Logo Passei Direto
Buscar
Material

Prévia do material em texto

Joel Rufino dos Santos CIP-Brasil. Câmara Brasileira do Livro, SP Santos, Joel Rufino dos, 1941- S2350 O que é racismo / Joel Rufino dos Santos. São Paulo : Abril Cultural : que Brasiliense, 1984. (Coleção primeiros passos ; 8) RACISMO 1. Brasil Questão racial 2. Racismo 3. Racismo - Brasil I. Título. II. Série: Primeiros passos ; 8. 17. CDD-320.5 18. -320.56 17. -301.45 18. -301.451042 17. -301.450981 84-1617 18. -301.4510420981 para catálogo sistemático: 1. Brasil : Racismo : Sociologia 301.450981 (17.) 301.450420981 (18.) brasiliense 2. Racismo : Ideologia política 320.5 (17.) 320.56 (18.) Abril Cultural Editora Brasiliense 3. Racismo : Sociologia 301.45 (17.) 301.451042 (18.) 1984Caricaturas: Emílio Damiani Revisão: Nelson Nicolai José E. Andrade INDICE Introdução 7 que é Racismo 10 Quem são os melhores dançarinos do mundo? 10 paraíso dos racistas 14 Na pracinha, domingo de manhã 18 O dia em que OS europeus começaram a ter insônia 20 Esses pobres felás egípcios, de costelas à mostra 24 "Bom-dia, segundo Serviço de Meteorolo- gia" 28 © Copyright 1980 by Joel Rufino dos Santos Para que serve a cor das pessoas? 31 © Copyright desta edição, Abril S.A. Cultural, São Paulo, 1984. A civilização pertence aos brancos. Até quando? 34 Publicado sob licença da Editora Brasiliense S.A., São Paulo. Em conclusão 386 Joel Rufino dos Santos Existe racismo no Brasil 40 No Maracanã, domingo à tarde 40 Brasileiro pilhado em flagrante de racismo reage 42 Neguinho sem-vergonha quer ser Sérgio Chapelin quando crescer 45 Racismo de brasileiro, zelosamente guardado, aparece em momento de competição 48 "Ora, é apenas um negro" 51 "Você não vence na vida? É culpa sua, você tem complexo de cor" 54 INTRODUÇÃO Brancos sempre esperam que OS outros cumpram seu dever 57 Negros não crêem em "democracia racial". Dão troco a brancos 60 Sob efeito da opinião pública, um juiz havia decretado integração racial nas escolas do Estado. Principais modalidades do racismo brasileiro 64 A pequena Judith ia enfim sentar-se num banco de Onde OS pretos são maioria 64 madeira para aprender as coisas que faziam o orgulho Discriminado porque tinha bunda empinada 65 dos adultos. Sua mãe ouvira no noticiário matinal "Também já fui crioulo, doutor" 67 que o mundo inteiro prestava atenção nos Estados Machado de Assis X Lima Barreto 69 Unidos, no Texas, naquela modesta escola de Dallas, Mão Branca X mãos negras 73 na sua pequena Judith, mas foi com serenidade que "Quem cospe nos outros é judeus. E japonês lhe preparou a lancheira e OS cadernos. Um irmão não dá no couro" 76 acompanhou Judith até perto. Quatrocentos e oitenta anos de estupro 78 Não foi comum seu primeiro dia de aula. Nenhuma Os índios saiam da frente para Brasil passar. 80 criança branca comparecera, de forma que a profes- sora, sem saber onde pôr as mãos, ensinou tudo sozi- para ela - e, na verdade, para centenas de solda- dos que do lado de fora garantiam sua integridade. Ao comer a merenda, Judith continuava só. Meio-dia,8 Joel Rufino dos Santos que é Racismo 9 quando guardou seus pertences para voltar a casa, já Para muita gente, racismo que basicamente é não se sentia nada contente. As duas fileiras de sol- uma agressão contra outros só se combate com dados faziam um corredor para ela passar. Por detrás outra agressão. Está bem: quem foi discriminado tem deles apareceram, então, centenas de carinhas bran- direito, e até dever, de reagir. (A própria teoria cas xingando, vaiando, cuspindo. Havia adultos, dos Direitos Humanos, tão em voga hoje, assegura também, mas Judith não quis olhar ninguém. Seus àqueles que são vítimas de uma opressão direito de passos eram firmes, até onde uma garota de 7 anos liquidar com ela.) O racismo, entretanto, não é só pode andar assim. coro a perseguiu até à praça, uma atitude como, por exemplo, a dos que vaiaram, em frente à escola. cuspiram e xingaram a pequena Judith que só queria A pequena Judith sentou-se, então, num banco de estudar. O racismo é, também, uma teoria, defendida pedra e abaixou rosto. Um homem branco veio na em livros e salas de aulas com argumentos e teses sua direção OS soldados, por um instante, chegaram "científicas". Para brigar contra ele será preciso, a pensar numa agressão. Ele pôs a mão no seu ombro, antes, desmontar esses argumentos e teses. de leve, e segredou: "Judith, não deixe eles verem que você está chorando". Fatos reais, como este, pontilharam a crônica dos Estados Unidos na década de 1960, parecendo con- firmar que ali é, por definição, a pátria do racismo. Nenhum país do mundo, entretanto, desconhece, ou desconheceu, uma forma qualquer de racismo. Até mesmo 0 Brasil, cujos governantes sempre se orgu- Iharam de sermos uma "democracia racial", tem dado provas de que fenômeno é universal. Este pequeno livro que você vai ler, procura à pergunta: "O que é racismo?", primeiro no mun- do ocidental, de que fazemos parte; depois no Brasil. Naturalmente, nos achamos em melhor posição para ver 0 racismo aqui do que lá fora, mas, até mesmo para compreender nosso, precisamos de um termo de comparação.que é Racismo 11 Um exemplo de prática coletiva de longo alcance: há 480 anos a sociedade brasileira recusa aos seus índios a posse da terra (embora eles já morassem aqui mi- de anos antes de Brasil ser "descoberto"). O racismo é um sistema que afirma dade de um grupo racial sobre outros O que é um grupo racial? A pergunta parece tola: ninguém I confunde um preto com um branco, um índio com um japonês e, se for um bom observador, não con- QUE É RACISMO fundirá, também, um judeu com um italiano. Nenhum desses grupos de porém, uma raça. Pretos e brancos são apenas conjuntos de indivíduos que têm essas cores nada mais. (Um sujeito preto pode, por Quem são os melhores dançarinos exemplo, estar biologicamente mais próximo de um branco do que de outro sujeito preto.) Indios e ju- do mundo? deus raças, são povos (grupos de pessoas de Se um estudante francês quisesse saber que é ra- raças distintas que vivem juntas num mesmo territó- cismo, possivelmente abriria seu Petit Larousse um rio). Quanto a japoneses e italianos, são nacionalida- dicionário de prestígio universal: "Racismo. s.m. Sis- des, assim como são brasileiros, angolanos, dina- tema que afirma a superioridade racial de um grupo marqueses, etc. sobre outros, pregando, em particular, confinamen- Já se vê que há poucas palavras tão confusas quan- to dos inferiores numa parte do país (segregação ra- to raça. Mas não foi por acaso que a baralharam tanto cial) (...)". Como toda definição, esta é como uma que já nada quer dizer. Governos e ideologias conser- goma de mascar: pode aumentar, diminuir ou ficar vadores usaram e abusaram dela, através da História, do mesmo tamanho, conforme 0 seu gosto. para se defenderem e propagandearem seus propósi- Estamos no primeiro caso, naturalmente. que tos e realizações. Nas Olimpíadas de 1936, por exem- quer dizer Larousse com sistema? Certamente um plo, um jovem e ousado governante alemão exigiu que conjunto de idéias e práticas, pessoais e coletivas, seus atletas derrotassem OS representantes de "raças de pequeno e longo alcance. Um exemplo de idéia inferiores" para provar a "inconteste superioridade pessoal: "Não gosto de árabes porque são traiçoeiros". da raça ariana". Venceu-os um crioulo norte-ameri-12 Joel Rufino dos Santos que é Racismo 13 cano, Jesse Owens que também não provou nada, cientificamente a frase é um equívoco. O correto exceto que era melhor corredor. (Em tempo: seria dizer: "Há grupos de negros que são OS melhores governante racista chamava-se Adolf Hitler.) dançarinos do mundo". Quem já viu, boquiaberto, Em 1936, mesmo no mundo científico, muita numa tela de cinema, o branquíssimo Charles gente acreditava em "raças puras". Sabe-se hoje que Chaplin fazer do corpo que queria, ao som de uma raças puras nunca existiram: um grupo humano que banda da roça, não pode achar que não tivesse se mantido puro, sem se misturar com outro, dão para dança". Chaplin possivelmente pertencia a não sofreria mutações e, dentro de algum tempo, uma "raça invisível" tão dançarina quanto a de desapareceria. Além disso, em absolutamente nenhum muitos negros do Rio de Janeiro. lugar do nosso planeta, um grupo assim conseguiria O racismo assenta, assim, numa falsidade científica, viver isolado dos outros. O que chamamos raça que torna fácil a qualquer colegial bem informado negra, branca, amarela, caucasiana, etc. é apenas desmontá-lo. Recentemente, nos Estados Unidos, um elenco de características anatômicas: a cor da foram apresentadas "provas" das diferenças genéticas pele, a contextura do cabelo, a altura média dos entre as raças negra e branca. Os cientistas que as indivíduos, etc. Se pudéssemos despir as pessoas apresentaram continuam, portanto, trabalhando com dessa anatomia, veríamos por dentro um outro velho e duvidoso conceito de raça: indivíduos com elenco de características as características gené- mesmo desenho externo. Coerentemente, ao que ticas. Pois bem: esse elenco de características internas dizem OS jornais que se interessaram pelo fato, esses pouco tem a ver com as exteriores. Os cientistas cientistas pertencem à direita política, sempre chamam a esses conjuntos internos de "raças invi- obstinada em explicar diferenças sociais por fatores síveis". A raça preta, por exemplo, está formada de biológicos. Supondo que consigam provar que OS inúmeras "raças invisíveis". Como a espécie humana negros são inferiores aos brancos em inteligência, sempre se misturou, conclui-se que uma "raça capacidade de iniciativa, de concentração, etc. invisível" de pele preta pode ser igual a uma "raça restaria aos anti-racistas um argumento decisivo: invisível" de pele branca, ou amarela, ou vermelha, etc. muito bem, há, em alguns aspectos, raças inferiores Traduzindo num exemplo concreto a teoria das e raças superiores, mas todo grupo humano merece, "raças Um turista, maravilhado diante pelo fato de ser humano, mesmo tratamento. Se das Escolas de Samba, poderia dizer: "Os negros são há algo fácil de provar nesses assuntos raciais, além OS melhores dançarinos do mundo". Está bem, OS disso, é a unidade da espécie humana: qualquer grupo turistas têm direito de dizer que quiserem, mas racial pode cruzar com outro que nascerão criaturas14 Joel Rufino dos Santos que é Racismo 15 normais e saudáveis. coabitarem. Diz Larousse que racismo prega, em particular, A própria palavra afrikaaner encobre uma men- confinamento dos "grupos inferiores" dentro de tira: não são africanos OS brancos que controlam um país (segregação racial). Isto sugere, para começar, país, reservando-se para si tudo que a civilização que há diversas formas de racismo, sendo a segrega- e 0 dinheiro oferecem de bom, OS cinemas, as praias, ção apenas a mais ostensiva. A segregação, por sua OS hospitais, as escolas e até as simples casas. Afri- vez, apresenta diversas modalidades e, ao pensar nos canos são a maioria esmagadora de negros (4/5 da países em que ela existe, logo nos ocorrem duas: a le- população total) que lá viviam quando chegaram gal (expressa em leis), como na África do Sul, em que OS primeiros portugueses para contornar Cabo da negros estão expressamente proibidos de residir Boa Esperança (hoje Cidade do Cabo); cento e e/ou freqüentar determinados bairros; e a extralegal, cinqüenta anos depois, começaram a chegar OS pri- como na Bolívia, em que índios e cholos (mestiços de meiros holandeses, antepassados dos atuais senhores. índio com branco) são impedidos de morar e/ou per- (Jan van Riebeeck, um colonialista que saiu corrido manecer em certos locais, embora não se encontre do Brasil em 1652, batizou pretos, que vieram qualquer proibição escrita nesse sentido. recebê-lo amistosamente, dentro do melhor figurino racista, de "swart atinkende Hondon", cachorros negros fedorentos.) paraíso dos racistas apartheid é recordista mundial de condenação, amaldiçoado pelas mais importantes organizações Um turista despreocupado pode trazer da democráticas do planeta Conselho Nacional do Sul a mais sorridente das lembranças. Afinal, Africano, a Anistia Internacional, a ONU, etc. 1978 afrikaaners têm