importantes. Uma, a do trabalhador em saúde mental de orientação 
anarquista e libertária, François Tosquelles, que tinha imigrado da Catalunha, no 
tempo da guerra civil. E com Jean Oury, um grande psiquiatra francês. Por outro 
lado, Guattari tinha descoberto as idéias de outro grande psiquiatra, Franz Fannon, 
um psiquiatra argelino, que posteriormente chegou a ser Ministro da Saúde Pública 
da Argélia, autor daquele grande livro "Os Condenados da Terra". 
Jean Oury, Guattari e outros acharam um castelo em ruínas e, fazendo 
uma reforma do mesmo, construíram uma célebre clínica psicoterapêutica e 
psiquiátrica denominada "La Borde", que se transformou em um verdadeiro campo 
experimental para uma série de propostas psiquiátricas modernas, alternativas e até 
revolucionárias, que continua existindo e sendo uma fonte de inspiração para todos 
os movimentos alternativos psiquiátricos do mundo. 
Guattari militou na Juventude Comunista, mas foi expulso por sua 
oposição aos acontecimentos de Budapeste e à política do Partido Comunista na 
Argélia. Participou na organização de ajuda à "Frente de Libertação Nacional 
Argelina". Escreveu para um periódico comunista relacionado com a Liga 
Comunista e com as organizações marxistas e anarquistas. Interessou-se p-ela 
Psicanálise e se analisou com o professor Jacques Lacan durante sete anos. 
Pertenceu à Escola Freudiana de Paris, que, como veremos mais para a frente, teve 
vários dissidentes, mas nenhum destes chegou a questionar a razão da existência 
dessa escola, 
 11 
ou seja, a Psicanálise em si mesma. Guattari fundou a Federação de Grupos de Estudo 
e Pesquisa Institucional, ou seja, uma enorme corrente que reunia experts de diferentes 
disciplinas, antropólogos, sociólogos, economistas, etc., que se ocupavam em estudar 
as instituições. Guattari fundou também a revista "Recherche", que teve um papel 
importantíssimo na, divulgação das idéias institucionalistas. Em 1966, organizou um 
jornal e um grande agrupamento que se denominou "Oposição de Esquerda". 
Participou também da redação das novas teses da "Oposição de Esquerda", propondo 
uma ética militante que reunia os descontentes de todos os partidos políticos de 
esquerda, particularmente da Liga Trotskista e do Partido Comunista Francês. 
Participou na operação de ajuda ao povo do Vietnã na guerra contra os Estados 
Unidos. Em 1967 foi um dos fundadores da Organização de Solidariedade com a 
Revolução Latino-americana, organização esta do intelectual Régis Debray, que 
estava preso na Bolívia. Em maio de 1968, Guattari associou-se a vários setores 
protagonistas desse impQrtantíssimo fato histórico e participou, pessoalmente, de uma 
das manobras táticas que foi a ocupação do teatro Odeon. Fundou o CEPFI – Centro 
de Estudos e Pesquisas de Formação Institucional, centro esse que publicou obras tais 
como "Genealogia dos Equipamentos Coletivos", "O ideal militante", etc. Dentre suas 
publicações na Revista "Recherche", uma em particular se referia aos movimentos 
homossexuais, o que motivou sua prisão, tendo sido anistiado por Giscard d'Estaign. 
A partir de 1970, militou ativamente pela implantação da rede de rádios livres, a 
primeira das quais se chamou "Alice". Fundou o CINELdesde uma taxonomia dos textos ou discursos estanques. Inútil 
confundir essa concepção com alguma que postule deslizamentos de cadeias de 
significantes, elos ordenados como anéis, que por sua vez são elos de anéis maiores, 
etc. A escrita de Deleuze e Guattari, densa e difícil, é composta de fluxos, pode incluir 
paradoxos e aporias, mas não metáforas ou metonímias, e menos ainda adivinhações, 
hermetismos ou mistérios. 
 
 
 41 
Talvez este seja o único ponto dessa exposição no qual m aventurarei a dar 
uma opinião pessoal, tão arriscada como segurament pouco compartilhada. 
Tudo leva a supor que Gilles Deleuze foi um filósofo, professor de Filosofia e escritor 
de livros de Filosofia. 
O título mesmo dessa conferência qualifica Deleuze de "filósofo nômade", 
aludindo a sua forma errante de viajar por todos os saberes, por itinerários 
absolutamente insólitos e sem compromisso algum com Escolas ou Doutrinas. 
Um de seus últimos livros, escrito junto com Guattari, leva por título "Que é 
a Filosofia?" – e, em suas páginas, a Filosofia é definida com uma precisão e beleza 
incomparáveis, como a prática de invenção de Conceitos. 
Não obstante, em várias passagens de outras obras, Deleuz havia exposto, 
com toda clareza, uma crítica às perguntas com as quais se costuma propor as 
questões que se deseja resolver. Nesses parágrafos rechaçava que a fórmula – "que é?" 
– fosse um bom enunciado para formular um problema. 
Não é nada fácil explicar o porquê dessa impugnação, mas, simplificando 
uma vez mais, quando se pergunta "que é?" se interroga acerca do Ser de um Ente, ou 
seja, por sua Identidade ou sua Mesmidade – e não por seu Devir, por seu 
funcionamento, por sua Diferença em Ato. 
De um outro ângulo, quando Deleuze se refere ao pensamento, sustenta que 
pensar exige a incessante criação, não apenas de novos conteúdos, nem sequer de 
novas maneiras do mesmo Pensamento. Deleuze dá a entender que pensar implica, 
nem mais nem menos, que criar novos pensares, ou seja, responder àquilo que "dá a 
pensar", o que "faz pensar", com uma multiplicidade de Pensares singulares 
diferentes, originais, inéditos. 
É por isso que me atrevo a postular que Deleuze, em seu nomadismo, ou 
bem acabou não sendo mais um filósofo, ou bem foi um criador de Pensares que, entre 
outras coisas, redefiniu a Filosofia, ou bem foi o Demiurgo e o agente de um novo 
pensar e um novo fazer que ele e Guattari inventaram... e que se chamou 
esquizoanálise ou pragmática universal. Esses dois termos estão definidos 
respectivamente, no primeiro e no segundo tomo de seu livro "Capitalismo e 
Esquizofrenia". O que estou afirmando é que Deleuze e 
 
 42 
Guattari engendraram algo que é Filosofia mas, que também é Ciência e também é 
Arte... e Política... e Saber Espontâneo... e muito mais que tudo isso preexistente. 
Por que, então, chamá-los por nomes de "partida" e não pelos de "chegada"? 
A rigor, não é nenhuma novidade que os cientistas de uma especialidade 
tenham incursionado por pensamentos filosóficos, restritos ou não, às áreas de suas 
disciplinas. Basta mencionar, rapidamente, os casos de Pitágoras, Euclides, Averroes, 
Cassirer, Jaspers, Russel, Poincaré, Monod e outros tantos. 
Tampouco é insólito que grandes literatos tenham sido filósofos (ou o 
inverso), como são os exemplos paradigmáticos de Kierkgaard, Novalis ou Goethe. 
Igual coisa ocorreu com grandes estadistas e políticos como Demóstenes, 
Maquiavel, Hobbes, etc. 
Mas meus conhecimentos de história da Filosofia, das ciências e das práticas 
sociais em geral (bastante pobres), não me permitem evocar um caso igual ao de 
Deleuze e Guattari. 
Talvez o mais parecido a isso, que me ocorre, é a figura e a obra de Foucault, 
não por casualidade amigo proeminente de Deleuze, de quem se tomou difícil dizer se 
era filósofo, historiador, sociólogo, arquivista ou genealogista. 
Agora, bem: por razões pedagógicas, o paradoxal é que, se me proponho 
introduzir o que alcanço entender como as principais contribuições da Esquizoanálise, 
não consigo fazê-lo de outra maneira que abordá-las segundo as clássicas ramificações 
com as quais se costuma dividir a Filosofia. 
Refiro-me à Ontologia (Teoria do Ser), à Gnoseologia (Teoria do Conhecer) 
e à Axiologia (Teoria dos Valores). 
Mas como resumir os aportes dos principais trinta livros de Deleuze de uma 
maneira suportável para o público em geral? 
Apesar de a palavra "impossível" ser uma das mais detestadas por Deleuze e 
Guattari, este simples comentarista que lhes fala se sente a ponto de declarar esta 
tarefa como irrealizável. 
Peço antecipadamente desculpas pelas insuficiências, incorreções e 
obscuridades do que se segue. De todo modo, quem não tenta, nada consegue. 
 
 43 
Na Ontologia, creio que se pode dizer que o Pensar de Deleuze é a 
culminação de duas célebres contraposições que percorrem a história da Filosofia 
Ocidental. 
A primeira é a que opõe o Ser como estático, eterno, invariável, imóvel e 
idêntico, do qual só se pode predicar que É (cujo paradigma seria Parmênides), contra 
o Ser como dinâmico, variante, móvel e em permanente transformação (cujo 
paradigma seria Heráclito, que sustentava que o Ser Devém). 
"Que é, e como o Ser Devém?" – que até a declaração da Morte de tais 
perguntas ou do Fim da Metafísica... terá suas diversas formulações na Filosofia 
Antiga, na Patrística, na Escolástica, no Romantismo e na Filosofia Moderna e 
Contemporânea. 
O que do ser passa por todos os avatares do Espiritualismo, do Idealismo 
Objetivo e Subjetivo, assim como por todos os Realismos, Substancialismos, 
Materialismos, Agnosticismos, etc. 
O como transcorre pelos inumeráveis avatares da Linearidade, da 
Circularidade e da Dialética. 
Mas aí é onde entra a segunda oposição, que antagoniza os que afirmam que 
o Ser (seja qual seja sua natureza) é diverso do Pensar (digamos, a Metafísica da 
Substância e da Essência) contra os que, principalmente desde Descartes, identificam 
o Ser com o Pensar (digamos, a Metafísica do Sujeito), seja qual seja o papel que se 
atribua à linguagem nessa identidade ou distinção. 
Ante essas duas famosas oposições da Ontologia (que, como se vê, são 
indissociáveis da Gnoseologia), Deleuze postula: 
 
1) o ser é devir. 
2) o devir devém como repetição incessante, infinita e não totalizável da diferença. 
3) a essência das diferenças consiste em puras intensidades. 
4) por sua posição nos mundos, sua composição interna proteiforme e seus limites 
externos difusos, o devir devém como multiplicidades. 
 44 
5) pela condição única e irrepetível das diferenças, intensidades, multiplicidades, 
estas se expressam como singularidades, tais "proto-realidades" (por assim 
chamá-las) são virtuais, pré-ontológicas e, assim sendo, são pré-físicas, pré-
biológicas, pré-sociais, pré-subjetivas, pré-semióticas, pré-reais, pré-possíveis e 
pré-impossíveis, até serem atualizadas. 
6) o surgimento por atualização das novidades ontólogicas absolutas, assim 
entendidas, denomina-se individuações. 
7) as individuações resultam do encontro entre complexos de intensidades, 
multiplicidades e singularidades sintetizadas como corpos, e a emergência, a 
partir desses encontros, de uma dimensão incorporal dos mesmos, denominada 
incorporais-sentidos-acontecimentos. 
8) as individuações não podem reduzir-se a seres ou entes individuais efetuados por 
idéias, substâncias ou essências previamente diferenciáveis em espécies ou 
gêneros. 
9) as ações e paixões que se exercem ao acaso nos encontros entre corpos e 
incorporais-sentidos-acontecimentos que deles surgem, assim como as 
individuações resultantes, não se relacionam como causas e efeitos e não 
obedecem a leis. 
10) a realidade, assim integralmente entendida, compreende três superfícies 
imanentes entre si. A primeira, a da produção, que é a que acabamos de 
conceitualizar, composta por funcionamentos protagonizadospelas 
singularidades intensivas que mencionamos (máquinas desejantes), dispostas 
sobre o corpo sem órgãos (que é seu "suporte" e o grau zero das intensidades). 
Nela se dá o processo puro de produção de produção. A segunda é a superfície de 
registro-controle, em que se distribuem as entidades já identificadas, ordenadas, 
determinadas em causas e efeitos, dotadas de funções específicas em que 
predominam os processos de reprodução e de antiprodução. A terceira é a 
superfície de consumação, em que culminam e/ou consomem a potências das 
individuações de toda índole. 
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 Este imenso "fluxograma" transmutante possibilita a Deleuze e Guattari uma 
extraordinária reformulação das definições e das relações dos continentes da Natureza, 
da Sociedade, da Subjetividade, das Semióticas e do Parque Maquínico da Realidade, 
assim como da História Universal, tanto quanto dos pensares que os pensam e das 
práxis que os metamorfoseiam e os destroem. 
Em absoluta coerência com essa "Ontologia", a Gnoseologia, a Ética e a 
Estética de Deleuze têm como valor supremo a invenção tanto de Conceitos 
Filosóficos, como de Funções Científicas, como de Variações Artísticas e de Saberes 
Espontâneos. Tal inventiva tem como proposta "Metodológica" sui generis a Intuição, 
o uso disjunto das Faculdades, o emprego das técnicas do Cut-up e da Colagem, e a 
plena consideração do Acaso para o exercício de Pensares sem Fundamento, sem 
Sistemática, sem Meta-Categorias transcendentes. Pensares inexatos, mas rigorosos, 
de realidades pluripotenciais e imprevisíveis, cartografias sempre "princeps" de 
transmigrações e conjuntos difusos. 
Para concluir, a Ética proposta por Deleuze é uma política da avaliação, da 
resolução e do ato sempre singulares, criados para cada situação, produtos da Vontade 
de Potência e da desconstrução do Valores imperantes, a serviço da inovação 
permanente, jamais subordinada a algum Imperativo Categórico Universal ou Eterno, 
nem baseado em Princípios Transcendentes. 
É nessa produção de pensares, na análise variável de seus "N" componentes 
de Produção, Reprodução e Antiprodução, na montagem de dispositivos destinados a 
propiciar a Revolução Inventiva dos Processos Produtivos e a neutralizar sua brusca 
interrupção, ou sua aceleração ao infinito, dada pelos buracos negros da Reprodução e 
da Antiprodução... nisso consiste a esquizoanálise ou pragmática universal. 
Mas se por razões pedagógicas optei por essa introdução geral apoiada num 
andaime filosófico clássico, como ousar sintetizar aportes mais circunscritos a temas 
mais delimitados, que estão implicitamente incluídos no panorama anteriormente 
exposto? 
Porque a obra de Deleuze e Guattari importa também redefinições críticas e 
reinvenções dos Universais mais caros ao saber do 
 
 
 46 
Ocidente. Apenas como exemplo, mencionarei as categorias de Tempo e de Espaço, 
de Todo e de Partes, de Razão e Desrazão, de Verdade e Falsidade, de Bem e de Mal, 
de Potência e de Poder, de Vida e de Morte – e, em um sentido mais específico ainda, 
de História, de Sociedade, de Estado, de Economia, de Antropologia, Geologia, 
Etologia, de Lingüística-Semiótica, de Ciências Exatas, de Urbanismo, de Tecnologia, 
de Literatura, de Cinematografia, Pintura, Escultura, Arquitetura... e assim por diante. 
Não pude resistir, ao final desta, por sua vez, pobre e pretensiosa 
simplificação, a comentar brevemente a quiçá mais célebre proposta de Deleuze e 
Guattari, principalmente exposta em "O Anti-Édipo". Os autores propõem, como a 
medula desse livro imortal: "introduzir o desejo na produção e a produção no 
desejo". Sem pretender ignorar a larga trajetória desses dois conceitos gigantescos, 
não se pode negar que, nas acepções centrais de sua definição, Deleuze e Guattari 
partiram basicamente de Freud e Marx. Mas o fizeram para ampliar a idéia de Marx, 
não a restringindo à geração de bens materiais indispensáveis para a vida, processo 
ligado à força de trabalho, que o criador do Materialismo Histórico atribuía à 
infraestrutura dos Modos de Produção. Deleuze e Guattari estenderam essa idéia à 
Produção de Produção em "todos" os domínios da Realidade. Igualmente, tomaram a 
idéia de Freud, de Libido e Desejo, não como sendo apenas a energia-força que anima 
exclusivamente a economia, a dinâmica e a estrutura do Aparato Psíquico freudiano, 
cujas características são, como é sabido, em última instância, repetitivas e 
conservadoras. 
Deleuze e Guattari recriaram e ampliaram esses conceitos-funções, assim 
como do Inconsciente e do Id psicanalítico, assumindo plenamente as características 
do chamado Processo Primário, dando-lhes uma essência produtivo-revolucionária e 
tornando-os imanentes ao processo de produção de produção da realidade inteira. 
Devo concluir essa modesta apresentação dizendo algumas poucas palavras 
acerca de Gilles Deleuze como "homem". 
Ao considerar a figura e a biografia de Deleuze como "ser humano", 
encontramo-nos comuma rara ilustração da exigência de que um autor deveria ser uma 
fiel expressão de suas idéias. 
 
 
 47 
Pessoa de uma imensa erudição, de uma formidável dedicação a seu 
empreendimento, de uma incrível versatilidade, de uma enorme criatividade, de uma 
abertura e de uma falta de preconceitos invejáveis, gozou em vida de um prestígio e de 
um reconhecimento mundial, ainda que, a meu entender, ainda insuficientes, e que 
levarão décadas para se consumar. 
Aliado incondicional de todo movimento das singularidades produtivo-
revolucionárias, particularmente dos das minorias exploradas, dominadas e excluídas, 
foi um amante da Liberdade, da Amizade e da Vida. 
Há duas sentenças que o encantavam e que caracterizam ilustrativamente seu 
pensar e sua existência. A primeira diz: "Os homens têm estado sempre preocupados 
com as Idéias Justas, quando, em realidade, precisam procurar justo uma idéia" – a 
que é capaz de propor e resolver cada problema. 
A segunda diz: "Os grandes homens têm poucas coisas" – quer dizer, não se 
interessam por acumular nem por consumir mercadorias. 
Humildade, modéstia, generosidade, tenacidade, humor, alegria, coragem 
essas foram as singularidades de Deleuze, mais que um "homem"... um devir 
bondoso. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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INTRODUÇÃO À ESQUIZOANÁLISE* 
Apontamento N° 1 
 49 
A Esquizoanálise é um saber inventado por dois autores: Gilles Deleuze e Felix 
Guattari. 
Gilles Deleuze é considerado, na atualidade, um dos filósofos mais importantes 
do século. 
 Felix Guattari, recentemente falecido, foi um brilhante psicanalista, analisado e 
aluno de Jacques Lacan, um Trabalhador da Saúde Mental, criador da prática 
denominada Análise Institucional e um militante político de esquerda, que pertenceu a 
numerosos grupos políticos convencionais e os abandonou para fundar ou unir-se a 
Movimentos Populares de cunhos os mais diversos. 
Gilles Deleuze é autor de numerosos livros, nos quais aborda, de uma maneira 
sempre original, a obra de vários filósofos clássicos, mas também escreveu sobre 
cinema, política, estética, literatura, pintura, música, história, etc. 
Felix Guattari escreveu sobre temas relacionados com a saúde mental, sobre 
Psicanálise, sobre cinema, mas, fundamentalmente, sobre a concepção muito peculiar 
que tinha sobre a política e a economia, a ecologia e o panorama geral do mundo 
atual. Também foi jornalista e músico. 
Esses dois autores escreveram juntos vários volumes, em que sua colaboração 
adquiriu características muito peculiares, devido às quais é impossível saber, nesses 
escritos, a qual dos dois pertence uma ou outra idéia. 
Entre esses livros destacam-se: "O Anti-Édipo", "Mil Platôs", "Kafka: Uma 
Literatura Menor" e "Que é a Filosofia?". 
A obra desses autores é muito difícil de situar em um gênero dos já conhecidos. 
Como se podeapreciar por sua trajetória intelectual, e pelos títulos de seus escritos, 
trataram de quase todas as "especialidades" importantes, mas sempre de maneira 
original, buscando interpenetrações dos campos e dos conhecimentos, mas sem 
abandonar nunca um matiz 
 
*I ntrodução à Esquizoanálise, apontamentos 1, 2 e 3 foram escritos especialmente para um seminário 
realizado em Barcelona (1993). 
político, que perpassa toda sua produção. A rigor, de acordo com uma terminologia, 
para elesjá obsoleta, sua obra poderia ser classiticada como uma "Concepção de 
Mundo", mas várias conccitualizações que eles mesmos apartaram, de crítica aos 
 50 
fundamentos desse tipo de denominação, fazem-na incorreta e insuficiente para dar 
conta desse monumental trabalho. Desde logo, dentro da lista de textos, podem-se 
encontrar alguns que pertencem predominantemente a um tema mais que a outros, 
mas sempre haverá uma característica na abordagem que os torna insólitos e não 
enquadráveis. 
O encontro desses dois autores data, prevalentemente, do famoso maio de 
1968, na França. Em certo sentido se pode dizer que suas preocupações e interesses 
têm muito a ver com essa revolta, que aspirava a levar, como os lemas da época 
sustentavam, "A Imaginação ao Poder", ou que postulavam "Sejamos realistas, 
peçamos o impossível". Essa orientação política, de diversas maneiras, segundo seus 
entusiastas, rechaçava tanto os vícios da Democracia Burguesa Capitalista como os da 
Ditadura do Proletariado vigentes, estes últimos, nos ensaios de transição ao 
Socialismo. 
Em realidade, pode-se afirmar que a orientação política que mais influenciou 
esses autores, apesar de não ser uma referência demasiado explícita em seus escritos, é 
o Anarquismo, como aconteceu com uma série de investigadores que integram o que 
se denominou Movimento Instituinte Internacional. 
Entre os autores mais afins a Deleuze e Guattari, devemos mencionar, em 
primeiro lugar, Espinoza, Nietzsche, Bergson e Marx, assim como, entre os 
contemporâneos, Foucault. Mas a lista de seus favoritos é interminável, e inclui, em 
lugares privilegiados, uma série de artistas que reúnem em si a condição de loucos e 
de gênios. O exemplo mais característico é Artaud. Também é notável sua preferência 
por certos novelistas anglo-saxônicos, entre eles D.H.Lawrence, Lewis Carrol e Henry 
Miller. 
O texto mais conhecido e impactante de Deleuze e Guattari é, sem dúvida, 
"O Anti-Édipo", publicado em 1972. 
Trata-se de um texto de difícil leitura, não porque o estilo seja 
particularmente retorcido, senão devido à soma de conhecimentos que é preciso 
dominar para entendê-la, posto que o conteúdo que se refere a todos eles é estonteante. 
Em um sentido um tanto melodramático, pode 
se afirmar que "trata de tudo" . Verdadeiramente, é uma grande reformulação das 
relações existentes entre a natureza, a cultura, a sociedade, a economia, a política, a 
linguagem, as relações de parentesco, os ritos, os mitos, o psiquismo, a religião, a 
 51 
família, o estado, a história, a tecnologia maquínica, o saber, a verdade, os valores em 
geral, a sexualidade, etc. 
O título parece centrar-se em uma crítica da concepção psicanalítica 
edipiana do Inconsciente, e por certo é um questionamento profundíssimo dos acertos 
e dos desacertos da Psicanálise, mas, concretamente, essa reflexão está incluída entre 
muilas outras que abarcam todos os campos a que acabo de me referir. 
Impossível sintetizar o que os autores pretendem dizer nessa "Ópera Magna", 
mas, arriscando-me a ser elementar e esquemático, talvez possa adiantar que 
postulam: 
- Que todos esses domínios do saber e da realidade, modernamente separados 
pela modalidade científica do conhecimen,to, são imanentes (quer dizer, intrínsecos, 
consubstanciais entre si). 
- Que a Realidade, tal como a conhecemos, configurando esse conjunto 
heterogêneo, está composta por três superfícies, que, a rigor, são uma inerente à 
outra. A saber, a Superfície de Produção, a Superfície de Registro-Controle e a 
Superfície de Consumação. A Superfície de Produção é aquela responsável pela 
geração de tudo quanto existe, está formada por elementos constituídos por matérias 
ainda não formadas e por energias ainda não orientadas como forças. Esses 
elementos ainda não apresentam qualidade nem quantidade, mas se caracterizam 
por serem intensidades puras. Cada uma dessas intensidades (nas quais é difícil 
pensar porque não estamos acostumados a conceber algo que ainda não tem nem 
tempo nem espaço convencionais, nem qualidade nem quantidades diferenciais) 
consiste em uma singularidade absolutamente diferente de todas as outras, e o 
dizer "todas" é metafórico, porque esse "todo" é infinito, não pode totalizar-se. 
Outra abordagem desses elementos os denomina multiplicidades (mas como 
substantivos, não como adjetivos). habitualmente se fala de "o um e o múltiplo"... 
fórmula essa na qual o múltiplo não 
 
 
é senão a multiplicação do que é um, ou seja, muitos do mesmo. Multiplicidade se 
refere a unidades, cada uma das quais é absolutamente diferente das outras: não 
há nenhum um que sirva de base para multiplicar-se nos múltiplos que são suas 
 52 
réplicas. 
A rigor, deve-se dizer que esses elementos constitutivos da Superfície de 
Produção não são, quer dizer, não têm uma essência, mas consistem em um puro 
devir, estão mudando permanentemente. Se se pode falar de uma "natureza" desses 
elementos, caberia dizer que se compõem de Desejo e de Produção. Desejo, está 
tomado no sentido dado por Freud ao Processo Primário no Inconsciente, em que a 
energia "flui livremente pelas representações", onde não há tempo, não há espaços 
clássicos e, sobretudo, onde só há positividades, não há noção de ausência, de falta, de 
morte, de castração, etc. 
Produção, está dito no sentido de Marx, ou seja, um processo pelo qual uma 
matéria prima, trabalhada por meios específicos animados por uma força de trabalho, 
gera um produto que não preexistia na matéria prima da qual se originou. Deleuze e 
Guattari acrescentam a essa definição a afirmação de que a Produção "se produz a si 
mesma", seus elementos se produzem ao mesmo tempo em que funcionam, e que, 
no caso da Superfície de Produção, fazem-no pelo encontro casual das intensidades, 
que são caóticas e imprevisíveis. As duas entidades que integram a Superfície de 
Produção são o corpo sem órgãos e as máquinas desejantes. Para não complicar as 
coisas, direi a respeito que o Corpo sem Órgãos é uma espécie de rede sobre a qual se 
dispõem ao acaso as intensidades... e as intensidades podem ser pensadas como 
máquinas inespecíficas e indeterminadas que se conectam de maneira binária em todas 
as direções. As máquinas desejantes se dividem em máquinas fonte e máquinas 
órgão. Uma máquina fonte gera um fluxo energético, e uma máquina órgão o 
corta e o modula. Elas se conectam assim em todas as direções, e esse processo 
incoercível é o que gera a produção de tudo quanto existe. Outra característica das 
máquinas desejantes é serem infinitamente pequenas, por isso se denominam 
moleculares, e elas permanecem como tais no seio das entidades macro, que se 
chamam molares, e que são as que estamos 
 
 
 
acostumados a reconhecer, seja qual seja a materialidade de que se trate, por exemplo: 
um homem, uma planta, uma montanha, um país, uma máquina mecânica, uma 
 53 
instituição, etc. 
A Superfície de Registro é a organização que adquire a Superfície de 
Produção quando entra na escala das entidades molares. A função da Superfície de 
Registro-Controle é, como seu nome antecipa, a de selecionar, aceitar e capturar, ou 
bem reprimir e destruir a incoercível geração de novidades da Superfície de Produção 
Desejante. A Superfície de Registro está constituída por todas as entidades destinadas 
a diferenciar, em um sentido convencional, e a utilizar, tudo o que se produz, para 
colocá-lo a serviço da reprodução,da natureza e da sociedade, tal como estão 
estruturadas, ou seja, o que tende à reprodução do mesmo e à manutenção do status 
quo. A Superfície de Registro e de Controle só aceita aquilo que pode incorporar sem 
se transformar radicalmente. Um dos aspectos mais importantes da Superfície de 
Controle é o denominado socius, ou seja, a forma que tem adquirido a Sociedade 
ordenada em cada civilização, e que é tanto ameaçada quanto nutrida, naquilo 
que precisa para evoluir, pelas novidades da superfície de produção. 
Deleuze e Guattari sustentam que a Superfície de Produção tem um 
funcionamento que pode ser ilustrado pelo pensamento Esquizofrênico, mas não o 
dizem referindo-se à Esquizofrenia entendida como enfermidade mental, senão à 
Esquizofrenia como a característica essencial desse processo de produção caótico que 
caracteriza a Superfície de Produção, e que tem algo a ver com a "loucura". 
Entretanto, a Superfície de Registro tem as peculiaridades que costumamos 
ver nas Neuroses, nas Perversões e também na Psicose Paranóica. Desde logo essas 
denominações não se referem às entidades clínicas, mas à lógica de funcionamento 
que as caracteriza, que aqui se pode aplicar, por exemplo, ao Estado, que é a 
Instituição paranóica por excelência, por suas peculiaridades prevalentemente 
centralizadoras. repressivas e antiprodutivas. 
A Superfície de Consumação é aquela em que o produzido, tanto o admitido 
pela Superfície de Registro-Controle, como aquilo da Superfície de Produção que 
escapa ao controle e se manifesta como 
 
novidade radical, invenção e revolução... são realizados e/ou consumidos, quer dizer, 
usados e gozados pelos agentes históricos. 
Toda essa introdução, pelo menos no momento, nos servirá apenas para 
 54 
apresentar as tarefas da Esquizoanálise. 
A Esquizoanálise será um processo de investigação, de produção de 
conhecimentos e de aplicação dos mesmos, para transformar o Mundo (entendido no 
sentido tanto da organização social, como política, econômica, da subjetividade dos 
homens e ainda das máquinas que modificam por completo a relação homem-
natureza). A Esquizoanálise, que não tem por que ser feita por especialistas e que, 
além disso, cada um faz à sua maneira, a partir da inserção social que tenha e da 
Causa em que esteja envolvido nas lutas do mundo (sexual, artística, política 
alternativa, industrial, militar, etc.) se compõe de duas tarefas fundamentais. 
A primeira consiste em uma raspagem, quer dizer, em um trabalho destrutivo 
das entidades da Superfície de Registro-Controle que afetem (e da maneira especial 
em que afetam) o território em que se movem os interessados. Por exemplo, digamos, 
na luta pelo direito à existência de uma singularidade sexual: "os homossexuais". Aí se 
tratará de entender e denunciar a lógica de dois valores com a qual o Socius define o 
que é normal e o que não é normal em matéria de sexo. Mas isso também inclui um 
trabalho de destruição das leis que justificam o império da sexualidade pautada em 
dois valores, os preconceitos que afetam as singularidades sexuais no trabalho e na 
política, etc. As tarefas negativas se superpõem e intrincam as positivas, por 
exemplo, a invenção de modos de viver, de critérios de valor, de obras artísticas, 
técnicas ou políticas, que são peculiares da singularidade cujo direito à existência se 
está procurando reivindicar. 
Toda e qualquer montagem que se invente para realizar a 
esquizoanálise de toda e qualquer singularidade desejante produtiva, que se 
denomina agenciamento ou dispositivo, é aceitável. Todo dispositivo desse tipo 
terá de ter um componente pelo qual se constitui em uma "máquina de guerra", 
ou seja, em um agenciamento que tem por objetivo defender-se dos ataques da 
superfície de registro e/ou destruir os equipamentos com os 
 
 
quais a maquinaria repressiva tende a reprimir, eliminar ou capturar as 
singularidades produtivodesejantes. 
A Esquizoanálise tem ilustrações interessantíssimas de dispositivos 
 55 
montados, tanto por singularidades sexuais, raciais, nacionais, etárias, lingüísticas, 
como classistas, profissionais, artísticas, ecológicas, etc. 
É de se esperar que essa introdução abra caminho para poder explicar em que 
consiste o esquizodrama, que também temos denominado proliferação dramática 
inventiva. Cabe apenas adiantar que se trata da montagem de dispositivos técnicos 
que têm por objetivo uma Esquizoanálise praticada com recursos tomados da Arte, do 
Teatro, da Pedagogia e da Psicoterapia, tal como eu tenho podido e entendido. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 56 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
INTRODUÇÃO À ESQUIZOANÁLISE* 
Apontamento N° 2 
 
