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Guest 1 Está ótimo! INTRODUÇÃO À MULTIMODALIDADE Contribuições da Gramática Sistêmico-Funcional Análise de Discurso Crítica Semiótica Social CONSELHO EDITORIAL André Lúcio Bento (UnB) Angela B. Kleiman (Unicamp) Célia Magalhães (UFMG) Claudia Gomes Paiva (Cefor - Câmara dos Deputados) Dina Maria Martins Ferreira (UECE) Edna Cristina Muniz da Silva (UnB) Josenia Antunes Vieira (UnB) Maria Carminda Bernardes Silvestre (ESTG-IP Leiria-Portugal) Maria José Coracini (Unicamp) Milton Chamarelli Filho (UFAC) Pedro Henrique Lima Praxedes Filho (UECE) Regina Celan (PUC/SP) Regina Célia Pagliuchi da Silveira (PUC/SP) Josenia Vieira e Carminda Silvestre INTRODUÇÃO À MULTIMODALIDADE Contribuições da Gramática Sistêmico-Funcional Análise de Discurso Crítica Semiótica Social 2015 Copyright © Josenia Vieira e Carminda Silvestre Revisão Carmen Lucia Prata da Costa Denise Silva Macedo Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica Elizabete Nepomuceno Raiol Lopes Design da capa Newton Scheufler Imagem da capa Paul Klee Revisitado (arte digital de Newton Scheufler) Apoio Centro de Pesquisas em Análise de Discurso Crítica da Universidade de Brasília – CEPADIC Catalogação na Publicação (CIP) _____________________________________________________ V657i Vieira, Josenia. Introdução à Multimodalidade: Contribuições da Gramática Sistêmico-Funcional, Análise de Discurso Crítica, Semiótica Social/ Josenia Vieira e Carminda Silvestre. – Brasília, DF: J. Antunes Vieira, 2015. 170 p. ; 21 cm ISBN: 978-85-9093183-6 1. Linguística. 2. Análise de Discurso. I. Vieira, Josenia. II. Silvestre, Carminda. III. Título. CDD 410 _____________________________________________________ SUMÁRIO APRESENTAÇÃO 7 1ª PARTE – GLOBALIZAÇÃO, TECNOLOGIAS E LINGUAGENS (Josenia Vieira) 1. Globalização e tecnologias: uma perspectiva multimodal da linguagem 15 1.1 A questão da representação do significado 16 1.2 Discurso e globalização 22 1.3 A construção híbrida do discurso 30 Conclusões 38 2ª PARTE – MULTIMODALIDADE E EVENTOS DE LETRAMENTO (Josenia Vieira) 2. A multimodalidade nos eventos de letramento 43 2.1 A análise multimodal em ação 45 2.2 Escala de detalhes 48 2.3 A ação dos elementos tipográficos na construção do sentido 50 2.4 O Valor multimodal da impressão 56 2.5 O Discurso das cores e a questão cultural 58 2.6 A representação multimodal dos atores sociais 62 2.7 A sintaxe visual: dando forma à composição 66 Conclusões 71 3ª PARTE – DISCURSO E METÁFORAS VISUAIS (Josenia Vieira) 3. O papel das metáforas visuais no discurso 75 3.1 A imagem da palavra 78 3.2 A construção de metáforas visuais no discurso 79 3.3 Metáforas visuais: os novos agentes multimodais 81 3.4 Multimodalidade ─ como trabalhar essas semioses? E para que fim? 84 4ª PARTE – MULTIMODALIDADE E LITERACIA (Carminda Silvestre) 4. Literacia multimodal 95 5ª PARTE – MULTIMODALIDADE: CONTRIBUTO PARA UMA LITERACIA MULTIMODAL (Carminda Silvestre) 5. Contributos para uma literacia multimodal 113 5.1 A localização das entidades no espaço 116 5.2 O mapeamento das emoções nos sistemas semióticos verbal e visual 124 5.3 Linguagem verbal e visual: relações de complementaridade dos sistemas semióticos 131 6ª PARTE – GÉNERO E MULTIMODALIDADE (Carminda Silvestre) 6. O género como elemento multimodal da actividade humana 141 6.1 Narrativa visual: o interplay entre modo e estruturas esquemáticas 143 6.2 O Interplay entre modo e estruturas esquemáticas: o caso do filme de animação “O dia em que o Sr. Raposo...” 