um dos mais altos padrões de vida foi declarado pela ONU Ano Internacional contra do mundo, estradas repletas de Mercedes Benz e Apartheid, sendo inúmeros OS países que se con- granjas sofisticadamente mecanizadas. Pode, também, fessam meros parceiros comerciais do regime de Pre- voltar aterrorizado pelo mais absurdo dos regimes tória, isolando seu embaixador do corpo diplomático racistas que já se concebeu: 0 apartheid. Este é capaz, como se ele portasse incurável doença contagiosa. por exemplo, de mandar para a cadeia uma patroa Eis uma pequena amostra do regime racista do branca porque deixou dormir no quarto dos fundos apartheid, em vigor desde 1948: a sua empregada preta e isto pela simples razão de Mesmo que resida legalmente numa cidade, que as leis do apartheid proíbem a negros e brancos nenhum africano possui direito de ter consigo16 Joel Rufino dos Santos que é Racismo mulher, filhos, sobrinhos ou netos por período superior a 72 horas. Sempre que julgar oportuno, presidente do Estado pode declarar uma área propriedade do grupo branco, mesmo que até então ela tenha sido ocupada por não-brancos. Qualquer africano maior de 16 anos é obrigado a carregar um "livro de Se for pego sem ele, será punido com multa e prisão de um mês. Um operário africano que se ausente do traba- lho por 24 horas, além de ser demitido, será punido com multa e prisão de três meses. Se um trabalhador branco morre em acidente de trabalho, seus descendentes têm direito a indenização e, ainda, a pensão mensal baseada OOR DIE LINE BRIDGE NGEBLORO KUPEL em seu salário. Os descendentes de um africano que morra por acidente de trabalho não têm direito a pensão mensal, somente a uma indeni- zação fixada pelo comissário do trabalho. Um africano que dirija uma classe de leitura e Na África do Sul escadas separadas para brancos e "não-brancos". escrita em sua própria casa, mesmo gratuita, pode ser multado e preso durante seis meses. Aquele que, durante uma reunião, incitar um auditório negro a ação de protestos contra as leis do apartheid será multado e aprisionado por cinco anos. Nenhum africano pode ser membro de um júri formado para um processo penal, mesmo que acusado seja um africano. Agência Keystone18 Joel Rufino dos Santos que é Racismo 19 Na pracinha, domingo de manhã justificar a sua agressão ("dou um SOCO em quem tentar me tomar a bola"), possivelmente notará que Todos países que foram, algum dia, colônias OS outros são pretos, amarelos, brancos, peles-verme- de metrópoles brancas China, Nigéria, Brasil, lhas isto é, possuem algo que OS diferencia dele. São Domingos conhecem, invariavelmente, "Os outros querem me tomar a bola porque são de racismo. O passado colonial pesa-lhes na cabeça e no cor." Neste momento apareceu racismo, uma idéia coração como pecado original de que fala a Bíblia. negativa a respeito do outro, nascida de uma dupla Isto quer dizer que outro tipo de país a Rússia, necessidade: se defender e justificar a agressão. Inglaterra, Grécia, etc. que nunca foram colônias Com tempo e a experiência, ele poderia supor de ninguém, desconhecem racismo? Não, absolu- que "todas as crianças de cor são tomadoras de tamente. O racismo é fenômeno universal. Seria, bola". Isto lhe tornaria a defesa e a agressão muito então, um irremediável componente da natureza mais seguras. Seu racismo amadureceu, atingindo, humana? neste ponto, plano dos visão simpli- Alguns cientistas acham que sim; alegam que ficada e conveniente de um grupo qualquer. (Por homem está sempre defendendo seu espaço contra exemplo: "Os judeus são gananciosos", "os russos a invasão de outros, OS quais, freqüentemente, são sempre imperialistas", etc.) pertencem a outras raças. Embora possamos discor- Se a insegurança desta hipotética criança fosse dar no essencial, é uma opinião séria, com sua indis- num crescendo (ela tivesse, por exemplo, de disputar cutível dose de verdade. uma vaga na escola primária com um dos "tomado- Observemos um grupo de inocentes crianças res de bola"), poderia assumir a seguinte opinião: brincando numa pracinha domingo de manhã. Em "As crianças de cor, que são tomadoras de bola, não poucos minutos você terá assistido a diversas brigas devem entrar na mesma escola que eu". Seu racismo por causa da bola colorida, que se acha, agora, em evoluiu para o segregacionismo. Se, enfim, uma bela poder daquele menininho loiro. É como se ele tivesse manhã esta criança acordasse com a idéia de que "os demarcado um círculo a sua seu espaço, onde tomadores de bola não têm mesmo jeito e alguém lhe é mais fácil defender a sua bola. É fácil ver que ele precisa acabar com eles", fez jus a uma carteirinha de defende contra qualquer um, preto, branco, ama- racista genocida (que pede ou participa do extermínio relo, pele-vermelha. de uma raça). Se esse menino precisar explicar sua insegurança Esta parábola talvez sugira que as pessoas chegam ("os que chegarem perto vão me tomar a bola") e ao racismo sozinhas. Não é verdade. As idéias vêmJoel Rufino dos Santos que é Racismo 21 20 da sociedade para dentro das cabeças, através das grego, única língua capaz de expressar idéias e senti- mentos profundos". Bárbaros são todos aqueles que palavras, dos exemplos, da imitação, das crenças religiosas, de uma infinidade de grandes e pequeninos não falam grego: esta é uma das formas mais antigas canais. "Você está preto de sujeira!" Quem ouve de "racismo" que se conhece. (Uma curiosa sobrevi- isto desde OS primeiros meses de vida, dificilmente, vência deste preconceito: barbarismo é, ainda hoje, mais tarde, fará uma idéia positiva dos negros. Nossa vício de linguagem que consiste empregar parábola pressupõe, também, que sentimento de palavras inexistentes ou deformadas.) propriedade nasça com as pessoas, que, provavel- Para OS romanos que passaram a maior parte mente, não é certo. A idéia de que as minhas coisas da sua vida conquistando outros povos bárbaros devam ser protegidas dos outros é relativamente eram todos OS que não tinham Direito, conjunto de nova na história da humanidade. leis que regulam a vida coletiva. Bárbaros eram tanto OS brancos macedônios, primos dos gregos, quanto OS núbios, de pele negríssima. dia em que europeus começaram Durante a Idade Média (do século V ao XV), OS a ter insônia europeus consideravam inferiores OS não-cristãos árabes, maometanos; africanos, inclusive egípcios; judeus de qualquer parte do globo; e asiáticos, in- Esta parábola da criança que começa defendendo clusive chineses. Os europeus só haviam mudado de suas coisas e acaba racista serve, também, como opinião a respeito dos germanos, francos e eslavos, alegoria do que aconteceu à nossa civilização ociden- OS bárbaros de antes: é que tinham se convertido à tal. fé de Cristo. Nossos avós brigaram muito tempo por espaço até Foi, porém, no limiar da época moderna, a partir que diferentes grupos se ajeitassem no seu. Muitos dos anos 1400, que racismo dos povos europeus deles continuaram, porém, inseguros e agressivos, amadureceu, passando a se basear na característica uma vez que tinham muitos bens a defender e, mais notável dos outros: a cor da pele. Por quê? assim, acabaram descobrindo que OS outros eram diferentes de si. Os gregos, ponto de partida da civi- A partir desta época, OS países da Europa ociden- tal tornaram-se senhores de três continentes: Ásia, lização que temos hoje, por exemplo, notaram que OS vizinhos não tinham pensamento articulado e África e América. Seus antepassados haviam acusado isto acontecia, certamente, "porque não falavam OS bárbaros de cruéis e desumanos; pois em matériaJoel Rufino dos Santos que é Racismo 23 22 de barbárie deixariam, agora, árabes e germanos na em cinqüenta anos, 1 milhão de índios; e, da África, condição de anjos celestiais. Hernán Cortés, olhando foram negociadas para a América, em trezentos anos a distância, pela primeira vez, a capital dos astecas, de escravidão, mais de 20 milhões de pessoas. teve um sobressalto: era muito mais bela e limpa que O historiador português Oliveira Martins deixou- nos uma vívida descrição deste rendoso negócio: Madri. Mandou destruí-la. As circunstâncias forçaram OS europeus a organizar "Havia lá, no seio do navio balouçado pelo mar, gigantescas explorações de açúcar, tabaco, algodão e lutas ferozes, uivos de cólera e desespero. Os que a minérios nos três continentes. (O engenho colonial sorte favorecia nesse ondear de carne viva e negra, brasileiro é um exemplo.) Nelas, forçado ainda pelas aferravam-se à luz e olhavam a estreita nesga do céu. circunstâncias, instalou o trabalho escravo. Como se Na obscuridade do antro, OS infelizes, promiscua- mente arrumados a monte, ou caíam inânimes num explica que esta forma de trabalho, desaparecida torpor letal, ou mordiam-se, desesperados e cheios desde o século V, ressuscitasse agora? de fúrias. Estrangulavam-se: a um saíam-lhe do ven- Essas gigantescas explorações eram um empreen- tre as entranhas, a outro quebravam-se-lhe OS mem- dimento capitalista e, como tal, buscavam 0 máximo bros nos choques dessas obscuras batalhas. de lucro. Seus organizadores eram banqueiros e co- Quando navio chegava ao porto de destino uma merciantes estabelecidos em Lisboa, Londres e Ams- praia deserta e afastada carregamento desembar- terdã, OS mesmos que bancavam 0 tráfico negreiro cava; e à luz clara do sol dos trópicos aparecia uma havia mais de cinqüenta anos. Que mão-de-obra en- coluna de esqueletos cheios de pústulas, com 0 ven- viariam para as suas explorações? Só podia ser a tre protuberante, as rótulas chagadas, a pele rasgada, escrava. Da Ásia tiravam especiarias; da América, comidos de bichos, com ar parvo e esgazeado dos açúcar, fumo, algodão, metais preciosos; da idiotas. Muitos não se tinham em pé; tropeçavam, uma mercadoria muito especial: gente. caíam, e eram levados aos ombros como fardos A partir desta época OS europeus começaram a O capitão, voltando a bordo, a limpar porão, ter insônia. Só voltariam a dormir quando resolves- achava OS restos, a quebra da carga que trouxera: sem dois problemas: Como defender tamanha havia por vezes cinqüenta e mais cadáveres sobre riqueza? Como justificar-se por tanto sofrimento quatrocentos escravos!" (Citado por José Capela. infligido a tanta gente? Escravatura: a empresa de saque O Abolicionismo Se você duvida que sofrimento dos outros povos nas mãos dos europeus tenha sido, de fato, tão gran- (1810 1875). Porto, Edições Apontamento, 1974, p. 91.) de, eis aqui: OS bandeirantes brasileiros eliminaram,Joel Rufino dos Santos que é Racismo 25 24 Esses pobres felás egípcios, de costelas Ginés de Sepúlveda extraía uma conclusão: "Tudo isto não prova que eles são escravos de à mostra natureza? (. .) Esses homenzinhos tão bárbaros, tão incultos, tão desumanos (Citado por Alejandro Lipschutz. El Problema racial en la A pólvora inventada por um chinês ajudou OS europeus a resolverem primeiro problema: nenhum conquista de América y el mestizaje. Santiago do povo de cor conhecia armas de fogo. Para restituir- Chile, Ed. Austral, 1963. p. 72-3.) lhes sono, porém, foi preciso algo mais sofisticado A partir deste momento, como se vê, racismo que um bacamarte de dois canos: uma concepção deixou de ser puramente cultural ("Não gosto dele racista que OS isentasse de culpa por tanto sofrimen- porque ele não fala grego" ou "Não gosto desta gen- te porque não é Passou a ser também to causado aos outros. Os europeus começaram a pregar que OS povos de cor, que habitavam OS três biológico: "Não gosto dele porque ele é preto" ou continentes, eram assim mesmo: incapazes e servis. "Não topo esta gente porque ela está mais perto dos "E nós não OS estamos maltratando, mas animais que de nós, humanos". Como OS índios Quero exemplificar com Ginés de Sepúlveda, inte- norte-americanos tivessem a mesma cor que OS lectual colonialista espanhol que, no século XVI, europeus, inventou-se, para rebaixá-los a "povo de cor", a "pele vermelha"; enquanto OS teólogos, comparou OS índios a macacos e porcos: blia debaixo do braço, tratavam de explicar que a "Os espanhóis têm todo direito de exercer seu domínio sobre estes bárbaros do Novo Mundo e ilhas paravra indian não passava de corruptela de judeus. adjacentes, OS quais