 57 
 
No Apontamento n.1 tratei de começar a resumir o que chamei, 
figuradamente, a "Concepção do Mundo" dos pensadores Deleuze e Guattari. Cheguei 
a expor suas idéias acerca do que poderíamos chamar uma antologia da Realidade. 
Pelo menos tratei de esboçar os conceitos mais inclusivos. Resulta, porém, que 
quando se trata de sintetizar a obras destes autores, tropeça-se em graves dificuldades, 
não só devido à fecundidade numérica das publicações (são muitos livros e artigos), 
mas também ao processamento que se dá dos termos e noções inventados, à 
heterogeneidade alucinante dos saberes ou dos gêneros que se usam como fontes de 
"importação" dos conceitos ao seio da Esquizoanálise como "episteme", a 
transformação constante da bateria conceitual durante a aparição dos sucessivos 
textos, as diferenças de estilo de um texto para outro, etc. 
Uma breve referência à questão do estilo já é interessante. Por exemplo: no 
primeiro capítulo do Segundo Tomo de "Capitalismo e Esquizofrenia" (o primeiro 
tomo é o famoso "O Anti-Édipo", o segundo se chama "Mil Platôs"), cujo título é 
"Rizoma", os autores explicam o que é para eles um livro . Apenas como 
aproximação, recordemos que, em meu texto anterior, falei da "Totalidade" da 
Realidade e de sua composição por três superfícies imanentes entre si: a de Produção, 
a de Registro e a de Consumação. Digo totalidade entre aspas porque essa é uma das 
primeiras categorias filosóficas que Deleuze e Guattari se propuseram reformular. 
Como a realidade é infinita, "cada totalização pensada ou prática que se faz dela 
agrega-se a esse todo infinito como uma parte a mais". Segundo me parece, essa 
definição já é um bom começo para que aqueles que nunca leram Deleuze e Guattari 
comecem a "sentir" a novidade e, ao mesmo tempo, a estranheza que essa imensa 
reformulação do pensamento provoca. 
Creio que se pode dizer que principalmente a Superfície de Produção devém 
segundo o Modelo de um Rizoma. Rizoma é um 
 
*Ver nota na página 49 
vegetal de tipo tubérculo, que cresce subterrâneo, mas muito próximo à superfície, e 
que se compõe essencialmente de uma raiz. Esta raiz é estranhíssima porque, quando 
o exemplar alcança grandes proporções (há pouco li em um dos jornais diários que nos 
 58 
Estados Unidos havia sido encontrado um que media vários quilômetros de extensão), 
é difícil saber quais são seus limites externos; quer dizer, não há separação entre "uma 
planta" que constitui essa rede e a outra que também a integra. Entretanto, no seu 
interior, o complexo, digamos, radicular, está composto por células que não têm 
membrana, e que só podem ser supostas como unidades porque têm núcleos ao redor 
dos quais se distribuem trocas metabólicas e áreas energéticas. Então, pelo menos no 
sentido tradicional, o Rizoma não tem limites internos que o compartimentalizem. 
Aquilo que circula nesse interior circula em "toda e qualquer" direção, sem obstáculos 
morfologicamente materiais que o Impeçam. 
Em várias mitologias orientais, sumamente antigas, podem-se encontrar 
reiteradamente representações do Universo que essas civilizações denominam "Ovo 
Cósmico". Curiosamente,modelos similares podem ser encontrados nas mitologias 
americanas, por exemplo, na tribo Dogon. O que estes modelos têm em comum é que 
o Universo está desenhado como um corpo oval, de limites exteriores muito tênues, e 
em cujo interior não se vêem compartimentos definidos senão algo assim como 
"áreas" insinuadas por ocupações de forças, permanentemente mutantes, cujo fluxo 
incessante mostra "momentos" que podem marcar-se com limiares que sinalizam 
configurações fugazes de diferenças de intensidade. 
Muitas ramificações ultramodernas das Ciências contemporâneas, 
particularmente da micro e macro Física, mas também da Biologia Molecular, da 
Matemática e da Geometria, etc., têm descoberto ou inventado universos reais ou 
formais que funcionam dessa maneira. 
Em certo sentido se pode dizer que para Deleuze e Guattari a Superfície de 
Produção desse "todo" real funciona assim, e cada realidade circunscrita de maneira 
mais ou menos ortodoxa na Superfície de Registro (por exemplo, um Corpo 
Biológico, uma Organização, um Sujeito Psíquico... e o que é mais surpreendente, um 
livro ) também tem um pólo ou uma dimensão produtiva que funciona dessa maneira. 
ou não tem... ou tem "pouco", ou seja, a potência rizomática de 
 
sua composição depende de como estão "construídos interiormente" e de como 
conseguem conectar-se e fluir com as forças do "exterior" com as quais se articulam. 
Voltando à questão do "estilo" (que a rigor, não é um termo que Deleuze e 
 59 
Guattari usam demasiadamente), trata-se dessa composição interna rizomática que um 
livro pode chegar a ter e que o torna uma espécie de máquina (depois tratarei de 
aclarar o que entendem por máquina), que o possibilita fluir interna e externamente, 
conectar-se com outras máquinas que podem ser completamente heterogêneas 
(máquinas técnicas, sociais, libidinais, biológicas, psíquicas, etc.) e fluir com elas e 
entre elas, "formando máquina", "maquinando" com elas novas realidades produtivas 
e revolucionárias. Em conseqüência, um livro, como todas as outras "entidades" ou 
devires que integram a realidade, não é importante pelo que "quer dizer", senão pelo 
que consegue "fazer", ou seja, pelos modos pelos quais se agencia ou se dispõe com 
outras "máquinas" que transformam (ou melhor, metamorfoseiam, criam o novo 
radical) a realidade. 
Desta maneira, o que chamamos estilo é, a rigor, o regime de funcionamento 
da "máquina livro", seu movimento, sua velocidade, sua longitude e latitude, sua 
densidade, sua intensidade, que o permite ou não, contribuir para inventar mundos. 
Estes mundos podem ser relatados por espécies de "Diários de Bordo" teóricos, que 
não são exatamente "mapas". Melhor dito, são "Cartografias". É sabido que uma carta 
de navegação é um "mapa relato", não apenas "objetivo", mas também "subjetivo", 
"político", etc., que só serve para uma viagem, que só expressa a singularidade única e 
irrepetível dessa viagem, o que não impede que outros viajantes dele se sirvam para 
construir sua própria trajetória, sempre experimental, sempre aventureira .. 
Por isso, cada livro de Deleuze e Guattari é uma "Cartografia", e está 
construído de maneira que supostamente haverá de servir ao maior número de 
viajantes possível, a empreender e elaborar sua própria travessia. Ainda que amiúde os 
livros de Deleuze e Guattari apresentem recursos (editoriais, semânticos, sintáticos, 
retóricas, etc.) convencionais, a idéia primordial é que podem ser utilizados, sem 
sistematicidade alguma, por partes ou por totalizações aleatórias, por quem queira e 
possa fazê-la. Uma peculiaridade que a obra esses autores apresenta e 
 
 
que, com toda certeza é ilustrativa e fiel a esses "princípios", é que eles jamais se 
citam a si mesmos, e autorizam os leitores a fazerem a mesma coisa. 
Apesar de ser uma obra monumental, com uma quantidade de referências 
 60 
bibliográficas que chega a ser monstruosa por sua amplitude, versatilidade e rigor , 
Guattari escreveu um artigo que se intitulou algo assim como "Dez proposições 
descartáveis para expor a Esquizoanálise". O descartável implica que não aspiram a 
nenhuma permanência, nem paternidade autoral, nem exigência escolástica ou 
acadêmica, mas que cada um pode usá-la à vontade, segundo lhe pareça que lhe vai 
ser fecundo no que está por fazer ou escrever, ou para as duas coisas, que segundo 
Deleuze e Gllattari, sempre ocorrem simultaneamente. 
Em outra parte deste primeiro capítulo do Segundo Tomo ("Mil Platôs"), 
Deleuze e Guattari explicam que assinaram seus livros pelo "prazer de falar em 
primeira pessoa", "como todo mundo", dizer que "hoje saiu o sol" ou qualquer coisa 
desse tipo, mas que, para serem coerentes, deveriam ter escrito de maneira anônima, 
para poder descartar qualquer influência do que Foucault denomina "a função autor", 
que é um recurso de Poder que, ainda que se possa usar de maneira estratégica a 
serviço da produção, geralmente é empregado para gerar certa subordinação à imagem 
do intelectual ou do "professor" prestigioso, etc. 
Isso nos permite voltar à única proposta de "Método" que esses autores se 
permitem e que, sem que haja referência explícita, tem muito a ver com o que um 
grande epistemólogo, Feyerhabend, sustenta em seu livro "Contra o Método", em que 
ele faz uma feroz crítica da "Metodologia das Ciências" e afirma algo como uma 
"Inventiva Radical". Deleuze e Guattari sustentam que o único "método" é o do 
bricoleur, ou seja, o do selvagem que solitariamente limpa o solo em uma clareira da 
selva e se põe a juntar galhos, penas, pedras, e acaba construindo um "quadro" que 
pode ou não ser apreciado por um "degustador" ou espectador, e cujo grau de beleza 
depende do índice em que seus componentes "não têm nada que ver entre si". Dito de 
outra maneira, Deleuze e Guattari propõem que em todo empreendimento, aventura, 
viagem ou obra, o verdadeiramente importante é a novidade, a diferença e a 
singularidade absolutas, que de uma forma ou outra 
 
 
subvertem a maior Instituição de uma civilização, que é a forma em que esta define o 
"Horizonte do Possível". 
Uma das maneiras de entender, em um sentido amplo, a importância dessa 
 61 
proposta, é a de referi-la a algumas idéias do filósofo Bergson, particularmente 
àquelas que se referem à essência da Realidade. 
Bergson diz que a Realidade se compõe do Real (o que já existe), do Possível 
(o que pode vir a existir) e do supostamente Impossível, o que, coerentemente com o 
que se sabe do existente e do ainda inexistente, não pode ser nem Real nem Possível. 
Mas Bergson acrescenta que existe uma dimensão da Realidade que ele denomina 
Virtual. O Virtual não existe (não é Real), nem se pode dizer que seja Possível e 
Impossível, simplesmente porque não se pode pensá-Io, nem antecipá-Io, nem 
predizê-Io, nem negá-Io. O Virtual só é conhecido quando se torna atualizado, ou seja, 
quando devém Atual. O que sucede é que o Virtual ainda não atualizado é a parte 
mais importante da realidade, mas só se sabe dele quando se Atualiza, e sempre o 
faz como a novidade, a diferença absoluta, que não era pensá vel, dizível, nem 
previsível com as categorias do real, do possível ou do impossível. 
Essa atualização do Virtual que Deleuze e Guattari apresentam com o nome 
de acontecimento, termo tomado dos filósofos estóicos, tem uma valor incalculável 
como orientador de toda prática, porque o objetivo principal em Deleuze e Guattari é 
o de produzir pensamentos e atos (que sempre terão imanentemente uma dimensão 
Ética, Estética, Ontológica, Gnoseológica, Política, etc.), montar DISPOSITIVOS, 
agenciamentos, sempre complexos, heterólogos (compostos de diferentes saberes), 
heterogêneos (compostos de diferentes material idades), heteromorfos (compostos de 
formas diversas) e até heteróclitos (bizarros, estranhos, etc.)... que geram e são eles 
mesmos partes de acontecimentos singulares. 
Por sua vez, essa propostaestá estreitamente ligada à idéia do filósofo 
Nietzsche, de que se deve viver "Desejando os Acontecimentos", como afirmação 
radical da "Vontade de Potência", ou seja, do cultivo, da propiciação daquelas forças 
que procuram criar o Novo Absoluto. Em Deleuze e Guattari esse Novo é a 
característica da atividade da Superfície de Produção, que sempre é simultaneamente 
Revolucionária, Desejante e Produtiva. 
 
Deleuze e Guattari tomaram de Marx a idéia de Produção, de todos os 
Utopistas a idéia de Revolução, e da Psicanálise freudiana a idéia do Desejo 
Inconsciente. Não obstante, não tomaram essas idéias sem crítica, posto que as 
 62 
reformularam de tal modo que é difícil sintetizar no presente escrito. Apenas para 
dizer algo a respeito, bastaria explicar, por exemplo, que, em Freud, existem dois 
conceitos claros de Desejo. Em um deles o Desejo é definido como uma espécie de 
força inconsciente que impulsiona os sujeitos a buscarem objetos de prazer que 
supostamente tiveram alguma vez e perderam. Essa concepção do Desejo em Freud 
sustenta que o que mobiliza essa força é a Falta desse objeto que, a rigor, não existe. 
Mas há outras passagens de Freud nas quais o Desejo se define pelas características 
daquilo que o criador da Psicanálise denomina Processo Primário, um funcionamento 
com base na pura positividade, numa espécie de vontade de invenção, de criação, ou 
como se queira chamar, que não se mobiliza pela Falta de Objeto nem pela nostalgia 
do Bem perdido, nem pela tentativa de Repetição do Mesmo, senão por um puro 
impulso ao Novo Absoluto, ao Retorno da Diferença Essencial que, segundo toda uma 
linha da Filosofia, é o único que retoma na Realidade Última, que é a Virtual. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
INTRODUÇAO A ESQUIZOANALISE 
Apontamento N° 3 
 63 
Nesta oportunidade, gostaria de me referir, como sempre muito 
sinteticamente, ao lugar que ocupa na Teoria Esquizoanalítica a questão da 
subjetividade. 
É sabido que na História da Filosofia Ocidental podem-se reconhecer dois 
períodos fundamentais. Durante o largo curso do primeiro deles, o pensamento 
filosófico se interrogou persistentemente em torno do Ser. Apesar de que essa reflexão 
estivesse sempre matizada, quando não francamente contraposta, ao problema do 
Devir, pode-se afirmar provisoriamente que a questão do Ser resultou sempre 
vitoriosa, porque, ainda que reconhecesse alguma importância ao Devir, o fez sempre 
incluindo o Devir como uma das características ou atributos do Ser. 
Já desde Parmênides, um ilustre pré-socrático, a fórmula predileta para 
referir-se ao Ser era tautológica ou pleonástica, como dizer que do Ser só se pode 
predicar que É. Essa identidade do Ser consigo mesmo adquiria em Parmênides 
também a condição da imobilidade e da eternidade. A essa concepção pode-se 
contrapor a idéia de Heráclito, de que o Ser devém, ou seja, que se transforma 
constantemente; daí a famosa frase que afirmava que "não se pode banhar duas vezes 
no mesmo rio". 
A interminável sucessão de importantes escolas filosóficas foi-se inclinando 
a buscar algo assim como um substrato do Ser, e ainda que tenha havido várias 
tentativas a respeito, foi-se impondo a convicção de que a "medula"do Ser era a 
Substância (Osia). 
Com respeito à Substância, foram-se introduzindo importantes variações, 
cujo estudo é do maior interesse, mas, para os efeitos do que aqui quero expor, 
daremos um largo salto e diremos que é com o filósofo René Descartes que se gera 
uma transformação no centro da problemática filosófica, posto que esse pensador 
substitui a preocupação sobre o Ser por uma prioritária acerca do Conhecer, e 
particularmente acerca da 
• Ver nota na página 49 
"sede" ou do protagonista do conhecer, que é o Sujeito do Pensamento. Como é 
sabido, Descartes cunha a famosa fórmula "Penso, logo Sou", fazendo o Sujeito do 
Pensar o único que pode ter uma certeza, pelo menos inicial, de que é Ele quem está 
 64 
pensando e, portanto, Sendo. 
Essa mudança permanece fundamental para toda a Filosofia póscartesiana, 
ainda que não de uma maneira exclusiva. Uma de suas vicissitudes posteriores 
consiste em que a Psicologia implícita nas considerações filosóficas, assim como a 
Psicologia experimental das Faculdades, que é a primeira Psicologia "científica" que 
aspira a fundar essa disciplina como tal, desvinculando-a da Filosofia, continua 
definindo esse Sujeito autocentrado, coerente, único e homogêneo, como sendo o 
objeto principal do estudo psicológico e o protagonista de todas as funções e atos 
psicológicos. 
Tem-se insistido reiteradamente que, com a Psicanálise, genial invenção 
freudiana, essa Imagem de Sujeito foi definitivamente colocada em questão. Atribui-
se à Psicanálise, no campo do psíquico, uma revolução similar à que havia operado 
Copérnico com sua teoria Heliocêntrica do Universo, a Darwin com sua Teoria da 
Evolução das Espécies, e a Marx com sua Teoria dos Modos de Produção históricos. 
Todos esses "descobrimentos" operaram verdadeiras revoluções, e um de 
seus efeitos característicos no saber universal consistiu em um descentramento, ou 
seja, no destronamento de uma entidade que ocupava um lugar axial nos campos 
respectivos, que resultou questionada por esses novos conhecimentos. A Terra não é 
mais o centro do Universo, assim como o Homem não é mais que um descendente dos 
mamíferos superiores, e os Homens não são, tampouco, os fazedores incondicionais 
da História, senão que os modos em que as sociedades se estruturam determina a 
influência relativa que os homens podem ter sobre seu funcionamento. 
De igual maneira, o Eu, entidade psicológica que, em geral, toma-se 
sinônimo do Sujeito consciente, dono do saber acerca de si mesmo, de seus desejos e 
de sua vontade, é evidenciado como sendo só uma parte da "personalidade", e não 
certamente a mais importante. O Sujeito é conhecido como irreversivelmente dividido 
em um Eu consciente e voluntário, por um lado, e em outras instâncias, entre as quais 
se destaca o Id, impessoal, inconsciente e involuntário. 
 
Muitos psicanalistas modernos insistem em que o descobrimento freudiano, 
que sem dúvida adquiriu uma considerável hegemonia em seu campo específico, ainda 
não foi suficientemente adotado e aproveitado, tanto no seio de outras disciplinas 
 65 
científicas, como inclusive no da Filosofia, Política, etc. 
Esse descobrimento problematizou, entre outras convicções, a certeza da 
coincidência irrestrita entre termos tais como indivíduo, pessoa e sujeito. 
Esse complexo de denominações reiteradamente tem sido entendido como 
um conjunto de sinônimos, ou seja, cada um desses vocábulos designa mais ou menos 
a mesma coisa, ou, pelo menos, são perfeitamente articuláveis entre si, de maneira tal 
que, sua agrupação denomina quase tudo o que é a unidade elementar ou fundamental 
do ser humano. 
Ainda que existam muitas diferenças a respeito, para uma visão um tanto 
mais rigorosa, costuma-se fazer certas distinções que já ajudam a discriminar um 
pouco essa problemática. 
Reserva-se o termo Indivíduo para a unidade mínima elementar de um 
exemplar da espécie biológica humana (ou de outras), sendo que a mesma, como seu 
nome indica, "não pode ser dividida sem desnaturalizar-se". Tem-se o hábito de usar a 
palavra Pessoa para a unidade social e jurídica, igualmente mínima, capaz, por 
exemplo, de contrair deveres e direitos e de ocupar lugares e hierarquias sociais 
estabelecidas. Por sua vez, costuma-se denominar Sujeito, tanto a essa unidade 
mínima homogênea autônoma psíquica a que nos referíamos anteriormente (e assim 
também em Lingüística e em Semiótica), como a uma função essencial dentro dos 
textos ou discursos (Sujeito do enunciado, Sujeito da enunciação). 
Desde logo podemos encontrar muitos outros usos e sentidos do termo 
Sujeito (em Teoria Literária, em Estética, em Política, etc.). Mas em todosesses 
âmbitos encontramos também uma dualidade ou uma ambigüidade essencial pela qual 
Sujeito pode designar tanto o agente, o protagonista, o ator, o causador dos processos, 
como igualmente algo ou alguém "sujeitado", ou seja, ignorante, conduzido, 
submetido ao efeito de forças e mecanismos que não conhece nem domina. 
Obviamente, a anteriormente mencionada relação entre Indivíduo, Pessoa e 
Sujeito fica radicalmente relativizada pela postulação de um sujeito essencialmente 
dividido, como acabamos de caracterizá-lo. Se já estava claro que esses termos não 
são sinônimos e não designam a mesma realidade, a isso devemos acrescentar que 
essa condição dividida do Sujeito psíquico exerce influências incalculáveis sobre a 
constituição e o funcionamento dos Indivíduos biológicos (seus "corpos"), assim como 
 66 
sobre as pessoas sociais e jurídicas e os desempenhos de seus "papéis", "status", 
concepções, atitudes, etc. 
Um aspecto essencial deste assunto consiste em que, desde já, todas essas 
unidades, às quais nos referimos, não são concebíveis apenas como entidades 
separadas. Seja qual for a condição que se atribua à sua associação, é evidente que a 
vida humana, tanto biológica, como social, como psiquicamente, desenvolve-se na 
forma coletiva. 
Essa coletividade ou comunidade essencial, em geral é concebida como a 
conexão, relação, interação, ou como se queira chamar-lhe, entre as citadas unidades, 
em conjuntos de pequena, média ou grande dimensão. 
Daí a importância que têm adquirido diversas agrupações denominadas 
intermediárias, tais como o casal, a família, os grupos "secundários" (lúdicos, 
escolares, esportivos, etc.), assim como as organizações, os povos, até chegar à 
Sociedade ou à Humanidade em seu conjunto. 
Apesar de diversos investigadores terem intentado propor a existência de 
entidades que não consistem exatamente na associação destas unidades elementares 
(muitos já falaram, por exemplo, de Consciência ou Inconsciente Coletivo, de 
Ideologia ou de Culturas, Tradições, etc.), em geral as tendências científicas 
dominantes atuais parecem adotar ainda essa idéia de uma associação de Sujeitos 
(p.ex.), coletivização esta que, ainda que possa engendrar estruturas e processos sui 
generis, em última instância tem como substratos as citadas unidades elementares. 
Essa posição se enfatiza em algumas postulações psicanalíticas atuais, que sustentam 
que tal conexão é, a rigor, ilusória e impossível, ainda que possa estabelecer-se para 
fins de criar efeitos de unificação coletiva, dado que os Sujeitos divididos de que se 
trata são radicalmente narcisistas, e seu real vínculo com outros é inviável. Para esses 
autores, a pseudo-conexão só se produz através de nexos simbólicos, cujo conjunto 
constitui a cultura, mas à condição de serem mediatizados e abstraídos pela 
linguagem. Desta maneira, os Sujeitos 
 
estariam marcados por uma "solidão essencial", que não é realmente superável por 
interrelação alguma. 
Explicar a proposta Esquizoanalítica a este respeito não é uma tarefa fácil, 
 67 
particularmente fazê-lo para aqueles que ainda não estão inteirados dos meandros da 
Teoria de Deleuze e Guattari. 
Uma tentativa que posso fazer sobre o assunto pode basear-se em algumas 
premissas básicas, apenas enunciáveis, ainda que difíceis de se fundamentar em 
poucas linhas. 
Em primeiro lugar, como já adiantamos nas outras comunicações, para esses 
autores a separação entre Natureza, Cultura, Psiquismo, Sociedade, Máquinas, etc., 
dá-se apenas em um dos níveis ou Superfícies em que a Realidade está organizada. 
 Esta superfície ou nível é imanente, ínsita, coextensiva, concomitante, 
coexistente – ou qualquer outro termo que possa tentar passar a idéia de que uma é 
interna à outra –, com a Superfície da Produção Desejante, em que essas realidades 
definidas e organizadas não o são como tais, senão como o que eles chamam (entre 
outras maneiras) de realidades Pré: 'pré-biológicas, pré-psíquicas, pré-sociais, etc. 
Como dissemos em outras aulas, o nível organizado (chamado Superfície de Registro, 
Controle, Identidade, etc.) caracteriza-se por se compor de entidades macro, cujos 
limites são geralmente perfeitamente definidos e variavelmente articulados entre si. 
As diferenças entre essas entidades, se bem existem, não são tão importantes como as 
semelhanças ou as igualdades, analogias, similitudes, etc. Por isso é que se pode dizer 
que as coletividades são, a rigor, multiplicações. Se o Um é Indivíduo, Pessoa ou 
Sujeito, a coletividade é o Múltiplo, muitos... ou bem do Mesmo, ou bem de pequenas 
diferenças. 
Na Superfície da Produção Desejante, se é que se pode falar de unidades 
micro, estas são multiplicidades ou singularidades absolutas, o que quer dizer que 
cada uma delas é absoluta e infinitamente diferente das outras. De outro lado, é 
bastante difícil entender que essas singularidades não têm extensão nem qualidade, 
senão apenas intensidade, por isso é que também podem denominar-se 
Singularidades Intensivas. 
O poliverso dessas singularidades intensivas, que em outras exposições 
dissemos sinônimos da Virtual idade Bergsoniana, ainda 
não existem como entidades macro ou moleculares da superfície de registro ou 
controle, mas nem por isso deixam de formar a parte potencialmente inovadora 
radical da Realidade. 
 68 
Quando esta Virtualidade Molecular se atualiza, opera sem respeito algum 
pelas identidades, limites, territórios, estratos, instituições, organizações ou unidades 
elementares da Superfície de Registro. 
Isto sucede quando emergem novos efeitos e processos, em geral 
irreconhecíveis, impensáveis, inclassificáveis e incontroláveis (segundo as leis, 
normas e interesses da Superfície de Registro). Essas revoluções, que podem ser 
grandes ou pequenas, mas que se caracterizam por serem insólitas, efetuam-se como 
encontros entre os corpos materiais e energéticos (isto dito em um sentido muito 
amplo) e entre os sentidos e valores como acontecimentos incorporais. 
Estes Encontros – Acontecimentos geram transformações que se efetuam 
simultaneamente em qualquer ou em todos os domínios instituídos, organizados ou 
estabelecidos molares, e podem assim gerar (isto dito incorretamente, por razões 
pedagógicas) indivíduos que não pertencem a espécie alguma, novas pessoas que 
não coincidem com indivíduos nem se enquadram em categoria social ou jurídica 
de nenhuma índole e, para o que aqui nos interessa particularmente, subjetivações 
que não se apóiam em indivíduos biológicos delimitados, nem em pessoas sociais 
convencionais... nem coincidem com o lugar, perímetro ou condição das unidades 
elementares-sujeito, sejam estas divididas como a psicanálise diz ou homogêneas, 
como a psicologia tradicional diria. 
Essa produção de subjetivações se "materializa" associando "partes" de cada 
uma das unidades elementares citadas, em articulações completamente 
irreconhecíveis, e com características de funcionamento insólitas, acerca das quais, 
apenas para dar um exemplo ilustrativo (ainda que de maneira alguma exaustivo), 
pode dizer-se que amiúde se apresentam com rendimentos do tipo do que 
denominamos "paranormal", "parapsicológico", ou, com uma terminologia pouco 
recomendável, francamente prodigiosos. 
Trata-se de verdadeiras invenções, inspirações, criações, ou como se queira 
chamá-las para melhor entendê-las, e o fato de que 
 
apareçam tomando como cenário um Sujeito clássico, um Grupo, uma Organização, 
Movimento ou Massa Social, tem muito mais a ver com a originalidade da 
subjetivação criada que com os limites e as expectativas que habitualmente se 
 69 
atribuem a esses conjuntos. 
Para concluir, provisoriamente, não se deve esquecer que essas "montagens", 
"dispositivos" ou "agenciamentos" geradores de subjetivações (que podem ser 
predominantemente artísticos, políticos, industriais, etc.), sempre são tudo isso ao 
mesmo tempo,ainda que, amiúde, seja difícil precisar como cada um desses domínios 
macro intervém em cada um deles. 
Finalmente, retomando a polêmica pré-socrática, não se trata aqui de que o 
Ser seja imóvel àu eterno, nem tampouco que o Ser devenha, mas de que o Ser é 
Devir... ou o Devir é o Ser. 
Dito de outro modo: O SER DO DEVIR É A INCESSANTE 
PRODUÇÃO DO NOVO ABSOLUTO. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 70 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A REALIZAÇÃO DA REALIDADE * 
 
 
 71 
 
 
A Esquizoanálise de Deleuze e Guattari pode ser considerada um saber 
"novo", não enquadrável em nenhum dos gêneros anteriormente conhecidos. Ao 
mesmo tempo, cabe considerá-la como contendo também parcialmente dimensões 
destes gêneros: Filosofia, Ciências, Artes, Política, etc. 
Do ponto de vista filosófico convencional, pode-se dizer que a 
Esquizoanálise é um materialismo, neo-funcionalista, maquínico. O sentido desta 
fórmula irá se aclarando no percurso destas aulas; por hora, trataremos de ver o que é 
para Deleuze e Guattari a Realidade, e como a mesma se "faz". 
Para Deleuze e Guattari a Realidade é tudo o que na Filosofia Convencional 
compreendia o Ser e o Existir, inclui tanto as essências como as aparências, a matéria, 
a energia, o espírito, o pensamento e a subjetividade. Segundo uma terminologia 
tomada e reformulada do filósofo Bergson, pode-se dizer que compõem o Real: o 
Possível, o Impossível, o Virtual e o Atual. 
Portanto, deve ser pontualizado que, para Deleuze e Guattari, a "substância" 
da Realidade é o Ser do Devir (e não apenas o Ser ou o Devir do Ser). Em outras 
palavras, a Realidade consiste em "todos" os devires (processos) que a integram. 
O conceito de Todo está colocado entre aspas porque, a rigor, não há Todo 
no sentido habitual do termo. Não há um Todo finito, definido e pré-estabeIecido, cujo 
interior compreende – e está diversificado – em partes. Os processos da Realidade, em 
seu devir, vão constituindo todos. Cada um desses todos vai se agregando sem 
totalizar-se nem unificar-se inteiramente nunca, e incluem a subjetividade e a práxis 
desde as quais são construídos. Essa definição provém, dentre outras variadas fontes, 
da Teoria Física Geral da Relatividade. 
 