145 Conclusões 160 REFERÊNCIAS 163 SOBRE AS AUTORAS 170 APRESENTAÇÃO Sabemos hoje que a centralidade da linguagem reside fundamentalmente no fato de que o conhecimento passa pelo uso da linguagem. Reside também no pressuposto de que o conteúdo do conhecimento não pode ser dissociado da linguagem por meio da qual este é veiculado, bem como da forma como é construído. Assim, forma e função não podem ser separadas. O que pretendemos realçar é que a significação não reside apenas no âmbito do linguístico, mas também na maneira como a usamos em contexto. Com o advento da sociedade visual da qual fazemos parte, esse conhecimento é construído não só pela linguagem verbal (oral ou escrita), mas também pelas linguagens nos seus diferentes modos. Ao longo da história social, cultural e política têm sido produzidos recursos semióticos por meio dos quais atribuímos sentido às realidades interior e circundante, interagimos e criamos os nossos textos. As necessidades sociais, culturais e políticas têm levado o homem a procurar novas formas e tecnologias de comunicação, bem como novas teorias de linguagem. No campo das teorias de linguagem, o entendimento da linguagem distancia-se do preconizado no início do século XX. Esse entendimento se inscreve em quadro teórico sustentado por uma visão funcional da linguagem que considera que o sistema linguístico é modelado pelas funções a que serve. A linguagem verbal (no seu modo oral ou escrito), em particular, é um sistema de significação que interage com outros sistemas de significação 8 Introdução à Multimodalidade como, por exemplo, a linguagem corporal, o espaço (como sistema de significação) e a linguagem visual. Nessa relação, a linguagem verbal constrói significados em contextos de situação e de cultura específicos. Em suma: multimodalidade é a designação para definir a combinação desses diferentes modos semióticos na construção do artefato ou evento comunicativo. Neste livro, a Gramática Sistêmico-Funcional, a Semiótica Social e a Análise de Discurso Crítica, enquadramentos teóricos aqui usados para o estudo da Multimodalidade, partilham entre si uma perspectiva de linguagem como constructo social, em que linguagem e sociedade se modelam de formas bidirecionais, ou seja, a linguagem modela a sociedade e é modelada por esta. A Análise de Discurso Crítica, como abordagem linguística, transporta para o domínio social e político questões de desigualdade, identificando estruturas de dominação e promovendo o questionamento da materialização do poder e como esse é exercido, mantido e reproduzido discursivamente nas organizações sociais. Por outro ângulo, a Semiótica Social muda o enfoque linguístico para o recurso semiótico para descrever, interpretar e explicar como as pessoas produzem artefactos ou eventos comunicativos e como os interpretam em contextos de situações e/ou práticas específicas. Em vez de analisar os diferentes modos semióticos per se, devido às características intrínsecas de cada um dos sistemas, devido às suas sistematicidades ou regras, essa abordagem integra os modos pesquisando os recursos semióticos dos diferentes sistemas organizados e instanciados em textos multimodais. O espectro teórico das abordagens acima enunciadas é amplo, devido a influências várias de autores canônicos de áreas diversas. No entanto, há um autor que é um marco fundamental 9 Josenia Vieira e Carminda Silvestre para as duas abordagens ─ Halliday ─ pela perspectiva semiótica social que introduziu no entendimento de linguagem (1978). A Gramática Sistêmico-Funcional (1994) é partilhada pelas duas abordagens mercê do enquadramento teórico que esta possibilita no estudo da linguagem (que excede o estudo da linguagem verbal) e, fundamentalmente, da sua relação com outros recursos semióticos que são simultaneamente usados na construção de significados. Cabe registro ainda que a ideia do presente volume surgiu de um pós-doutoramento realizado entreas diferentes formações dadas a determinados textos