em prudência, inteligência e toda Não, não era pecado enchê-los de bordoadas. espécie de virtudes e sentimentos humanos são tão Por volta de 1860, sistema capitalista deu um inferiores aos espanhóis quanto as crianças com vigoroso passo adiante, na Europa ocidental e Esta- relação aos adultos, as mulheres com relação aos ho- dos Unidos. navio a vapor, a energia elétrica e, mens, pessoas cruéis e desumanas com relação a logo depois, automóvel e avião fizeram empali- pessoas mansas, pessoas desequilibradas com relação decer OS maravilhosos inventos de antes; nasceram a pessoas equilibradas; e, enfim, estou prestes a capital financeiro e grandes conglomerados de admitir que com relação aos espanhóis estão na empresas, enquanto as nações mais ricas iniciavam posição de macacos em relação a homens. São a exportação de capitais para as nações mais pobres. como porcos: estão sempre olhando para chão, Um escuro felá egípcio, de costelas à mostra, jamais como se nunca tivessem visto céu." teria conta num banco, mas OS banqueiros de Lon-Joel Rufino dos Santos que é Racismo 26 27 dres, ou Bruxelas, é que decidiam, agora, a sua vida. Como explicar tanta sujeição e miséria? Os intelectuais europeus dignos sucessores daquele Ginés de Sepúlveda, que comparava as- tecas a símios e porcos começaram a ensinar que "nos trópicos a pobreza é inevitável: aqui ho- mem só tem energia para pensar em sexo e baixezas. Sendo, além disso, habitados por gente de cor, seu futuro é triste." Não admira que OS europeus acreditassem em tanta baboseira, Imesmo porque, semelhante a tanta porcaria que se dá às crianças, ela vinha embrulhada em colorido papel científico cada época, cada classe social, cada grande potência faz a ciência que lhe interessa fazer. Curioso, mas também explicável, é que nos países brutalmente explorados por eles também se acredi- tasse nisso. complexo de superioridade geográfico- racial dos europeus era nosso complexo de inferio- ridade, como as duas faces de uma mesma moeda. Os mais famosos criadores desta ciência colonia- lista foram Friedrich Ratzel (1844 1904) que, embora morto em 1904, ainda tem seguidores; e conde de Gobineau (1816 1882), um troca-tintas que passou a vida tentando demonstrar que Deus não fora decente ao criar as raças, tirando qualidades de umas para dar às outras. Dos pensadores brasilei- ros que melhor expressou esta "ideologia do colo- Nos quadros de Debret, a visão pitoresca do índio brasileiro, nialismo" foi, sem dúvida, Oliveira Viana. no início do Século XIX.28 Joel Rufino dos Santos que é Racismo 29 "Bom-dia, segundo o Serviço de quíssimos sabem sequer da sua existência. Oliveira Meteorologia" Viana foi para sótão do pensamento brasileiro. Por que admirávamos tanto, há 30 anos, um autor hoje esquecido? Em primeiro lugar Oliveira Oliveira Viana morreu ao começarem OS anos cin- Viana levava seu pensamento ao melhor alfaiate. Tal qüenta. Que possuísse um método para analisar a exigência foi posta, de uns 20 anos a esta parte, em sociedade brasileira, no passado e no presente, não termos diferentes dos do passado. Escrever bem, era de admirar. No seu tempo nasceu a sociologia agora e este é um sinal positivo dos nossos dias brasileira, saindo de moda as interpretações mera- é escrever claro, é ter que dizer e dizê-lo concisa- mente impressionistas. Pelo menos três autores, hoje mente. Oliveira Viana era elegante, maneiroso. famosos, já haviam sínteses da formação Comparado com OS ensaístas de atualmente, ele era brasileira: Gilberto Freyre, Nélson Werneck Sodré e um esteta e estes uns meros atiradores de pedradas. Sérgio Buarque de Holanda, sem falar nos estudos Em segundo lugar, Oliveira Viana era dado a parcializados de Caio Prado Júnior. citações. Amava tanto este hábito que, dizem, cum- O que admira naquele mulato fluminense, de pena primentava assim: "Bom-dia, segundo Serviço de fácil, é rigor com que obedeceu ao seu método, a Meteorologia". Ora, num tempo como aquele, em disciplina, a coerência por que pautou tudo que que se lia pouco tanto quanto hoje citadores escreveu. E escreveu muito: Populações meridionais impressionavam, pondo panca de sabichões. Outra do Brasil (2 volumes), Evolução do povo brasileiro, circunstância, ligada a esta, também lhe dava incon- ocaso do império, Instituições políticas brasileiras teste autoridade intelectual: citar em inglês e alemão. (2 volumes), Raça e assimilação, etc., etc. Isto para Naquele tempo poucos liam o inglês, raríssimos só falar nos títulos mais importantes. alemão. A maioria lia em francês não somente Admira, também, a fama de que desfrutaram OS autores franceses, mas OS de outra origem vertidos seus trabalhos. Num país, como nosso, em que se para francês. Nos tempos antigos pesava até mesmo comenta mais autor do que se lê a obra, ele deve a infâmia sobre as traduções: se traduzíamos, era por ter sido um dos pensadores mais lidos, um dos que, burrice. efetivamente, mais influenciaram a geração que hoje É, porém, no método que copiou dos racistas beira OS 40 anos. Na primeira metade dos anos cin- europeus, que se encontra a explicação para o pres- qüenta jovens citavam-no quase tanto quanto se tígio deste repetidor brilhante: a sociedade brasileira cita hoje Caio Prado, por exempio. Em 1980, pou- necessitava de alguém que lhe expressasse, com0 que é Racismo 31 30 Joel Rufino dos Santos "argumentos científicos" e boa prosa, sentimento massa dos negros puros; como não seriam também de inferioridade racial. (Foi uma ironia que esco- nestas épocas remotas, em que se assinalam estes para esta missão fosse um mulato de Niterói. grandes focos de civilização? A História também escreve certo por linhas tortas.) Que estudos do passado e as investigações dos Na falta de melhor expressão, vamos chamar a assinalam a existência dos grandes cen- esse método de "método eugênico". (Que se baseia tros de cultura nas regiões centrais da é que na eugenia: ciência que tem por objetivo a "melho- não ponho em dúvida; mas que estas civilizações ra das raças humanas".) Eis seus princípios básicos. sejam criações da raça negra, é 0 que me parece Os acontecimentos da vida de um povo se contestável. Não sei se o negro é realmente inferior, explicam pela sua formação racial. se é igual ou mesmo superior às outras raças; mas comportamento psicológico de um povo é julgando pelo que OS testemunhos do presente e do determinado pela sua raça. (Assim como passado demonstram a conclusão a tirar é que, até temperamento de uma pessoa é determinado agora, a civilização tem sido apanágio de outras pela sua morfologia.) raças que não a negra; e que, para que OS negros pos- A raça negra, que tem um comportamento sam exercer um papel civilizador qualquer, faz-se psicológico instável, nunca criou nem vai preciso que eles se caldeiem com outras raças, criar civilização. especialmente com as raças arianas ou semitas. Isto Este conjunto de idéias, conveniente aos países é: percam a sua pureza." Raça e assimilação. Ed José ricos que exploram países pobres, se encontra quase Olympio, Rio, 1932. p. 206. puro em Oliveira Viana. Uma só amostra: "O negro puro, portanto, não foi nunca, pelo menos dentro do campo histórico em que conhe- Para que serve a cor das pessoas? cemos, um criador de civilizações. Se, no presente, Pouco antes de morrer, O. Viana tomou conheci- OS vemos sempre subordinados aos povos de raça branca, com OS quais entraram em contato; se, nos mento de que haviam descoberto poderosas civilizações na África no golfo de Benin seus grupos mais evoluídos das regiões das grandes planícies nativas, são os elementos mestiços, são OS no Zimbabwe, no alto Para negar este fato indivíduos de tipo negróide, aqueles que trazem apelou para seu "método negros só doses sensíveis de sangue semita, OS que ascendem às criam civilização se tiverem um pouco de sangue branco classes superiores, formam a aristocracia e dirigem a32 Joel Rufino dos Santos que é Racismo 33 Criaríamos, algum dia, uma civilização no Brasil? brancos, dominadores outrora, só a muito custo se Fiel ao seu método, curiosamente sua resposta era conservam ricos e civilizados. São bons exemplos afirmativa. Bastava sangue branco ir predominando de um e outro caso a China e a Inglaterra. sobre negro e índio que estava, felizmente, Sendo a divisão mundial do trabalho apenas a acontecendo desde século XIX, quando se iniciou ampliação do que acontece dentro de cada país a grande imigração européia (entre 1850 e 1930 desenvolvido, há, no seu interior, ricos e pobres, recebemos cerca de 3 milhões de europeus). A misci- classes-patroas e classes-empregadas. A linha de cor genação e a alta taxa de mortalidade das pessoas de ajuda, então, a marcar as diferenças: brancos em cor limpariam resto. cima de cor embaixo. Nos Estados Unidos é fácil O que hoje vemos melhor do que há trinta anos constatar esta superposição de classe e raça, desde (e que O. Viana podia ter visto se parasse de repetir OS estratos mais altos (descendentes de irlandeses) autores estrangeiros colonialistas) é que as nações até OS mais baixos (negros, porto-riquenhos, latino- civilizadas, antes de serem brancas, são nações- americanos em geral), passando pelos intermediários patroas; e as pobres, antes de serem de cor, são de ianques (descendentes de ingleses), judeus, esla- nações-empregadas. (Nações-empregadas são as que vos, etc., que constituem a classe média. trabalham há séculos para enriquecer amos. As da Além desta curiosa especialização de cor, capi- América Latina, por exemplo, sempre estiveram de talismo mais desenvolvido inventou o "exército de "veias abertas", seu sangue fluindo para alimentar reserva": sobra permanente de mão-de-obra que per- OS Estados Unidos e a Europa.) mite aos empresários pagar aos trabalhadores menos Outra coisa que compreendemos melhor hoje: a possível. (Funciona aqui a lei da oferta e da procura, divisão mundial do trabalho condenou uns países outra invenção do sistema: quanto mais você ofere- a produzirem artigos caros objetos, tecnologia, cer, no caso trabalho, menos valerá seu produto; ciência outros, a produzirem artigos baratos e vice-versa.) Ora, em países que abrigam várias matérias-primas, alimentos, seres humanos A "raças" como a Inglaterra, a França, a Alemanha cor encaixou-se nesta divisão como luva: OS primei- a Austrália, a Argentina, etc. este "exército de ros eram brancos, OS segundos, de cor. Tanto era reserva", encolhido e miserável, é sempre de cor. É coincidência isto, e não uma coisa causa da outra, nele que se recrutam lavadores de privada, varredores que, a partir da Segunda Guerra Mundial (1939-45), de rua; guardas de segurança para executivos e polí- diversos povos de cor abandonaram a incômoda ticos importantes; lutadores de boxe; prostitutas; posição de antes; enquanto isso, muitos povos proxenetas; bóias-frias em época de colheita; e ope-34 Joel Rufino dos Santos que é Racismo 35 rários eventuais para substituir grevistas despedidos das, como ingenuamente se poderia supor; nem como punição. (Bóias-frias: trabalhadores diaristas existiu sempre, ou existirá sempre, como tolamente da roça, chamados assim porque levam marmitas pa- se poderia pensar. (Os racistas têm naturalmente ra trabalho. Em geral não têm salário nem direitos interesse em definir racismo como uma caracterís- iguais aos de outros trabalhadores.) tica da "natureza humana"; como a "natureza hu- A cor da pele não foi, naturalmente, uma invenção mana" é imutável, racismo, por conseqüência, do capitalismo, nem de sistema algum foi produto jamais desaparecerá.) 