*Este texto e os 10 que se seguem referem-se a aulas do Programa Âmago de Formação Contínua em 
Esquizoanálise, Instituto Felix Guattari, Belo Horizonte, 1996/1998. 
A modalidade com que os processos vão realizando a Realidade se denomina 
produção. Este conceito está tomado de numerosas fontes teóricas e tem sido 
reformulado de maneira a não esgotar-se no sentido que tem em nenhuma delas em 
particular. Provisoriamente podemos destacar a origem industrial do termo, tal como 
 72 
tem sido formulado por Marx, como "prática" ou "processo produtivo de trabalho". 
Estes processos exigem: Força de Trabalho, Matérias-Primas, Meios de Produção, 
Execução do Trabalho, Produto. Mas, em Deleuze e Guattari, esse processo tem sido 
conceitualmente ampliado e complexizado até tomar-se sinônimo de todos os devires 
que produzem a Realidade. Essa reformulação inclui especialmente a Imanência e a 
Consubstancialidade entre a Produção e o Desejo. Também o conceito de Desejo 
está tomado de diversas fontes. Provisoriamente destacaremos entre elas a definição 
do Processo Primário, postulado por Freud para o funcionamento do Inconsciente 
subjetivo. Mais adiante nos dedicaremos especialmente a esse conceito. 
O conceito de Produção em Deleuze e Guattari parte, sem dúvida, da 
importância atribuída por eles à Máquina como componente constitutivo presente em 
todas as organizações históricas. O conceito de máquina não se limita às 
características dos instrumentos primitivos, nem às grandes máquinas hidráulicas, nem 
às eólicas, nem às mecânicas, a vapor, a explosão, às elétricas, eletrônicas, 
cibernéticas, etc. As máquinas não estão pensadas apenas como extensões dos 
"membros" ou do sensório do indivíduo, do sujeito ou das sociedades humanas. Os 
conjuntos "difusos" da Natureza, das Sociedades, das Subjetividades, dos Sistemas 
Semióticos e das Maquinárias (propriamente ditas) formam grandes Mega-Máquinas 
(molares) compostas por infinitas Micro-Máquinas (moleculares, atômicas e 
subatômicas) em permanente processo autoprodutivo. 
A produção, assim entendida, de alguma maneira inclui e reformula 
categorias que vão assumindo o "comando" ou a hegemonia em diferentes Momentos 
e Imagens do Pensamento acerca da Realização da Realidade, correspondentes às 
respectivas Mega-Máquinas históricas. O conceito de Produção (e mais ainda o de 
Produção Desejante) incorpora criticamente as idéias de Criação, Emanação, 
Irradiação, Plasmação, Expressão, Manifestação, Processão, etc. Essas 
significações, se bem 
 
sejam consideravelmente polívocas, denotam ou conotam, em geral, sentidos 
predominantemente divinos, sobrenaturais, ultraterrenos, míticos, místicos, religiosos, 
teológicos e metafísico-transcendentais. Mais adiante trataremos delas em detalhe. 
O conceito de Produção também inclui todas as modalidades de produção 
 73 
Natural (poiesis, concepção, geração, mutação, transformação, evolução, emergência, 
etc.), assim como as de produção humana, industrial, artística, social, mental e 
"simbólica", em um sentido amplo (invenção, fabricação, construção, edificação, 
inspiração, legiferação, institucionalização, etc.) e ainda outras, particularmente 
mágicas ou imaginárias, tais como transmutação, metamorfose, etc. 
No que se refere ao capítulo epistemológico do Determinismo, cabe supor 
que o conceito de Produção pode incluir todas as modalidades do Determinismo, tanto 
as Causalistas como as Não-Causalistas. Como veremos nas aulas seguintes, o 
Processo Produção pode ser de Produção de Produção, de Produção de Registro-
Controle, de Produção de Consumação. Também, em outro sentido, falaremos de 
Produção de Reprodução e de Produção de Antiprodução. De acordo com as 
características de cada um desses Processos, a Produção opera com todas as 
modalidades de Determinismo conhecidas. Mas é na Produção de Produção que 
apresenta suas novidades mais insólitas, pensadas com originais derivações, 
Determinismo Subatômico, Quântico, etc. Recordemos apenas algumas formas de 
Determinismo tais como linear, circular, espiral, interacional, fatorial, estrutural, 
dialético, probabilístico, organísmico, teleológico, aleatório, etc. Com respeito à 
Causalidade, recordemos que é Conveniente diferenciar: a) a Causação (que se refere 
à conexão causal geral e particular); b) o Princípio Causal, que é o enunciado da 
Causação como Lei Causal (a mesma causa produz sempre o mesmo efeito) e enuncia 
a forma do vínculo causal; c) o Determinismo Causal, que afirma a validade geral do 
Princípio Causal, ou seja, que TUDO ocorre de acordo com o Princípio Causal. 
O conceito de Produção não se reduz à Causação, nem ao Princípio, nem ao 
Determinismo Causal, ainda que, como di"zíamos, os inclui em alguns de seus 
processos. 
Em geral, a categoria antiga e clássica de Causa era própria do pensamento 
mítico, místico e teológico, havendo sido substituída na Modernidade pela Lei e na 
Esquizoanálise pela Produção. 
Se tomamos como paradigma o termo Criação, veremos que se costuma 
analisá-la em quatro sentidos: 
 
1. Produção Humana de algo a partir de uma realidade preexistente, mas de tal forma 
 74 
que o produzido não se encontra necessariamente nessa realidade prévia. 
2. Produção Natural de algo preexistente, mas sem que o efeito esteja necessariamente 
incluído na causa, ou sem que haja necessidade de tal efeito. 
3. Produção Divina de algo a partir de uma Realidade preexistente que pode ser um 
Caos, ou um Cosmos que teve como origem um Caos prévio. 
4. Produção Divina de algo a partir do Nada ou Creatio Ex Nihilo. 
 
Para muitos filósofos gregos, aCriação era pensada como um ato de um 
Fazedor finito produtor de coisas finitas. O mesmo atuava por procedimentos que 
eram, enunciados por analogia com diversas produções humanas (Demiurgo). Para 
outros, a Criação é pensada como a produção de algo por parte de um Ser Superior (O 
Uno) que se translada e degrada em sua obra (Emanação) ou cuja natureza imutável é 
comunicada por inteiro a várias pessoas ou produtos "à sua imagem e semelhança" 
(Procissão). Quando nesse procedimento, a parte de Si, preexistente ou não, que o Ser 
Superior delega, translada-se como forças energéticas, o faz pela Irradiação , sem 
perder nada de sua própria substância. Quando o Ser Superior opera sobre uma 
matéria já existente modificando-a, o faz por Transformação. Quando as criações do 
Ser Superior são entendidas como um ato de pensamento ou de discurso em que 
Aquele é considerado como um Sujeito emissor, se diz que se Expressa em seus 
produtos ou efeitos, ou que se torna visível ou inteligível neles (Manifestação), ou 
que envolve a apresentação ou que envia uma certa delegação (Representação), ou é 
uma abstração que se materializa (Plasmação). 
Para a Teologia Negativa, pejo contrário, Deus se manifesta por sua 
Ausência em suas Obras. 
Em todos esses processos criativos, há um vínculo de relativa exterioridade 
ou uma sucessão de antecedência e conseqüência entre o Criador e o Criado. Para 
filósofos como Guillermo de Occam e Espinoza, 
 
há um contato direto, imediato e permanente entre ambos os termos, ou seja, uma 
imanência entre o Criador e o Criado, sendo a criação um ato contínuo (Panteísmo). 
Para boa parte da tradição judaico-cristã, a Produção por Criação não pode 
ser entendida com nenhuma das analogias racionais das que nos valemos para pensá-la 
 75 
e só pode ser acedida por Revelação. Trata-se de um Ato de um Ser separado e 
diferente de suas obras, as quais se extraem do Nada, em que não preexistiam. Seja 
que se trate de um ato pontual ou contínuo, o mesmo não atua por nenhum dos meios 
e procedimentos conhecidos. Pelo contrário, as produções naturais e humanas podem 
ser entendidas como quase-criações, ou como réplicas imperfeitas e limitadas da 
Criação Divina. 
Em suma: o que trato de destacar nesta revisão se pode resumir dizendo-se 
que, na Esquizoanálise, a Idéia de Produção conceitualiza uma MULTIPLICIDADE 
de processos pelos quais toda a realidade se realiza a si mesma como auto-criação 
permanente, ou seja, que é seu próprio agente, seus próprios meios e seus 
próprios produtos. Entre tais efeitos estão incluídas as realidades transcendentes, 
míticas, mágicas, misticas e teológicas, assim como as naturais, as subjetivas, as 
sociais e as técnicas. 
É a Produção, dita nesse sentido, o que produz "de fato", e produz os 
conceitos para pensar, "de direito", a "Criatividade" e as "Criações" ultramundanas... 
E NÃO O INVERSO. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 76 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
REALIDADE E PRODUÇÃO* 
 
 
Para compreender a importância e o lugar do conceito de Produção na obra 
 77 
de Deleuze e Guattari, é preciso ir introduzindo alguns outros conceitos que são seus 
atributos e propriedades. O principal, por ora, é entender que realidade é "tudo" que 
há e existe (Natureza, Sociedade, Subjetividade, Parque Maquínico), mas com os 
seguintes agregados. Para Deleuze e Guattari, a realidade última não consiste nas 
citadas categorias de Ser e de Existir , senão no Ser do Devir. Se na ontologia antiga, 
clássica e moderna dominante, a essência da Realidade é pensada como o Ser (já que 
o mesmo é entendido como eternamente imóvel e igual a si mesmo, Idêntico), ou 
seja, que lhe admita alguma transformação ou movimento (O Ser que passa a existir 
nos Entes ou o Ser que devém), em Deleuze e Guattari se afirma que o Ser é Devir 
(pura diferença, permanente movimento e mudança). Em conseqüência, para 
Deleuze e Guattari, a "medula" da realidade é devir, a realidade está em incessante 
realização e essa realização recebe o nome de produção. 
Mas como tal produção é Autoprodução, ou seja, não é gerada por nenhuma 
entidade exterior à realidade mesma, diz-se que é imanente. O termo Imanência tem 
outros valores na obra de Deleuze e Guattari, mas esse primeiro sentido é o mais 
importante. 
Imanente é um conceito que se opõe radicalmente a Transcendente. 
Transcendente é um termo que admite vários significados, mas o que interessa no 
sentido de sua oposição com Imanente, consiste em que Transcendente se diz como 
sendo "superior" a Imanente, em especial no que se refere à superioridade de toda e 
qualquer entidade divina, sobrenatural, ultraterrena, etc., supostamente criadora, 
com respeito ao criado por ela. 
A idéia é que a divindade transcende o criador, está "mais além", 
"sobressai" e, mais ainda: DEUS É TRANSCENDÊNCIA 
 
 
 
• Segunda aula do Curso Âmago. 
Uma dessas significações é particularmente importante. Refiro-me à que diz que o 
Mundo é essencialmente incompleto, que lhe falta Deus. Essa concepção admite 
variedades do tipo de que "entre Deus e o Mundo existe um abismo intransponível", 
ou que existem "graus de transcendência do Mundo e do Homem que os aproximam 
 78 
de Deus". 
Uma modalidade extrema da Transcendência Absoluta, que é a da Teologia 
Negativa (contrária à crença comum de que "Deus está em todas as partes"), é a que 
sustenta que o Ser e a Existência de Deus se definem por sua ausência, ou seja, 
porque "não está presente em nenhuma parte do Mundo". 
Contudo, é preciso recordar que os pensadores panteístas afirmavam que 
Deus é "Causa Imanente de todas as coisas", Deus é sua obra; ou seja, sustentam a 
Identidade entre o Criador e o criado. Essa posição já pode ser considerada um 
antecedente do Materialismo Imanentista Produtivo de Deleuze e Guattari. Algo 
parecido acontece com várias Filosofias ou Mitologias primitivas e orientais. 
É necessário distinguir entre Transcendente e Transcendental. Apesar de 
haver vários significados, no sentido que nos interessa, Transcendental é uma 
categoria kantiana, compatível com o pensamento de Deleuze e Guattari. Kant, na 
"Crítica da Razão Pura", dedica-se ao empreendimento colossal de estudar quais são 
as condições necessárias que fazem possível o pensamento correto, ou seja, os a 
priori ou pré-requisitos para pensar a Realidade, independentemente de que Realidade 
em particular esteja sendo pensada (p.ex., "Sujeito", "Objeto", etc.). Esses são os 
Transcendentais Kantianos, alguns dos quais são adotados por Deleuze e Guattari. 
Os Transcendentais fazem possível o conhecimento da Experiência do pensador. O 
transcendente é o que pretende pensar mais além de toda experiência, o qual 
Kant reserva para a teologia ou para a religião, e Deleuze e Guattari rejeitam por 
completo. Neste momento, digamos que a Produção em Deleuze e Guattari, na 
medida em que é o único processo de realização da realidade, divide-se em 
Produção de Produção, 
 
 
 
 
Produção de Reprodução, Produção de Consumo e Consumação, e Produção de 
Antiprodução. 
A PRODUÇÃO DE PRODUÇÃO é o processo de incessante geração do 
novo como engendramento de diferenças-singularidades absolutas de toda e 
 79 
qualquer realidade (mais adiante definiremos estes termos). 
A PRODUÇÃO DE REPRODUÇÃO compreende os processos que 
tendem à geração do que já foi produzido e já existe, tal como foi produzido: 
produção do mesmo, repetição. Os mesmos tendem a identificar, selecionar, 
adequar e reprimir as produções a serviço da manutenção rela tiv a de uma 
ordem já produzida. 
A PRODUÇÃO DE CONSUMO compõe os processos de uso, usufruto e 
gozo das realidades produzidas; enquanto produção de consumação consiste, ao 
mesmo tempo, no "apogeu" final e na extinção da trajetória das realidades 
produzidas. 
A PRODUÇÃO DE ANTIPRODUÇÃO pode definir-se como o processo 
de destruiçãodas realidades produzidas ou do impedimento de sua produção. 
 
Todos esses processos são concomitantes, simultâneos, ínsitos, coextensivos 
(termos estes, apenas ilustrativos pedagogicamente)... Imanentes, e, segundo as 
superfícies, territórios ou estratos da realidade da qual se trata, predominam uns 
ou outros. 
Muito sintética e provisoriamente, digamos que as idéias de Deleuze e 
Guattari tendem a inverter o célebre esquema de Platão, segundo o qual a realidade 
estava dividida em três níveis. O nível das Idéias Puras, que são entidades ideais, 
eternas e invariáveis, dotadas fundamentalmente de Identidade Absoluta, ou seja, de 
um Ser imóvel e igual a si mesmo, modelos de Bem e de Virtude . O nível das 
Cópias, que tiveram uma convivência com as idéias puras, as quais lhes davam uma 
imagem e semelhança com elas, a perderam, conservando apenas a imagem e 
perdendo a semelhança. Estas Cópias, que aspiram voltar a Ser como as idéias, 
podem consegui-lo através do processo Maiêutico, que é um diálogo com o Filósofo, 
capaz de fazer- 
 
lhes recuperar seu amor à Verdade e a sua semelhança com as IDÉIAS-MODELOS. 
As que o conseguem serão Boas Copias, as que não, serão Más Cópias. O nível dos 
Simulacros, sombras demoníacas que carecem de todo Ser, de toda Identidade e 
Permanência, de toda Imagem e Semelhança com as Idéias Puras, assim como 
 80 
não aspiram a recuperar a condição de boas cópias. Assim, Platão os considera o 
Mal propriamente dito. 
Como se pode entender, os SIMULACROS SÃO PURO DEVIR , seu fluir 
está produzindo permanentemente o novo absoluto, a Pura Diferença, a pura 
Invenção-Produção. 
A proposta de Deleuze e Guattari, baseada nas idéias do filósofo Nietzsche, 
consiste em inverter ou subverter o platonismo, ou seja, pensar e propiciar uma 
Realidade na qual a dominância seja a dos simulacros (em termos de Deleuze e 
Guattari, A Produção) e não a dos modelos vigentes que tendem à reprodução-do-
que-está-aí, mediante a seleção de Boas Cópias e a destruição das Más Cópias e dos 
Simulacros. 
Para concluir, provisoriamente (há outros conceitos que teremos de deixar 
para as aulas seguintes), digamos que a proposta consiste em questionar e desconstruir 
as superfícies, territórios, estratos e práticas da realidade em que predomina a 
Reprodução e a Antiprodução, para uma transformação revolucionária da 
Realidade. 
Mais adiante veremos os conceitos que definem como estão compostas as 
Superfícies ("regiões") da Realidade, especialmente as que consistem na Pura 
Produção, ou, poderíamos dizer, a reformulação que Deleuze e Guattari fazem do 
conceito de SIMULACROS : Singularidades, Intensidades, Multiplicidades, 
Estidades, Etc. 
 
 
 
 
 
 
 
O DESEJO* 
 
 
 81 
O desejo é um termo de larga tradição no pensamento ocidental. 
Uma linha dominante na Filosofia antiga e clássica distinguia, por exemplo, entre 
DESIDERO, proveniente do substantivo SIDUS, que se referia às estrelas, ao ALTO – 
e a seu plural SIDERA (Constelação), no sentido da configuração cósmica que 
determinaria o DESTINO de cada um .. 
Por esse motivo, era conveniente estar sempre atento ao SIDERA TUS, ou 
sejá, à cuidadosa CON-SIDERAÇÃO ou indagação acerca do que os astros 
reservavam aos homens. Ao contrário, DESIDERARE consistia em algo assim como 
"fechar os olhos" a essa suposta influência – e assumir a própria sorte (Boulesis). Isto 
requeria poder lidar com o vazio (Hormé) e correr o perigo (entre outros) de ser 
SIDERADO, alcançado por um raio. 
Nos Diálogos de Platão, fala-se do célebre Andrógino (que era por sua vez 
homem e mulher) e que, por um acidente, se dividiu, sendo que, a partir desse 
momento, cada metade continuaria eternamente buscando sua outra parte perdida. 
Também nesta Filosofia, a procura da Verdade exigia desprender o Desejo de sua 
atração pelos corpos belos, para poder encaminhá-lo em direção às Idéias Puras. 
Em Espinoza, o DESIDERIUM consistia no impulso provocado pela 
nostalgia correspondente ao objeto de um bom encontro, que foi posteriormente 
perdido. A memória do mesmo gera tristeza e a vontade de recuperá-lo é o DESEJO. 
Mas, essa paixão triste deve ser corrigida pelo Entendimento, que é capaz de analisar 
os novos encontros e escolher, entre eles, os que sejam capazes de aumentar a alegria 
e a potência de nossos corpos, evitando os que nos envenenam ou debilitam. Se, ao 
contrário, substituímos o Entendimento pela Imaginação, nos entregamos a encontros 
fantásticos que obscurecem nossa eleição adequada. 
Em Hegel, o Desejo se diferencia da Consciência e é entendido como uma 
luta de Consciências (Dialética do Amo e do Escravo). O 
• Terceira aula do curso Âmago. 
Desejo aponta o que cada ser deseja por si mesmo sem tomar em consideração o 
Desejo do outro. Coloca-se assim em uma contradição o que deseja ser reconhecido 
pelo outro e não aceita, por sua vez, reconhecê-lo. Esta figura que se estabelece entre 
o Amo e o Escravo é resolvida dialeticamente, porque o Amo que deseja ser 
reconhecido apenas como Senhor da Guerra, não tem medo da Morte, deve aceitar 
 82 
reconhecer o Desejo do Escravo, enquanto este for imprescindível para a vida, por sua 
potência de Trabalho. 
Em geral, pode-se dizer que existe uma oposição entre certas filosofias pré e 
pós socráticas que entendem o Desejo como uma força vinculante própria do mundo 
da Physis (Natureza, Matéria), que se estende ao mundo da Psyche (Alma, Espírito) e 
outras, nas quais o Desejo é pensado como próprio do Sujeito ou do Pensamento, seja 
do Homem ou da Divindade. 
Algo dessa oposição é conservado na polêmica mais moderna entre o 
Mecanicismo (para o qual tudo o que existe pode ser entendido como máquina) e o 
Vitalismo (para o qual tudo que existe pode ser entendido como organismo vivo); ou a 
que opõe diversos Materialismos a diferentes Idealismos e Espiritualismos. Mas, para 
entender o conceito de DESEJO na ESQUIZOANÁLISE é importante partir da 
significação que adquire na Psicanálise Freudiana. 
Freud critica a idéia de que o Sujeito (elemento central da reflexão filosófica 
desde Descartes, assim como em muitas psicologias), seja uma entidade unitária, 
consciente, racional e voluntária. Para Freud, o sujeito está dividido em um território 
consciente-racional-voluntário (sistema pré-consciente – consciente), e outro, 
INCONSCIENTE, INVOLUNTÁRIO e IRRACIONAL, ou dotado de uma 
RACIONALIDADE diferente. A parte pré-consciente – consciente está radicalmente 
separada da inconsciente pela barreira da Repressão (Recalque), de forma tal que o 
sujeito consciente não tem acesso cognoscitivo, nem dorrúnio voluntário sobre esta 
última. 
O Aparato Psíquico freudiano está· instalado sobre o corpo biológico, que é 
seu suporte, mas se diferencia essencialmente dele, em sua natureza e nas leis de seu 
funcionamento. Por outro lado, o citado Aparato é uma espécie de conector entre o 
corpo biológico e os sistemas culturais ou simbólicos, entre os quais se destaca a 
Linguagem. Dito de 
uma maneira simples, o psiquismo é o dispositivo que se encarrega de que o animal 
FALE e por esse meio se socialize. 
As forças que animam o organismo biológico ou INDIVÍDUO são os 
INSTINTOS, tendências estas, indispensáveis à vida, como a fome e a sede (instintos 
de conservação do indivíduo) e o sexo (ou instinto de reprodução da espécie). As 
 83 
exigências dos instintos para serem satisfeitos se denominam NECESSIDADE e a 
privação dos objetos capazes de satisfazê-la é vivida como TENSÃO DE 
NECESSIDADE. Os objetos da necessidade são relativamente fixos, e não se pode 
prescindir deles de forma duradoura, sem comprometer a sobrevivência do indivíduo. 
Os instintos sexuais são relativamente adiáveis. 
As forças que mobilizam o Aparato psíquico são denominadas PULSÕES; 
quando as pulsões se inscrevem ou carregam sistemas de marcas ou de representações 
psíquicas inconscientes recebem o nome– Comitê de Iniciativa pelos 
Novos Espaços da Liberdade, organização que defendeu os extremistas autônomos 
italianos e que lutou pela libertação do intelectual italiano Tony Neri, preso ná Itália, 
por sua. vinculação com as Brigade Rose. Em 1981 foi um dos artífices da 
candidatura do célebre cômico francês Coluche. Foi membro ativíssimo de uma 
grande organização ecológica chamada "Geração Ecológica" e, finalmente, fundador 
da Rede de Alternativa Psiquiátrica, um Movimento com propostas psiquiátricas 
críticas que se estendeu pelo mundo inteiro. 
Bem, tudo isto fala acerca da militância ativa de Guattari no campo, não 
apenas da cultura, mas dos fatos políticos concretos, os principais que agitaram a 
História durante o período de sua juventude e de sua maturidade. Por outro lado, 
Guattari escreveu os seguintes livros: 
 12 
"Psicanálise e Transversalidade", que pertence ao período em que ainda era 
psicanalista; "A Revolução Molecular", um belo livro que resume suas propostas de 
militância política; "O Inconsciente Maquínico", onde expõe a reformulação que fez 
da idéia do inconsciente freudiano; posteriormente escreveu com Gilles Deleuze, o 
grande filósofo e seu amigo pessoal, "O Anti-Édipo", um livro que foi expressivo do 
movimento político e cultural de maio de 68. Fez um estudo com Deleuze sobre o 
escritor Kafka, a quem eles consideram uma das maiores expressões de um gênero 
que seria "uma literatura menor"; depois, escreveu, também com Deleuze, "Mil 
Platôs", que é algo assim como o segundo tomo de "O Anti-Édipo". MaIs 
recentemente ele publicou um livro chamado "Caosmose", e imediatamente antes 
deste, um belo livro sobre Ecologia, chamado "As Três Ecologias", e depois, com 
Gilles Deleuze, "Que é Filosofia?". Isso sem mencionar inúmeros artigos publicados 
em todos estes órgãos que acabamos de expor. Por outra parte, publicou, em 
português, em colaboração com S. Rolnick,o livro "Cartografias do Desejo", e, na 
mesma língua, foi editado um pequeno volume de suas conversas com Lula. 
Então, encontramo-nos aqui evocando a figura de um intelectual, 
praticamente autodidata, que não chegou a cumprir a burocracia de nenhum título 
universitário, que produziu uma quantidade assombrosa de textos, que conseguiu 
relacionar-se de forma produtiva com as figuras mais importantes das últimas duas ou 
três décadas, que militou política e ativamente, tanto nas organizações tradicionais, 
como na maioria das alternativas importantes deste período, e, além do mais, foi 
criador de uma série de movimentos, fundador de uma série de dispositivos políticos 
que tiveram um papel importantíssimo nas tentativas de transformação do que é o 
mundo moderno e pós-moderno. Eu acho que uma figura deste tipo, desta magnitude, 
desta transcendência, estamos acostumados a descrever e a encontrar antes de 1920, 
de 1930. Estas são figuras do porte de um Trotsky, de um Marx, de uma Rosa de 
Luxemburgo, ou um Gramsci, que, desde a Segunda Guerra Mundial, pareciam ter-se 
extinguido. Como também parece ter-se extinguido, de nossas vidas cotidianas, todo o 
impulso – firme, ambicioso, entusiasta para a construção de uma existência 
decididamente mais digna. Por isso, creio que ao se falar neste homem, Guattari, não 
se trata de destacar um ideal, porque a obra de Guattari está toda encaminhada a 
demonstrar que os ideais não 
 13 
existem, que os ideais são "idéias puras", que ninguém tem por que reproduzir ou 
copiar. Por este motivo, não diríamos que Guattari é um ideal, não diríamos que 
Guattari é um modelo, mas sim, diríamos que Guattari é um exemplo de como se 
pode viver de forma que a vida seja a realização de um bem, de uma forma de criação 
e de inspiração, que a vida pós-moderna parece ter proscrito completamente de nosso 
cotidiano. 
Bem, se só fazer este detalhamento da militância política, da produção 
bibliográfica, da atividade científico-societária de Guattari já toma tanto tempo, e 
espero ter dado pelo menos uma imagem panorâmica, como é que nós podemos 
sintetizar essa fulgurante produção teórica de Guattari, difícil de dissociar da sua 
produção unida a Gilles Deleuze? Essa união produtiva com Gilles Deleuze já 
configura uma espécie de milagre intelectual que é absolutamente insólito na História 
da Cultura. Um comentarista francês, um jornalista, afirma que essa obra é uma 
"filosofia a duas cabeças", fórmula que não me parece afortunada. Para começar, creio 
que a obra de Deleuze e Guattari não é uma filosofia. E, por outro lado, justamente o 
fantástico, o assombroso, é que essas obras escritas pelos dois já não são de "duas 
cabeças". Para quem estuda cuidadosamente "O Anti-Édipo", "Mil Platôs", "Que é a 
Filosofia?" (este, o último livro que publicaram), é impossível saber de quem são as 
idéias, se de um ou de outro. Então, é muito mais que criar uma filosofia a duas 
cabeças, é criar um conhecimento, um saber, que faz os dois, não devir um, mas devir 
muitos. É a transformação de um dueto em um enorme coral, em que não apenas não 
se sabe se isto foi escrito por Deleuze e aquilo por Guattari, mas também que neste 
coral cantam as vozes mais revoluciomirias, mais críticas, mais escolhidas de nosso 
século. 
Como se poderia qualificar essa obra? É muito complexo, porque essa obra 
inclui as ciências formais, a matemática, a geometria, a lógica; contém as ciências 
naturais, a física, a química, a biologia; contém as ciências humanas, a antropologia, a 
história, a economia política, a semiótica, a psicanálise, e contém também muitos 
elementos da literatura, da pintura, da música; contém as melhores idéias de toda a 
tradição filosófica do ocidente, preferencialmente um ramo da filosofia representada 
fundamentalmente pelas idéias dos estóicos, de Espinoza, de Nietzsche, de Bergson, 
de Hume. E até contém alguns momentos do discurso cotidiano, do saber popular, do 
senso comum. Então – para 
 14 
quem pretende expô-lo em meia hora –, o que é isto? Se nós a chamamos de filosofia, 
é um pouco injusto e limitativo, a não ser que a comparemos com a ética de Espinoza, 
que é uma filosofia declaradamente feita para se aprender a viver de acordo com ela. É 
uma disciplina? Não é. Porque serve para ser aplicada em qualquer lugar, por qualquer 
pessoa, e com qualquer motivo, sempre que este motivo inclua uma proposta de 
produção, de criação, de invenção, de felicidade, de transformação do mundo. Então, 
o que diremos? Que é uma proposta política? Claro que é uma proposta política. 
Fundamentalmente micropolítica. Mas é uma proposta política que pode ser utilizada 
por um indivíduo, ou por um grupo, por um movimento, em um partido, em uma 
igreja, em um jogo de futebol, em qualquer lugar. Então, não é um discurso 
propriamente político, mas sim, é politicamente utilizável em qualquer de suas 
dimensões. O que resta para dizer é que essas idéias são, segundo a velha fórmula, 
uma concepção do mundo, uma weltanschauung, como diziam os alemães. Eu não 
gostaria de dizer isso na presença de algum guattariano ou deleuziano assumido, 
porque seguramente não estaria de acordo. Uma concepção do mundo é uma série de 
idéias, de crenças, de convicções acerca de como o mundo é e de como devemos nos 
comportar nele. E esta obra de Deleuze e Guattari, embora esteja feita com 
representações, pois está escrita com palavras, não é uma ideologia. Não é um 
pensamento discursivo, mas segundo a própria definição deles, é uma máquina 
fundamentalmente energética, destinada a vibrar e a fazer vibrar aqueles que dela se 
aproximam e a engajá-los em um movimento produtivo, que não passa exatamente 
pelas idéias nem pelas palavras, passa pelos afetos. Por afetar e ser afetado. Passa pela 
capacidade de vibrar em consonância, passa pela capacidade de despertar o 
entusiasmo, a vontade de viver, a vontade de criar. E é curioso que isto que eu acabei 
de dizer, costuma-se dizer, por exemplo, sobre os discursosde DESEJO, assim como quando carregam 
representações pré-conscientes conscientes são chamadas de INTERESSE OU 
ATENÇÃO. 
Um dos modelos freudianos mais simples e antigo para caracterizar o 
DESEJO (embora depois tenha sido corrigido e ampliado), consiste em dizer que se 
trata de uma força que recarrega alucinatoriamente as marcas de memória, deixadas 
pelas primeiras experiências de satisfação da necessidade no psiquismo. Dessa forma, 
se entende que se o objetivo do instinto é a satisfação, o do desejo é o prazer. 
O desejo, assim definido, não tem objeto real, porque seu objeto é uma 
representação imaginária; por outro lado, pode-se afirmar que o desejo pode deslocar-
se de uma "alucinação" para outra, ou seja, que não tem objeto fixo, que a rigor nunca 
se "realiza" ou satisfaz, e que seu objetivo pode ser consideravelmente postergado. 
O Desejo, para ser pseudo-satisfeito ou para tentar infrutiferamente ser 
realizado, precisa ativar uma cena imaginária inconsciente que se defj.ne em 
Psicanálise como FANTASMA. Só mediante uma série de operações e mecanismos, o 
Desejo pode se transformar em interesse ou atenção pré-consciente – consciente e 
animar atos mentais, lingüísticas ou comportamentais úteis e sociáveis. 
Lacan diferenciou com precisão DEMANDA, de DESEJO, e de NECESSIDADE. A 
demanda é uma formulação verbal que leva implícito um pedido de amor e sua 
decepção se chama FRUSTRAÇÃO. O desejo 
anseia a reativação alucinatória de um fantasma, na qual, de uma forma ou de outra, se 
tenta apagar a separação entre sujeito e objeto, restaurando, assim, um estado 
narcísico; sua decepção se chama CASTRAÇÃO. A necessidade exige os objetos 
materiais específicos capazes de satisfazê-la, e sua insatisfação se chama PRIVAÇÃO. 
Em um sujeito psíquico, já não se pode especificar as exigências de sua 
 84 
necessidade (como em um animal) sem considerar a influência que a demanda e o 
desejo têm sobre ela. 
Como pode ser apreciado, tanto no discurso filosófico como no psicanalítico, 
como no sentido comum, é bastante possível encontrar o termo Desejo dotado dos 
seguintes atributos: 1) É uma força impulsora ou animadora de processos em um 
indivíduo-sujeita-pessoa. 2) Essa força induz o sujeito a obter objetos (que ainda que 
também sejam reais ou simbólicos, no fundo, são imaginários, ou seja, que em um 
sentido específico, não existem). 3) Os objetos procurados tentam reencontrar um 
objeto supostamente tido e perdido, ou seja, anseiam reativar a marca com a qual esse 
objeto ficou na memória (consciente ou inconsciente). A vivência que caracteriza o 
Desejo é uma espécie de nostalgia. 4) A aparente obtenção de um objeto de Desejo dá 
um prazer transitório, mas, como o Desejo não tem, a rigor, objeto, é insaciável. 5) 
Tais características fazem com que o Desejo continue interminavelmente sua busca do 
objeto, e que essa procura, processada por outras instâncias do sujeito, se transforme 
em animadora de outros rendimentos psíquicos e culturais superiores. 
Quando Freud descreve as características das instâncias, espaços e sistemas 
pré-conscientes e inconscientes, constata que em cada um deles acontecem 
funcionamentos, que são chamados de PROCESSOS, que funcionam com 
peculiaridades diferentes. 
O pré-consciente – consciente funciona segundo o Processo Secundário. 
Neste funcionamento, as forças animam representações de acordo com uma lógica que 
coincide com a lógica aristotélica, que todos costumamos reconhecer como sendo A 
ÚNICA LÓGICA POSSÍVEL. Esta caracteriza-se pelo Princípio de Identidade (A = 
A), Princípio de Contradição ( A não é = B), Princípio de Terceiro Excluído ( se A não 
é = B e B não é = C, C não é = A). Como se pode ver, no Processo Secundário, existe 
afirmação ou positividade, mas também existe negação ou negatividade. É em função 
disso que existe idéia e sentimento 
de falta, de ausência, de morte, de diferenças quantitativas e qualitativas, de sucessão 
temporal, etc. 
A partir de uma leitura Esquizoanalítica, é possível distinguir na Obra de 
Freud duas caracterizações diversas de Inconsciente e de Processos Primários. Uma 
delas (que chamaremos estrutural ou edipiana), parece mostrar algumas peculiaridades 
 85 
originais que não são as mesmas que as do pré-consciente – consciente e do processo 
secundário, mas também outras bastante parecidas. Por exemplo, A pode ser A e 
NÃO/A, assim como certa Ordem que lhe é própria. Mas também em Freud (em suas 
teorizações a respeito na primeira Tópica e na Segunda – Conceito de Id, Ello ou 
Isso), encontramos uma conceitualização segundo a qual o Inconsciente – Processo 
Primário é DRASTICAMENTE diferente do outro. 
O inconsciente – Id – Processo Primário tem a seguinte composição e 
funcionamento: 
1) Compõe-se de um conjunto infinito de positividades, não tem negação 
nem negatividade. 
2) Não reconhece falta, ausência, nem nostalgia alguma. 
3) Não tem Ordem alguma, é um "caos" que Freud compara a um "caldeirão 
fervente de estímulos". 
4) Cada um de seus elementos constitutivos é uma "unidade" absolutamente 
diferente das outras, que se caracteriza por sua INTENSIDADE (não por 
sua qualidade nem por sua quantidade), sendo que sua intensidade pode 
se definir como a potência que tem de gerar, a partir dela e de suas 
combinações com as outras, algo COMPLETAMENTE NOVO. Essas 
unidades nem "são" nem "existem", são puro devir e pura diferença. 
5) Não funciona de acordo com um tempo cronológico, nem com uma lógica 
aristotélica, nem com nenhuma outra das já conhecidas e aceitas. 
6) Se se quer relacionar esse processo com o DESEJO, só se pode dizer 
(alegoricamente) que seu único "desejo" é o de PRODUZIR O NOVO. 
AGORA ESTAMOS EM MELHORES CONDIÇÕES PARA ENTENDER 
A IDÉIA DE DESEJO DE DELEUZE E GUATTARI: 
1) o Desejo é o que anima um processo que não é próprio de uma instância, 
sistema ou território do 
sujeito, senão da realidade mesma e de sua realização. 
2) esse processo é o que pre-cede (não lógica nem cronologicamente, senão 
ontologicamente) a tudo o que reconhecemos como territórios, ou entidades 
reais circunscritas e definidas (natureza, sociedade, linguagem e, inclusive, 
 86 
sujeitos) . 
3) a este processo, não lhe falta nada, não pode ser completo nem incompleto 
porque não é totalizável , mas sim, infinito, e transcorre intempestiv amente. 
4) este processo está protagonizado por elementos que são: intensidades, 
diferenças , multiplicidades, "estidades" (depois explicaremos estes termos), 
puros. 
5) este processo (que a partir do ponto de vista de que estamos tratando pode ser 
chamado de desejante), "não é outra coisa", "nada mais é", "não é diferente", 
é imanente, com o que em outras aulas conceitualizamos como processo 
produtivo – "essência da realidade e de sua auto-realização permanente" ou ser do 
devir. 
6) Em conseqüência, talvez se possa entender melhor a idéia Esquizoanalítica de 
introduzir o Desejo (assim redefinido) na Produção, e a Produção (redefinida, 
como já fizemos) no Desejo. 
 