0 racismo é um dos muitos das diferentes condições ecológicas que homem filhos do capital, com a peculiaridade de ter cres- encontrou na sua dispersão pelo planeta. Mas pres- cido junto com ele. tou ao capitalismo um inestimável serviço, separando, Como OS melhores filhos, porém, racismo tem neste fantástico mercado em que se compra e vende sobrevivido, e sucedido, ao próprio pai. Nos países mão-de-obra, a mercadoria de primeira da de segunda socialistas, que se orgulham de haver liquidado as (mais ou menos como fazem OS vendedores de formas essenciais da exploração do homem pelo tomate: OS melhores, 80; OS piores, 50). homem, permanece, enfezado e renitente como uma Em nosso país, "exército de reserva" está por planta que não se consegue arrancar. toda parte. Nas rodoviárias, com seus sacos sujos Se poderia argumentar que nos países socialistas às costas; na Baixada Fluminense, com seus peitos qualquer que seja seu caminho, a União Sovié- nus à mostra; nas feiras do Nordeste, agachados à tica, a China, Cuba, Vietnã, Argélia, Albânia. a espera de "trabaio"; nas filas dos ônibus, filhos competição, que estimula racismo, não desapareceu esquálidos esmolando uns centavos. Brasil é uma de todo. argumento é verdadeiro, mas não basta. grande feira de trabalhadores baratos, invariavelmente O racismo está depositado no mais fundo da cabeça de cor. (Baixada Fluminense: assim ficou conhecido dos homens assim como certas sementes que resis- Grande Rio: Caxias, Nova Iguaçu, Belford Roxo, tem às mais violentas mudanças de temperatura e, Nilópolis, etc. Tem baixíssimo nível de renda e subitamente, voltam a brotar. Há nele uma dose de está entre as regiões mais violentas do mundo.) irracionalismo que nenhum sistema social, até hoje, foi capaz de liquidar. (A antropofagia, que acompa- A civilização pertence aos brancos. nhou a humanidade durante milhares de anos, lembra, neste aspecto, racismo. A guerra, que a Até quando? sociedade continua a usar para resolver determinados O racismo não é produto de mentes desequilibra- problemas, é outro exemplo de instituição persistente36 Joel Rufino dos Santos 0 que é Racismo 37 bolo. (Naquele ano, por exemplo, a África fora miseravelmente "partilhada" entre elas, sem que um só africano estivesse presente.) Diante do fato consumado, a burguesia alemã estava na situação de quem chegou tarde à festa só restam migalhas do bolo sobre a toalha manchada. Virou a mesa. Sua progressiva agressividade percorreu todos OS cami- nhos conhecidos. Desprezo pelos outros, apelo à "raça", à "pureza do sangue", à superioridade dos "mais capazes" nada foi inventado pelo nazismo, OS outros povos europeus já tinham recorrido a tudo isto no passado. A novidade estava no grau e na intensidade, arrastando a humanidade a um conflito cujas cicatrizes não desapareceram ainda. Adolf Hitler (1889-1945) Fm. Há quem prefira ver no episódio nazi-fascista apenas irracional e absurdo. (Estão em moda, há algum tempo, as explicações sobrenaturais e cósmicas para fatos históricos.) Claro, eles estive- e irracional que pode, ingenuamente, ser tomada ram presentes; digamos, na percentagem de 1%. O como própria da "natureza humana".) nazi-fascismo - com seu cortejo de misérias e ódio exemplo mais escandaloso de racismo foi, con- racial foi uma saída momentânea para capitalis- tudo, regime nazi-fascista alemão (1933-45). Junta- mo alemão. país se atrasara na corrida colonial; ram-se naquele fantástico caldeirão todos ingre- tempo era de grave crise econômica (a "grande dientes conhecidos do ódio racial: preconceitos vul- e, enfim, a burguesia se sentia irreme- gares, velhos de séculos ou recém-fabricados pela diavelmente acossada pela classe operária. propaganda política; prejuízos científicos avalizados Por que racismo se abateu, em especial, como por pensadores de ultradireita; extermínios em massa uma avalancha, sobre a cabeça dos judeus? Os judeus de criaturas indefesas. eram 0 único outro disponível na Alemanha: trans- Por volta de 1885, as potências européias já tinham formaram-se em bode expiatório ideal. Além de serem dividido mundo entre si, como quem divide um 0 outro que se podia agredir, detinham uma parte38 Joel Rufino dos Santos que é Racismo 39 da riqueza nas suas mãos: tomá-la abria espaço para em alguns aspectos, racismo é injusto, pois OS empresários "autenticamente alemães" e aumen- a espécie humana é uma coisa só. tava as verbas do Ministério da Fazenda. Ajudava pregando, em particular, confinamento dos também OS governantes a provarem seus propósitos inferiores numa parte do país. "socialistas" (não eram OS judeus "exploradores do A segregação é apenas a forma mais escandalosa povo"?). do racismo (como apartheid na do Num filme já clássico, Queimada, de Pontecorvo, Sul). Mas 0 fenômeno é universal, ocorrendo há uma cena didática. José Dolores, líder negro da não só nos países que foram colônias européias, independência do país, vai sendo levado para a mas também nos capitalistas desenvolvidos e forca. Um inglês, que ajudara antes para exter- nos socialistas. miná-lo depois vem se despedir e ouve a seguinte O racismo não faz parte da "natureza humana". lição: "A civilização está com vocês, hem, inglês! Nasceu, talvez, da necessidade de defender Mas até quando?" seu espaço; e é apenas uma instituição irracional de prolongada duração (assim como a antropo- fagia e a guerra). Em conclusão Sob a forma atual, baseado na cor da pele, é filho do colonialismo; e atingiu seu extremo com aparecimento do capitalismo financeiro. racismo, segundo Larousse, é: Dentro dos países capitalistas desenvolvidos, Sistema que afirma a superioridade racial de que não foram colônias (como a Inglaterra e a um grupo sobre outros França, por exemplo), é fruto da competição Esta superioridade é uma hipótese científica e da divisão do trabalho. não provada, apesar dos esforços da "ideologia O ódio racista chegou ao máximo durante o do colonialismo", interessada em justificar a nazi-fascismo alemão (1933-45), que confinou e miséria e atraso dos países subdesenvolvidos. exterminou milhões de judeus. nazi-fascismo Os cientistas que se empenham em prová-la foi uma saída momentânea para capitalismo trabalham com o velho conceito de raça (con- alemão; e em matéria de ódio racial apenas junto de caracteres externos das pessoas). exagerou 0 que já se fizera antes. Mesmo que consigam provas conclusivas da superioridade de um grupo racial sobre outros,que é Racismo 41 eu não sou". Jogo correndo, toda vez que Paulo César pegava uma bola, algumas fileiras atrás um solitário torce- dor do Grêmio amaldiçoava: "Crioulo sem-vergonha! Foi a maior mancada Grêmio este fres- CO ..." Meu amigo virou-se então para primeiro su- jeito e avisou: "Olha, tem um outro oficial do Exér- II cito aí atrás ..." Considero este caso, extraído de uma interminá- EXISTE RACISMO NO BRASIL vel lista de conflitos raciais que conheço, bastante ilustrativo: Nós brasileiros, quando somos pilhados em flagrante de racismo nos assustamos, reagindo, de imediato, contra quem denuncia. (Aquele inimigo No Maracanã, domingo à tarde do Cláudio Adão, por exemplo, alegou sua condição de oficial do Exército para "provar" que não podia Um amigo meu, famoso ator de TV, assistia a um ser racista.) Flamengo e Grêmio, no Maracanã. Toda vez que Nosso preconceito racial, zelosamente guarda- Cláudio Adão perdia um gol e foram vários um do, vem à tona, quase sempre, num momento de sujeitinho se levantava para berrar: "Criouto burro! competição. (O futebol é um caso mais que típico Sai daí, macaco!" Meu amigo engolia em seco. Até de "momento de competição".) que Carpegiani perdeu uma oportunidade "debaixo Em nosso país OS brancos sempre esperam dos paus". Ele achou que chegara a sua vez. "Aí, bran- que as minorias raciais cumpram corretamente OS pa- CO burro! Branco tapado!" Instalou-se um súbito e péis que lhes passaram no caso do negro, OS mais denso mal-estar naquele setor das cadeiras o único comuns são artista e jogador de futebol. Se fracas- preto ali, é preciso que se diga, era o meu amigo. sam, lhes jogam na cara a suposta razão do fracasso: Passado um instante, sujeitinho não se conteve: a cor da pele. (O sujeito achava muito natural ligar "Olha aqui, garotão, você levou a mal aquilo. Não fracasso de Cláudio Adão à sua cor preta; mas não sou racista, sou oficial do Exército". Meu amigo, aceitou que se ligasse erro de Carpegiani à sua cor aparentando naturalidade, encerrou a conversa: "E branca.)42 Joel Rufino dos Santos que é Racismo 43 Muitos negros, sobretudo da classe média, de fato ocorridos, nenhum brasileiro tem do que se costumam hoje em dia dar troco ao racismo dos orgulhar nesses aspectos. Pretinhos, baianinhos, pa- brancos, assustando as pessoas que ainda crêem numa raibinhas, índios, caboclos, jovens judeus, moças "democracia racial brasileira". (Meu amigo confessa japonesas estão, nesse exato momento, sofrendo al- que a partir do incidente foi olhado como um negro guma espécie de maltrato pelo simples fato de não perigoso, desses que parecem dispostos a brigar à toa.) pertencerem à maioria branca; e há, neste exato mo- Usamos, na primeira parte deste livro, um verbete mento, em qualquer delegacia de bairro um pau-de- do Larousse como ponto de partida. Tomarei, ago- arara (Pau-de-arara: Instrumento de tortura inven- ra, esse caso como guia para abordar racismo no tado pela polícia brasileira. Consiste num pau apoia- Brasil. do em dois cavaletes no qual a pessoa é amarrada por tornozelos e pulsos, tronco para baixo, fican- do à mercê do torturador.) à espera de uma criatura Brasileiro pilhado em flagrante de humilde que caia na suspeita da polícia. racismo reage Por que boa parte dos brasileiros ainda acredita que vivamos numa "democracia racial"? Para come- A idéia de que "aqui não temos desses problemas" porque as elites que nos governaram até hoje está profundamente enraizada em nossas cabeças. É precisavam vender esta mentira, aqui e no exterior. comum, também, encerrarmos uma conversa sobre A cabeça de uma sociedade é, em geral, feita pela violência no mundo com uma frase imbecil: "Ainda sua classe dominante com objetivo duplo de bem que aqui não acontece nada disso", enquanto manter seus privilégios e deixá-la dormir em paz. do lado de fora das nossas janelas morrem, em assal- Quero exemplificar com dois casos atualíssimos. tos e choques com a polícia, mais pessoas por dia que no apogeu da guerra do Vietnã. O I.B.G.E. (Instituto Brasileiro de Geografia Convido as pessoas que ainda crêem na "democra- e Estatística), órgão do governo encarregado de pro- cia racial brasileira", na "cordialidade inata do bra- ceder aos levantamentos de população, retirou do sileiro", e balelas que tais, a prestarem um pouco último censo (1972) a pergunta: "Qual é a sua cor?". mais de atenção à sua volta: OS jornais noticiam, em Isto aconteceu, precisamente, num momento em média, dois casos de discriminação racial por mês; e que racismo brasileiro começava a ser denunciado dois casos de tortura por dia. Considerando que OS e discutido amplamente (milhões de negros saíram à jornais não apanham sequer um centésimo dos casos rua, nesta década, no Rio, em São Paulo, em Porto44 Joel Rufino dos Santos que é Racismo 45 Alegre, exigindo direitos e exibindo seu cabelo black). Neguinho sem-vergonha quer ser Retirar aquela pergunta do censo, não teria sido uma maneira de se subtrair ao movimento negro po- Sérgio Chapelin quando crescer deroso argumento numérico (os líderes negros afir- mam que OS de cor são em maior número que OS Recentemente assisti a um espetáculo raro: um brancos)? O presidente do I.B.G.E. apressou-se em carcereiro do DOPS chorar. M. era um alto e negar: item fora retirado porque é inútil saber forte, que trabalhava sempre à noite. Aquela vez me quantas são as pessoas de cor, já que "não temos confidenciou que 0 filho queria ser "locutor de tele- aqui nenhum problema racial, somos todos uma só visão", quando crescesse: "Igual ao Sérgio Chapelin", raça". explicou. Desejei boa sorte ao garoto, mas ele recu- Milhões de não-brancos que sofrem discrimina- sou: "Você acha que um neguinho sem-vergonha, co- ções todo dia quando procuram emprego, mora- mo 0 meu, pode chegar a Sérgio Chapelin?!" Vi que dia, parceiro amoroso, clube social, médico, etc M. estava meio bêbado quando começou a fazer cara não estão, absolutamente, de acordo com isso. de choro: "Esse moleque é a razão da minha vida. E quer ser Sérgio Chapelin ..." Concordei que era No dia 12/5/76, em Salvador, um casal de mesmo impossível a um pretinho suburbano, filho pretos foi impedido pelo porteiro de subir pelo ele- de tira, chegar a astro da Rede Globo. Bastou con- vador social; não portavam ferramentas nem estavam cordar para M. me olhar profissionalmente e dar a em trajes de banho, que explicaria aquela proibi- sua sentença: "Mas você está dizendo isso porque é ção. Como fosse um casal de classe média, bem rela- subversivo". "Estou dizendo o mesmo que cionado, incidente ganhou OS jornais. Presidente ponderei. E ele: "No Brasil não tem dessa não, ca- da República recomendou uma sindicância ao Mi- ra". nistro da Justiça, este recomendou-a ao governador, Além de acreditar na sua "democracia racial", que, antecipando-se à Justiça, respondeu: "Esse brasileiro acha que falar no problema é subversão. acontecimento é de caráter de excepcionalidade to- Que conclusão extrair daí? O mito da democracia ra- tal e deve ser encarado como tal". cial é uma forma brasileiríssima, bastante eficaz, de que está em todos OS prédios do país entradas controle social. O que espanta os estrangeiros que para brancos bem vestidos, social; e entradas para nos visitam não é esta democracia racial em que só pretos, mal ou bem vestidos, de serviço a autorida- nós acreditamos -, é a nossa ingenuidade em acredi- de chama de "excepcionalidade total" tar nela. Quando 0 senador norte-americano Bob46 Joel Rufino dos Santos que é Racismo 47 Kennedy visitou a Pontifícia Universidade Católica, do Rio (1967, creio), um grupo de estudantes enten- deu de agredi-lo mencionando ódio racial no seu país. Ele se defendeu com uma pergunta que ficou no ar, pesada e sem resposta: "E OS negros brasileiros, por que não estou vendo nenhum aqui entre vocês?" A mim, pessoalmente, me agrada muito uma velha alegoria para explicar a diferença da questão racial lá e aqui. Nos Estados Unidos negro tem uma pis- tola apontada para sua cabeça; no Brasil, ela está apontada para as suas costas. Para quem segura a pistola, a segunda situação é, sem dúvida, mais cô- moda. Esta tática de esconder conflitos, para diminuí- los, é tão brasileira quanto 0 peixe de COCO pode ser que façam igual em outra parte do mundo, me- não. As rebeliões indígenas, por exemplo, pon- tilharam nossa história colonial, só que OS manuais didáticos não falam delas, preferem exaltar bandei- rantes genocidas (assassinaram 1 milhão de índios em 50 anos), e a "gloriosa epopéia das bandeiras", Agência folhas etc, etc. Outro exemplo: a escravidão chegou ao apo- geu durante Império, quando 4/5 da população "Técnicos da usura, tais se tornaram os judeus em quase trabalhavam à força, sob torturas; pois bem: as pala- vras escravidão e tortura não podiam, oficialmente, toda parte por um processo de especialização quase bio- ser proferidas no Parlamento. E, por fim, um exem- lógica que lhes parece ter aguçado perfil no de ave de plo recente: no governo Médici (1969-1974) nenhum rapina, a mímica em constantes gestos de aquisição e de jornal, grande ou pequeno, podia publicar nada so- posse, as mãos em garras incapazes de semear e de criar. bre índios, esquadrão da morte, movimento negro e Capazes só de amealhar." Gilberto Freyre em Casa-Gran- guerrilha era como se, por decreto, tais problemas de & Senzala ed. p. 314.48 Joel Rufino dos Santos que é Racismo 49 não existissem. que só tem "japonês". "Por quê?", indaga. "Você Dizem OS especialistas que primeiro passo para pensa que eles chamam a gente pro time deles?", curar um toxicômano é fazê-lo admitir que é. As- lhe respondem. Mário se recusa a integrar um time sim, se a sociedade brasileira deseja acabar com a só de "patrícios" e termina ano sem jogar em violência e racismo, deve confessar que é violenta e time nenhum e de relações cortadas com OS outros racista. Pode nos consolar, talvez, a idéia de que não "japoneses". estamos sozinhos: todas as ex-colônias européias Caso 3. Alain a camaradagem do Uganda, El Salvador, Vietnã têm a mesma per- professor de Resistência de Materiais para convocar sonalidade básica. Tal foi a herança do colonialismo. OS interessados em formar um grupo de estudo. Está diante da classe, professor às suas costas, quando lhe atiram a primeira bolinha de papel e primeiro Racismo de brasileiro, zelosamente "xingamento": "Sai daí, judeu!" "Vai procurar tua turma no Bom Retiro!" "Vai vender gravata, guardado, aparece em momento de Jacó!" Alain desiste de tudo, OS olhos cheios de lá- competição grima. professor repreende asperamente a turma e, depois de esclarecer que não é judeu, inicia uma pre- Caso 1. Elvira é uma publicitária bem sucedi- leção sobre OS males que nazismo alemão causou da: freqüentemente consultada por colegas impor- àquela gente. tantes, ganha, por mês, entre 70 e 80 mil cruzeiros. 0 que têm em comum esses três casos reais de ra- A fim de dar maior conforto à sua mãe e a dois ir- cismo? A negra Elvira, japonês Mário e judeu mãos em idade escolar, adquire, ainda na planta, um Alain pareciam dispostos a competir com OS outros apartamento de luxo no Jardim América. Tudo cor- ela queria morar "em lugar de branco", segundo re bem até mês, quando, certa noite, ao regres- queria "jogar em time de brasileiro" e o estudante sar do trabalho, encontra a mãe chorosa. Após uma judeu queria estudar com não-judeus. As pessoas briga comum de crianças, a vizinha do agredira que OS agrediram, em outra situação, não competi- "moralmente" seus dois irmãos: "Vocês não têm ca- tiva, possivelmente seriam amistosas com eles; e a tegoria para morar num prédio como este!" qualquer menção de racismo, no Brasil, se mostra- Caso 2. Mário é convidado pelos colegas "ja- riam descrentes e indignadas. poneses" do cursinho que freqüenta a entrar num ti- 0 tipo de racismo que tivemos no passado foi pa- me de futebol de salão. No primeiro treino, verifica ternalista: discriminação sem conflito; neste século,50 Joel Rufino dos Santos que é Racismo 51 acompanhando nosso desenvolvimento capitalista, maioria da população, pobre e de cor. transformou-se em racismo aberto: discriminação Os indianistas, no século passado, justiça seja fei- com conflito. ta, tentaram incorporar ao país imaginário uma par- Até cerca de 1900, com efeito, nossa sociedade cela do país real: puseram índio nos seus romances girou na órbita da grande fazenda, OS espíritos dos e poemas. Os sertanistas, no começo deste século, coronéis da roça pairando sobre tudo. Em cima, uma acrescentaram, mais tarde, uma outra ho- "esmagadora minoria" de latifundiários, embaixo mem da roça. Ora, índio e homem da roça são uma multidão de escravos e servos, no meio uma in- de cor moreno, jambo, café-com-leite, acabocla- significância de "classe média". Os lugares estavam do, uma infinidade de cores, reais e imaginárias. (No marcados ao nascer: OS de cima eram sempre brancos; penúltimo censo houve até quem se autoproclamas- de baixo, de cor. Podia acontecer de uma pessoa se "cor de burro quando foge".) A sociedade brasi- de cor irromper, subitamente, em cima, a cultura leira não tinha, naquele tempo, condições de ir além. funcionando como trampolim; como podia suceder, Os "morenos" são, de fato, a maior parte do nosso igualmente, de uma criatura branquíssima descer a povo, mas a melhor somos nós, os brancos; ninguém ponto de se confundir com a "gentalha" que se com- precisa, também, ficar preocupado, a tendência do primia nas senzalas e cortiços. As exceções, entre- Brasil é embranquecer era, mais ou menos, o que tanto, por definição, nada querem dizer. A nossa re- pensava um intelectual brasileiro, no final do século, gra é a linha de classe se confundir com a linha de cor. sobre as relações raciais do seu país. Quando um brasileiro de cima se referia ao seu país, num aconchegante café de Berlim, por exem- plo, não estava se referindo aos negros e caboclos "Ora, é apenas um negro" que penavam nas construções e fazendas do país real para que ele pudesse ter uma vida de conforto. Durante esse longo período, as pessoas de con Estava falando dos seus iguais, brancos, alfabetiza- não ameaçaram a posição de ninguém. Faziam so- dos e ricos como ele. Esta cisão entre 0 país real e mente trabalhos manuais e viviam, em geral, nas par- país imaginário acabou vincando pensamento das tes mais atrasadas do país (no Norte e Nordeste, no nossas elites até hoje. Quando um brasileiro descre- interior do Rio de Janeiro e Minas Gerais). Estavam ve, em 1980, Rio de Janeiro para um estrangeiro, segregadas, social e geograficamente, mas esta verda- fala de Ipanema, bairro sofisticado da classe média de nem de leve passava pela cabeça de ninguém (com branca; não fala do subúrbio, onde vive a imensa as honrosas exceções de sempre). Quando vinha à52 Joel Rufino dos Santos que é Racismo 53 baila sua marginalidade e pobreza, OS de cima encon- Era preciso acabar com a escravidão para mo- travam uma fácil e cômoda explicação: "O país é po- dernizar Brasil (e para OS crentes na "cordialidade bre, que diabo; não há oportunidades ainda para brasileira" eis aqui um recorde nacional: fomos úl- todos e, além disso, eles não estão preparados para timo país do mundo a abolir oficialmente a escravi- a complexidade da vida moderna. Quanto aos negros, dão). em especial, tenham paciência: a escravidão acabou Era preciso acabar com a escravidão para ali- há pouquíssimo tempo, sua ascensão social não se viar 0 sofrimento dos pobres pretos. Ora, compaixão fará da noite para dia". (O argumento continua a pelos pretos é mesmo que, por exemplo, compai- ser usado ainda hoje, 100 anos após a Abolição: se xão pelos pobres macacos, que estejam sofrendo de OS negros estão embaixo é porque foram escravos. É alguma forma. (De passagem, lembremos que "maca- um argumento que nos exime de culpa: problema co" é um dos xingamentos preferidos de brancos não é nosso, é histórico.) contra negros.) Pretos, mestiços e índios não eram vistos, naquele Ao começar este século, a cabeça dos brasileiros, tempo, como raças. Eram vistos como subespécies. em geral, estava cheia de idéias desfavoráveis com re- Mulato é apenas uma derivação de- mula; lação aos não-brancos. Nada mais natural: há 300 a- quanto aos índios, OS teólogos discutiram mais de nos víamos O negro como escravo, índio como ser- cem anos se eles teriam ou não uma alma. Ora, você vo, mestiço como vagabundo (por não haver traba- pode ter tudo com relação a uma outra espécie, ou lho para ele, é claro). Tanto é verdade que, na hora subespécie, menos preconceito. Você não precisa de extinguir a escravidão, ninguém pensou em usar ter, pois ele não é absolutamente seu igual. À viajan- não-brancos como trabalhadores livres. Formu- te inglesa Maria Graham, que lhe reprovou, certa lou-se, então, uma regra muito clara (sem trocadi- vez, maltratar um criado, um latifundiário respon- lho): quanto mais branco o trabalhador, melhor. deu com naturalidade: "Ora, é apenas um negro ..." Nossos fazendeiros só apreciavam colonos alemães, Sintomaticamente, as expressões "discriminação ra- suíços, eslavos e, na pior das hipóteses, italianos. cial", "conflito racial", "preconceito racial" eram Por que OS de cor não serviam? Na concepção ra- desconhecidas de nossos avós: eles não precisavam cista dos nossos latifundiários, "não eram capazes delas. de acompanhar novo trabalho, inteligente e res- Nem mesmo a Campanha Abolicionista ponsável". Haviam escravizado OS povos de cor e, (1879-1888) encarou negro como gente. Ela se agora, como bagaços, atiravam na beira da estra- baseou em dois argumentos principais: da.Joel Rufino dos Santos que é Racismo 55 54 As mudanças sociais só contribuíam para reforçar exemplificar, tinha em 1850 a população que São aqueles Desde 1850, as regiões Sudeste Paulo só veio a ter em 1940: 1 milhão!) Não era no- e Sul vinham se desenvolvendo mais do que as ou- vo, mas era assustador. tras. Como OS imigrantes europeus, branquíssimos, As novidades foram trazidas pelo capitalismo. Co- se concentravam nelas, OS racistas brasileiros podiam mo em outras partes, aonde chegou antes, ele pare- explicar: "Estão vendo? Onde tem menos preto cia oferecer oportunidades a todos dependia de progresso é maior". Esqueciam que a arrancada ini- esforço e sorte. Os não-brancos teriam, também, a cial do café, que enriqueceu triângulo Rio-Minas- sua chance. Tiveram? S. Paulo, foi dada por negros e tapuias. Esqueciam, Não. As estatísticas provam uma marginalização também, que, se a maior parte das pessoas de cor maior dos não-brancos hoje do que antes. A política continuavam a viver em regiões estagnadas (confina- de "integração" do