A realidade, em especial sua Superfície da Produção, consiste, 
"essencialmente", neste processo Produtivo-Desejante... Desejante-Produtivo . 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
DIFERENÇA E REPETIÇÃO* 
 
 87 
 
 
Nesta aula trataremos de resumir o que na obra de Deleuze e Guattari 
significam os conceitos de Diferença e Repetição, relacionando-os com os de Ser e 
Devir, Desejo e Produção. Pode-se dizer, sinteticamente, que toda a tradição filosófica 
do Ocidente está atravessada pela oposição entre duas categorias, a de Ser e a de 
Devir. Se recordarmos os pré-socráticos, diremos que, para Parmênides, o Ser se 
define como eterno, invariável e idêntico a si mesmo. Em conseqüência, o Ser é igual 
a si mesmo e sua duração se evidencia como a repetição do mesmo. 
Ao contrário, Heráclito sustentava que o Ser devém, ou seja, que flui 
constantemente, de forma tal que "nãopodemos nos banhar duas vezes em um mesmo 
rio". Apesar disso, Heráclito aceita que o Ser tem uma duração e uma continuidade 
que o torna reconhecível através de sua constante variação. Há no Ser algo que se 
mantém igual a si mesmo durante o Devir. 
Diversas tradições mitológicas e religiosas oscilam entre sustentar que tudo 
se repete igual a si mesmo em ciclos temporais de diferente duração, e outras 
insinuam que existem trocas de maior ou menor magnitude, muitas das quais se 
produzem ao acaso. Se recordarmos o que já tratamos com respeito à estratificação 
proposta por Platão, saberemos que as Idéias Puras, que são o Ser, são em número 
limitado, idênticas a si mesmas e se repetem eternamente iguais. As Boas e Más 
Cópias aspiram a recuperar ou alcançar as características das Idéias Puras, sem jamais' 
alcançá-lo plenamente. Por sua vez, os simulacros são Puras Diferenças, sempre 
diversas e carentes de toda identidade, ou seja, são o Puro Devir, e não aspiram à 
identidade, eternidade ou igualdade. 
Demócrito, os Sofistas, os Estóicos e os Epicuristas, cada um a sua maneira, 
apresentam modalidades de categorizar o Devir como 
 
• Quarta aula do curso Âmago. 
prevalecente com respeito ao Ser, especialmente no campo da Physis, que mais ou 
menos corresponde ao que chamaríamos Natureza. 
Dando um grande salto na história da filosofia, digamos que Hegel sustenta a 
idéia de que o Ser, cuja Totalidade é o Espírito Absoluto, protagoniza um processo 
 88 
pelo qual no princípio é o Ser em Si. Este Ser sai de Si e em todos os campos do real 
inicia uma grande trajetória, que se processa de maneira dialética (Afirmação, 
Negação – e Negação da Negação, ou Tese, Antítese e Síntese), para recuperar-se ao 
final, plenamente realizado, como Espírito para Si. Como se vê, em Hegel, o Ser é, 
mas Devém dialeticamente, para concluir sendo plenamente Si Mesmo. 
Com Kierkgaard e os filósofos existencialistas, o Ser continua tendo algo de 
estável e de idêntico, mas devém em um ir-se fazendo a si mesmo constantemente. 
Privilegiam, portanto a Existência e não a Essência. 
Mas é com o Panteísmo Espinoziano (em que o Ser é imanente à Substância 
e se auto-realiza sem parar nunca), assim como no permanente fluir da Vontade de 
Potência em Nietzsche – e na incessante atualização do Virtual em Bergson (que vai 
mais além do Real, do Possível e do Impossível), que podemos dizer que se prepara o 
conceito de Deleuze e Guattari sobre a questão. 
Já dissemos que estes autores tomam principalmente a idéia de Processo 
Primário em Freud e a de Produção como Trabalho Abstrato em Marx. A partir delas 
encontram que a "essência universal" da Realidade é a variação incessante, que o que 
se repete é Diferença Absoluta, o que os leva a afirmar não só que o Ser não é estático, 
nem sequer que devém, senão QUE O SER É O DEVIR. 
A rigor, esse Devir, como geração contínua do Novo Absoluto e da Pura 
Diferença, acontece incessantemente no que eles chamam Superfície da Produção, e 
se manifesta em todos os campos da Realidade com características caóticas. Não 
obstante, devemos recordar que para Deleuze e Guattari, esse Caos produtivo é 
imanente a um Caos ordenado, que é produto da atividade produtiva, ou de outra 
maneira, que a Produção também produz a Reprodução (aquilo que se repete como O 
Mesmo), assim como a Antiprodução (aquilo que destrói o produzido ou impede ou 
seleciona a Produção). Conseqüentemente, a chamada Superfície de Registro detecta, 
localiza e identifica as produções da 
 
Superfície de Produção, reprime o que não conseguira Incorporar, captura o que lhe é 
tolerável e destrói o que poderia exceder sua capacidade de manter-se segundo a 
ordem que ela domina. 
Recordaremos também que isto acontece tanto no nível da subjetividade, 
 89 
como da sociedade, da política, da história, dos sistemas semióticos, da natureza e do 
parque maquínico técnico. A emergência do Novo Absoluto, efeito da Superfície da 
Produção, expressa-o por linhas de fuga que escapam ao controle da Superfície de 
Registro, ou melhor, por estalos, acontecimentos, revoluções e grandes metamorfoses 
dos territórios e estratos da superfície de Registro (em outras palavras, do Instituído, 
Organizado, Estabelecido, etc.) 
A importância destas postulações é de incalculável valor e de difícil 
exposição sintética, mas podemos resumir dizendo que se trata de uma Ontologia que 
fundamenta uma Gnoseologia, uma Ética, uma Estética e, sobretudo, uma Política, ou 
seja, uma orientação de Vida, uma Práxis, isso dito no sentido mais amplo possível. 
O valor Supremo da mesma consiste na certeza de que a "essência" última da 
Realidade é o Retomo da Diferença, a Produção e o Devir e que, conseqüentemente, 
se trata de viver "apostando" na invenção, na "criação" e na luta, ou como diria 
Nietzsche, em "viver perigosamente", se por perigosamente se entende a 
desmistificação da "segurança", da "estabilidade" e da "conservação" do já 
consagrado. 
Nas próximas aulas tentaremos ver como está composta essa Superfície da 
Produção, "por quê" a de Registro tende ao Controle, e dentro de certos limites muito 
precisos, "como se pode fazer para viver inventivamente" . 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 90 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
O MAQUÍNICO* 
 
 
Na última aula do semestre anterior, deixamos colocada a denominada 
 91 
Tópica da Realidade, ou seja, uma das cartografias que Deleuze e Guattari elaboraram 
para dar conta da Realidade. Recordamos que se tratava de três superfícies, que, para 
fins pedagógicos, desenhamos separadamente, mas que, a rigor, são imanentes entre 
si: Superfície da Produção, de Registro-Controle e de ConsumoConsumação. 
Dissemos que os processos nessas três superfícies eram diferentes, ou, dito 
de outra maneira, que os predominantes em cada uma das superfícies tinham 
prevalência de Produção, de Reprodução e de Antiprodução. O que hoje começarei a 
fazer é uma tentativa de caracterizar os "elementos" (por assim dizer) que compõem o 
processo da Superfície de Produção. Isto de "elementos" é apenas uma concessão 
pedagógica, porque quando virmos os sinônimos ou as diversas maneiras de definir 
esses elementos, compreenderemos que se trata mais de movimentos que de 
elementos, ou seja, são "unidades" que não se podem "fixar" ou "deter" como o 
faríamos com uma fotografia. 
Em outros momentos destas aulas nos referimos à polêmica entre duas 
correntes filosóficas, o Vitalismo e o Mecanicismo. Falamos que cada uma delas 
tratava de propor um Modelo Universal para as diferentes regiões e componentes da 
Realidade. Para os Mecanicistas, o Modelo era a Máquina, e dada a época em que essa 
corrente teve sucesso, tratava-se da Máquina Mecânica (a vapor, p.ex.). De sua parte, 
os Vitalistas diziam que o Modelo geral devia ser o de um Organismo Vivo, tal como 
a Biologia dos Séculos XVIII-IX os havia estudado. 
Apesar de uma série de diferenças que justificavam a discussão, ocorria que, 
considerados no nível "macroscópico", estes Modelos tinham muito em comum. 
Ambos postulavam que uma Unidade, mecânica ou orgânica, estava composta de 
peças ou de órgãos que tinham que ter um contato entre si, que transmitisse o 
movimento e as funções, e devia ter limites externos bem definidos, que permitissem 
separar essa 
 
*Quinta aula do curso Âmago 
unidade de outras similares ou do resto da realidade. Essa unidade devia estar animada 
por uma energia-força, que no caso das máquinas mecânicas podia ser, p.ex., a da 
combustão, a da explosão, etc. Por seu lado, o Vitalismo dizia que essa energia-força 
estava dada por um "Elã" (expressão tomada de Bergson), ou seja, uma energia vital que 
 92 
era impulsora de todo movimento e troca. 
Como também é óbvio, p.ex., que uma máquina mecânica não era produzida 
pela conjugação de duas máquinas iguais a ela. Entretanto,um organismo biológico 
superior, p.ex., um mamífero, geralmente era engendrado pela cópula entre dois animais 
muito similares a ele. 
Para o Mecanicismo, os organismos vivos eram tão máquinas como as demais, 
apenas mais complexos, e para o Vitalismo, no caso do Animal Superior de todas as 
espécies, o Homem, as máquinas eram prolongações de seus membros ou de suas 
funções mentais. 
 Deleuze e Guattari, estudando as contribuições de várias filosofias, constroem 
uma proposta que reúne e transforma as duas posições antes descritas. Também incluem 
nessa revisão as contribuições de todas as disciplinas constituídas, na medida em que as 
mesmas começam a "descobrir", em seus respectivos campos, o que se passou a chamar 
"Novo Paradigma". 
Em geral, este consiste em que, no nível microscópico ou submicroscópico das 
respectivas materialidades com as quais trabalham, aparece uma série de insuspeitávies 
peculiaridades. Resumindo ao máximo, as mesmas passam pelo fato de que, subjazendo 
a todas as "entidades" "macro" que eles investigam, encontram-se com um "Caos" 
"preliminar" de átomos ou partículas, onde não têm vigência as leis do determinismo 
causal, e que está composto por minúsculos "elementos" que se combinam a 
velocidades enormes, que se convertem de matéria em energia e o inverso, e que 
comportam uma força de auto-produção que lhes permite gerar as entidades "macro" 
que compõem. Em termos filosóficos, poder-se-la dizer que se trata de um Materialismo 
Neo-Funcionalista Molecular. Basicamente consiste em que, se tomarmos as unidades 
naturais, viventes ou não – e as máquinas de qualquer característica, a nível molecular 
ou "micro", chega-se à conclusão de que o "Modelo" da Realidade consiste em que esta 
é constituída por minúsculas "Máquinas" que se formam por si mesmas ao mesmo 
tempo em que funcionam, que estão completamente 
dispersas, embora conectadas por sínteses peculiares, e que ainda não estão 
caracterizadas como as especificidades que vão vir a formar no nível "macro". 
Esses "elementos" micro não são perceptíveis nem pensáveis em termos de 
extensão, quantidade e qualidade, como o são as entidades "Macro". São pensáveis e 
 93 
detectáveis porque dotadas de uma série de propriedades que fomos estudando no 
curso destas aulas, a partir de uma série de conceitos especulativos filosóficos. São 
Puras Intensidades, são Multiplicidades, são Hecceidades ou Estidades, são Devires, 
são Fluxos. 
Deleuze e Guattari as designam pelo nome de Máquinas Desejantes, que 
estão dotadas de todas as peculiaridades que os conceitos antes expostos detêm. 
Essa denominação de máquinas desejantes está tomada de um estudioso das 
esculturas modernas animadas, chamadas gadgets, que são maquininhas elétricas ou 
eletrônicas, organizadas ciberneticamente, cujo funcionamento persegue apenas um 
efeito estético. Entre essas maquininhas estão algumas denominadas "Celibes" ou 
também "Máquinas de não-fazer-nada", etc. Nestas máquinas o traço essencial é que 
funcionam apenas "por funcionar", ou seja, o funcionar é seu único e último sentido. 
Mas Deleuze e Guattari vêem no funcionamento das Micro-Máquinas que 
compõem essa Realidade pluripotencial – "Pré-liminar" à sua integração molar, que 
constitui as unidades "Macro", o processo de "Realização da Realidade". Algumas das 
características desse Processo são as do Processo Primário descoberto por Freud no 
Inconsciente do Sujeito Psíquico, a que já nos referimos. Daí provém a denominação 
de Desejantes (que não tem nada a ver com que "algo" ou "alguém" deseje seu 
funcionamento), cujo único sentido é a Produção. 
As máquinas desejantes podem diferenciar-se em Máquinas Fontes (que 
geram um fluxo energético) e Máquinas Órgão (que o cortam). As máquinas 
Desejantes se conectam entre si (baseados nessas duas operações de Fluxo e Corte), 
em infinitas direções e combinações, segundo sínteses diversas, que acabam dando os 
processos macro de Produção, Registro e Consumação-Consumo. 
Estas sínteses se realizam sobre uma superfície chamada "Corpo sem 
Órgãos", que veremos nas aulas seguintes. Por hora,só deixaremos colocadas as 
denominações de tais sínteses: Síntese Conectiva de 
 
Produção, Síntese Disjuntiva de Registro e Síntese Conjuntiva de Consumo-
Consumação. O processo Produtivo que protagonizam as Máquinas Desejantes é 
denominado Processo Esquizoonte, em homenagem ao funcionamento "psíquico" dos 
esquizofrênicos, mas entendido não como uma entidade nosográfica já deteriorada e 
 94 
doente que a Psiquiatria classifica e trata, mas sim considerado como um 
funcionamento que, pelo menos a princípio, se dá na experiência e vivência 
esquizofrênica. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
AS MÁQUINAS DESEJANTES* 
 
 
 95 
Em aulas anteriores estivemos falando das três superfícies que compõem a 
Tópica da Realidade, segundo Deleuze e Guattari. Também conversamos em 
diferentes contextos sobre alguns temas que são típicos destes autores. Nesta 
oportunidade tentaremos uma introdução acerca dos "elementos" que integram a 
superfície da Produção. Estes elementos, de difícil compreensão, apreendem as 
características que comentamos acerca da diferença, dos simulacros, das intensidades, 
dos devires, das estidades, das multiplicidades, etc. De forma que, apesar de ser 
complicado definir os mencionados elementos, não o é tanto se recordarmos todos 
esses termos explicados em aulas anteriores. 
A Superfície da Produção está "povoada" por duas "entidades" (muito 
estranhas por certo). Elas são as MÁQUINAS DESEJANTES e o CORPO SEM 
ÓRGÃOS. As MÁQUINAS DESEJANTES (MD) são elementos de regime binário e 
de "natureza" intensiva e singular. São multiplicidades cuja combinação se efetua 
como sendo tudo o que compõe a realidade. Nesse sentido é que se pode dizer que são 
"Pré": "Pré-naturais", "Pré-sociais", "Pré-subjetivas", "Pré-semióticas", "Pré-
Maquinárias ou Tecnológicas". 
Esse termo foi tomado de um livro de M. Courreges, um especialista em 
crítica Estética, e se refere às esculturas modernas e pósmodernas, que freqüentemente 
se formam com maquininhas cibernéticas, animadas elétrica ou eletronicamente. Um 
nome que essas maquininhas recebem é o de gadgets. Entre essas esculturas estão 
algumas muito curiosas, como "A máquina de não fazer nada", "A máquina Celibe", 
etc. O interessante dessas máquinas é que, usando elementos da tecnologia moderna, 
produzem exclusivamente um efeito estético, que entre outras peculiaridades possui a 
capacidade de desvinculá-las por completo de suas finalidades "práticas" ou utilitárias 
no mundo contemporâneo. Por outro lado, algumas delas são capazes de construir-se 
ou destruir-se a si mesmas, de "formar-se" ou de "transformar-se" ao mesmo tempo 
em que funcionam. 
 
• Sexta aula do Curso Âmago 
É preciso, para pensar as MD, tratar de descartar por completo as imagens de 
forma, estrutura, conteúdo e função que todos evocamos quando pensamos em uma 
máquina qualquer de nossa cultura. As MD se dividem em dois tipos: máquina "fonte" 
 96 
e máquina "órgão". A máquina fonte extrai e emite um fluxo "energético", a máquina 
órgão o corta. Mas a máquina que funcionou como cortadora de fluxo na primeira 
combinação pode, por sua vez, converter-se em uma máquina fonte de fluxo em uma 
segunda combinação. As MD podem, então, combinar-se em todas as direções e em 
um tempo que é próprio a elas e que não se confunde com o tempo cronológico, nem 
com o retroativo. Como se pode imaginar, as Máquinas Desejantes formam um 
Rizoma (rede vegetal da qual já falamos). A rigor, sua conceituação pode ser 
entendida como uma tentativa de pensar modalidades de Ordem próprias do Caos, 
sobretudo apontando que desse Caos vão surgir todas as "entidades claramente 
ordenadas" das Superfícies de Registro-Controle e de Consumação-Consumo, que já 
conhecemos e que habituamos a considerarcomo sendo a realidade em si mesma. 
As Máquinas Desejantes, na Superfície da Produção, se acoplam pela Síntese 
Conectiva de Produção e é por meio delas que geram todas as realidades "pré" àsquais 
já nos referimos. Esse regime de acoplamento pode ser verbalizado por meio da 
conjunção "E". É isto "E" o outro "E" os demais, etc. Também cada MD é, assim, uma 
singularidade, e integra um poliverso infinito de diferenças positivas absolutas. Não só 
que o que as une são fluxos, mas que elas também se formam e se transformam na 
medida em que funcionam (devires). Seu conjunto, então, integra esse poliverso 
aberto de infinitos todos, a que cada nova parte produzida se agrega como "uma parte 
a mais". Nesta superfície é que se dá o tipo de "organização" que Deleuze e Guattari 
denominam "Molecular" ou "Micro". 
Este tipo não tem a ver exatamente com "o pequeno", entendido como uma 
dimensão extensiva e temporal da Superfície de Registro. Mas são as mesmas 
máquinas que, quando integram a Superfície de RegistroConsumo, fazem-no 
mudando seu regime, por meio de Síntese Disjuntiva, pelas quais geram territórios, 
meios, estratos, assim como todas as entidades que conhecemos clara e 
separadamente. Neste plano, as sínteses funcionam separada e optativamente. As 
entidades da 
 
Superfície de Registro são "ou" isto, "ou" aquilo, "ou"... assim sucessivamente. 
Esta conceituação está tomada da Filosofia de Kant. Kant disse que a 
entidade suprema desta Superfície é Deus, como "Senhor do Silogismo Disjuntivo" 
 97 
que é o recurso básico para pensar as coisas do mundo separada e ordenadamente. 
Algo similar ocorre na Superfície de Consumação-Consumo, em que as MD 
funcionam em base às Sínteses Conjuntivas. Nela, as entidades chegam à sua 
realização total ou a seu consumo umas pelas outras, o qual fecha seu ciclo. Este nível, 
das Superfícies de Registro-Controle e de Consumação-Consumo é o "Macro" ou 
"Molar", que não tem a ver, necessariamente, com o que é "grande", mas com um 
modo de organização dos conjuntos chamados, na física, "Molares", que obedecem às 
leis dos grandes números, assim como a um determinismo causal preciso. 
As MD na Superfície de Produção se dispõem sobre um "sustentáculo" (ou 
poderíamos dizer, um "não-espaço") denominado Corpo sem Órgãos. O CsOs (Corpo 
Sem Orgãos) é o "Grau Zero das Intensidades", o "improdutivo", o "incriado" da 
Produção. Seu conceito está construído a partir das Idéias previstas pelas religiões 
hinduístas, que falam de um "Ovo Tântrico". Também contribui a mitologia de uma 
comunidade primitiva, os Dogon, que falam do Universo como um "Ovo Cósmico". 
Finalmente, intervêm também os descobrimentos da Biologia Molecular Moderna, 
que fala do Ovo Genético. Todo estes "ovos" têm a peculiaridade de gerar tudo, mas 
de estar, em si mesmos, compostos não de "partes" morfologicamente determináveis, 
mas de "eixos", "limiares", "graus" de força gerativa pluripotente. Dessa maneira, é 
impossível saber que "região" destes virá gerar cada parte das realidades circunscritas 
que são capazes de produzir. 
Como veremos mais adiante, as relações entre o CsOs e as MD são 
complexas (atração, repulsão). De acordo com o predomínio de algumas delas, o 
papel do CsOs na Superfície de Produção é diferente da de Registro. Na Superfície de 
Registro, o CsOs funciona como "Corpo Cheio", uma entidade que se apropria de toda 
a Produção e a faz aparecer como gerada exclusivamente por ele de uma maneira 
milagrosa. O CsOs não se opõe conceitualmente ao Corpo (biológico, p.ex.) nem aos 
orgãos, senão ao "organismo", ou seja, ao Corpo já ordenado da Superfície de 
Registro. 
 
As relações na Superfície de Produção entre o CsOs e as MD concluem por 
produzir tudo o que existe. No nível da Superfície de Registro essas produções se 
evidericiam como "linhas de fuga", "desterritorializações" e "acontecimentos" de 
 98 
qualquer "natureza", que são os responsáveis por todas as mudanças revolucionárias-
desejantes que metamorfoseiam a realidade tal como podemos vê-la na Superfície de 
Registro-Controle. Essas "novidades" radicais se apresentam como "Individuações", 
ou seja, como novas entidades que não pertencem a nenhuma espécie conhecida. São 
o "anômalo", o que não é nem normal, nem anormal. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
CORPO SEM ÓRGÃOS* 
 
 99 
 
 
Temos falado prevalentemente, nas aulas anteriores, das Máquinas 
Desejantes (MD); nesta, trataremos sinteticamente do Corpo sem Órgãos (CsOs). 
O CsOs, usando uma metáfora pedagógica, é uma espécie de "suporte" das 
MD. Também pode-se dizer, mais corretamente, que é um Pré-plano sobre o qual se 
agenciam as MD, é dizer, sobre o qual efetuam suas sínteses. 
Cada dispositivo ou agenciamento, tanto quanto grandes configurações como 
o Estado, se "maquinam" sobre um CsOs. Cada uma delas constrói um, e ainda que 
Deleuze e Guattari sustenham que pode haver um CsOs que reúne a todos, esse ponto 
não parece inteiramente esclarecido. Também se diz que o CsOs é o "grau zero" de 
intensidade. Talvez essa afirmação possa ser entendida como significando que o CsOs 
é o que ainda não começou a desdobrar-se como MD. 
Em princípio, a Idéia de CsOs está tomada de um poema de Artaud, no qual 
o genial autor critica tudo aquilo que seja organismo, dito no sentido de organizado. 
Refere-se principalmente ao corpo biopsíquico, mas parece aludir a tudo o que é 
ordenado e organizado. Artaud postula construir um corpo composto de "sangue e de 
ossos"; obviamente, é um corpo impossível, mas contribui para sugerir a Idéia de que 
existe um corpo potencial, que não é inimigo dos órgãos, senão da organização, 
considerada como inapelável ou única. 
Em segunda instância, Deleuze e Guattari tomam a Idéia de CsOs das 
religiões hinduístas (Corpo Tântrico) e da mitologia da comunidade Dogon (Ovo 
Cósmico). Estes "corpos" se caracterizam por estarem percorridos por fluxos, que 
cursam de acordo com eixos, que se distribuem em gradientes e que formam áreas 
energéticas móveis caracterizadas por graus de intensidade. É a partir desses "ovos" 
que vai diferenciar-se tudo aquilo que integra o que chamamos "Realidade", mas isso 
não implica que no nível do Ovo vigore propriamente uma indiferenciação. Pelo 
contrário, as diferenças intensivas do CsOs são as 
 
• Sétima aula do Curso Âmago 
puras e reais diferenças, apenas não estão dadas nas dimensões da temporal idade e da 
espacial idade, senão na dimensão da potência. 
 100 
O ovo genético também pode ser entendido dessa maneira; apesar de que o 
repertório genético já tenha sido identificado e classificado pontualmente, em SEU 
CONJUNTO, opera como um CsOs, dado que, por exemplo, a partir dele, não se pode 
determinar que "parte" do ovo irá dar em cada órgão ou membro. Primeiro se 
diferencia, digamos, um braço, e só depois se decide se haverá de ser direito ou 
esquerdo. Também o funcionamento do Cérebro, p.ex., pode ser entendido desta 
maneira. 
Na Filosofia de Espinoza, a Substância é o conceito que parece reunir 
características similares. A Substância é geradora de tudo o que É. Ela tem infinitos 
atributos (que são traços que definem a Substância), que se vão realizar como um 
número limitado de Modos. A Substância é onipotente, e nela estão potencialmente 
incluídas suas produções. Por isso é que se qualifica a Filosofia de Espinoza como 
panteísta, dado que uma Substância tem os mesmos poderes que Deus, é Deus. 
O filósofo Leibniz afirma que a realidade está composta por unidades 
incomunicáveis entre si, cada uma das quais "vê o mundo" desde seu "ponto de vista". 
Dentro dessa pluralidade de mundos (mundos a-paralelos) vão adquirir realidade os 
mundos que serão "compossíveis" ou "co-possíveis". A unidade dessas mônadas se 
faz em Deus, Mônada das mônadas, que é quem decide qual dos mundos 
compossíveis é o melhor. As mônadas estão distribuídasem capas, cada uma delas 
infinitamente dobrada. Deleuze tem estudado como a arte Barroca tem uma 
modalidade típica perfeitamente articulável com a Filosofia de Leibniz. 
O filósofo Kant escreveu que a Matéria tem quantidade e qualidade, mas que 
existe uma "terceira dimensão" que são as "qualidades intensivas". É o que Deleuze e 
Guattari tomam para postular as Intensidades Puras, que só se realizam como 
"individuações" inusitadas, cuja originalidade só pode ser medida como um "grau", 
por exemplo, uma cor, ou um som, ou um verão. Cada uma dessas realizações tem 
uma singularidade que só pode ser identificada como sendo um "grau de si mesma". 
Nietzsche sustentava que a toda realidade subjaz uma capacidade, que 
denomina Vontade de Potência. Não se trata de que esta 
 
Vontade seja de algum Sujeito. A Vontade de Potência pode até constituir sujeitos, 
animais, etc. A Vontade de Potência se distribui em Forças (Forças Ativas e Forças 
 101 
Reativas). As Forças Ativas tendem a gerar o Novo. As Forças Reativas se opõem a 
esta produtividade. Nietzsche faz uma formidável crítica dos valores vigentes no 
Ocidente, especialmente na medida em que os considera como expressões do triunfo 
das Forças Reativas que podem conduzir a Vontade de Potência ao extremo de ser V 
ontade de "Nada". Propõe uma trans-valoração de todos os valores a serviço dessa 
invenção e dessa Vida. 
Do filósofo Bergson já temos falado em várias oportunidades. Sua idéia é 
que a Realidade é mais que o Real (admitido por todos), o Possível e o Impossível. 
Diz que o Impossível se define como o que não é Possível, e este se define como o 
que "pode vir a ser Real", quer dizer, define-se desde o Real. Real e Possível têm 
assim um mesmo conceito. Mas a Realidade está composta também pelo Virtual, ou 
seja, pelo que ainda não se atualizou. Sendo que, ao atualizar-se, transforma 
radicalmente o que se considerava Real, Possível e Impossível. Acontece que o 
Virtual, ainda sendo a parte mais importante da Realidade, é impensável, 
impredizível, dado que tem outro conceito que o de Real, o de Possível, etc. 
Como se vê, todas estas Idéias são aplicáveis à construção do conceito de 
CsOs. Em suma, o CsOs, em Deleuze e Guattari, é outro dos recursos para tratar de 
pensar o Caos e sua relação com o Cosmos. O Caos vai ser pensado como 
positividade, e não apenas como falta ou ausência das características do Cosmos-
Ordem. 
O CsOs, no nível da Superfície de Registro-Controle, vai ser modulado 
como Corpo Cheio, ao qual nos referiremos, mais detalhadamente, nas aulas 
seguintes. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 102 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SUPERFÍCIES* 
 103 
 
 
Nas aulas anteriores temos deixado caracterizadas as Superfícies de 
Produção, de Registro Controle e de Consumo Consumação. 
Temos explicado como estas superfícies são imanentes entre si e 
compreendem tudo o que pode ser incluído na Realidade. 
Nas diversas Superfícies transcorrem diferentes Processos, ou seja, o 
andamento ou movimento próprio de cada uma delas. 
Os diferentes Processos também são imanentes entre si, de maneira que, no 
nível de alguns de seus efeitos circunscritos, o que se pode detectar é o predomínio 
relativo de um ou outro dos Processos com suas respectivas peculiaridades. 
Na Superfície da Produção, acontece um Funcionamento que é próprio do 
chamado Processo Produtivo-Desejante. Os "elementos" que estão em jogo nesse 
processo, como já é sabido, são as Máquinas Desejantes e o Corpo sem Órgãos. O 
processo Produtivo-Desejante corresponde a uma dimensão que Deleuze e Guattari 
chamam de Molecular. A rigor, à nossa maneira de ver, o termo Molecular não é 
exatamente o mais apropriado, talvez fosse melhor falar de "subatômico" ou de 
"particulário". Esse processo reúne certas características que são próprias do mundo 
das partículas subatômicas (elétron, neutrino, neutron, próton, etc.). De toda forma, 
nessa dimensão se operam fenômenos que são inteiramente insólitos, tanto para a 
Macrofísica, como para o observador leigo. É sabido que, a essa escala, é impossível 
determinar, ao mesmo tempo, a posição e a velocidade de uma partícula (princípio de 
Indeterminação de Heisemberg). É conhecido que nessa dimensão pode-se constar a 
transformação entre massa material e energia, a existência de "paquetes" de energia, 
chamados "Quantas", a coexistência e interconversibilidade de "corpúsculos" e de 
"ondas", etc. Também a experimentação com esses sub-microelementos permite 
afirmar que os mesmos "se formam ao mesmo tempo em que funcionam ou operam" e 
que "carecem" da especificidade que adquirem nos Conjuntos Molares da Superfície 
de Registro-Controle ou de Consumo-Consumação. Neste 
 
*Oitava aula do curso Âmago 
nível Molecular, existem super-catalisadores (ou seja, elementos tais como a chamada, 
 104 
em Biologia Molecular, "Proteína Alostérica", que é capaz de propiciar combinações 
entre elementos que não têm, normalmente, afinidade química, de maneira que essas 
uniões podem produzir substâncias superiores que são "quimicamente impossíveis". 
Outra característica surpreendente do Processo Molecular é que, nos espaços 
em que este se desenvolve, pode se dar um fenômeno local, que gere outro que lhe é 
correlativo a uma considerável distância, sem que se possa determinar qual é o 
veículo ou o substra to condutor dessa influência causal (ação à distância). Por 
outra parte, as conexões entre os mencionados "elementos" são realizadas em todas as 
direções e de maneira incessante, de forma tal que estão produzindo infinitas 
novidades materiais sem interrupção. 
Por sua parte, o Processo Molar está regido pelo que se conhece em 
estatística como leis dos Grandes Números. Como são os Processos próprios da 
Superfície de Registro-Controle e de Consumo-Consumação, os "elementos" se 
agrupam para constituir as unidades amplamente conhecidas como constituindo as 
partes dos grandes conjuntos molares com suas respectivas especificidades (Naturais, 
Sociais, Subjetivas, Maquinais ou Tecnológicas). Neste processo regem perfeitamente 
as leis da causalidade e do determinismo (Causalidade Linear, Monocausalidade, 
Policausalidade, Causalidade Circular, Interacional, Fatorial, Dialética, etc.). Esses 
conjuntos são totalizáveis e reconhecem limites bem circunscritos. Os conjuntos 
podem estar delimitados como Estratos, Substratos, Paraestratos, Territórios, etc. 
Como se vê, os termos usados são de origem Geológica e Etológica. O andamento do 
processo Molar, no nível de cada uma das entidades circunscritas da Superfície de 
Registro-Controle, nós o temos denominado Função. As funções são eminentemente 
reprodutivas e antiprodutivas, tanto quanto os funcionamentos moleculares são 
produtivos. 
Ao funcionamento do Molecular, Deleuze e Guattari o chamam Inconsciente 
(pensamos que como alegoria do Sistema Inconsciente do Aparato Psíquico, segundo 
a Psicanálise). Cada dispositivo que se pode montar como invenção na Realidade tem 
um Inconsciente, dado pelo processo desejante-produtivo molecular, que se produz a 
si mesmo, na 
 
forma de um Ciclo em que só se repetem as diferenças. Isto é, "cada Inconsciente" é 
 105 
diferente do outro. 
O que estudamos como Corpo sem Órgãos forma, no nível das entidades 
predominantes da Superfície de Registro-Controle, um Corpo Pleno. Este subjaz a 
uma entidade chamada Eminente, que varia em cada formação histórica de soberania, 
a qual se apropria de todo o Desejo e de toda a Produção de uma Era ou de uma 
Época. Nas Formações Primitivas era a Terra; nas Imperiais, o Corpo Pleno do 
Imperador-Divino; no Capitalismo é o Corpo Pleno do Capital Dinheiro. A entidade 
correspondente ao Corpo Cheio de cada Era propicia certa produção da Superfície de 
Produção e dela se apropria; no entanto, inibe ou destrói todas as outras que não possa 
detectar,classificar e incorporar. 
Quando predomina o funcionamento sobre a função, ou seja, a Superfície de 
Produção sobre a de Registro-Controle, as entidades da Superfície de Registro-
Controle se desterritorializam e desestratificam, dando lugar à aparição de novidades 
como linhas de fuga e acontecimentos que, em suma, são emergências do Novo 
Absoluto, que sempre tem um caráter Revolucionário, seja qual for a peculiaridade 
que adquiram segundo o campo do Registrado em que surjam. 
Brevemente nos referiremos à Representação, dizendo que é o processo pelo 
qual uma realidade considerada ausente se re-apresenta em outra, que supostamente a 
substitui. Bons exemplos desse processo estão dados por certa concepção da 
linguagem falada ou escrita, assim como das Artes, que afirmam que os sistemas 
semióticos ou estéticos são formas de EXPRESSÃO de um sujeito ou de 
REPRESENTAÇÃO da realidade. Outro exemplo são os sistemas políticos em que se 
supõe que as bases ou o "povo" participam na condução política através de seus 
"representantes", escolhidos eleitoralmente ou não. Daí o termo Democracias 
Representativas, que, segundo podemos ver, não são autenticamente representativas 
de seus representados, seus desejos e interesses. Deleuzee Guattari formam parte de 
um conjunto de pensadores que criticam a idéia de representação e são partidários de 
pensar em termos de como cada entidade funciona, e não o que representa. 
 
 
 
 
 106 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
CAOS E COSMOS* 
 107 
 
 
 
A proposta Esquizoanalítica, como já reiteramos, é a de uma composição de 
fragmentos tomados de diversos saberes e de diferentes práticas. Estes fragmentos são 
tomados de seus Sistemas de origem, sem preocupação pelo significado exato que têm 
dentro da citada sistematicidade. Amiúde, esses fragmentos inseridos no contexto dos 
escritos Esquizoanalíticos conservam certa similitude com o sentido que tinham 
primeiramente, mas já funcionam de uma maneira diferente nesse novo contexto. 
Outras vezes, essa inserção lhes proporciona um valor completamente diferente, e, 
sobretudo, inteiramente novo. Como já dissemos também, o texto Esquizoanalítico 
tem uma vocação que podemos resumir, muito precariamente, como enfatizado no 
TRANS e no PRÉ. 
É PRÉ no sentido de Pré-ontológico, ou seja, trata-se de um enorme esforço 
para conseguir pensar e expressar como funciona "a realidade", "antes" de constituir-
se como tal, segundo as formas materiais ou ideais que conhecemos e aceitamos e 
segundo as energias já vetorizadas como forças, que animam essas formas. 
É Transdisciplinar porque trabalha com uma transversalidade conceitual que 
interpenetra as diversas disciplinas epistemologicamente consagradas como tais. 
Também é TRANS no sentido de incluir fragmentos filosóficos, literários, místicos e 
até leigos, dito no sentido muito amplo, que chega até no aproveitamento de 
elementos dos discursos e escritos "delirantes". 
De toda forma é importante entender que o texto Esquizoanalítico não se 
propõe como um META ou um SUPRA MODELO, que seria válido para reger 
quaisquer dos territórios do saber estabelecido. Poderíamos dizer que se coloca "ao 
lado", ou penetrando nos mesmos para infundir-lhes novas dimensões. 
No campo das disciplinas científicas constituídas como tais, é sabido que 
existe o momento da Fundação de uma Ciência, que algumas Epistemologias 
denominam de Ruptura ou Corte Epistemológico, 
 
• Nona aula do Curso Âmago 
segundo o qual uma Ciência começa – e o faz diferenciando-se da Ideologia pré-
 108 
científica que a precedia. 
Logo chegam períodos de re-fundação ou de desenvolvimento e 
aperfeiçoamento da citada ciência, que pode chegar até a ser substituída, por uma 
Nova Ruptura e nascimento de uma outra Ciência. Alguns historiadores da Ciência e 
da Epistemologia sustentam que o devir do panorama científico, considerado em 
geral, permite reconhecer uma espécie de Modelo Geral ou Paradigma que resulta de 
uma abstração das características principais e sui generis que apresenta o conjunto das 
ciências em determinado momento. Esse Paradigma se estabelece em etapas nas quais 
as ciências parecem coincidir em certos traços lógicos de seus esquemas teóricos. 
Estas eras são consideradas revolucionárias porque o novo Paradigma que se impõe 
vem substituir criticamente um anterior. Logo, o devir das ciências entra em períodos 
que se podem chamar "normais", durante os quais se aprofundam, se detalham e se 
aplicam os novos achados, mas nos quais as transformações não chegam a ser de uma 
magnitude que altera o Paradigma estabelecido. 
É freqüente que o Novo Paradigma se estabeleça a partir das invenções de 
UMA das ciências da Época, que opera uma ruptura pregnante e que influi sobre as 
outras ciências que lhe são contemporâneas, contribuindo notavelmente na 
implantação do Novo Paradigma Geral. 
Já destacamos que, a partir das chamadas grandes revoluções científicas, tais 
como a Copemicana (completada por Galileu e Newton), assim como a Darwiniana, a 
Marxista, a Freudiana, a Saussureana, dentre outras, formou-se um Paradigma 
determinista predominantemente causal, que tem regido há quase quatrocentos anos o 
panorama disciplinar mundial. 
Há mais ou menos cinco décadas, e especialmente nas últimas duas, os 
avanços da Macro e da Microfísica, tanto quanto os da Biologia Molecular, da 
Microquímica e das Ciências Exatas (Matemática, Geometria e Lógica), assim como 
suas repercussões nas Ciências Humanas, vêm formando um Novo Paradigma. Pela 
via da chamada causalidade fatorial, da probabilística e da aleatória, se vêm abrindo 
outras formas de pensar a Produção, que, sem chegar a ser totalmente Indeterministas, 
questionam seriamente as formas clássicas da causalidade. 
 
Essa metamorfose tem ido bastante mais além até chegar a caracterizações 
 109 
transdisciplinares que adquirem a peculiaridade que Deleuze e Guattari atribuem a 
vários saberes, dentre eles a Esquizoanálise mesma. Trata-se de teorizações e de 
modos de operar "Anexactos, mas rigorosos". Um pequeno exemplo tomado da 
Geometria pode ilustrar essa idéia. Um círculo, por exemplo, é uma entidade 
geométrica formal abstrata perfeita. Uma circunferência, já objetivamente traçada, é 
um caso formal concreto que não tem a "perfeição", nem admite um tratamento 
puramente formal como o primeiro. Agora, um redondel é uma singularidade única e 
irrepetível, que só admite uma abordagem relativamente única, que pode chegar a ser 
"anexacta, mas rigorosa". Rigorosa, digo, no sentido de inteligível, comunicável, mas 
não repetível com total exatidão. 
O universo do Novo Paradigma, essa individuação, esse "concretado" ou 
"objetivado", questiona o Modelo de funcionamento totalmente calculável, ordenado, 
previsível e explicável causalmente. Trata-se de reconhecer o Poder criativo das 
Realidades ou das Pré-Realidades caóticas ou caósmicas, que, vistas desde os 
territórios convencionais, seriam irregulares, desordenadas, imprevisíveis, 
inexplicáveis, indeterminadas, a-racionais, etc. 
Tanto nas Ciências Exatas, como nas Naturais e, por extensão, nas chamadas 
Humanas e Sociais, tem-se desenvolvido, desde há mais de vinte anos, uma série de 
estudos sobre o funcionamento acidental, incidental, ocasional, catastrófico, 
turbulento, etc. Esses termos, mais ou menos, explicam por si mesmos a natureza e o 
tema dessas investigações. 
Por exemplo, na dinâmica dos fluidos ou dos gases, das correntes elétricas ou 
das magnéticas, assim como nas passagens de estado, de gasoso para líquido, líquido 
para sólido, de regular e ordenado para turbulento, etc., os cientistas; têm-se dedicado 
a estudar o que chamam de Interface, ou seja, a passagem de uma condição ordenada e 
determinista a uma desordenada e caótica, e vice-versa. Têm encontrado, assim, em 
diferentes áreas da realidade,que é durante essa passagem que se destroem entidades 
específicas e que surgem outras qualitativamente novas. Têm compreendido que é a 
partir do Caos ou do semi-caos, onde os elementos estão animados de um movimento 
turbulento e de velocidades incalculáveis, que acabam se produzindo as formas, 
substâncias e forças que geram entidades inéditas. 
Muitas neo-disciplinas (setoriais de outras convencionaIs ou inteiramente 
 110 
originais) têm emergido desta inspiração, tais como a teoria das Catástrofes, as teorias 
dos Jogos, a teoria dos Objetos Fractais, as teorias do Caos, etc. Em outras palavras, 
tem-se aprendido a revalorizar, dentro da oposição Cosmos-Caos, a importância 
geradora do Caos, tanto quanto as funções seletivas e repressoras do Cosmos e a 
importância dos estados intermediários entre uma e outra destas realidades. 
É claro que os pesquisadores procuram formas determinísticas de dar conta 
das vicissitudes de tais relações, pois a peculiar essência do Caos os vem obrigando a 
pensar outros conceitos, funções e variáveis que permitam entender essa dinâmica, e 
que carecem da exatidão postulada pelo Paradigma da Ordem e do Determinismo. 
Um dos fenômenos estudados se denomina Autopoiesis, que, apesar de ser 
originário da Biologia, tem-se transladado a outros campos para denominar os 
fenômenos de autoprodução e de auto-crescimento que muitas entidades demonstram. 
Isso tem influenciado também a idéia de Tempo, sendo que o Tempo atribuído a esses 
processos funciona como uma flecha irreversivelmente progressiva que não obedece, 
por exemplo, às leis da Inércia nem da Entropia, leis clássicas da Termodinâmica. 
Só para concluir, digamos que, na Esquizoanálise, a Superfície da Produção 
está animada por esse tipo de funcionamento que o "Novo Paradigma" e estes novos 
ramos da ciência estão "descobrindo". Neste ponto cabe colocar que, quando falamos 
que o Corpo Sem Órgãos se converte, no nível da Superfície de Registro Controle de 
algumas formações históricas, em Corpo Cheio, o mesmo funciona como o que 
Deleuze e Guattari chamam de Quase-Causa. Isso está dito no sentido de que esse 
Corpo Cheio, na realidade, tem sido produzido pela Superfície de Produção e em si 
mesmo é bastante improdutivo, pois como se apropria da Produção de toda uma 
Época, se atribui a si mesmo toda a Produção e acaba sendo considerado como se 
fosse uma Causa ou uma Com-Causa ou Quase-Causa de tudo o que existe. 
 
 
 
 
 
 
SUJEITO E SUBJETIVAÇÃO* 
 111 
 
 
 
 
Nas aulas anteriores temos explicado que a Esquizoanálise parte, para definir 
o Sujeito, principalmente das postulações Psicanalíticas a respeito. 
Na obra freudiana, sucessivos Modelos do Psiquismo são expostos, desde o 
"Projeto de uma Psicologia para Neurólogos" até a "Segunda Tópica", passando pela 
Primeira Tópica, a Teoria Pulsional e, principalmente, pelo Complexo de Édipo. 
Sabemos que, atravessando todos esses modelos, há duas operações que são as 
principais constituintes do Sujeito, segundo a Psicanálise: A IDENTIFICAÇÃO E O 
INVESTIMENTO. O investimento é a aplicacão da Libido aos objetos que lhe vão 
correspondendo durante a chamada "Evolução Psicossexual" do Sujeito. A partir dessa 
etapa inicial do chamado Estado Autoerótico (em que o pré-sujeito é um conjunto não 
unificado de zonas erógenas, cada uma das quais gera uma pulsão parcial que se 
descarrega na própria fonte ou em qualquer das outras), o sujeito entra no Narcisismo 
Primário, que é a primeira forma da unificação que conquista. Nesta forma, o Sujeito 
se identifica com uma imagem que se denomina "materna", à qual atribui todas as 
potências e com a qual se confunde. Esse primeiro Ego Ideal é separado da imagem 
materna pelo Complexo de Castração e só a partir desse momento é que se inicia a 
seqüência do Complexo de Édipo, que se compõe do Complexo da Mãe, do Complexo 
do Pai e do de Castração. Em suma, todo esse processo se dá sobre a constante de que, 
em cada etapa, houve investimento nos respectivos objetos, é preciso renunciar aos 
mesmos, e, cada vez que se opera uma renúncia, o objeto é incorporado ao Sujeito, 
formando sua própria "substância". 
Por isso é que se diz em Psicanálise que "onde houve um investimento, resta 
uma identificação". O aparato psíquico do Sujeito é, assim, um precipitado, um 
decantado, de investimentos e de objetos perdidos . 
 
 
• Decima aula do curso Âmago 
Em cada um desses modelos, existe uma parte, um sistema, uma região e um 
 112 
processo que denominamos Inconsciente. 
A formulação Estruturalista do Sujeito Psíquico consegue separar 
definitivamente a confusão que se estabelece, amiúde, entre os lugares que integram a 
estrutura e os agentes empíricos ou papéis sociais que eventualmente a ocupam. 
Recorde-se a polêmica entre o antropólogo Malinowsky e o psicanalista Jones, que foi 
a primeira versão dessa discussão. A Psicanálise estruturalista afirma que a estrutura é 
especificamente "psíquica" e que as imagens ou figuras que eventualmente podem 
desempenhar suas funções são variáveis e não determinantes. 
De toda forma, o que Deleuze e Guattari vão tratar de demonstrar é que, 
mesmo tomando em conta essa distinção, a estrutura do sujeito está "calcada" dos 
lugares constitutivos da ORGANIZAÇÃO FAMILIAR, mais ainda, da modalidade 
burguesa nuclear da família. Sabemos que, historicamente, existem inúmeras 
modalidades de composição familiar e que a forma Nuclear Burguesa é uma forma 
dominante que a civilização ocidental capitalista vem consagrando como universal. A 
formulação estrutural do Aparato Psíquico não consegue desvincular-se por completo 
dessa estrutura da organização familiar e assim reproduz as limitações de sua 
consagração como universal. 
Isso faz com que a formulação psicanalítica não possa evitar uma série de 
erros teóricos, que depois se objetivam em erros técnicos de manejo. Por exemplo, 
quando se trata de responder à pergunta acerca de "como a forma edipiana-
familiarista" começou (mas não no caso de um sujeito individual atual), ou seja, no 
caso dos começos históricos dessa estrutura, a Psicanálise responde projetando 
especulativamente a forma edipiana-familiarista contemporânea em uma suposta pré-
história mítica, em que o proto-pai da horda primitiva excluía seus filhos do comércio 
sexual com as mulheres (conservando-as para si), e aqueles se reuniram, mataram o 
pai e o comeram. Tal "fato", real ou miticamente acontecido, foi introjetado, deixando 
como resultado a implantação das leis de proibição do incesto e do parricídio que 
compõem o sistema totemista de organização social, que é o primeiro conhecido, e 
que seria o de passagem da natureza à cultura humana . 
Por outra parte, quando a Psicanálise propõe explicar as formações coletivas 
de socialidade, nada mais faz que multiplicar o 
Sujeito edípico, postulando conexões em "série" ou em "paralelo" entre uma 
 113 
coletividade de sujeitos e seu líder. Essa dimensão social, e portanto política, cultural, 
da subjetividade, acontece em um tempo cronológico posterior à dinâmica familiar, 
que seria o conteúdo das primeiras vicissitudes da vida do Sujeito. É dizer que o social 
sempre vem "depois". O mesmo acontece com as produções sublimadas do sujeito, ou 
seja, a geração de obras socialmente valiosas, distanciadas da problemática edipiana; a 
esse respeito a Psicanálise insiste em que se trata de efeitos dessexualizados ou 
neutralizados da libido que se geram tardiamente no desenvolvimento do sujeito. 
A estas peculiaridades da explicação psicanaiítica, a Esquizoanálise chama 
"Paralogismos", ou seja, deformações lógicas que resultam de premissas erradas. 
O Inconsciente psicanalítico, apesar de incluir entre suas explicações teóricas 
recursos energéticos (economia e dinâmica), centrase principalmente nas 
representações, ou seja, nos significados ou significantes que compõem os fantasmas 
reprimidos.Assim, então, o Inconsciente psicanalítico, principalmente construído 
como metáfora da Tragédia Edipiana, por sua vez tomada por Sófocles de uma versão 
do Mito edipiano da Grécia Antiga, é um inconsciente "teatral" antigo. No caso dos 
estruturalistas, o que eles dizem não é demasiado diferente do que afirmar que o 
inconsciente está estruturado, por sua vez, pelas coordenadas formalizadas do drama 
edipiano. Esse Inconsciente deve ser, então, interpretado, decifrado, como se tratasse 
de um manuscrito arcaico. Esse Inconsciente é uma entidade representativa, tanto no 
sentido de que está composto por representações linguísticas como no sentido de que 
sua dinâmica se modeliza como uma representação teatral antiga. Todos os outros 
territórios da realidade podem até se articular com o psíquico-inconsciente, mas lhe 
são externos, lhe são alheios, e justamente têm de ser colocados entre parêntesis pelo 
dispositivo teórico-técnico psicanalítico para poder entender o psíquico, em si e por si 
mesmo*. 
 
 
 
 
* A mudança de "representações" por "significantes" não soluciona o citado problema, 
apenas o abstrai. 
Para a Esquizoanálise, tanto o aparato psíquico como o resto da Realidade 
 114 
estão constituídos como máquinas, com a peculiaridade de que não se trata de 
máquinas mecânicas, nem cibernéticas, nem elétricoeletrônicas. Trata-se de máquinas 
maquínicas, que, como já sabemos, têm as peculiaridades de certas máquinas 
estéticas, ou, melhor ainda, da "maquinaria microfísica" das partículas atômicas ou da 
biologia molecular. 
O Inconsciente Esquizoanalítico não é especificamente psíquico, nem de 
nenhuma outra material idade "última", sendo que é préontológico, dito em um 
sentido amplo. É na Superfície de Registro que, no sujeito convencional, o 
Inconsciente vai tornar-se psíquico, mas já não será propriamente o Inconsciente 
Esquizoanalítico, senão um préconsciente de uma entidade subjetiva já instituída e 
dominante. Por outra parte, o Inconsciente Esquizoanalítico estará pensado como um 
Processo Produtivo Puro, não formado de representações nem de forças econômico-
dinâmicas que mobilizam as representações ou papéis, seja de um Teatro ou de uma 
Linguagem, sendo como um incessante produzir caótico que, ademais, se produz a si 
mesmo e produz a realidade como renovados Todos. 
É um Inconsciente Virtual, no sentido que já estudamos e que Bergson dava 
a esse termo. É um Inconsciente pluripotencial, no sentido que Espinoza atribuía à 
Substância Universal, ou é um Inconsciente composto de Vontades de Potência, no 
sentido que Nietzsche dava a esse conceito .. 
Para a Esquizoanálise, então, uma "Psiquiatria Materialista" terá que pensar 
a "normalidade" ou os quadros psicopatológicos em função desse Inconsciente 
Maquínico e não do Inconsciente Representativo – Teatral ou Estrutural. 
 
 
 
 
 
 
 
 
A HISTÓRIA* 
 115 
 
 
 
A Esquizoanálise tem uma leitura muito especial da História. Capítulos tais 
como "Bárbaros, Selvagens e Civilizados", de "O Anti-Édipo", assim como capítulos 
de "Mil Platôs": "Micropolítica e Segmentaridade" e "A Máquina de Guerra", 
configuram uma extraordinária síntese da História Universal. A História Universal é 
um saber imperiosamente necessário para entender a situação na qual o mundo está 
contemporaneamente e para intentar prever quais são as tendências de seu futuro. Isto, 
por sua vez, é indispensável para se poder desenhar as estratégias de vida e de 
militância que sejam propícias para a realização de nossas Utopias Ativas. 
Agora bem: existem tantas versões da História, orientadas no sentido que 
convém aos setores sociais que as fazem, que é preciso encontrar uma certa 
"inocência" para poder ver a História de uma maneira inovadora e revolucionária. 
A Esquizoanálise propõe que a História Universal deve ser feita tomando os 
seguintes cuidados: em primeiro lugar é preciso que esteja claro que a História é feita 
desde nossos dias para um suposto passado e que, nessa medida, leremos uma História 
que está inevitavelmente sujeitada a como nos situamos no panorama atual, ou seja, a 
História não é cronológico-genético-evolutiva, senão retrospectiva, é lida a partir de 
suas instâncias ativas no panorama presente. Em segundo lugar, se uma formação 
social como a nossa está em condições de fazer História Universal, é porque tem 
chegado a um grau de aperfeiçoamento e de universalidade que lhe dá os instrumentos 
e os critérios para fazê-la; mas isso só será fecundo se nossa atualidade for capaz de 
tomar uma certa distância de si mesma que lhe possibilite fazer sua alltocrítica e assim 
tendê-la ao passado. 
Por outra parte, e talvez como componente dessa capacidade crítica, a 
História Universal tem que ser irônica, ou seja, capaz de um certo sentido de humor 
que consiga dessacralizar o ocorrido, sem atribllirlhe nenhum caráter solene, infalível 
ou divino. Marx dizia que a História 
 
*Décima primeira aula do curso Âmago 
se repete "a primeira vez como Tragédia e a segunda como Comédia". Por último, é 
 116 
importante destacar que, assim como é preciso estudar a parte da História que obedece 
a leis, ou seja, que está regulada por um certo determinismo, não é menos importante 
recordar que o que realmente constitui o motor da História como devir permanente é o 
Acaso, são os grandes encontros e acontecimentos inesperados, imprevisíveis, 
radicalmente novos. Acrescentemos que não existe Uma História Universal Unitária, 
sendo que a mesma é uma abstração destinada a dar coerência a um transcurso que na 
realidade está composto de inumeráveis processos diferentes, cada um dos quais tem 
seu Tempo sui generis, e cujas correlações mútuas às vezes é possível e outras vezes é 
impossível efetuar; são intempestivos. Por último, é preciso diferenciar claramente o 
que é a Historiografia, ou seja, uma pretensão de DESCREVER os fatos históricos "tal 
como ocorreram", do verdadeiro trabalho do historiador, que invariavelmente é uma 
interpretação de dados e uma invenção de conceitos e versões do acontecido. 
É completamente inviável resumir aqui a enorme quantidade de 
conhecimentos e de postulações originalíssimos que estão incluídas nos capítulos 
mencionados. Trataremos apenas de deixar pontualizados alguns aspectos que nos 
parecem ser os mais importantes. 
Em primeiro lugar, digamos que a conceitualização usada por Deleuze e 
Guattari está tomada das mais diversas fontes, mas que, a nosso entender, as mais 
importantes provêm do Materialismo Histórico, de algumas obras de Nietzsche e de 
valiosas contribuições de antropólogos heterodoxos. 
Em suma, e muito pobremente sintetizado, a Esquizoanálise reconhece a 
existência de uma Formação Territorial Primitiva, de uma Imperial-Bárbara, Asiática, 
Despótica ou Escravocrata; depois a Formação dos Impérios "constitucionais" gregos 
ou de sua peculiar "Democracia"; logo de uma Medieval, Feudal ou Servil, assim 
como a correspondente nas Monarquias Absolutas Européias, para culminar no 
Capitalismo e na Democracia Burguesa Incipiente, no Capitalismo Industrial Clássico 
e no Capitalismo Transnacional Globalizado ou Fase Superior do Capitalismo 
Mundial Integrado. Em alguns momentos, é possível encontrar em Deleuze e Guattari 
a referência a formações de difícil colocação (que se demonstraram essenciais), tais 
como o Modo Comum ou Comunal Germânico e uma divisão geral entre Nômades e 
 
Sedentários (esta última configura uma redefinição geral de toda a História Universal). 
 117 
Dentro dos limites desta aula, o que podemos resumir é que cada uma dessas 
formações Histórico-Sociais se caracteriza pela distribuição que nelas se realiza das 
relações e da configuração das Superfícies de Produção, de Registro-Controle e de 
Consumo-Consumação. Os diversos aspectos de cada formação compõem, 
principalmente, os processos de produção de bens materiais indispensáveis para avida, de meios de produção, a produção de formas sui generis de governo, assim como 
as peculiaridades da produção de subjetividades, individualidades, pessoas e agentes 
de todos os processos. Segundo esta postulação, TODOS os componentes da História 
de cada uma dessas formações sociais são PRODUZIDOS, REPRODUZIDOS E 
ANTIPRODUZIDOS SEGUNDO MODALIDADES SUI GENERIS. Em outras 
palavras, não tem nada que seja eterno e dado de uma vez para sempre e apenas 
modulado pelas peculiaridades, segundo se costumava dizer, do "contexto" histórico. 
É importante considerar, também, que toda Formação Histórica é uma 
maneira de produzir um Socius que "ordene e controle" o Processo Produtivo-
Desejante, que tende permanentemente à desterritorialização absoluta. O problema 
consiste em como e quanto cada socius consiga aproveitar produtivamente, e paralisar 
reprodutivamente ou destruir antiprodutivamente suas potências produtivas. A 
Superfície de RegistroControle de cada Formação Histórica está regida por uma 
entidade chamada "Corpo Cheio", que varia de uma na outra e que tem a peculiaridade 
de atribuir-se todas as forças produtivas e aproveitar esse mecanismo para dominar 
toda a realidade de cada Formação. Na Formação Territorial Primitiva é o Corpo 
Cheio da Terra, na Imperial é o Corpo Cheio do Imperador e no Capitalismo é o 
Corpo Cheio do Capital Dinheiro, que configura uma Axiomática que torna todos os 
elementos da realidade histórica como equivalentes na forma dinheiro. 
Por último, é importante destacar que as modalidades da subjetividade 
também varia de uma formação social a outra. A estrutura do "Sujeito Edipiano", tal 
como a Psicanálise a encontra no Capitalismo e que insiste em declarar universal, 
ubíqua e invariável, não é assim nas diferentes Formações Sociais. 
Em realidade, prepara-se como tal no Modo Territorial Primitivo, instala-se 
como tal no Sujeito Imperador e na Família Imperial das 
 
Formações Despóticas na "pessoa" do Imperador, e EMIGRA na interioridade do 
 118 
sujeito burguês privado da Modernidade, compondo o "Homem Íntimo", que nós 
cremos como sendo a única imagem universal e eterna do "Homem". Assim lida, a 
História abre a possibilidade de outras Formações Históricas e outras subjetivações 
desejantesrevolucionárias, não sujeitadas à reprodução e à antiprodução dos Corpos 
Cheios Históricos vigentes. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 119 
AS KLÍNICAS ESQUIZOANALÍTICAS* 
 
 
 
Respeitamos sinceramente as denominações (que pretendem "determinar" 
um estatuto) e as periodizações (que atribuem uma ou outra ordem seqüencial) à Obra 
de Deleuze e Guattari. Mas sabemos que se trata de um Rizoma não totalizável, sendo 
que cada um lhe dá o nome que lhe é mais expressivo, e cada um o percorre segundo 
itinerários cartográficos únicos e irrepetíveis. 
Para nós, o Nome é: Esquizoanálise ou Pragmática Universal (segundo 
constam em "O Anti-Édipo" e em "Mil Platôs", respectivamente), volumes que 
consideramos como sendo os dois vórtices desse oceano turbulento de máquinas-
livros. E que TAMBÉM pode-se dizer deles que são Filosofia... e Ciência... e Arte 
(sobretudo Literatura)... e Política... e Clínica... e... não nos estranha: o importante é 
que "depois" desse Acontecimento... já nada será como "antes"... e que esse Advento 
merece, além de "todos os nomes da História", um Nome Próprio. Algo assim como 
"O Efeito Clínico D e G". Mas, além disso, é preciso perguntar-se: "depois" desta 
INDIVIDUAÇÃO, "todos" os nomes-estatutos e os "inventários de diferenças", tanto 
quanto suas "periodizações-hierarquizações" (p.ex., as "Especificidades" e as 
"Profissionalidades") não tendem a tornarem-se irreversíveis e transversalmente 
mutantes ? 
O que denominamos habitualmente (Psico) Clínica, pode SER 
Esquizoanalítica? Parece evidente que NÃO; mas pode DEVIR ou já TERÁ DEVIDO 
Esquizoanalítica? POR QUE NÃO? E ainda, se DEVEIO e se seguirá DEVINDO 
Esquizoanalítica, o fará, inevitavelmente, de maneiras SINGULARES, e como 
MULTIPLICIDADES, ou seja, sempre como O OUTRO de uma suposta 
ESQUIZOANÁLISE PRINCEPS. 
Por isso, os Deleuzianos-Guattarianos "de carteirinha", assim como os 
pudorosos reativos a essa presuntiva ortodoxia impossível, podem dormir tranqüilos. 
O problema não é esse. A questão consiste em como aprender a sonhar acordados. 
 