índio fracassou e a distância que mento geográfico) e nos degraus mais baixos da so- OS separa, atualmente, de nós só pode ser medida em ciedade (confinamento social), não era por culpa anos-luz. (Em 1965, ao ser criada a FUNAI, Funda- sua. Nessas regiões e nesses degraus não poderiam ção Nacional do Indio, em substituição ao Serviço jamais, mesmo que fossem capazes, mostrar valor de Proteção ao Indio, confessou-se, sinceramente, algum. aquele fracasso.) Quanto aos negros, a expectativa otimista de que o desenvolvimento econômico leva- ria ao aparecimento de uma "burguesia negra", prós- "Você não vence na vida? É culpa sua, pera e integrada, frustrou-se integralmente: OS negros ricos são meia dúzia de gatos pingados, imprensados você tem complexo de cor". e solitários numa classe média que OS olha de través. Nos últimos 50 anos, porém, a sociedade brasi- Pode-se objetar que nos últimos 50 anos diver- SOS negros ganharam destaque na sociedade brasilei- leira mudou bastante. Mudou tanto, nos seus aspec- ra (diversos negros, mas, curiosamente, nenhum tos econômico, político e cultural que, se você tives- se morrido em 1920 e ressuscitasse em 40, pensaria dio). Não é novidade isto: no século passado alguns estar em outro país. Pressa, competição desenfreada, deles chegaram até ao círculo íntimo do Imperador. individualismo, falta generalizada de escrúpulos "es- Nem é novidade, também, processo de trazê-los para cima: gancho, que OS afasta, completamente, tragaram" Brasil de nossos avós. da sua gente e permite exibi-los comó prova da "de- espetáculo não era novo: ocorrera muitos anos mocracia racial". Desde Henrique Dias, no século antes na Europa e Estados Unidos. (Londres, para56 Joel Rufino dos Santos que é Racismo 57 XVII, até Pelé, a lista de homens de cor assim "pen- Brancos sempre esperam que os outros durados" em vitrina é extensa. O que pensam, em cumpram seu dever geral, OS brancos brasileiros desses negros e mulatos "ilustres"? Que são "diferentes do resto". (É co- Um amigo preto, casado com mulher branca, me mum, em nosso país, se falar de um negro bem suce- contou que na porta do seu prédio havia um guarda- dido, nos seguintes termos: "Ele é preto mas é legal", dor de estacionamento com quem estabeleceu uma como se a cor, em si, constituísse um defeito.) Para curiosa relação. Sempre que retirava o carro, guar- designá-los inventamos até uma expressão: "negros dador lhe perguntava se a madame tinha deixado "al- de alma branca". gum". "Deixou só isso", ele respondia. Nunca passa- Por volta de 1930 foi que começaram a aparecer, ria pela cabeça do guardador que a madame sovina primeiro nos jornais e nas organizações de luta ne- era esposa do outro. casal combinou manter a gras, expressões como "preconceito racial", "discri- farsa e, assim, pagar sempre menos pelo estaciona- minação racial", "segregação racial". Eram desco- mento. nhecidas antes, porque a sociedade brasileira não O brasileiro se acostumou a ver negro desempe- precisava delas: OS negros não disputavam lugares nhando determinados papéis: mendigo, empregado, com OS brancos. Eram necessárias agora que capi- operário, artista, jogador de futebol. Meu amigo não talismo em desenvolvimento acirrava as competições. era conhecido como artista ou jogador, só podia ser Pelo menos uma dessas novas expressões parece chofer. Malandramente, ele se aproveitou da igno- invenção brasileira: "complexo de cor". Seria uma rância do guardador, mas fato de estarem condena- espécie de complexo de inferioridade dos não-bran- dos a certos papéis subalternos como uma praga -, COS diante da vida: ela dava oportunidade a todos é fonte de angústia para milhões de brasileiros que que tivessem força de vontade, mas OS não-brancos não nasceram brancos. "Judeu é sempre comercian- tinham um inexplicável medo de tentar; largassem te" e OS que não são ou não querem ser? "Japonês medo e tentassem, estudando, trabalhando firme, é sempre esforçado" e OS que preferem malandrear? cumprindo as regras sociais Acabariam premiados. Nos últimos cinqüenta anos a sociedade brasileira A invenção deste "complexo de cor" teve um obje- estabeleceu para OS negros dois novos papéis: sambis- tivo: jogar em cima dos não-brancos a culpa das suas ta e jogador de futebol. Samba e futebol vieram na dificuldades. Você não vence porque tem complexo crista de Revolução de Trinta, a revolução que trans- de cor. A sociedade brasileira não é absolutamente formou Brasil num país capitalista dependente. Cla- racista. ro, já existiam antes, mas, só então, seduzindo o po-58 Joel Rufino dos Santos 0 que é Racismo 59 vão e se profissionalizando, é que viraram "expres- brasileiro um perfeito exemplo, que de pitoresco sões da alma nacional". Os primeiros ídolos de massa, passou a trágico: Paulo César Lima, apelidado "Ca- neste país, foram sambistas e jogadores de bola; e ju". Todos reconhecem que é um craque, só lhe fa- primeiro bamba e primeiro craque foram OS negros zendo uma restrição: "É metido demais", "Quer le- reluzentes Pixinguinha e Leônidas da Silva. (Pode-se var vida social", "É lhe dar OS pés pra ele querer as objetar que houve antes Sinhô e Cândido das Neves, mãos", etc. Restrição do mais cristalino racismo. Friedenreich e Fausto. Não importa: eram todos de Outra forma de punir, muito nossa, é domesticar cor.) Crescendo rapidamente na década de 1930, a pessoa de cor. Todo mundo conhece "negro pai capitalismo brasileiro estabelecera lugar dos pretos João", "negro que se preza", o "negro que não mi- palco e gramado. ja fora do penico", e equivalentes. É sempre perigo- Mesmo nesses dois lugares, porém, seus papéis eram so confiar demasiado nele, "pois preto quando não rigidamente marcados: sambista não passava a em- faz na entrada, faz* na saída", mas 0 brasileiro bran- presário de samba, jogador de futebol não passava CO costuma ter por perto na condição de emprega- nunca a técnico, nem a juiz, nem a goleiro não do, de "pau pra toda obra" e, até, de "amigo do pei- tinham, segundo a crença geral, serenidade e confia- to" um crioulo assim. bilidade para essas funções. No Rio e em São Paulo, A domesticação é uma forma sutil de racismo. milhares de negros começaram, entretanto, a bater Muitos brancos não se acham sequer dispostos a ad- em outras portas, faculdades, negócios, forças arma- miti-lo, mas bastaria prestar um pouco de atenção à das era natural, dado seu grande número. Dis- psicologia dos não-brancos para constatar a defor- putando cargos e funções com homens e mulheres mação causada por ela. Ocorrem-me, a esta altura, de- brancos acabavam punidos como "negros que não se zenas de casos. Por exemplo, 0 de um amigo bem su- enxergam", "negros atrevidos que não reconhecem cedido que começou a ter problemas de relaciona- seu lugar", etc. (é fácil comprovar a veracidade dis- mento com 0 filho e procurou uma psicóloga; ele a to. Todo brasileiro já ouviu ou disse, alguma vez, fra- procurou, entre outras razões, por sentir que estava se semelhante.) transferindo para garoto seus conflitos raciais. A As formas de punição social aos negros "que não psicóloga não concedeu qualquer atenção a essa pro- reconhecem seu lugar" são pródigas. A mais blemática: "O problema só existe em você. Não é mum é fecharem-lhes as portas. Os brancos, e até um problema real, que afete a relação entre pessoas mesmo outros negros, não dão empregos a negros na nossa sociedade". rebeldes, evitando conviver com eles. Há no futebol Outro: como alguns negros de sorte, R. colecio-60 Joel Rufino dos Santos O que é Racismo 61 nou diplomas de curso superior. Começou a freqüen- Uma pessoa curiosa que saísse por São Paulo à noi- tar, montado neles, ambientes relativamente fecha- te ficaria ainda mais surpresa. Toparia com dezenas dos da zona sul. Queixa-se que OS amigos, sempre de grupos negros de teatro; pelo menos meia dúzia que vão apresentá-lo, enumeram a lista dos seus títu- de cenáculos de poetas negros; escolas profissionali- los, como se precisassem se justificar diante dos ou- zantes para negros; pontos de encontro só de negros; tros por andarem com ele; ou se quisessem tranqüili- bailes "da cor" e, até, simples bares enfumaçados em zar as pessoas: "É negro, mas está domesticado por que negros de hábitos regulares entram para um tra- este montão de diplomas aí". go antes de dormir. Exceto numa escola de samba, nunca teria visto tantas pessoas de cor juntas. Ser- fácil entrar em qualquer desses lugares só Negros não crêem em "democracia lhe custaria leve constrangimento de se achar entre racial". Dão troco a brancos. pessoas de cor Com a maioria desses negros, este curioso noctíva- No final do ano passado quem passasse pela movi- go só conversaria coisas amenas samba, futebol, mentada calçada do Mappin, em São Paulo, veria na mulheres, soul. Alguns, porém, insistiriam em lhe fa- escadaria do Municipal, em frente, um grupo de ne- lar da "consciência negra", dos "direitos humanos gros recitando em coro: dos negros", do "quilombismo" Contariam que OS "(...) Continuamos marginalizados na sociedade militantes negros se distribuem por centenas de orga- brasileira, que nos discrimina, esmaga e empurra ao nizações nacionais, frouxamente coordenados pelo desemprego, subemprego e à marginalidade, negan- Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação do-nos direito à educação, à saúde e à moradia de- Racial, cujo antecedente mais remoto foi a Frente cente!" O documento se intitula "20 de Novembro, Negra, extinta pela ditadura do Estado Novo, em Dia Nacional da Consciência Negra", e foi distribuí 1937. do nas ruas, depois de lido em coro. Da conversa com militantes do movimento negro, Havia surpresa, e uma ponta de incredulidade, nos das entrevistas, documentos e livros que vêm produ- olhos dos que passavam. Perfeitamente natural: nun- zindo, emerge alguma coisa profunda e nervosa, ca tivemos isso por aqui. (Não era rigorosamente iné- mo há muito não víamos. Claro, inimigos da de- dito este tipo de manifestação. Esporadicamente mocracia (que, ao menos seria a mani- elas acontecem desde 1950. Nossa atenção para o festação organizada de todas as insatisfações sociais) problema racial é que vale pouco.) tentaram estrangulá-lo no berço, contando, para is-62 Joel Rufino dos Santos que é Racismo 63 so, com preconceito generalizado de que "aqui ria.) Talvez sua pretensão de abarcar apenas OS ne- não temos problemas raciais". O movimento negro gros esteja limitando seu crescimento. Aqui, as víti- sobreviveu-lhes, entretanto. (De dois anos para cá, mas do racismo são todos OS não-brancos. Um movi- vem se estruturando, também, um movimento indí- mento de não-brancos teria potencialmente, portan- gena; a começar pelo reduzido número de sobrevi- to, mais chances de crescer que um movimento ne- ventes, seus obstáculos são infinitamente maiores gro. que OS dos outros. fato, porém, de não aparecer Há outra dificuldade interna. Esse auspicioso mo- sozinho, mas como movimento de não-brancos, vimento contra racismo parece não ter compreendi- gado a problemas sociais gravíssimos como da do ainda a relação entre classe e raça. problema posse da terra -, lhe abre boas perspectivas de cres- não é intelectual, entretanto, a ser resolvido em pá- cimento.) ginas de livros ou textos de conferências. É de práti- As dificuldades do movimento negro não são ape- ca política e pode, a meu ver, se equacionar assim: nas as que seus adversários lhe trazem. Ele tem uma que classes da sociedade brasileira independente da dificuldade congênita: nasceu, e permanece ainda, sua "raca" se integrarão à luta contra racismo? um movimento de elite. Dificuldade original, reco- Por enquanto, força reside em manifestações nheça-se, de todos OS nossos movimentos políticos, ruidosas e pequenas de denúncia, como aquela do ideológicos e culturais. No Brasil só são populares, Municipal; .e em protestos solitários e insólitos, co- de fato, a religião, futebol, carnaval e a Rede mo do meu amigo no Maracanã-numa bela tarde de Globo de Televisão - 0 que sufoca, como uma más- sol. cara de ferro, tudo que se tentou fazer, até aqui, para tornar país uma democracia real. A falta de base popular no movimento negro é, pelo menos, estranha, já que as