• Artigo inédito. 1997. 
 120 
As Klínicas Esquizoanalíticas, que obviamente têm tudo a ver com o 
Klinamen e quase nada com o Klinos, não serão importantes demais para constituir 
um patrimônio dos clínicos convencionais?... Particularmente dos que ostentam 
antigos e diversos títulos que os consagram como tais? E em especial, os que se 
proclamam, digamos, Psicanalistas... Holistas Sistêmicos... ou-não- sei-o-quê? 
Não se pode desconhecer que muitos desses clínicos devêm ocasionalmente 
Esquizoanalistas sem sabê-lo ( e que talvez nem precisem inteirar-se disso). A partir 
da Idéia de Heterogênese, jamais conseguiremos ignorar a infinita variedade dos 
dispositivos Klínicos, assim como a dos efeitos Klínicos dos agenciamentos que, 
desde a superfície de Registro-Controle, não se identificam como Klínicos. Mas 
tampouco cabe desconhecer que há quem se acha Esquizoanalista e se apresenta p.ex., 
como Psicanalista, o qual não aparenta propriamente ser o disfarce segundo o qual um 
Simulacro se fantasie de "Boa Cópia"; mais parecem ser "Más Cópias" que aspiram 
aos benefícios que, na "República", estão reservados aos "autênticos pretendentes". 
Tudo isso, será que "não dá a pensar" que, devir um Klínico Esquizoanalista, 
não passa pelos títulos que legitimam ou "autorizam" essa condição, mas que passa 
muito mais por um modo de klinicar, por um modo de viver... desejante, produtivo, 
revolucionário? Será que para conceitualizar esse modo de viver, basta a, 
indubitavelmente magnífica, fórmula: "Não Fascista"? Ou é preciso acrescentar, p.ex.: 
"Não Neo-Liberal" e até "Não Social-Democrata? Ou seja, "Não-Heterogestor" e 
"Não- Heteroanalítico"? 
Será que para um viver assim, fazer Klínica Esquizoanalítica exige delimitar 
qual parte do afetar e ser afetado da existência do "expert" corresponde ao "ofício" de 
klínico? 
Nós já ouvimos e até escrevemos que na formulação das perguntas estão 
implícitas as respostas. Mas gostaríamos muito que o leitor não tomasse estas 
interrogações, pelo menos, como deliberadamente retóricas. Porque, é acaso "ponto 
pacífico" como devêm e devirão as "ofertas", as "demandas", os "contratos", as 
"implicações", as "caixas de ferramentas", os "diagnósticos" e as "curas" nas Klínicas 
Esquizoanalíticas? É por acaso "ponto pacífico" quais serão os "espaços" e os 
"tempos", os "personagens klinicais" (tanto por parte dos "agentes", como pela dos 
"pacientes"): "individuais, "coletivos", "equipes", 
 121 
"grupos", "organizações", "civilizações"? Como seria a Formação de um Klínico 
esquizoanalista, como seriam suas "Sociedades Científicas ou Acadêmicas", suas 
"Comunicações Bibliográficas", seus "Conselhos e Sindicatos"? 
Por um lado: faz sentido colocar estas perguntas, boa parte de cujas 
formulações, que já começam obsoletas para a Nova Klínica (tanto como conceitos 
como enquanto recursos) são, exatamente, o que há que criticar e recriar? E, não 
obstante: faz sentido tratar de prever o imprevisível, de dizer o indizível, de 
conceitualizar o Virtual recém Atualizado ou por Atualizar? As Klínicas 
Esquizoanalíticas como transmutação?... ou como elegante aggiornamento subliminar 
homeopático, mais ou menos assumido? 
Mais substancialmente: as Klínicas Esquizoanalíticas – estarão destinadas às 
Elites Pagantes... ou ao Povo... embora seja um ,"Povo que está Por Vir"? 
Sabemos que "Máquina de Guerra" não significa "Artefato Bélico", mas, 
assim como os "Mundos" estão genocidas: vale a pena qualquer Maquinação, que não 
tenha, pelo menos, UMA dimensãoguerreira? 
Interessa, p.ex., interrogar-se o QUE NÃO seria Klínica Esquizoanalítica, 
embora a negação não seja um recurso "criativo"? 
É bom recordar que das proposições indecidíveis surgem as conexões 
inventivo-revolucionárias e TAMBÉM pode surgir a geléia Pós-Moderna. 
Nessa Catedral flutuante, chamada "O Anti-Édipo", construída por dois 
geniais compagnons, estão prescritos dois tipos de Tarefas para a Esquizoanálise: as 
Negativas e as Positivas. Será arbitrário demais imaginar que todos os escritos 
"anteriores" e "posteriores" (enfatizando Mil Platôs), não fazem outra coisa mais que 
cumprir "Lisa" e "Aionicamente" com essas duas tarefas? Que outra coisa podemos 
fazer, os Klínicos Esquizoanalíticos, que continuar reinventando esses trabalhos? 
Uma Klínica com um Paradigma Estético, uma Estética Klínica, ou uma 
Klínica Estética sem Paradigma algum? Uma Ciência Menor dita em uma Língua 
Menor, que se transversalize com uma Literatura Menor... uma Filosofia sem 
Fundamento, um Pensamento sem Imagem, uma Micropolítica do Desejo... uma 
Práxis da Diferença, de conexões 
 
 
 122 
que parem as Singularidades Intensivas, da Proliferação de Multiplicidades 
incapturáveis, da geração de Estidades irredutíveis, da concepção de Individuações 
inclassificáveis... o certo é que todos esses Conceitos, Funções e Variações são para 
nós, contemporâneos, um inapreciável "presente dos Deuses"... a condição de que nos 
inteiremos de que as valiosas instruções acerca de "Como fazer um Corpo sem 
Órgãos"(ou "Como montar Dispositivos Caósmicos") são capítulos maravilhosos que 
narram o "Que se passou"... mas não o que "está se passando", nem o que "está por 
passar", 
Uma Klínica como uma Desabituação dos Hábitos e uma Canalização das 
Afinidades? Uma Klínica como uma desmitificação das Semelhanças, das Analogias, 
das Contradições, da Representação e do Conceito, assim como da Afirmação da 
Diferença? Uma Klínica como a promoção de um Novo Entendimento para gestar 
"Bons Encontros"? Uma Klínica como uma Nova Arte do uso Disjunto das 
Faculdades? Uma Klínica como geração do Sentido? Uma Klínica como uma Nova 
Lógica da Sensação? Uma Klínica como assunção da univocidade do Ser e do Eterno 
Retorno da Diferença, tanto quanto como da Transvalorização dos Valores? Uma 
Klínica como reformulação de "falsos problemas" e como "estratégias" para a 
Atualização do Virtual? Uma Klínica com a inclusão de Semióticas A-significantes? 
Uma Klínica Nômade dos Espaços Lisos, das Dobras Infinitas, do Pensamento do 
Fora, do Diagrama e não do Programa, da Desterritorialização, das Linhas de Fuga, do 
Acontecimento, dos Novos Ritornelos, contra a brusca interrupção ou a aceleração ao 
infinito do Processo Esquizofrênico, contra as Reterritorializações Normais, 
Neuróticas, Perversas (de divã), Paranóicas, Melancólicas e Esquizofrênicas (de 
Manicômio), contra o Edipismo, o Familiarismo, o Estatismo... o Organismo? Uma 
Klínica Maquínica? Uma Crítica e Klínica... uma Noologia Klínica... uma Klínica do 
Devir Animal, do Devir Célula, do Devir Imperceptível, do Devir Cérebro?... 
 
"ARS LONGA, VITA BREVIS", 
 
 
 
 
 123 
Introdução à Esquizoanálise Apêndice – Segunda Edição 
 
 
 
O propósito essencialmente pedagógico que guia esta introdução nos leva a 
acrescentar, nesta segunda edição, este breve apêndice panorâmico. Trata-se de uma 
nova tentativa de síntese cuja intenção é facilitar ao máximo possível o trânsito do 
leitor pelo complexo rizoma que constitui a Esquizoanálise. Escolhemos a modalidade 
expositiva de uma seqüência de pontos numerados, assim como formulações 
simplificadas, com uma expectativa esquemática que supomos didática. Não 
comentaremos todos os capítulos dos livros (o Anti-édipo e Mil Platôs) e a escolha 
dos sintetizados deve-se apenas à importância que lhes atribuímos segundo nosso 
critério cartográfico: 
1. No percurso da obra de G, Deleuze e F. Guattari, os mesmos autores lhe dão denom 
inações diversas que podem ser consideradas complementares, embora não sejam 
sinônimas: Esquizoanálise, Pragmática Universal, Ecosofia, Nomadologia, 
Micropolítica, etc. De nossa parte, temos sugerido outras, tais como: Concepção da 
Realidade, Ecopraxe, Nomadopraxe, etc. 
2. Quanto a uma "classificação disciplinar" dessa obra, que consideramos irredutível às 
especificidades conhecidas, temos optado por empregar uma expressão disjuntiva 
inclusa, dizendo que se trata de filosofia... e também de ciência .. , e também de arte e 
literatura... e também de crítica estética... e também de política... e também de 
mitologia... e também de um certo delírio... e assim sucessiva e não conclusivamente. 
Seja como for, a Esquizoanálise afirma, como seu valor principal, o uso que se faz 
dela. 
3. Como um ensaio, tão discutível como o do ponto anterior, de nos aproximarmos de 
uma classificação gnosiológica da Esquizoanálise, propomos que se trata de um 
realismo, materialista, diferencialista e imanentista, molecular, intensivista, 
neofuncionalista maquínico. Realismo porque o "Ser" (em toda a sua diversidade e 
infinitude) é realidade e não aceita nem se opõe a um não-ser. Materialista porque a 
"natureza" desse ser inclui toda entidade ideal ou espiritual. Diferencialista porque 
trabalha sobre e desde o Ser das diferenças e o Ser 
 124 
como diferença. Imanentista porque as diferentes realidades que define não estão em 
uma relação de separação e nenhuma é transcendente nem eminente com respeito a 
outra. Molecular porque o campo da realidade ao qual atribuem essa condição é o de 
maior potência em termos de metamorfose. Intensivista porque essa dimensão da 
realidade é a geradora da potência citada no ponto anterior. Neofuncionalista porque 
problematiza como essa realidade (material, diferencial, intensiva etc) funciona, e não 
o que é. Maquínico porque atribui à tecno-esfera uma realidade própria, imanente às 
outras e constitutiva de um modo de funcionamento antes citado, e digna de formar 
parte privilegiada de um metamodelo da realidade. 
4. A Esquizoanálise é um vastíssimo e interminável estudo acerca de como os processos 
de produção de produção, de reprodução e de antiprodução, imanentes à realidade 
antes definida, interrelacionam-se para gerá-la inovadoramente, para repeti-la ou para 
destruí-la em todos seus campos, potências, forças, estratos, territórios, códigos, 
sobrecódigos, axiomáticas etc. Tais estudos são imanentes aos atos e ações 
revolucionárias e inventivas, que os exigem para assim poder "desmontar" o que inibe, 
distorce ou impede a produção, escapar desses limites e deflagrar o novo a serviço da 
diversidade infinita da Vida, contra toda forma de exploração, dominação e 
mistificação. 
5. Os livros que compõem a obra esquizoanalítica passam dos quarenta volumes, sem 
contar numerosos artigos e até gravações fonomagnéticas, vídeos etc. Seus autores 
insistem que esse conjunto pode ser percorrido na ordem e na direção que cada leitor 
escolher, configurando sua cartografia singular e irrepetivel. Respeitando essa 
recomendação, consideramos que os tomos do livro "Capitalismo e Esquizofrenia" 
são, dentro da multiplicidade que a obra constitui, algo como um conglomerado 
principal do qual, ou bem se parte, ou bem se deve fazer uma passagem preferencial. 
Temos essa convicção não apenas porque se trata de duas exposições especialmente 
panorâmicas e abrangentes, mas também porque, se como Deleuze e Guattari afirmam 
que "uma coisa é louvar a multiplicidade, outra coisa é fazê-la", acreditamos que esse 
escrito é o mais bem sucedido nesse sentido. Por outra parte, segundo nossa "paixão" 
própria, acreditamos que é nesses livros onde fica mais enfática e indissoluvelmente 
imanente a vertente política da Esquizoanálise: a revolução molecular. 
 
 125 
 
6. No "Anti-édipo", que nos permitimos denominar a primeira dessas topologias e 
processualísticas da realidade:religiosos ou sobre os 
discursos ideológicos. E não se pode dizer que a obra de Deleuze e Guattari não tenha, 
em certo sentido, uma vocação religiosa. Mas religiosa na melhor definição de re-
ligare, de unir novamente os homens, sobretudo os homens que a merecem, ou as 
partes dos homens que são capazes de unir-se para gerar produtos novos e dignos. 
Esse discurso, como vocês seguramente poderão apreciar, se são leitores de Deleuze e 
Guattari, é um discurso incrivelmente erudito, de um rigor e de uma seriedade, de uma 
literalidade nas citações, que 
 
 15 
chega a ser um tanto desesperador. Porque a gente não consegue saber como é que 
dois intelectuais conseguem ler tantas coisas, entendê-las tão bem e extrair delas 
estritamente aquela parte que eles podem integrar no discurso próprio, com essa 
vocação revolucionária e produtiva. Mas toda essa erudição, toda essa severa lógica, 
toda essa ortodoxia no discurso acadêmico não é o mais importante dessa obra. O 
mais importante é aquilo que fervilha por baixo, sob o discurso. É essa capacidade de 
capturar o leitor e de ir integrando-o a um mundo que, aparentemente mágico, um 
mundo aparentemente de ficção, é infinitamente mais real que os discursos 
acadêmicos. que os discursos filosóficos especulativos, que as prédicas religiosas, ou 
que as promessas políticas. É importante destacar essas características dos textos e dos 
discursos de Deleuze e Guattari, porque eles estão sempre integrados a um tipo 
particular de militância. Eles sempre têm um "pé" numa ação concreta que se exprime 
e se inspira nesses escritos, dentro da famosa idéia de práxis, ultimamente tão 
esquecida. A proposta de uma micropolítica é a ação política que acompanha a 
proposta analítica desses autores, que se chama "Esquizoanálise". A Esquizoanálise é 
uma leitura do mundo, praticamente de "tudo" o que acontece no mundo, como diz 
Guattari em seu livro sobre as ecologias, sendo uma espécie de Ecosofia, uma 
"episteme" que compreende um saber sobre a natureza, um saber sobre a indústria, um 
saber sobre a sociedade e um saber acerca da mente. Mas um saber que tem por 
objetivo a vida, no seu sentido mais amplo: o incremento, o crescimento, a 
diversificação, a potenciação da vida. É importante saber que essa micropol ítica não 
está instrumentada por partidos políticos, embora não seja proibido exercê-la dentro 
deles. Não toma, como lugar privilegiado de atuação, a academia, com suas produções 
ortodoxas e rígidas. Não propõe a formação de uma igreja, mais ou menos despótica. 
Não necessita atuar dentro dos âmbitos do Estado, apesar de não se negar a fazê-lo. 
Não precisa dos partidos políticos tradicionais, nem dos sindicatos, especialmente se 
eles são corporativos. Não define um campo de esquerda mais ou menos global, que 
seria melhor do que o de direita. A proposta é a de uma polític que se pode fazer em 
todo e qualquer pequeno, médio ou grande âmbito em que transcorre a vida humana, a 
política dos movimentos singulares, dos movimentos que exprimem idiossincrasias, a 
política feminista, a política dos movimentos homossexuais, a política das minorias 
raciais, a política 
 
 16 
dos imigrantes, a política dos sem-terra, a política de todos aqueles que sofrem a 
exploração, a dominação, a mistificação do mundo atual, mas que não pertencem 
necessariamente aos organismos, às entidades molares respeitadas e consagradas pelo 
mundo em que vi vemos, e que são responsáveis pelo mundo estar como está. É uma 
política baseada em uma proposta básica que diz que a essência da realidade é a 
imanência do desejo e da produção. O desejo, aquele descobrimento de Freud, o 
desejo inconsciente, dito no sentido não apenas de um espaço do psiquismo, de uma 
força do psiquismo, mas dito no sentido da essência, da substância de tudo aquilo que 
existe. Ele tem, dizem Deleuze e Guattari, o mesmo processo de funcionamento que 
Freud descreve no inconsciente psíquico, particularmente em seu processo primário. 
E, por outro lado, esse mesmo processo é um processo substancialmente produtivo, é a 
permanente criação do diferente, a geração constante do novo. Então, quando Deleuze 
e Guattari dizem que o processo último da realidade é produtivo e desejante, eles 
introduzem a idéia de desejo na materialidade produtiva, e a idéia de produção neste 
processo criativo que é o desejo, e que habitualmente se atribui ou apenas ao campo 
do psíquico ou às esferas mais ou menos ultraterrenas do metafísico. Esta proposta da 
substância da realidade como repetição do diferente, do diferente radical, esta, 
chamemo-la assim, ontologia de Deleuze e Guattari, é o pilar de sua proposta ética. 
Porque é uma afirmação acerca da realidade, que diz que esta, em si mesma, é uma 
fonte inesgotável de criação, é uma potência incoercível de transformação. Não existe, 
na realidade, nenhuma força definitória que equivalha a essa famosa "pulsão de 
morte" freudiana ou a qualquer processo entrópico como os físicos o descrevem nos 
sistemas fechados. É uma ontologia, uma teoria do devir que, desde a base (se isto se 
pode chamar "base"), propõe um tipo de vida que confie nisto, que acredite que somos 
portadores de uma energia criativa que nos faz formar parte de um mundo que é 
simultaneamente físico, natural, humano e maquínico. As separações que se 
estabelecem neste mundo, e as hierarquias que se postulam nessas relações são 
produto de uma concepção autoritária do universo, que sempre tem que ter algum 
setor da realidade que seja mais respeitáv.el, mais temível, mais poderoso que o outro. 
Deleuze e Guattari dizem que em tudo que existe há uma imanência que faz com que 
cada um dos campos seja igualmente importante. 
 
 17 
Não descrevem a natureza como aquele campo da realidade que existe para 
ser dominado pelo homem, não descrevem as máquinas como criações do homem que 
devem servi-lo, descrevem tudo isso em um nível de interpenetração, de igualdade 
hierárquica, em que cada segmento desse real deve combinar-se com o outro, 
procurando o crescimento harmônico de todos esses setores ao mesmo tempo. Por 
outro lado, atribuem a esta conexão de potências uma natureza produtiva, que não 
precisa fazer-nos acreditar que somos resultado de uma criação falida de alguma 
entidade sobrenatural ou transcendente. E também não precisa fazer-nos acreditar que 
somos um produto monstruoso de alguma natureza que funciona exclusivamente 
guiada por leis mais ou menos fascistas. Este saber e este afazer que estas duas figuras 
têm criado e promovido através de suas vidas militantes e de suas produções teóricas, 
são feitos por um procedimento epistemológico, digamos assim, que os autores 
assumem valente e quase humoristicamente. 
Eles postulam o procedimento do "roubo", eles "roubam", eles 
pegam de cada teoria, de cada práxis, aquela parte que lhes parece mais inspirada, 
aquela engrenagem que eles poderão colocar no interior de sua máquina teórica e 
militante, sem interessar-se por completo pelo rótulo geral que possa ter essa 
disciplina da qual pinçaram e "roubaram" um conceito. 
Assim como para eles não existe hierarquia entre o mundo natural, o mundo 
subjetivo e o mundo maquínico e social, assim também não existem discursos 
consagrados, textos adoráveis e discursos insignificantes. 
Um dos conceitos essenciais desta teoria, o conceito de "Corpo sem Órgãos", 
foi tomado simultaneamente de um poema de um literato louco, Antonin Artaud, de 
um mito dos Índios Dógons e de um mito das religiões orientais que se chama "o Ovo 
Cósmico". Acontece que esta categoria, "Corpo sem Órgãos", criada tomando 
elementos de um discurso "psicótico", de um mito indígena e de um ideologema de 
uma religião oriental, é um conceito que acaba dizendo uma coisa muitíssimo 
parecida com o que diz a física quântica atual, com o que diz a teoria dos fractais, a 
teoria das catástrofes de René Thom, o que tem de mais evoluídoa) Os campos da mesma são as superfícies de produção, registro-controle e consumo, 
consumação. 
b) Seus "povoadores" são as máqu inas desejantes (elementos intensivos que se 
autoproduzem, s.e diferenciam e se acoplam incessante e comutativamente em 
máquina-fonte e máquina-órgão, segundo síntese: conectivas de produção (superfície 
da produção), disjuntivas inclusas e exclusas (superfície de registro-controle) e de 
conjunção (superfície de consumo-consumação). Em cada superfície, a energia que 
anima os processos se denomina respectivamente libido, numen e voluptas. Como as 
superfícies são imanentes entre si, cada uma delas funciona em uma tônica molar e em 
uma molecular, simultaneamente. 
c) A "entidade" típica da superfície da produção é o Corpo sem Órgãos (ao mesmo tempo 
continente virtual de todas as potências produtivas e grau zero de intensidade sobre o 
qual se montam e se acoplam as máquinas desejantes). Recordamos que a idéia de 
superfície em esquizoanálise é vital para a proposta de tratar a realidade como 
conjuntos difusos de diferenças, fazendo mostrar-se e funcionar todas as 
singularidades de sentido e de devir num mesmo plano. Essas diferenças, que 
implicam novidades absolutas de individuação por hecceidade ou de atualização do 
virtual, são negligenciadas pelo pensamento e a praxe da representação. Ou bem são 
excluídas e colocadas na obscuridade do indefinido, indeterminado e indecidível, ou 
bem são declaradas semsentidos, "nadas" ou vazios, entendidos como faltas. A 
esquizonálise não espera que essas diferenças adquiram sentido ou sejam atualizadas 
por nenhum fundamento residente nas alturas transcendentes, nem nas profundezas 
românticas, nem nas estruturas "estruturantes". 
d) A "entidade" típica da superfície de registro-controle é o Corpo Cheio (que se pseudo 
apropria de todas as potências produtivas e as captura, efetua, inibe ou acelera ao 
infinito segundo a complexão do modo de produção, da formação de soberania e do 
sistema da representação histórica de que se trate. A superfície de registro-controle 
tem como operadores característicos da sua função normatizante ou legalizadora a 
 
 126 
nível do sistema de representação os códigos, sobrecódigos e axiomáticas. 
e) A superfície do consumo-consumação tem a seu cargo tanto o acabamento dos 
produtos como seu consumo, ambos modulados por determinações do Corpo Cheio 
em pauta. 
7. O interjogo dos processos de produção de produção, de reprodução e de antiprodução, 
em e entre cada superfície, anima os movimentos de estratificação e desestratificação, 
de territorialização e desterritorialização, de codificação e descodificação, de 
sobrecodificação e des-sobrecodificação, de axiomatização e desaxiomatização, as 
segmentações, as linhas de fuga, as emissões de subpartículas, quantas, vibrações e 
fluxos cuja distribuição e dinâmica determina a "natureza" e os destinos variáveis do 
interjogo dos processos. Como sabemos, a Esquizoanálise não separa nessas 
realidades as "naturezas" e denominações das diferentes entidades e movimentos da 
realidade. Desse modo atribui aos movimentos "objetivos" as características e nomes 
de uma Clínica Universal que redefine e emprega para isso os nomes da nosologia 
psicopatológica. 
8. No limite da realidade com o "fora" absoluto, os processos podem se dirigir para a 
esquizofrenia, com predomínio da produção de antiprodução, ou para uma direção 
esquizonte, ou seja, para a Nova Terra ou a Utopia Ativa da revolução molecular. 
Perante essas tendências, o conjunto da realidade pode regredir para a reprodução, em 
qualquer ou em todos os seus âmbitos, de configurações melancólicas, maníacas, 
paranóicas, perversas, neuróticas ou "normativizadas". Nesse sentido, a 
Esquizoanálise entende a loucura e o delírio como reveladores, não tanto de conflitos 
familiares ou edipianos, mas sim como cartografias históricas universais. 
9. No segundo volume de "Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia ", a topologia e a 
dinâmica da realidade está composta não pelas três superfícies, mas por inúmeras 
"plataformas" intensivas que se conectam através de fluxos de intensidades em 
inúmeras direções. Tanto os capítulos do livro como os conjuntos de realidades têm 
essa mesma configuração e funcionamento. Cada Platô é uma multiplicidade (ou 
 
 
 
 
 127 
seja, seus elementos e movimentos não correspondem a categorias do Uno nem do 
Múltiplo). As multiplicidades podem serde diversas índoles (um livro mesmo pode ser 
uma muItiplicidade), mas o exemplo que Deleuze e Guattari preferem é o de um 
vegetal do tipo dos tubérculos denominado rizoma. Uma multiplicidade é um conjunto 
que cresce por divisões não dicotômicas e que não se divide sem mudarde "natureza". 
O rizoma, por exemplo, não tem um centro ou tronco a partir do qual se desenvolve, 
seus tubérculos estão disseminados e intrincados com suas prolongações, talos e 
raizinhas. Seus limites externos não são passíveis de serem circunscritos, suas células 
não têm membranas e seus processos metabólicos apresentam causas que se 
expressam em efeitos à distância sem que seja possível determinar os mecanismos e 
veículos de transmissão. O rizoma serve como modelo contraposto à arvore (com 
raízes, tronco, folhagem), e os autores mostram como esses modelos penneiam toda a 
realidade entendida como molecular ou como molar. 
10. Cada capítulo-platô de "Mil Platôs" contêm parcialmente os outros, e o leitor pode 
passar de um para qualquer outro, segundo a trajetória da cartografia escolhida, ou 
melhor dito, inventada por cada viajante. Não obstante, cada platô tem uma certa 
ênfase em algum tema em especial. Listaremos e caracterizaremos muito sucintamente 
os mais importantes: 
 
a) Os rizomas de todo tipo e o livro como um deles. 
b) A partir da Esquizoanálise do "Homem dos Lobos" (célebre caso clínico de Sigmund 
Freud) reformula-se a produção de subjetividade e subjetivação, entendida como 
multiplicidades das quais os sujeitos, seja o da psicologia ou o da psicanálise, são 
apenas "peças" visíveis. O inconsciente é reafirmado como sendo um "conjunto n" de 
elementos cuja nota em comum é não ter nada em comum " (ou seja, nada em comum 
entre si segundo a especificidade de uma disciplina, por exemplo os componentes 
estruturais edipianos). 
c) Escrita como a crônica de uma conferência proferida por um extravagante professor, 
surge uma cartografia de formidável abrangência, como uma das versões da imanência 
entre as distintas regiões da realidade. Essa crônica mostra a distinção e 
interpenetração entre as distintas esferas segundo a divisão molar das mesmas: geo-
esfera (físico-química), bio- 
 128 
esfera (vegetal, animal), noosfera ("humana", social, subjetiva, "comunicacional", 
política, econômica etc) e tecno-esfera (científico-técnica). Destaca-se a coexistência 
entre todas elas e a inconveniência de se estabelecer uma ordem hierárquica entre as 
mesmas. Trabalha-se especialmente a geo e a biosfera e os processos de passagem da 
uma a outra. Mas, por outra parte, estuda-se a imanência entre essas esferas e a 
realidade molecular intensiva que Ihes é imanente. Descrevem-se as formações 
molares e moleculares parcialmente próprias de cada esfera, responsáveis tanto pela 
estabilidade como pela mutação, tais como estratos, paraestratos, subestratos e 
metaestratos. Define-se, por exemplo, os cristais como focos de passagem do 
inorgânico ao orgânico. Expõe-se uma notável concepção da produção das espécies, 
baseando-se numa célebre polêmica entre os biólogos Geoffrey de Saint Hillaire e 
Cuvier. Nessa discussão, o primeiro defende a idéia de um mundo biológico composto 
por um "animal único" que, por dobras e desdobras moleculares e redistribuição de 
órgãos, compõe a diversidade molar das espécies. Hillaire abre, assim, a perspectiva 
da constante produção de interespécies simbióticas "anômalas" e da "involuçãocriativa", segundo a qual traços e funções aparentemente menos desenvolvidas se 
compõem para dar organismos "mais competentes para sobreviver". Cuvier opõe a 
essa idéia a de uma seqüência evolutiva na qual cada espécie é uma transformação 
estanque em relação às outras. Destaca-se a contribuição do "papel" das "populações" 
micro e macroscopicamente consideradas e da relação das mesmas com o meios 
(externos e internos) que elas contêm e que as contêm na determinação das 
transformações específicas. Igualmente se privilegia a função determinante das 
"manadas" sobre as características de cada um de seus exemplares. Mostra-se como 
um elemento trazido de um campo ou "nível" para outro detennina a conversão dos 
conjuntos de estratos em territórios e como os territórios constituem seus animais de 
território, e não o inverso. Destaca-se como recursos e traços morfológicos e 
funcionais elementares e de reprodução ou de sobrevivência dos espécimes (cores, 
cantos, cerimoniais) deslocamse e transformam-se em recursos expressivos (como os 
ritornelos) que acrescentam às suas diversas finalidades a de marcar o território como 
maneira de conjurar o caos que sempre ameaça a constituição meta-estável da suas 
realidades. Essas produções preparam o tratamento que novos platôs (e também 
capítulos· do livro) vão dar à "natureza" e à função da linguagem e das semióticas não 
lingüísticas, aos regimes sociais de signos. 
 129 
d) O capítulo-platô destinado à crítica dos postulados da lingüística constitui um 
profundo questionamento à primazia outorgada pelo Ocidente à linguagem falada e 
escrita e às disciplinas que dela tratam. Deleuze e Guattari se baseiam na confrontação 
entre autores como Saussure e seus seguidores, entre eles Martinet, por uma lado, e 
Hjemlev, Bathkine, Labove, Ducrot e Searle por outro. Mostra como, a partir dos 
ritornelos etológicos, são constituídos sistemas de expressão semióticos de enorme 
variedade, entre os quais a linguagem, ao que denominam semiologia do significante, 
que é apenas um a mais e não deve atribuir-se-lhe nenhuma eminência evolutiva. 
Mostra como a Lingüística científica (especialmente a de inspiração estruturalista) 
privilegia o tratamento da sintaxe (relações gramaticais entre signos) e a semântica 
(relações entre signos e referentes ou significados), procurando nessas áreas as 
constantes da linguagem que explicariam todas as suas variáveis expressivas. De 
acordo com essa leitura, a pragmática (que é o estudo do emprego concreto da língua 
em circunstâncias particulares) se mostra insuficiente. Assim, essa leitura atribui o 
funcionamento da língua a instâncias exteriores à linguagem, buscando sua solução 
nas contribuições de outras disciplinas (psicolingüística, sociolingüística etc). Essa 
concepção da lingüística atribui à linguagem funções de informação, comunicação, 
intercâmbio etc. Deleuze e Guattari mostram que toda linguagem se origina no 
discurso indireto, e dizer se compõe do que se diz acerca do que foi ouvido, e ainda 
que, em última instância, a principal função da linguagem é transmitir palavras de 
ordem, consignas, mandatos. Mas essa transmissão, devido ao caráter performativo e 
ilocutório da linguagem, realiza a ordem no mesmo ato de transmiti-la, como 
acontece, por exemplo, com a sentença de um juiz. A sociedade inclui em si 
montagens que são agenciamentos coletivos de enunciação que emitem essas ordens 
para ser enunciadas pelos sujeitos de enunciados (os falantes), que assim as obedecem 
de jure e de fato. A Esquizoanálise postula, assim, que a pragmática é a abordagem 
essencial da Lingüística, e que as chamadas constantes sintáxicas e semânticas são 
variáveis a serviço circunstancial das funções pragmáticas. Destaca que a Lingüística 
convencional e seu objeto, a linguagem, têm por finalidade normatizar, qualificando a 
correção gramatical ou a a-gramatical idade da imensa diversidade das línguas, que 
sempre são invenções pragmáticas. Os autores distinguem, assim, línguas maiores ou 
de Estado, e línguas menores, que são as criadas pelas minorias singulares. 
 
 130 
Não se trata exatamente das lutas entre línguas "oficiais" e dialetos, mas da 
capacidade das minorias e dos literatos de colocar em estado de variação contínua sua 
língua "natal" ou outra adquirida, de maneira a escapar por linhas de fuga expressivas 
aos mandatos dos agenciamentos coletivos de enunciação e regulação dos poderes da 
gramatical idade. Por outra parte, Deleuze e Guattari insistem na origem imperial da 
linguagem falada e escrita e reivindicam a liberdade e a valorização de todas as 
semióticas não significantes (corporais, dramáticas, pictóricas etc), revalorização essa 
que culmina na profunda importância atribuída pelos autores à música como semiótica 
expressiva, assim como modelo teórico para analisar as semióticas e semiologias em 
geral. 
e) Um importante capítulo-platô refere-se à segmentação do socius e à praxe 
micropolítica que a Esquizoanálise pode aportar nesse campo. Todas as sociedades, 
seus agentes, grupos, organizações etc (como se antecipava na teorização da 
Superfície de Registro) estão divididas e ordenadas segundo várias modalidades de 
delimitação. Tais formas de segmentação se resumem a três: as binárias, as circulares 
e as lineares. Exemplo das primeiras são as duplas homem/mulher, humano/animal, 
menores/adultos etc. Exemplo das segundas são os espaços locais, os provinciais, os 
nacionais, os regionais, a sociedade civil, o Estado etc, que se costuma pensar como 
círculos incluídos em outros, com seus respectivos centros subordinados entre si. A 
terceira modalidade é a linear, cujo exemplo poderia ser todo tipo de seqüências, 
desde as temporais etárias às sucessões de pertencimento organizacional etc, as linhas 
de montagem etc. Todos esses segmentos podem ser, segundo o complexo histórico 
onde são encontrados, duros ou moles, rígidos ou flexíveis. Os segmentos binários são 
característicos das formações primitivas territoriais por serem flexíveis, tendentes à 
fusão, facilmente comunicáveis ainda entre os segmentos mais heterogêneos. Já nas 
sociedades modernas, são duramente binarizados, embora opcionais, e 
homogeneizados por uma equivalência mercantil generalizada. O segmento circular 
existe nas sociedades primitivas, mas não unificado, hierarquizado, centralizado, 
concêntrico, e os centros que existem não ressoam entre si. Nas sociedades modernas, 
esta segmentação é unificada, hierarquizada, centralizada, concêntrica e todos os 
centros ressoam entre sim, sendo o Estado sua "caixa de ressonância" principal. O 
segmento de tipo linear e flexível nas sociedades primitivas e rígido 
 
 131 
nas modernas. Mas em todas as sociedades, entre os termos formalmente 
segmentados, acontecem e devém incessantemente processos moleculares produtivo-
desejantes que tendem às micro e (nos momentos propícios) às macromudanças 
extraordinárias. Fluxos, subpartículas, partículas, quantas, linhas abstratas que não 
determinam contornos, linhas de fuga escapam de todas as unidades de segmentação, 
apesar de que devem evitar os buracos negros de absorção e recuperação, os muros de 
compactação com os que o registro-controle tende a neutralizá-los. Igualmente existe 
o perigo de que, por exemplo, as linhas de fuga se transformem em linhas de 
escapismo e de marginalidade, ou ainda de pura abolição ou morte. 
f) Como veremos um pouco mais adiante, as sociedades primitivas são atualizações de 
Máquinas Abstratas de Guerra (que não têm a guerra por finalidade) e que não 
precisam do dispositivo Estado para realizar-se. Nas sociedades modernas, a Máquina 
Abstrata do Capitalismo se realiza através do Estado, que se apropria da Máquina de 
Guerra primitiva para colocá-la a seu serviço, através de Forças Armadas profissionais 
visando a guerra (entre outras funções) como objetivo em si mesmo. 
g) Neste platô, fica especialmenteclaro que haveria macro e micro: economia, 
sociologia, antropologia, semiótica etc, destacando-se a macro e micro-história e a 
macro e micropolítica. Neste capítulo, as tarefas da Esquizoanálise são caracterizadas 
como: traçar planos (conjuntos cartográficos e não cópias), traçar diagramas 
(caracterizar jogos de forças ainda não vetorizadas e de materiais ainda não formados) 
e dizer que não são programas, diagnosticar os tipos de segmentação e propiciar as 
linhas de fuga, as emissões quânticas, a conexão de fluxos etc. 
h) Devido aos limites deste apêndice, apenas condensaremos uma quantidade de outros 
capítulos-cartografias, esperando poder desenvolvê-los mais adequadamente em 
futuras publicações. Por exemplo, em "Como se fazer um Corpo Sem Órgãos", os 
autores voltam a definir essa "entidade": 
 
i. Como sinônimo de plano de consistência da montagem de dispositivos. 
ii. Como campo de intensidade sinônimo do inconsciente em Esqui- 
 
 132 
zoanálise, recorrido por intensidades que constituem órgãos intensivos pré-biológicos, 
pré-subjetivos e pré-sociais que preparam as individuações por hecceidade, os 
devires-acontecimentos. Esses corpos singulares não se confundem com o corpo 
erógeno da Psicanálise, nem com o esquema corporal neuropsicológico, nem com o 
corpo vivido dos fenomenólogos. 
iii Como grau zero das intensidades e como limite de todo corpo (social, subjetivo etc). 
Num sentido biológico, trata-se do plano de composição virtual de todos os seres 
vivos e constitui um rizoma no qual todas as conexões transversais entre espécies são 
viáveis e não vigoram as diferenças evolutivas incompatíveis, de maneira que se 
podem produzir novas convivências além ou aquém das possíveis. 
iv. No campo social, o CsO é também o limite de toda formação social, e consiste num 
plano de imanência (planômeno) no qual podem ser gestadas as mais extraordinárias 
organizações sociais (ecúmenos), dependendo do grau de afin idade que exista entre o 
corpo social vigente e o CsO que lhe e imanente. 
Tentaremos concluir provisoriamente, definindo como se compõem e 
funcionam os dispositivos e agenciamentos e as máquinas abstratas. Se voltamos a 
uma distinção essencial dentro da teoria esquizoanalítica, a de caos, caosmos e 
cosmos, procuraremos caracterizar os conceitos de dispositivo ou agenciamento e o de 
máquinas abstratas e concretas, relacionando-as com a tríade antes mencionada. 
Acreditamos poder sintetizar esses complexos conceitos dizendo que, no 
campo do caosmos, podem-se instalar dois tipos de máquinas que processam a 
passagem de caos a cosmos, extraindo componentes heterogêneos desses domínios e 
operando conexões insólitas que podem gerar o novo revolucionário e inventivo. 
Trata-se das máquinas abstratas e das concretas. 
As máquinas concretas são os dispositivos agenciamentos. As máquinas 
abstratas podem ser entendidas num sentido propriamente dito ou apresentam os dois 
tipos: Máquinas de Guerra e Máquina de Estado. 
Um dispositivo agenciamento ou máquina concreta é uma rede múltipla e 
heterogênea de conexões, montada sobre um plano de consistência. Tal plano é o que 
"com pactua" os componentes do dispositivo e confere ao mesmo persistência, 
insistência etc. O dispositivo conecta e faz funcionar fragmentos tomados dos estratos 
(biológicos) chamados halo- 
 133 
plásticos, que são, por assim dizer, os que são capazes de efetuar translações que 
mudam sua "natureza". Mas o dispositivo extrai dos meios onde estão submersos os 
organismos outros fragmentos, montando-os com esses dois tipos de componentes 
territórios. O território é uma composição que excede na sua essência ao organismo e 
ao meio e às suas relações, mas que permanece ligado a eles. Os componentes 
decodificados de estratos (órgãos funções) assim como os dos meios (por exemplo, 
ritmos ou compassos que afetam os meios) tornam-se assim "propriedades" do 
dispositivo. Com eles o dispositivo constrói seus aspetos de conteúdo e de expressão. 
Mas esses dois aspectos já adquirem uma condição diferencial e nova, tornam-se 
respectivamente sistemas semióticos ou de signos e sistemas de ações e paixões ou 
pragmáticos. Por isso, todo agenciamento é, por um lado, agenciamento de 
enunciação, e pelo outro, de conteúdo. O que se faz é o que se diz. Mas neste 
momento, os enunciados ou expressões exprimem transformações incorporais ou 
sentidos que se atribuem aos conteúdos-corpos. Aqui nos tem parecido viável uma 
formulação nossa que é a seguinte: se, segundo o que acabamos de expor, o 
dispositivo, por um aspecto, continua ligado aos estratos e aos territórios (que são 
componentes do cosmos), por outro lado, continua também permeável às 
peculiaridades do caos, e é por isso que o consideramos uma "entidade" típica do 
caosmos. O caos continua operando sobre ele, decodificando os enunciados e 
desterritorializando os conteúdos. Tal potência é a que consegue incidir para voltar a 
fazer indistintos expressões e conteúdos e introduzir neles matérias não formadas, 
energias inespecíficas, forças não vetorizadas. Esse movimento leva o dispositivo a 
seu máximo de decodificação, desestratificação e desterritorialização que é o que 
constitui a Máquina Abstrata que o dispositivo efetua, sendo que, por outro lado, essa 
Máquina Abstrata pode ser considerada também como um dos aspectos do dispositivo. 
Mas uma Máquina Abstrata que, em um sentido, é o quarto aspecto do 
dispositivo, seu máximo de decodificação e de desterritorialização, caracteriza-se por 
ignorar as formas e as substâncias. Essa Máquina se compõe de matérias não formadas 
e de funções não formais filum e diagrama). A matéria se torna matéria movimento e 
as funções não formadas (o diagrama) são uma expressividade movimento. As 
máquinas abstratas não são abstratas no sentido das idéias platônicas transcendentes, 
universais e eternas, nem têm o significado lógico da abstração como unificação 
formalizada de atributos ou caracteres comuns induzidos de um 
 134 
conjunto de indivíduos. As máquinas abstratas são reais, embora não sejam ideais nem 
concretas, e atuais, embora não sejam efetuadas. São singulares e criativas, sendo que 
para se concretizarem e se efetuarem, elas precisam de conformar-se em um plano de 
consistência animado de uma variação intensiva contínua, a cujo nível conteúdo e 
expressão se tornam indiscerníveis. Mas essa máquina abstrata pura pode modular o 
agenciamento no sentido de uma máquina de guerra metamórfica (multiplicidade 
emissora de linhas de fuga e de vida, singularidades, quantas etc). Essa máquina de 
guerra, que como modalidade de existência e organização era típica dos nômades, 
pode abrir o dispositivo a outras máquinas criativas de música, escritura, amor etc. 
Mas a máquina abstrata pode se transformar em máquina de morte ou de 
destruição, tornar-se máquina de Estado que captura a de Guerra e toma a guerra por 
objeto, induzindo o dispositivo a perder toda sua capacidade de metamorfose. Em 
nosso entender, é no seio da imprevisível e multipolar combinatória de caos, caosmos, 
cosmos com produção, reprodução e antiprodução que as Máquinas Abstratas e seus 
dispositivos efetuadores se montam, e seu valor criativo ou letal se decide.na físico-química 
atual. Estas coincidem. Por outro lado, o discurso do texto de Deleuze e Guattari é 
feito da mesma maneira utilizada pelos artistas primitivos para fazerem seus quadros e 
obras de 
 18 
arte cotidianas. Eles se declaram bricoleurs, juntadores de idéias, sobretudo 
juntadores de elementos cuja característica em comum é não ter nada em comum. 
Isto, à primeira vista, poderia fazer supor que encontraremos uma salada de 
palavras. E não é uma salada de palavras o que se encontra nestes textos, mas um 
discurso fulgurante, como eu dizia, revelador, crítico e, sobretudo, incrivelmente 
inventivo. Então, esses ladrões bricoleurs fazem depender essa criatividade 
justamente da sua irreverência. Porque, apesar de fazerem citações com uma precisão 
assombrosa e com um cuidado bibliográfico surpreendente, eles conseguem fazer 
com que aquilo que roubaram diga alguma coisa nova, de tal forma que, se o autor 
que foi vítima do roubo chegasse a lê-lo, não se reconheceria nele. Há uma passagem 
no livro de Deleuze que se chama "Diálogos", onde o autor define seu método de 
criação teórica de uma maneira metafórica ou alegórica, dizendo que se trata de 
aproximar-se sigilosamente de um autor, pelas costas, e fazer-lhe um filho 
monstruoso, onde ele não se reconheceria. Só que monstruoso, neste caso, não quer 
dizer teratológico, não quer dizer ridículo, absurdo, disforme. Quer dizer maravilhoso, 
quer dizer absolutamente impensável para o próprio autor deste conceito. 
Sem poder ir mais além nesta introdução e supondo que haverá algum 
período destinado ao diálogo entre este amável público e eu gostaria de concluir 
referindo-me a uma das tantas relações que estes textos de Deleuze e Guattari 
estabelecem, e que é interessante: a relação com a Psicanálise. Eu a escolho quase 
que por um vício profissional, porque eu sou psicanalista, e a escolho também por 
ter uma certa suspeita da presença de vários especialistas na matéria, aqui, no 
público. Mas poderia falar também da relação crítica da Esquizoanálise com o 
Materialismo Histórico. Ou poderia falar da relação crítica da Esquizoanálise com a 
Lingüística estruturalista, com a Antropologia estruturalista, ou com as concepções 
capitalistas da Economia. Mas vou escolher provisoriamente a relação com a 
Psicanálise. 
Os textos de Deleuze e Guattari, a meu modo de ver, pelo menos para a 
minha leitura, vêm tendo uma modificação no percurso do tempo, com relação à 
Psicanálise. Quando, por exemplo, Guattari escreve "Psicanálise e 
Transversalidade", é um analisado de Lacan, e assina embaixo da teoria do 
significante, da concepção estrutural do psiquismo, 
 19 
etc. Mas manifesta uma franca preocupação política e social, que, como se sabe, 
estava ausente na obra de Lacan e na da maioria de seus continuadores. Já quando 
Guattari escreve, junto com Deleuze, "O Anti-Édipo", faz neste livro uma crítica 
radical à Psicanálise, que se pode resumir da seguinte maneira: a Psicanálise seria a 
ciência que dá conta de um modo de produção do sujeito psíquico. E este modo de 
produção do sujeito psíquico é, sem dúvida, o modo de produção edipiano. É no seio 
da estrutura edipiana, que todos os psicanalistas consideram única, eterna e universal, 
que se gera "o sujeito psíquico". Toda outra forma é considerada incompleta e 
aberrante. Deleuze e Guattari, no que dizem acerca do sujeito psíquico, afirmam que 
não existe um modo de produção deste que seja universal e eterno. Mas sim, que 
existe um modo historicamente dominante de produção do sujeito psíquico que, 
obviamente, é o edipiano. E se pode dizer que o modo edipiano de produção do 
psiquismo – vamos dizê-lo de uma maneira um tanto vulgar – é a produção de homens 
narcisistas, egoístas, ciumentos, invejosos, petulantes, facilmente decepcionáveis, 
majoritariamente heterossexuais, enfim, o que constitui o psiquismo habitual do nosso 
modo de ser, que é universal. Mas não é universal no sentido de que seja o único. Não 
é universal no sentido de que sempre tenha sido assim, e não é universal no sentido de 
que continuará sendo assim. Mas é universal no sentido de que é um modo de 
produção do sujeito psíquico que teve sucesso em sua capacidade de impor-se aos 
outros, e até na sua capacidade de produzir uma teoria que seja própria para descrevê-l 
o tal como ele é: a Psicanálise. Mas também é universal no sentido de que ele tem sido 
capaz de produzir elementos teóricos que lhe permitem fazer sua autocrítica. E 
descobrir que não é eterno, descobrir que não é o único possível, e descobrir que essa 
dominação que ele impõe sobre os outros é um imperialismo, como existe o 
imperialismo político, o imperialismo ideológico, o imperialismo econômico e até um 
imperialismo ecológico. Em "O Anti-Edipo", então, o psicanalista é qualificado de 
algo assim como um mecânico especialista na restauração, na reparação de um 
aparelhinho eletrodoméstico que cumpre uma função pobre, mas muito difundida. 
No percurso das obras posteriores, esta severa crítica inclui, além do mais, 
uma reformulação completa do que é o inconsciente (porque Deleuze e Guattari 
dizem que o inconsciente da Psicanálise ou é um teatro antigo, com Édipo, Jocasta, 
Laio e companhia, ou está 
 20 
estruturado como uma linguagem, e então parece um jogo de palavras cruzadas, 
dessas que saem nos suplementos de jornal aos domingos), que nunca foi pensado 
como uma fábrica, como um lugar de produção, pura e exclusivamente de produção, 
de uma produção desejante, de uma produção que ao mesmo tempo que cria, goza. E 
que só é abafada, só sofre, só entra em conflito com aquelas estruturas sócio-
econômicopolíticas e psíquicas que vivem da reprodução e não toleram a produção do 
novo. 
Nota-se também uma espécie de maior compatibilidade ou tolerância em 
relação à Psicanálise em "Caosmose", de Guattari, e no livro "O que é a Filosofia?" 
Nestas duas obras está colocado, com toda a clareza, que a teoria, o método, a técnica 
e o campo clínico psicanalítico são uma espécie de "valor do nosso mundo", da nossa 
cultura, e que o fato de que tenha sido enfatizada nele toda uma ética de resignação, 
de castração, de falta, de morte, não impede que, na prática cotidiana, os aspectos 
vitais, os aspectos produtivos, os aspectos revolucionários que todo psicanalista tem, 
apesar de ser psicanalista, se conectem, se articulem com aquilo que seu paciente tem 
de vivo, de produtivo, de revolucionário e gerem curas que, uma vez analisadas com a 
metapsicologia freudiana, são entendidas de uma maneira diferente daquela que as fez 
acontecer. Mas isso não importa. O que importa é que é um espaço social onde duas 
pessoas se encontram mais ou menos abrigadas, mais ou menos a salvo das formas 
mais grosseiras de repressão do sistema. E onde, dependendo do poder criativo de 
seus desejos, podem dar origem a um bom encontro, que deixe os dois realizados em 
uma dimensão que nada tem a ver com os axiomas do procedimento. 
Bom, eu não posso estender-me muito mais, porque não quero cansá-los e 
porque aguardo sempre, com expectativa, a participação do público. Mas queria 
concluir dizendo que Guattari veio ao Brasil pela primeira vez, trazido por uma 
instituição que eu fundei, junto com outros, o IBRAPSI – Instituto Brasileiro de 
Psicanálise, Grupos e Instituições que no ano de 1978 fez um congresso no Rio de 
Janeiro, no qual estiveram presentes, junto com Guattari, as máximas figuras da 
psiquiatria alternativa do mundo. Esteve Basaglia, esteve Castel, esteve Thomas 
Szasz, esteve Goffman, esteve Beker, enfim... E também, os colegas desta orientação 
do Brasil e da América Latina. Posteriormente a essa vinda de Guattari, eu tive 
ocasião de conviver e conversar com ele 
 21 
em várias oportunidades, quando o IBRAPSI o trouxe novamente e quando outras 
organizações o trouxeram. Guattari tinha uma particular simpatia pelo Brasil e parece 
que o Brasil,também, pelas idéias de Guattari. Penso que as idéias de Guattari nunca 
encontraram um campo tão fértil como aqui no Brasil. Devo dizer que, nessa 
convivência, eu tive umas tantas discordâncias com ele. Tivemos polêmicas públicas, 
em alguns congressos, porque tínhamos algumas divergências no que se refere à 
estratégia e à tática no processo de transformação do panorama da saúde mental. Mas, 
transcorrido o tempo, eu tive a oportunidade de constatar que minhas opiniões a 
respeito eram aparentemente mais realistas que as de Guattari. Eu prognostiquei, em 
várias ocasiões, para Guattari, que as transformações que ele propunha e que pareciam 
estar se realizando aqui no Brasil, particularmente no campo da saúde mental, e que 
outros companheiros haviam trazido com igual energia, por exemplo, Basaglia, não se 
iam realizar tão rápida e facilmente como eles pensavam. Bom, isso já tem uns doze a 
treze anos. E quando examinamos o panorama da saúde mental aqui, o que se vê 
ainda é uma dominância da proposta psiquiátrica clássica, da administração excessiva 
de psicodrogas, da terapia biológica com choques e insulina, um tratamento carcerário 
feito ao doente mental. E vê-se que os movimentos deflagrados por Guattari e por 
Basaglia, por Castel, Foucault e por nós mesmos não têm tido o sucesso que se 
esperava. Aliás, eu faço questão de insistir em que, pode ser que eu tenha tido razão 
quando adverti que a coisa não iria ser tão fácil, porque junto com essa permanência 
da Psiquiatria clássica, também vemos a proliferação de um tipo de Psicanálise que, 
justamente, Deleuze e Guattari criticaram de maneira irrefutável. Mas devo confessar 
que não sinto nenhuma satisfação em ter tido razão. Pelo contrário, devo a Guattari 
uma força, um entusiasmo, uma vontade e um desejo, que realmente se despertaram 
em mim com a leitura de sua obra e com meu conhecimento pessoal dele, e que todas 
as dificuldades passadas não conseguiram apagar por completo. Nesse sentido estou 
muito grato a meu amigo, e prometo, publicamente, e peço a quem se interesse por 
isto que me acompanhe, porque não abandonaremos a luta. Pode-se fazer a crítica da 
organização, pode-se fazer a crítica dos resultados, como disse Guattari, mas não se 
pode fazer a crítica do desejo. E este desejo é o que Guattari fez viver em muitos e 
que continuará vivendo. Muito obrigado. 
 
 22 
Debate 
Pergunta: Qual é a proposta da Ecosofia? 
Baremblitt: A relação entre o gênero humano e esse campo denominado 
natureza é uma relação que tem sido pensada e tem sido atuada, executada, quase 
sempre de forma assimétrica e hierárquica. Quer dizer, supõe-se que o homem não é, 
ou pelo menos não é exclusivamente um ser natural. E que ele deve relacionar-se 
com a natureza submetendoa, colocando-a a seu serviço, e utilizando-a, segundo um 
conhecimento ditado pela razão – por UMA razão, sobretudo a razão ocidental, que 
seria sinônimo de verdade, sinônimo de eficiência e sinônimo de justiça. Acontece 
que tem havido pensadores, tem havido povos, tem havido modos de analisar a vida 
que não aceitam essas premissas. Que consideram que o homem é um ser natural e 
que sua relação com a natureza não deve ser uma relação de domínio, deve ser uma 
relação de acompanhamento, de harmonia, em que o homem não pode impor sua 
forma à natureza com a suposição de que essa forma racional é sinônimo de verdade 
indiscutível. Mas ele pode aprender da natureza, porque a natureza contém um saber 
que não é racional, mas que é mais propício para a vida que a organização que os 
homens se deram em nome da razão. Então, isso se pode dizer para qualquer modo de 
produção, para qualquer organização social, mas se pode dizer especialmente para o 
capitalismo. Porque o capitalismo é um modo de organização das relações humanas 
que está baseado na exploração do homem pelo homem, na dominação do homem 
pelo homem, na mistificação do homem pelo homem. E uma concepção assim, se faz 
isso com o homem, como não iria fazer o mesmo com a natureza? A conclusão é que 
esse sistema, que contém em sua estrutura, em sua essência, a racionalidade, o saber 
científico, a consciência, tem conduzido o mundo a uma situação como a atual, em 
que, dentro do gênero humano, a riqueza, o peso da miséria, são distribuídos de 
forma cada vez pior. No mundo atual temos cada vez mais miseráveis, cada vez mais 
analfabetos, cada vez mais enfermos, cada vez mais deserdados. E temos levado a 
natureza a um ponto tal, que até essa soberba da cientificidade e do produtivismo 
capitalista teve que parar para examinar como as coisas estão, porque corremos o 
risco de perder o lugar em que vivemos, sejamos pobres, ricos 
 
 
 
 23 
ou como for. E por outro lado, o mundo da máquina é um mundo que já tem sido 
acusado, em diversos graus, de demoníaco, ou tem sido idealizado como a salvação 
do universo. Deleuze e Guattari dizem que o mundo das máquinas é um mundo que 
tem muito para ensinar-nos também. Mas que é um mundo que não pode ser isolado 
dos interesses da humanidade em seu conjunto e não pode ser utilizado na 
exploração destrutiva da natureza, que é imanente com a vida humana. 
Então, a Ecosofia de Guattari propõe um saber acerca do mundo da 
sociedade, do mundo da natureza e do mundo da mente, incluindo no mundo da 
sociedade a vida maquínica, o mundo das máquinas. É uma espécie de democracia 
nosológica: tudo tem o mesmo nível de valor, tudo é forma de vida, tudo é produtivo 
e tudo pode ser encaminhado no sentido de uma harmonia crescente. Mas esse 
trabalho de conhecer e de transformar não pode ser feito em nome de nenhuma 
entidade que seja considerada superior às outras, de nenhuma tirania, de nenhuma 
transcendência. Esta é mais ou menos uma forma de resumir essa questão. 
P.: Eu queria saber o que você pensa a respeito da questão do caos. Guattari 
fala muito sobre o caos que é inerente como forma de criar novas formas de 
conhecimento. 
B.: Bom, nessa observação que fiz anteriormente, mostro que a obra de 
Deleuze e Guattari tem um componente muito importante de Ontologia, ou seja, de 
Teoria do Ser, de como as coisas são. Essa Ontologia afirma que a essência última é 
produção desejante – os processos da mesma são aqueles segundo os quais o mais 
substancial do existente funciona ao acaso. Ou seja, a realidade é constitutivamente 
desordenada, é constitutivamente imprevisível, é constitutivamente caótica, coisa que 
já diziam alguns filósofos, e coisa que hoje a microfísica e a macrofísica certificam. 
O que a ciência tinha estudado e aquilo no qual a política se baseia é o estudo da 
regularidade de pequenas ilhotas de ordem que se dão tanto no campo da natureza, 
como no campo da vida social, e no campo do psiquismo. Pequenas ilhotas em que o 
que predomina é uma repetição, uma regularidade, que a ciência estuda e que 
formaliza em leis. Mas, a rigor, toda a potência produtiva da realidade em qualquer 
âmbito de que se trate depende mais dessa natureza caótica, dos encontros ao acaso, 
das pequenas partículas (como diziam os estóicos, ou Demócrito), mais do que desse 
planejamento racional e 
 
 24 
exploratório que se faz daquelas áreas de regularidade sujeitas a leis. O que Guattari 
propõe, tanto como tema de investigação, de pesquisa, como forma de atuação ética, 
como forma de militância política, é a construção de dispositivos que tenham em 
conta essa potência produtiva do caos, do acaso, e elaborem estratégias e técnicas 
destinadas a produzir forrmações complexas no seio do acaso. Isto quer dizer 
formações mais ou menos ordenadas, mas com uma ordem elástica, com uma ordem 
fraca, que permita o efeito produtivo, que permita a emergência do caos criador. Nesse 
sentido, politicamente, e este talvez seja o tema da discussão, Deleuze e Guattari têm 
muito a ver com a tradição anarquista e com a tradição autogestiva de todos os 
movimentos históricos dessa característica.Mas esta afirmação é feita não apenas 
desde uma leitura política, mas também de uma leitura das afirmações da física das 
nebulosas, ou da física do comportamento das partículas atômicas, ou de certa 
característica das combinatórias biológicas, pelas proteínas alostéricas, ou dos 
sistemas tipo cadeia de Markoff ou da matemática de Riemann, enfim, de todos 
aqueles campos do saber em que se tem descoberto isto mesmo: a natureza caótica do 
ser e a importância de construir dispositivos que não sejam rigidamente ordenados, 
mas sim que dêem possibilidade da emergência criativa do caos. Deleuze havia 
produzido o termo Caosmos, que é essa combinação de cosmos com caos. Isto não 
quer dizer que seja a hegemonia de uma ordem constituída e mantida rigidamente. 
Guattari acrescenta CAOSMOSE. Eu suponho que não se refere tanto a esse universo 
caótico e ao mesmo tempo cosmótico, mas sim ao procedimento pelo qual se pode 
viver e produzir dentro dele. Existe a palavra osmose, então, eu imagino que é uma 
metáfora tomada daí – caos e cosmos articulados e propostos como procedimento. 
P.: Quando ele fala dessa ordem em um movimento de desordem – que é 
uma ordem que não quer dizer normativização, o que se faz com a angústia que a 
gente sente perante a perda da certeza e da segurança que é dada pelo Instituído? 
B.: Nas características que apresentam certas propostas da f'ilosofia 
socrática, platônica; ou de certas correntes psicanalíticas atuais, que têm uma enorme 
influência de Heidegger, de Kierkegaard, nós vemos que a angústia é atribuída a uma 
característica essencial do sujeito psíquico. Quer dizer, das três teorias freudianas da 
angústia, a que 
 