pessoas de cor são, indiscutivelmente, a maioria de nosso povo. (O lei- tor terá notado que até aqui grifamos as palavras maioria e minoria quando se referiam a raça. Os brancos são maioria, no Brasil, se comparados a ou- tros grupos raciais isolados; se comparados aos não- brancos, são minoria, pois as minorias de pretos, mu- latos, índios, caboclos, etc., somadas, dão uma maio-que é Racismo 65 do", diga-se de passagem me lembrei disso. Um ti- ra se aproximou e, aos berros, ordenou que tirassem a roupa como sonâmbulos começaram a obedecer. Se alguém se aproximasse para dizer-lhes que a polí- cia não tinha direito de fazer aquilo, seria havido por louco. (Há uma particularidade curiosa na formação III do nosso povo: OS pobres de hoje são "despossu ídos históricos", descendem de pessoas que nunca tive- PRINCIPAIS MODALIDADES DO ram nada, nem sequer a posse do seu próprio corpo.) Foram atochados, em seguida, num cubículo, RACISMO BRASILEIRO chão propositadamente alagado (de tempos em tem- pos carcereiro atirava um balde de água). Uma Onde os pretos são maioria idéia, mais completa que a primeira lembrança, me riscou então o cérebro: onde as pessoas são tratadas Não sei se leitor já viu um camburão de polícia como bichos não há democracia nenhuma, muito menos a racial. despejar sua carga num pátio de delegacia. Dezenas de pobres coitados descalços, perebentos, encacha- Para mim esta é a primeira modalidade do racismo que haviam entrado ali aos pontapés, tangidos brasileiro: agora para fora como bichos. Por que a polícia OS Nos acostumamos a ver, e a tratar, povo como "recolheu"? Porque não tinham carteira de trabalho bichos. assinada ou praticaram pequenos furtos ou foram Se poderia objetar que isto não é racismo, mas acusados por alguém decentemente vestido ou "esta- discriminação social. Seria tocar numa velha e enfa- vam em atitude suspeita" (uma diabólica invenção da donha discussão: raça e classe social são a mesma política brasileira, a única do mundo que "prende coisa? No Brasil, maltratar OS pobres é maltratar pes- por resistência à prisão"). Ou, simplesmente, porque soas de cor e ponto final. OS investigadores precisavam completar sua cota diá- ria de prisões. Discriminado tinha "Os únicos lugares em que preto é maioria, dizia bunda empinada um amigo meu, é na favela e na cana." Certa vez, olhando um despejo daqueles de "local privilegia- Me lembro muitas vezes de um hino evangélico66 Joel Rufino dos Santos 0 que é Racismo 67 que cantei muito na infância, agitando, em coro, as missionária que nos ensinou aquele hino. Quando mãos sobre a cabeça: cantávamos aquele "ó vem, ó vem, vem nos falar de "Os índios lá no Norte Jesus ...", ela queria que, imitando índios, fizésse- estão pensando em nós aqui. mos carinhas tristes.) Existe um padrão branco de Eles desejam salvação qualidade, quem sai dele não sobe na vida, Um ex- e pedem, sim, ó vem, ó vem, prefeito de cidade importante me confessou, certa vem nos falar de Jesus vez, a grande frustração da sua vida: reprovado na Vem pra guiar-nos à luz." admissão ao Colégio Militar porque tinha bunda em- Os pobres índios só conhecerão a luz se nos imi- pinada. (O candidato a oficial, segundo me garan- tarem. Esta é a segunda modalidade do racismo bra- tiu, não pode, pelo regulamento, ter a "região glútea sileiro: desenvolvida".) "Ora reclamava ele -, como des- Achamos, sinceramente, que brancos são me- cendente de africanos eu só podia ter traseiro alto. que não-brancos. Fui vítima de discriminação racial." Em matéria de religião, por exemplo, temos as de Em qualquer cidade brasileira jornais estão gente de cor (candomblé, quimbanda, pajelança, ca- cheios de anúncios de emprego. Alguns, abrindo timbó, terecô, etc.); e as de branco (espiritismo, mesa jogo, pedem "pessoas claras"; outros terminam com branca, catolicismo, protestantismo, mórmon, evan- O "exige-se aparência". Nenhum rapaz ou moça gélica, etc.). Para OS crentes naturalmente, esta minha de cor vai perder seu tempo se apresentando. Fa- classificação não tem sentido quase todas as reli- CO, a esta altura, um convite às pessoas que ainda giões se pretendem universais; não falo, contudo, no crêem na nossa "democracia racial". Atentem para plano da fé, mas no plano objetivo. Quem quiser com- determinadas profissões garçom, diplomata, pro- provar desprezo pelas religiões de gente de cor não pagandista de laboratório farmacêutico, caixa de precisa ir longe: o jornal Estado de São Paulo vez banco, aeromoça, balconista de boutique ... Com as por outra reclama ação policial contra terreiros de honrosas exceções de sempre não encontrará pretos. macumba por praticarem "magia negra". (Seria di- vertido ver os macumbeiros pedirem à justiça a inter- dição das igrejas cristãs por prática de "magia bran- Também já fui crioulo, doutor Como supomos brancos melhores, exigimos Me lembro de um episódio contado por Robson, que OS não-brancos OS imitem. (Ainda me lembro da ex-meia esquerda do Fluminense Futebol laJoel Rufino dos Santos que é Racismo 69 68 no landau de um cartola para a concentração, quan- mulheres brancas, tidas como mais belas e finas que do um casal de namorados atravessou a pista corren- as escuras. O fato intriga e, às vezes, irrita as pessoas do. cartola freou e, esticando a cabeça pela janela, brancas e é de ver a hostilidade com que esses ca- xingou: "Querem morrer, crioulos safados!" Rob- sais bicolores são recebidos numa sociedade que se son engoliu em seco, más, passado um instante, lem- diz não-racista... É natural que esses negros que brou: "Doutor, eu sei que é isso. Também já fui "venceram" queiram as melhores que seu prestígio e seu dinheiro possam comprar. O racismo crioulo". Como mundo que está aí seu conforto, seus não está nisso. Está em achar que "as brancas são as padrões, seus valores, seus ideais é branco, OS que melhores mulheres". (Como estaria em achar, no ou- podem embranquecem (em termos sociais, natural- tro pólo, que OS homens negros são OS mais "quen- tes".) mente). Alguém já observou que a cor, em nosso país, é mais uma marca que uma raça. De cor são to- dos OS que valem pouco ou não valem nada "isto Machado de Assis x Lima Barreto é serviço de preto", diz povo quando alguma coisa resulta mal-feita. Há, é claro, um bom número de branquinhos que não valem nada, favelados de olhos Os dois maiores escritores negros da nossa litera- azuis, paus-de-arara de cabelos escorridos exceções tura sofreram dessa obsessão de embranquecer que que confirmam a regra. (Paus-de-arara: nordestinos mencionei acima; um curou-se, outro não. que vão procurar trabalho fora da sua terra. Não "Se me discriminam, pior para eles", dizia Louis confundir com instrumento de tortura, definido an- Armstrong toda vez que lhe perguntavam se era vítima de racismo em seu país. Este parece ter sido tes.) Embranquecer se tornou, por conseqüência, uma na vida lema de Joaquim Maria Machado de Assis obsessão para as pessoas humildes de cor. "Não sou (1839-1908). Sua resposta aos preconceitos foi um racista. Mas gostaria que minha filha casasse com desdenhoso dar de ombros; e uma arte refinada e alguém menos escuro, para ir limpando sangue", aristocrática, muito mais aparentada a êmulos euro- cansei de ouvir isso de zelosas mães suburbanas. Para peus que brasileiros, cérebro comandando e orga- nizando as paixões. sem suor e sem bu- que embranquecer OS filhos e netos? Para terem me- nos obstáculos na vida. Não se vá pensar, contudo, dum. que este processo é sempre consciente. Os negros Seu hercúleo esforço para embranquecer foi com- que ficam ricos de alguma forma, procuram sempre preendido e ajudado. (Machado de Assis não apenasJoel Rufino dos Santos 0 que é Racismo 71 70 modelou sua arte pela européia. Casou-se com bran- ca, nunca mencionava OS parentes pretos, não tinha amigos de cor.) Na juventude, modesto tipógrafo metido a escritor, OS retratistas pintavam negro como era; na velhice, famoso e festejado, presidente da Academia Brasileira de Letras, representavam-no quase branco, a tez clara, pixaim amaciado. Um meio-contemporâneo seu, Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922), também filho de pre- tos, trilhou caminho diverso. Na infância e juven- tude enfrentou, tanto quanto outro, OS obstáculos que a sociedade brasileira antepõe aos que não nas- ceram brancos também 0 mandaram entrar pela porta dos fundos, também exigiram mais dele do que dos outros, também lhe explicaram OS fracassos LEITE pela cor da pele (uma discriminação que, parece, lhe calou fundo não poder formar-se em engenharia). É comum jovem de cor que contorna esses obstá- culos pelo drible: se não posso derrubar, dou a volta; sua personalidade se equilibra neste ziquezague, que quebra a dignidade mas permite viver e subir. Os brancos não aceitam, mas negro força a aceita- ção - comportando-se como OS brancos desejam que ele se comporte. (Este comportamento adaptativo do negro, comum em toda a América, que acaba lhe conferindo dupla personalidade, tem sido bastante estudado por psicólogos e sociólogos.) Não foi caso de Lima Barreto. Ele decidiu bri- gar, como escritor e como pessoa. Enquanto Macha- Machado de Assis (1839-1908) do de Assis driblava OS obstáculos, na vida e na arte,Joel Rufino dos Santos que é Racismo 72 73 Lima Barreto sacrificava-se (e, por isso, certamente, que governo dá Governo não gosta de nós ..." odiava que comparassem com outro). Seus ro- Não sei qual dos dois, Clara dos Anjos ou Triste mances cheiram a povo, denunciam todas as formas Fim de Policarpo Quaresma, é maior libelo contra evidentes e sutis de discriminação contra as pessoas a discriminação dos não-brancos no Brasil. Ou se a de cor que se acotovelam no subúrbio, "refúgio dos própria vida de Afonso Henriques de Lima, Barreto. infelizes". Ele próprio decide mudar-se para aquela parte abandonada da cidade, identidade de preto e pobre. Ora, esta unidade entre a sua arte Mão Branca X mãos negras e a sua vida é que lhe confere a força de grande escri- tor. Machado de Assis fugiu, Lima Barreto assumiu. Duas opções sociais (e, no fundo, raciais) diferentes, S. D. C., pedreiro, mulato, 39 anos, embriagou-se certa noite e, à força, deu um banho de soda cáustica duas estéticas distintas. Sua novela mais tensa é Clara dos Anjos. Conta na mulher, A. M. S. Isto aconteceu em Belo Horizon- um caso de sedução: Clarinha, menina preta, filha de te, dia 14 de setembro de 1971. Alguns jornais carteiro, cai na lábia de um sedutor profissional, Cas- exploraram lado cômico do caso, mas nenhum si Jones, rapaz loiro de ascendência inglesa; no final, analisou nem OS jornais têm essa obrigação a ele a engravida e foge. Clarinha e a mãe se dirigem à terrível ambivalência do modesto pedreiro: queria casa da família de Cassi. A mãe dele, ao vê-las, mo- sua mulher mas não queria sua cor. destas e pretas, nem abre a porta. Termina a mãe de Conheci, na minha infância de subúrbio, inúmeros Clarinha: "Minha filha, nós não valemos nada". A pretos que se esfregavam à noite com água sanitária crítica literária só tem falado mal deste romance, tal- (a "cândida" dos paulistas) e, ainda hoje, muitos vez porque olhe Barreto com padrão tirado de deles "esticam" cabelo para disfarçar sua "ruin- Machado de Assis. Talvez porque seja um libelo anti- dade". Que conclusão tirar? Milhões de pretos, racista; e, para muitos de nós, pareça mais fácil ser judeus, japoneses, índios de todos OS grupos racial- um Cassi Jones que uma Clara dos Anjos. mente oprimidos na sociedade brasileira foram Em Triste Fim de Policarpo Quaresma, a sobrinha levados a se odiar e a praticar violência contra si do major pergunta a um roceiro preto, Felizardo, próprios. por que não planta nada, se a terra é boa e farta. Ele O racismo tem essa peculiaridade: acaba se intro- explica que não tem sementes, não tem arado E jetando nas suas vítimas, tornando-as, também, conclui: " Isso é bom para italiano ou 'alamão', racistas.Joel Rufino dos Santos que é Racismo 75 74 Agora, um exemplo menos trágico. Quando a TV assassinando rapazes pobres da região mais pobre exibiu seriado Raízes, a vida de um conhecido do Estado. Descontar as dificuldades coletivas em meu, pobre rapaz favelado, virou um inferno. Ele