 25 
predomina, nestas leituras, é a de que a angústia é uma espécie de percepção da ação 
da pulsão de morte. Entretanto, em Freud, encontramos uma primeira teoria da 
angústia que era produto do recalque, do impedimento de que a libido se realizasse em 
encontros criativos e prazerosos. Desde logo, nestas duas posturas, existe uma 
filosofia por detrás. Então, se nós pensamos que a angústia é a percepção de uma força 
no nosso interior, que é a pulsão de morte, e que é constitutiva da realidade no mesmo 
nível, na mesma hierarquia que a de vida, logo, naturalmente, a angústia adquire um 
estatuto, adquire uma respeitabilidade, a angústia é promovida como necessária, como 
inevitável e como "atendível", no sentido de que uma certa dose de angústia é um 
elemento indicador para levar-nos a um comportamento adequado, apropriado. Na 
concepção de Deleuze e Guattari, a angústia é produto da antiprodução, que o mundo 
do instituído e do organizado exerce sobre nossas forças físicas, psíquicas e sociais. 
Em conseqüência, é um efeito indesejável e contornável. Agora, não há receita contra 
a angústia. Mas, se sabemos que essa angústia exprime um mal-estar perante a 
possibilidade da perda e da destruição de coisas que não nos fazem bem, a receita 
contra a angústia é o entusiasmo, e, como dizia Espinoza, as "paixões alegres". É a 
plena certeza de que o que está sendo libidinalmente feito vai ser melhor, porque é 
novo. Não é que se desconheça, nessa teoria, a existência da angústia, mas eu acho 
que se poderia resumir dizendo que esta teoria se nega a fazer-lhe propaganda, porque 
considera que "a propaganda é a alma do negócio". 
P.: O senhor trouxe para nós um Guattari de final de análise, e nesse ponto 
eu acredito que a ética que ele traz é de um desejo decidido e não vejo como essa ética 
de um desejo decidido de final de análise faça contraposição ou entre em contradição 
com a ética da Psicanálise a partir de Lacan. Porque me parece que a partir dé Lacan, 
esse termo, ciência do real, que está descrito no L'étourd, em Lacan, essa proposição 
dele do real como algo que é impossível, como algo que escapa, que é sempre novo – 
isso está em Lacan. Acredito que Guattari traz esse final de análise, esse entusiasmo 
do final de análise, de um sujeito que produz e que traz um desejo decidido por algo 
que é totalmente novo. Então, por que essa contraposição com relação ao que o senhor 
estava dizendo? Que a ética da Psicanálise seria uma ética da resignação, da falta, da 
morte... Será que ainda não seria uma leitura de Freud, ainda, talvez, com 
 
 26 
pressupostos anteriores aos que Lacan trouxe para nós depois desse retomo a Freud? 
Onde justamente ele resgata, no texto freudiano, essa radical idade do novo na 
estrutura? Eu gostaria que o senhor falasse, porque me parece que Guattari é fruto de 
uma análise, ele traz esse entusiasmo próprio de alguém que pôde chegar ao seu final 
de análise e trabalhar e viver e produzir... Gostaria que o senhor falasse um 
pouquinho sobre isto. 
B.: Eu acho uma observação interessante e não muito fácil de responder. 
Porque, por exemplo, Reich também é fruto de uma análise e, sem dúvida, ele 
produziu uma teoria do psiquismo, uma teoria das pulsões, uma proposta de 
articulação entre a técnica psicanalítica e a militância política, que é radicalmente 
diferente de todo "retomo a Freud", e particularmente do kleiniano e do lacaniano. 
Tausk, por exemplo, também foi analisado, e ficou psicótico e se suicidou. Otto 
Rank,também. Jung, que também foi bem analisado, foi qualificado, por Freud, de 
profeta, ironicamente, porque teria abandonado a Psicanálise. Toda a Psicanálise 
anglo-saxônica, e particularmente a norte-americana, é qualificada por Lacan, 
depreciativamente, de human engineering, para significar que é uma análise que só 
serve para a "adaptação", e que o único retomo verdadeiro a Freud é o de Lacan. 
Então, esse problema de atribuir os méritos produtivos de Guattari ao fim de uma boa 
análise, pelo menos, é discutível. 
P.: Estou me referindo à ética que o senhor traz de Guattari, de um desejo 
novo. Ela me faz lembrar os conceitos, inclusive, de algo que se produz em um final 
de análise – é um desejo desse tipo, que é fundamentalmente novo. Então, eu não vejo 
aí nenhuma contradição. 
B.: Eu sei, mas esse é o ponto seguinte. O primeiro ponto é se Guattari foi o 
que foi como resultado de uma análise. Eu não afirmo o contrário, mas, pelo menos, 
eu deixaria em aberto. Agora vou passar aos pressupostos. Em princípio, digamos, 
deixemos entre parênteses o resultado de um procedimento. Porque, por exemplo, 
Deleuze, que provavelmente é responsável por cinqüenta por cento desta obra, jamais 
se analisou. Isso, deixamos entre parênteses. Mas, com respeito aos pressupostos, isso 
é mais complexo de explicar. Fazendo um resumo injusto, eu acho que se pode fazer 
passar a questão por isto que você mencionou. Por exemplo, na teoria dos três 
registros, para Lacan, o Real é impossível. Esse real impossível é o que exige uma 
produção 
 27 
imaginária, que, por sua vez, subordinada ao simbólico, vai ser o pré-requisito de toda 
a produção do novo. Justamente, a famosa ética do analista consiste em colocar-se em 
um lugar de suporte da transferência e da não resposta à demanda, para que o 
mecanismo imaginário dispare, e para poder pontuá-lo impondo o simbólico. Para 
Deleuze e Guattari, no real "tudo" é possível, porque o sujeito é parte do real. Não 
existe essa diferença entre o mundo da subjetividade, que é o mundo de 
negatividades, na linguagem pensada, por exemplo, como "a morte da coisa", não 
existe o pré-requisito da castração, não existe a submissão à lei, não existe a 
identificação com a metáfora paterna; o que existe é o funcionamento do psíquico que 
tem a mesma essência do real. Então, a proposta não é a de uma repetição diferencial, 
como em Lacan, mas a proposta é a de uma pura diferença, de uma multiplicação 
diferencial incoercível. Não se precisa de um procedimento que nos convença de que 
o real é impossível, e que, por esse motivo, nós poderemos "primeiro" imaginá-lo, 
"depois" simbolizá-lo. Isso implica uma teoria da linguagem, isso implica uma teoria 
do Real, em geral, e issose adere a toda uma linha filosófica que é a que enfatiza o 
Ser como falta, ou a falta constitutiva do Ser. Para Guattari e Deleuze, isso não existe, 
a não ser no molar. Para estes autores nada é mais absurdo do que afirmar que houve 
um retomo "verdadeiro" a Freud. A Freud, houve milhares de retornos. E o que há é 
um retomo de moda, ultimamente. Mas, utilizando Freud como matéria-prima teórica, 
pode-se fundamentar a proposta de um desejo como produção e não de um desejo 
como insistência em reeditar um objeto perdido e jamais tido. Ou seja, o fundamental 
aí é o estatuto do nada, da ausência, da falta, e a ética não é a ética heideggeriana, não 
é a ética do ser para o nada, mas é a ética de Nietzsche, é a ética de um ser para a luta, 
de um ser para a vida, que lhe vai permitir uma superação da dificuldade, não a de um 
ser para a resignação. 
P.: No final do seminário onze, Lacan fala, quando trata dos quatro 
conceitos fundamentais, desse desejo como uma diferença pura. Desse desejo como 
pura diferença – no final, ele define desejo nesse sentido. Estou insistindo nisso, 
porque Lacan, nesse seminário, lá pelos anos setenta, faz uma retificação nestes 
conceitos de Real, Simbólico e Imaginário, e ele dá uma prevalência ao conceito de 
Real, dizendo que, quando afirmou que o "inconsciente era estruturado como uma 
 
 28 
linguagem", ele não havia dito que o inconsciente era uma linguagem. Ele disse 
apenas que o inconsciente era estruturado COMO uma linguagem. E daí ele vai 
extrair toda uma ciência do Real, vai estabelecer uma lógica, que vai desestimular os 
falsos maternas, e vai trazer toda uma concepção do real. A rigor, a estrutura vai ser 
Real. Então, ele vai fazer um corte aí nessa primeira leitura dele, anterior, e vai 
privilegiar o registro do real. 
B.: Mas acontece que esse é um Lacan para o qual o Real é estrutura. Para 
Deleuze e Guattari, a estrutura é uma dessas "ilhotas de ordem", de regularidade, das 
quais a ciência produz as leis. Mas a essência do Real, o que é verdadeiramente 
produti vo, não são as estruturas, são os fluxos, são o reverso da estrutura. Então, 
falam de dois reais totalmente diferentes, distintos. O problema é que, quando Lacan 
formula as estruturas, em realidade, ele é , digamos assim, mais platônico que nunca. 
Porque você se lembra da famosa farmácia de Platão, a famosa tentativa de ordenar o 
mundo todo em espécie, gênero, etc., ou seja, o método da divisão. A proposta 
lacaniana é uma forma matêmica, de fazer a mesma coisa. Então, o que Deleuze e 
Guattari dizem é que, quando um sujeito é produzido, quando é produzida uma 
subjetivação, ela é produzida como componente de um acontecimento. E não existe 
uma forma estrutural que dê conta desse sujeito. Porque esse sujeito não é uma 
variação de uma forma, pelo contrário, é uma forma radicalmente nova. Então, não 
tem comparação possível. São dois reais diferentes. 
P.: Como Guattari poderia se entusiasmar com a situação ética do Brasil 
noventa e dois? 
B.: Bom, eu não sei como poderia não se entusiasmar, eu apenas sei como 
foi que me entusiasmou a mim. Guattari disse, textualmente, uma vez, que 
considerava o Brasil como um imenso laboratório social, de onde podiam surgir os 
mais incríveis inventos. É claro que a gente sabe que é um laboratório onde alguns ou 
muitos dos experimentos acabam em resultados socialmente trágicos. Mas ao mesmo 
tempo eu acho que talvez se trate simplesmente de comparar, por exemplo, o Brasil 
com a Comunidade Européia, ou com os Estados Unidos na atualidade. Eu acho que 
(bom, é uma .opinião pessoal) mas eu acho que, nesse momento, as possibilidades de 
uma desordem produtiva no Japão, ou no Mercado Comum Europeu, ou nos Estados 
Unidos, são, no mínimo, menos prováveis que na América Latina. Eu viajo 
 29 
freqüentemente para a Europa e vejo que, neste momento, a luta política convencional 
na Europa, na Espanha, suponhamos, que tem Partido Anarquista, Partido Comunista, 
Partido Social-Democrata, Partido Democrático Cristão – a luta política convencional 
– consiste em que, nessas eleições, os anarquistas perdem um vereador e os 
democratas cristãos ganham um. E na próxima vez acontece o contrário, e mais ou 
menos nisso consiste o movimento político, digamos, clássico, visível. Bom, até desde 
este ponto de vista, um país como o Brasil, que sofreu uma ditadura de mais de vinte 
anos e que, em pouquíssimo tempo, consegue, digamos assim, uma eleição direta, tem 
a desgraça de perder o presidente que escolheu, inicia um novo processo eleitoral e 
escolhe errado, mas escolhe errado por cinco milhões de votos, sobre um parque 
eleitoral de setenta milhões; que consegue, de uma forma ou outra, visualizar seu eno 
e, através de seus representantes, duvidosos ou não, afastar seu presidente do cargo – 
além disso, ainda existe um partido político que não tem similar em nenhum outro 
lugar na América Latina... eu acho que é um país interessante. Eu não digo que seja 
para ser otimista, mas pelo menos entusiasta se pode ser. 
P.: Eu gostaria que o senhor colocasse um pouco a questão do paradigma 
estético. Gostaria que o senhor falasse um pouco sobre os significados desse 
paradigma estético. 
B.: Acho que esta será nossa última troca. Eu acho que essa questão do 
paradigma estético está prefigurada em toda a obra de Deleuze e Guattari, na medida 
em que eles consideram que o discurso, por exemplo, musical, e nesse sentido seguem 
Nietzsche claramente, que diz que as verdades, ou o novo, o transformador, isso vem 
de qualquer tipo de produção. E particularmente da produção artística. Em diversas 
passagens da obra eles fazem questão de tomar contribuições literárias, musicais, 
pictóricas, estéticas, como lógicas que inteligibilizam o processo do real e propiciam 
as mudanças com muito maior antecipação do que outros paradigmas. Então, como 
críticos que são do paradigma científico, que é característico da modernidade, essa 
proposta de adotar um paradigma estético tem a ver com essa potência que eles 
atribuem à produção artística. 
P.: Como antecipadora? 
B.: Como antecipadora e como preservadora da criação, da vida, da 
harmonia. E também como receptora da desordem criativa, como se 
 30 
vê, por exemplo, na música moderna, na música abstrata... enfim, a arte sempre está 
além de qualquer descobrimento praticado com outra metodologia em outro campo. 
Provavelmente o único campo a que eles atribuem a mesma capacidade de gerar esse 
famoso pensamento do fora, como dizia Foucault, é a loucura. 
Bom, agradeço muitíssimo a atenção de vocês e espero que, em alguma outra 
ocasião menos triste, nos encontremos outra vez. Muito obrigado. 
Livros de autoria de Felix Guattari: 
 Psicanálise e Transversalidade 
 Revolução Molecular: Pulsações Políticas do Desejo 
 Inconsciente Maquínico 
 Cartographies Schizoanalitiques 
 As Três Ecologias 
 Caosmose. Um Novo Paradigma Estético 
Em colaboração com Gilles Deleuze: 
 Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia 
 Poli tique et Psychanalyse 
 Kafka. Por uma Literatura Menor 
 Mil Platôs 
 O que é a Filosofia? 
Em colaboração com Suely Rolnik: 
 Micropolítica – Cartografias do Desejo 
Em colaboração com Antonio Negri: 
 Novos Espaços de Liberdade 
Outros: 
 Felix Guattari entrevista Lula 
 
 
 31 
A Última Viagem do Capitão Guattari* 
Nos últimos dias de agosto, faleceu durante o expediente de trabalho no 
Hospital La Borde, em Paris, o militante político, psicanalista e intelectual francês, 
Felix Guattari. 
A notícia deixou terrivelmente penalizados todos aqueles que de uma ou de 
outra maneira foram seus amigos, companheiros de percurso e beneficiários de suas 
extraordinárias idéias e iniciativas. 
A cultura mundial perdeu um dos mais originais e produtivos expoentes nos 
últimos quarenta anos. 
Ainda é prematuro avaliar a estatura de Guattari, da qual é difícilfalar sem 
associá-la à de seu inseparável companheiro, o filósofo Gilles Deleuze (co-autor de 
boa parte de sua obra), apesar da projeção quase planetária que lhe atribuímos. 
Guattari morreu aos 62 anos de idade, de forma súbita e no pleno uso de uma 
formidável vitalidade física, bem como de uma inteligência tão vigorosa quanto 
esplêndida. 
Outro importante pensador recentemente desaparecido, Michel Foucault, 
disse em certa ocasião, referindo-se à obra de Gilles Deleuze, uma frase que se tomou 
célebre: – "O século será deleuziano". Por extensão, e guardada a devida distância que 
separa Foucault deste que escreve estas linhas, permito-me afirmar que todas as práxis 
libertárias das próximas décadas serão, assim denominadas ou não, guattarianas. 
Não é exagerado afirmar que a "singularidade" Guattari é de um tal porte 
que, seguramente, o toma membro relevante de uma família (ou melhor dizendo, de 
uma filiação intensiva) que inclui entre seus membros, arbitrariamente mencionados, 
Sartre, Fanon, Basaglia e outros. Esses "outros" são, ao mesmo tempo, poucos 
escolhidos... e infinitamente numerosos, de cuja vida e morte nada se saberá 
publicamente, Guattarianos de fato. 
É literalmente impossível listar aqui os textos escritos por Guattari, bem 
como os que publicou com Gilles Deleuze, Tony Neri e outras relevantes figuras 
intelectuais (algumas delas brasileiras), porém, 
* Artigo publicado no Jornal do Movimento lnstituinte de Belo Horizonte, 1993. 
 32 
cabe ressaltar que toda sua obra contém certas características, que é imperioso 
pontuar. 
Em primeiro lugar, todos e cada um desses escritos estão ligados a 
movimentos e ações concretas de transformação do mundo, no sentido do combate a 
qualquer forma de exploração, dominação e desinformação ou mistificação do homem 
pelo homem. 
Em segundo lugar, nunca se reduzem a um gênero que possa ser enquadrado 
em uma especificidade acadêmica ou profissional consagrada e que permita qualificá-
las de científicos, literários, ideológicos... ainda que contenham elementos do que de 
melhor há em cada um destes campos do saber. 
Em terceiro plano, nada do que Guattari escreveu ou instituiu e desenvolveu 
é repetição, continuação, ampliação ou comentário do discurso ou da escola de algum 
mandarim teórico da moda, por mais ilustre e exitoso que este seja considerado. 
Invariavelmente, as idéias do extinto amigo são autênticas invenções, em que o 
essencial é a novidade radical, surpreendente, isólita, audaz, produto de uma erudição 
e de um rigor assombrosos, porém empregados com força, leveza e entusiasmo plenos 
de inspiração e refratários a qualquer pretensão de sistematicidade doutrinária 
destinada a formar igrejas, partidos, corporações ou sociedades multinacionais de 
epígonos, adeptos ou iniciados. 
Por último, convém admirar-se de que a profunda modéstia, assim como o 
humor que percorrem seus textos (o que o levou a qualificá-los de "proposições 
descartáveis") não impedem que os mesmos se postulem espinozianamente como 
proposições de vida ou para a vida, e se coloquem, incondicionalmente, a serviço de 
todo aquele que deles queira se apropriar, sem qualquer ritual de iniciação para 
adquiri-las e sem dívida nenhuma a pagar pela "paternidade" dos conceitos. Seu único 
motivo é o incremento da Produção e do Desejo em todos os domínios da realidade e 
para todos "os homens de boa vontade", que, como dizia Nietzsche, somente pode ser 
a Vontade de Potência. 
O capitão Guattari empreendeu sua última aventura de exploração de 
mundos desconhecidos. Os que viajaram com ele em várias de suas expedições não 
tiveram a .sorte de receber as cartas de navegação deste último itinerário. 
 33 
Mas as fascinantes cartografias que produziu até agora estão à disposição das 
novas gerações que anseiam por planejar trajetórias intrépidas para metamorfosear o 
sinistro universo que o Capitalismo Planetário Integrado lhes tem destinado. 
Os amantes do Poder, do Lucro e do Prestígio, os politiqueiros engomados, 
os "homens cinzentos" (segundo o terrível diagnóstico de D.H. Lawrence, um dos 
favoritos de Felix) ficam dispensados da leitura das memórias do Capitão Guattari. 
Porém nunca dormirão tranqüilos... a Revolução Molecular está em marcha. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 34 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 35 
In Memoriam de Gilles Deleuze* 
Filósofo Nômade 
Senhoras e Senhores, 
Desejo começar essa conversação agradecendo ao Movimento Instituinte de 
Belo Horizonte e às entidades que colaboraram na organização desse evento, por 
haverem-me dado a honra de dissertar acerca da obra e da figura de Gilles Deleuze. 
Igualmente sou grato ao auditório por sua presença. 
Essa homenagem deveria ser muito mais ampliada e reiterada no mundo 
inteiro, e não sabemos se haverá de sê-lo. Por isso nossa contribuição nesse sentido 
nos parece tão discreta quanto necessária e insuficiente. 
Como uma aclaração, antes de entrar no tema, creio obrigatório pontuar o 
seguinte: supõe-se que, para falar acerca de um autor dessa envergadura, e em 
circunstâncias tão solenes como a presente, é preciso conhecê-lo integralmente. 
Por razões que, segundo espero, ficarão explícitas no curso dessa 
conferência, devo reconhecer que não tenho esse privilégio. Meu domínio desse 
monumento do saber é limitado, e questiona meu direito a ocupar hoje este lugar de 
expositor. Não obstante, tenho o consolo de crer que, se bem existem muitos que têm 
estudado Deleuze mais e melhor que eu, ninguém pode estar seguro de ser capaz de 
um trânsito exaustivo por esse pensamento, que, por sua própria natureza, é 
inesgotável. 
Resulta tão pouco original quanto inevitável começar esse breve percurso 
com a famosa sentença pronunciada pelo talento de Michel Foucault. É sabido que 
esse formidável intelectual disse: "O SÉCULO SERÁ DELEUZIANO". 
Os comentários acerca dessa frase, que encantou somente uns poucos e 
escandalizou muitos, poderiam ocupar toda essa conferência. 
Que pretendia dizer Foucault com tal afirmação? 
 
* Palestra organizada pelo Movimento Instituinte de Belo Horizonte em dezembro de 1995 
 36 
O mesmo Deleuze, consultado sobre o assunto, e com a modéstia que 
sempre lhe foi própria, lhe atribuiu um sentido ao mesmo tempo carinhoso e 
humorístico. 
Sem descartar esses significados, tratarei de reduzi-los a dois, formulados, 
por minha vez, como interrogações: 
Trata-se de prognosticar que a cultura dos anos que virão chegará a 
reconhecer a obra de Deleuze como a máxima expressão do século XX? Ou, talvez, 
trata-se de manifestar a esperança de que o período que falta para completar este 
século, ou, quem sabe, todo o curso do século XXI, será, em sua realidade, expressão 
concreta das idéias de Deleuze? 
Permito-me sustentar que a primeira interpretação é altamente provável, e a 
isso me referirei a seguir, dentro das limitações dessa dissertação. Creio sinceramente 
que a obra de Deleuze é, senão a única, uma das mais perfeitas do nosso tempo. 
E quanto à segunda compreensão, temo que não tenhamos a menor 
segurança sobre o assunto. Assim como nosso século vai mal, e como o próximo nos 
antecipa, não apenas não podemos dizer que será deleuziano, senão que nem sequer 
sabemos se será, de maneira alguma. O certo é que tentar sintetizar, em uma breve 
exposição, a obra e a figura desse pensador, que, segundo Foucault, dará seu nome à 
história de nossa época, é uma tarefa árdua. 
Devemos, inclusive, registrar outra peculiaridade que contribui para essas 
dificuldades: é a extraordinária co-autoria de Deleuze e Felix Guattari, seu dileto 
amigo, também recentemente falecido. 
Se bem a publicação a dois não seja uma novidade absoluta (basta recordar 
os textos de Marx e Engels ou de Freud e Bullit), a colaboração entre Deleuze e 
Guattari provavelmente é a única em seu gênero,dado que a mesma é a prova 
coerente de toda uma teoria assumida não-autoral da escrita. 
Ainda que possa resultar um pouco pesado, devido à fabulosa e prolífica 
obra desse autor, é nosso dever começar por uma mínima biografia e por uma sucinta 
enumeração da bibliografia deleuziana. 
Deleuze nasceu em Paris em 18 de janeiro de 1925. Graduou-se em Filosofia 
em 1948, tendo sido aluno de Ferdinand Alquie e Georges Canguilhelm. Ensinou 
Filosofia em um liceu e freqüentou as aulas e conferências de Jacques Lacan, Pierre 
Klossowsky, Michel Butor e Jean 
 37 
Paulhan. Em 1957 obteve o título de professor assistente na Sorbonne; em 1960, o de 
agregado de pesquisas no CNRS (Conselho Nacional de Pesquisas Sociais). 
A partir de 1964 deu aulas por vários anos na Universidade de Lyon, e de 
1969 a 1987 foi professor na Universidade de Vincennes em Paris VIII. Em 1987 se 
aposentou. 
Segundo Deleuze, dois encontros foram fundamentais em sua vida 
intelectual. O primeiro com Michel Foucault, em 1962, e o segundo com Felix 
Guattari, em 1969. 
Sintetizando humoristicamente suas tiradas, Deleuze disse algo que talvez se 
possa traduzir assim: "Viajando por aí, jamais aderi ao Partido Comunista, jamais fui 
fenomenólogo ou heideggeriano, nunca renunciei a Marx, nem jamais repudiei Maio 
de 68". (Le Magazine Littéraire, Setembro de 1988). 
Essa oração despretensiosa resume algumas das singularidades do Mestre, às 
quais, tomando a liberdade de falar em primeira pessoa, eu poderia, figuradamente, 
acrescentar: 
"Nunca me preocupei em estar na moda, nem a dos círculos políticos, nem a 
dos acadêmicos. Nunca venerei filosoficamente a Parmênides, nem a Sócrates, nem a 
Platão, nem a Aristóteles, nem aos neo-platônicos, nem a Descartes, nem a Kant, nem 
a Hegel, nem aos positivistas... assim como nunca fui propriamente existencialista, 
nem estruturalista, nem materialista dialético. O mesmo me aconteceu científica e 
artisticamente com Euclides, Newton, Freud, Saussure, Weber, Wittgenstein, Lacan, 
Lévi-Strauss ou Toynbee... ainda que me empenhe a conhecê-los tanto como a 
Sófocles, Leonardo ou Shakespeare. 
Meus personagens filosóficos favoritos têm sido, sem dúvida, ou bem 
estranhos, ou pouco exitosos, ou pouco freqüentados, ou quase francamente 
marginais. Heráclito, Demócrito, Arquimedes, os sofistas, os estóicos, os epicuristas, 
os hedonistas, tanto quanto Duns Escotto, Espinoza, Leibniz, Hume, Nietzsche e 
Bergson, assim como Pierce, Hejmlev, Clastres, Riemann, Chatelet, ou bem Reich, 
Kafka, Artaud, Carroll, Beckett, Proust, Miller, Canetti, Bacon, Kleist, Duchamps... e 
tantos outros". 
Essa larga e incompleta enumeração tenta apenas ilustrar, em primeiro termo, 
a fabulosa erudição e versatilidade de Deleuze e, em 
 38 
segundo lugar, dois tipos de relação heurística com as obras e com seus criadores. 
Ao primeiro grupo citado, aplica-se a proposta que Deleuze enunciava como 
seu projeto juvenil: "Acercar-me sigilosamente a um autor pelas costas e fazer-lhe um 
filho monstruoso, em que não se possa reconhecer". Mas com a ressalva de que "para 
fazer isso com o dito por esse autor, teria de estar absolutamente seguro de que o 
havia efetivamente dito". Aqui, "monstruoso" deve entender-se de acordo com o que 
Deleuze aprendeu de seu mestre Canguilhem... ou seja, como o anômalo, aquilo que 
está nos limites, ou até mais além de sua própria espécie. Por outra parte, esse afã de 
certeza é o que explica a insuportável precisão das citações nos escritos deleuzianos. 
Ao segundo grupo mencionado, corresponde uma apropriação menos crítica, 
muito mais empática, mas tampouco integralmente fiel, nem literal, típica dos 
comentários e teses acadêmicas que Deleuze detestava. 
Essa capacidade de Deleuze, compartilhada por seu amigo Guattari, de 
conhecer e circular pela Filosofia, pelas Ciências, pelas Artes, pela Política e até pelo 
saber popular, é plenamente demonstrada pela lista de seus quase trinta livros 
editados, cuja extensão prodigiosa pode resultar, nesse contexto, tão esmagadora 
como indispensável: 
 Instinto e Instituição 
 Empirismo e Subjetividade 
 Nietzsche e a Filosofia 
 A Filosofia de Kant 
 Proust e os Signos 
 NÜ::tzsche 
 O Bergsonismo 
 Apresentação de Sacher-Masoch 
 Espinoza e o Problema da Expressão 
 A Lógica do Sentido _ 
 Diferença e Repetição 
 Espinoza, Filosofia Prática 
 Espinoza e os Signos 
 Francis Bacon: Lógica da Sensação 
 39 
 Cinema I – A Imagem-Movimento 
 CinemaII – A Imagem-Tempo 
 Foucault 
 Péricles e Verdi. A Filosofia de François Chatelet 
 A Dobra – Leibniz e o Barroco 
 Conversações 
 Crítica e Clínica 
Em colaboração com Felix Guattari escreveu: 
 O Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia 
 Kafka. Por uma Literatura Menor 
 Mil Platôs 
 O que é a Filosofia? 
 Politique et Psychanalyse 
Em colaboração com Carmelo Bene: 
 Superposições 
Em colaboração com Claire Parnet: 
 Diálogos 
Obs: esclarecemos que esta lista não está ordenada cronologicamente 
A esta lista devem se somar vários artigos, prólogos e epílogos de outros 
textos. Desde logo a literatura acerca da obra de Deleuze já soma outras tantas 
publicações. Segundo uma classificação leve e algo ingênua, os livros de Deleuze 
podem ser divididos em três grupos. 
O primeiro consiste em Teses e Monografias Filosóficas, de formato 
aparentemente acadêmico, mas que constituem verdadeiros Cavalos de Tróia. 
O segundo se compõe de grandes exposições de enorme abrangência. Mais 
adiante me referirei a elas, arriscando para as mesmas uma categorização pessoal. 
Momentaneamente peço que se aceite para esses escritos o qualificativo de 
"Concepções de Mundo", que, por razões que veremos, é incorreta. 
O terceiro conjunto de escritos se refere aparente e prevalentemente às 
Ciências e às Artes. 
Mas há pelo menos duas razões pelas quais essa classificação panorâmica é 
inadequada e insuficiente. 
 40 
Por um lado, porque a obra de Deleuze e Guattari é um Rizoma, ou seja, um 
sistema anti-sistema, uma espécie de rede móvel de canais, fluxos, remoinhos e 
turbulências, de limites internos e externos difusos, do qual se pode entrar e do qual se 
pode sair em qualquer ponto, que se pode percorrer em infinitas direções e que é 
reinventado a cada viagem e por cada um que o percorre. Apenas apresenta uma 
alternância de mesetas de intensidade homogênea em que se pode transitar passando 
de uma a outra por saltos, às vezes perceptíveis, às vezes desapercebidos. 
Por outro lado, não se pode considerar cada livro como uma unidade isolada, 
porque, segundo a própria teoria do pensamento, da escritura, da leitura e da realidade 
última a que um livro se acopla, é impossível dissociar a produção bibliográfica do 
que a realidade faz fluir nela, nem do que ela faz fluir na realidade na qual se insere. 
Para esses autores, um livro é uma máquina engendrada por máquinas heterogêneas, 
heteromorfas e heterólogas a ele mesmo, sendo que seu sentido depende de como 
atravessa a outras (literárias ou não), ou seja, de como estão funcionando dentro dele, 
e ele dentro daquelas. 
Assim sendo, como seria viável separar radicalmente um tema bibliográfico 
de outro, e dos Mundos com que se conectam, se todos são imanentes entre si? 
Finalmente, não cabem separações, porque Deleuze e Guattari dizem que 
todo texto ou discurso é pura performance, quer dizer, pura pragmática, que importa 
apenas por como afeta e como é afetado. Para ilustrar, por exemplo, as relações entre 
os conceitos filosóficos, as funções científicas, as variações artísticas, apelam à teoria 
da Música. Cada um dos recursos desses saberes e trabalhos ressoam entre si, nos 
espaços da Realidade. Essa ressonância pode ser ouvida em dimensões tais como a 
Harmonia, a Desarmonia, a Consonância, a Dissonância, a Fuga, o Contraponto, o 
Ritmo, etc... mas nunca

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