se cima dos mais fracos pobre, homossexual, a parecia demais com Kunta Kinté, africano em prostituta, deficiente mental ou físico, menor torne do qual se desenrola a ação. Cada vez que abandonado, preto, índio, judeu é uma lhe gritavam "Kunta!", meu conhecido partia para invenção da ideologia fascista. Organizações desta a briga. Sabia perfeitamente que se tratava de um natureza não querem saber dos crimes dos ricos; e antepassado negro que resistiu bravamente à escra- apresentam OS crimes dos pobres como a causa da vização mas tinha vergonha do seu cabelo duro, violência social. (Ideologia fascista: ideologia de espetado, do seu nariz chato e do seu beiço grande. extrema-direita, elaborada originalmente na Itália Suponho que a maioria dos negros brasileiros seja de entre-guerras. Sobrevive inclusive em nosso país.) como este meu amigo: não acham black beautiful. Por que Mão Branca é racista? Basta correr a lista (Black is beautiful, negro é bonito, a uma certa dos "presuntos" que ela envia diariamente aos altura, foi consigna do movimento negro norte-ame- jornais, para constatar que a esmagadora maioria é de jovens e negros. ("Presunto", na gíria policial, é ricano.) Deixei meihor exemplo de introjeção do racismo defunto.) Pode-se objetar que é coincidência: Mão Branca não- olha a cor de suas vítimas. Esta objeção nas suas vítimas para fim. Há cerca de um ano a Baixada Fluminense, no é um sofisma: a maioria tinha de ser mesmo de cor, Rio, conhece um frio matador, que se dá ao luxo de pois ele só mata pobre. avisar aos jornais, antecipadamente, quem vai racismo da Mão Branca fica, porém, visível é matar e onde. A dar crédito teria executado, na escolha do símbolo: mãos brancas representam a num só mês, 114 pessoas. Chama-se Mão Branca, e Limpeza e Bem. As mãos negras, que ela algema tão célebre ficou, que muitas mães ameaçam chamá- antes de seviciar e matar, são, ao contrário, símbolo da Sujeira e do Mal. Preto, em nossas cabeças te- lo quando filho recusa a sopa. Mão Branca, porém, é apenas símbolo de uma nhamos a coragem de confessar está associado a organização terrorista, racista, de extrema-direita, baixeza, feiúra e crime. Nas campanhas de segurança executora da pena de morte por delegação do que a polícia costuma empreender para a classe média há sempre, por isso, uma recomendação: "Não governo. Por que a Mão Branca é terrorista de extrema- abra a sua porta para pessoas desconhecidas e de direita? Porque se propõe a acabar com crime, cor". que levou um jornalista de Pasquim aJoel Rufino dos Santos que é Racismo 77 76 perguntar: "E se aparecer loiro e bem vestido mendo de medo, proprietário indicou-lhe a capela: Michel Franck traficante acusado da morte de 0 único lugar à vossa altura, capitão. Não tenho Cláudia Lessin Rodrigues a gente deve abrir?") outro". O bando avisou que ia partir antes do sol, É natural que as classes privilegiadas apreciem ficando o fazendeiro certo de que "rasparia" as trabalho da Mão Branca. Afinal ela "castiga" assal- imagens e relíquias valiosas que lá se achavam. Qual tantes e contraventores e, que é mais importante, não foi sua surpresa, já manhã alta, ao verificar que nunca aparece nos bairros grã-finos. Nos bairros e cangaceiro respeitara OS santos: embaixo de cada municípios pobres, onde maioria é de cor Bel- um havia uma nota de mil-réis. Menos de São Bene- ford Roxo, Caxias, Nilópolis, etc. é que a organi- dito. Muitos anos depois, quando Lampião retornou, homem, intrigado e cauteloso, lhe indagou por- zação sinistra tem, contudo, mais defensores, a acreditar nas pesquisas de jornal. Por que? Primeiro, quê. O cangaceiro, caçado pela polícia de sete Esta- porque a televisão e OS jornais ditos populares, dos, ele próprio um homem de cor, respondeu: "E partidários da pena de morte, prepararam conveni- lá existe santo preto?!" entemente a opinião pública. Segundo, porque OS Qualquer paulista é capaz de contar dezenas de preconceitos social e racial foram introjetados pelas piadas sobre "japonês". Em todas, o oriental entrará suas vítimas. Elas aplaudem a organização ultradirei- como inferior: não é capaz de dirigir bem, não é ca- tista, espécie de Ku-Klux-Klan fluminense, especiali- paz de satisfazer uma mulher, não é capaz de racioci- zada no extermínio de pobres e pretos. (Ku-Klux-Klan: nar direito; e as poucas qualidades que lhe atribuem, organização terrorista, contra OS negros, criada nos nenhum brasileiro quer para si: são fanáticos, esfor- çados, não têm amor à vida. Estados Unidos em 1866) Sobre OS judeus não pensamos, igualmente, nada bom exceto que "são muito inteligentes, mas "Quem cospe nos outros é judeu. só para melhor roubar OS outros". Na minha infância E japonês não dá no couro". suburbana cansei de ouvir: "Por que está cuspindo nos outros, menino?! Você não é judeu!" Uma terceira modalidade do racismo brasileiro Há poucos meses atrás, em São Paulo, um trote de calouros em tragédia. Veteranos massacra- está na: Idéia negativa que fazemos das pessoas de cor. ram a um novo colega que se recusava a "brin- Conta-se que, certa vez, famoso bandido Lam- car". Uma testemunha comentou pelo rádio: "Parecia pião pediu hospedagem numa grande fazenda. Tre- um bando de Tudo que nós brasileirosJoel Rufino dos Santos que é Racismo 79 78 pensamos do índio está aí nesta curta frase: são sel- Certa vez um major sentou-se para me explicar vagens e bárbaros. Quatrocentos anos desempenhan- que achava do Brasil: "Uma zorra. E por quê? Você, do papel de vilões escravizando, expulsando, Joel, é negro puro, eu, branco puro. (Um jornalista exterminando índios e continuamos convencidos, escreveu que sou de origem alemã; engano: sou candidamente, de que OS vilões são eles. "Procedem austríaco, que é muito diferente.) Pois bem: nós como cães dizia um cronista português do século dois temos sangue forte. A maioria do povo brasi- XVI e fazem filhos nas próprias mães." "Parecia leiro, porém, não é como nós dois, é mestiça. Ora, mais um bando de índios", lembrava a testemunha, mestiço, como você sabe, tem sangue fraco. (Na horrorizada, em 1980. Nunca se caluniou tanto guerra, por exemplo, cansei de ver francesas furadas tanta gente durante tanto tempo. a baioneta por não quererem deitar com alemão; Para muitas pessoas isto não passa de inofensivo já as italianas, que não são puras, deitavam por um "preconceito racial". Não há dúvida de que é pre- maço de O exército sempre que tomava conceito. Lá está no Aurélio: "Preconceito: concei- poder devolvia aos civis. Agora, não vai devolver to antecipado; opinião formada sem reflexão, supers- mais: já compreendemos que com este sangue fraco tição; prejuízo". A todo preconceito, contudo, todo aí, não dá." corresponde uma atitude discriminatória. Se eu acho Este major era um racista confesso, com a só parti- que "japonês não dá no couro porque tem a coisa cularidade querer envolver exército e a mim pequena", mais cedo ou mais tarde, consciente ou na sua concepção. Se milhões de pessoas que acham subconscientemente, este juízo vai influenciar a mesma coisa, em nosso país, tivessem a sua fran- minhas relações com orientais. Dizer que em nosso queza, as vítimas se defenderiam melhor. O movi- país não há racismo, ou discriminação racial, mas mento negro norte-americano parece ter compreen- apenas "preconceito racial", é enfiar a cabeça na dido isto e já não pretende mais mudar a cabeça dos brancos: está bem, continuem racistas, se terra como OS avestruzes. querem; nós queremos, apenas, nossos direitos! ("I want my freedom now", quero minha liberdade agora, foi uma das suas consignas.) No Brasil, como Quatrocentos e oitenta anos de estupro oficialmente não há racismo, as minorias raciais não têm direito algum a reivindicar nada. A quarta modalidade do racismo brasileiro é a: Quando OS turistas nos perguntam: "cadê OS Idéia de que não somos racistas. políticos negros?", respondemos que não sãoJoel Rufino dos Santos que é Racismo 81 80 necessários, "aqui OS brancos representam OS pretos". uma região para outra: "A presença deles está "Cadê universitários índios?", "Eles estão na atrapalhando desenvolvimento do território". Idade da Pedra, como podiam passar no vestibular?" Embutido nesta opinião, aparentemente bem inten- Temos para qualquer pergunta uma resposta estereo- cionada, está que achamos dos índios Brasil tipada; mentiras em penca para nossa tranqüilidade de um lado, eles do outro. É como se não fizessem parte do povo brasileiro. noturna. À noite, levamos OS turistas aos shows de mulatas: De 1945 para cá, por outro lado, choveram "São as mais belas mulheres do país. Vêem como congressos sobre 0 negro, sobre a cultura africana, não temos preconceitos?" Há, certamente, turistas religiões afro-brasileiras, etc. Enquanto isso, muitos bastante tolos para acreditar no "culto brasileiro à negros passaram, orgulhosamente, a se intitular mulher mulata". Outros, porém, logo percebem que afros e, mais recentemente, blacks. A curiosidade só as encaramos como objeto de cama e mesa. Entre pelo negro e sua cultura é justificável, mas revela as vítimas dessa original exploração racial, show de também uma coisa: brasileiro ainda vê negro mulatas, há de tudo também: desde as que parecem como outro, um corpo estranho que merece atenção felizes em estimular brancos endinheirados até, no e estudo. outro extremo, as que se sentem estupradas cada Os manuais didáticos é que dão, no entretanto, a noite. (A palavra estupro parecerá forte aos que melhor prova de que não consideramos o negro e acreditam na "democracia racial" brasileira. Aos índio como brasileiros: num "ponto" famoso, inocentes, a inocência.) relacionam as contribuições das "três raças" à formação do povo brasileiro, atribuindo aos não- brancos elementos pitorescos e/ou curiosos. (O negro teria contribuído, por exemplo, com vatapá; Os índios saiam da frente para índio com gosto pelas cores fortes.) Brasil passar Na verdade, a sociedade brasileira ainda não tem condições históricas de se enxergar como realmente A quinta modalidade do racismo brasileiro con- é: de cor, levemente coberta de branco, como bolos de chocolate que se adornam de glacê. Por siste em: Olharmos os não-brancos como não-brasileiros. que não conseguimos ver no espelho nossa própria Recentemente um governador do território de face? Em algumas coisas já não somos um país Roraima sugeriu que se transferissem índios de colonial, mas em muitas outras, todas importantesJoel Rufino dos Santos 82 Biografia na economia, na música popular, na concepção de nós mesmos continuamos determinados de Joel Rufino dos Santos fora para dentro. Tanto quanto no tempo do mar- quês de Pombal. O negro e o índio foram, durante 400 anos, OS únicos criadores de riqueza não Nasceu no Rio de Janeiro a 19 de julho de 1941. É escri- deram só candomblé, cauim, etc. foram eles tor há 18 anos, tendo começado como co-autor da famosa que criaram tudo, sob chicote do amo branco, História Nova do Brasil, proscrita pelo Movimento Revolu- as plantações, prédios, as estradas, OS móveis cionário de 64. Publicou, depois, os seguintes títulos: Até recentemente nossos embaixadores no exterior eram instruídos para explicar que Brasil é uma Quem fez a República? nação branca, que possui, também, em número Renascimento, a Reforma e a Guerra dos Trinta Anos reduzido e cada vez menor, negros e índios. É um dia em que 0 povo ganhou absurdo lógico: se tiramos negros e índios, 0 que Mataram Presidente. (co-autoria) sobraria do Brasil? Na área infanto-juvenil publicou, entre outros: Caçador de Lobisomem Espantalho e Curupira Marinho, marinheiro, e outras histórias Aventuras no país do pinta-aparece Uma estranha aventura em Talalai (Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro) "A coleção PRIMEIROS PASSOS aborda temas polê- micos, que permitem diferentes posições e interpre- Tem publicado artigos de História e contos em diversas tações. Os textos de PRIMEIROS PASSOS são, assim, revistas e antologias. expressão das idéias dos intelectuais que assinam, É professor de História em cursos e faculdades do Rio e como convites à reflexão, à concordância ou à discor- São Paulo. dância. Mas sempre enriquecem e explicam."

Mais conteúdos dessa disciplina