multimodais estabelecem elos entre o sentido das palavras e a intencionalidade do sujeito-autor. Conforme Kress e van Leeuwen (2006 [1996]), os elementos tipográficos podem ser classificados também quanto ao peso, à expansão, à curvatura, à conectividade, à orientação, à regularidade e aos floreamentos. Outra característica da tipografia passível de análise é a expansão, aspecto que trata da distribuição das letras no espaço do texto multimodal. A inclinação tipográfica, por sua vez, diz respeito ao desenho da letra, podendo se aproximar mais da escrita manuscrita ou da letra impressa. O uso de letras manuscritas na composição do texto multimodal favorece a leitura para os sujeitos iniciados no letramento com escrita manuscrita. Já os sujeitos-leitores da era informatizada terão mais dificuldades para a leitura desses padrões tipográficos. 52 Introdução à Multimodalidade O exemplo, a seguir, da figura 3, testifica o que estamos falando sobre letras manuscritas e com floreios. O título do The New York Times capitaliza a tradição do jornal, fundado em 1851. Por certo que os floreios das letras evocam passado mais remoto e distante e também remetem ao clássico e ao refinado. Então a composição multimodal de sentido, ao lançar mão de letras especiais tem o poder de construir e de agregar sentido complementar ao texto multimodal da capa desse jornal. Figura 3: primeira página do New York Times de 12 de setembro de 2001 Fonte: http://spacemelato.blogspot.com/2007 Vale ressaltar, então, que ao compormos um texto multimodal, carecemos dedicar especial atenção à escolha, à seleção da fonte de letra a ser usada, bem como ao seu tamanho, 53 Josenia Vieira e Carminda Silvestre pois elas serão extremamente relevantes à construção de sentidos complementares. Vejamos algumas das letras possíveis: Figura 4: exemplos de fontes de diferentes estilos A análise da curvatura também pode trazer contribuições para a leitura dos significados nos textos multimodais. Quanto à conectividade, o olhar do pesquisador deverá se fixar no exame da conexão ou da distribuição das letras no espaço. Esse é o caso de certos poemas em que as letras, na impressão tipográfica, assumem conexão particular, característica do gênero poesia. Pretendemos ainda examinar outra característica da tipografia ─ a orientação ─, responsável pelo estudo da altura e da largura da letra. Quanto mais alongada e larga a letra, maior perceptibilidade multimodal no momento da leitura. Estão elas padronizadas para compor determinada palavra? Com referência à padronização, um exemplo pertinente é o do nome de Collor de Mello, ex-Presidente do Brasil, retirado do poder após campanha nacional levada a cabo por estudantes universitários. No auge da crise, foram distribuídos milhares de decalques para colocar nos 54 Introdução à Multimodalidade carros nos quais se lia: CO OR, sendo que as duas letras “eles” foram colocadas inclinadas em milhares de decalques para significar a queda do Presidente. Além disso, as duas letras foram coloridas em verde e amarelo, as cores da bandeira nacional do Brasil. Figura 5: capa do livro de Chico Caruso (1993) Fonte: http://www.toplivros.com.br/areas.asp?area=25 Essa foi a capa da coletânea de discursos de materialidade não verbal (charges) sobre o processo de queda do Presidente Collor. Nessa capa, o uso das letras inclinadas 55 Josenia Vieira e Carminda Silvestre participa fortemente da construção do sentido de queda do Presidente. Por último, encontramos, no floreamento da letra, a possibilidade de analisá-la quanto ao rebuscamento da escrita das palavras. Dependendo da época a ser retratada no texto multimodal, o uso desse tipo de letra pode contribuir para a construção de marcas de temporalidade. Para a descrição de uma época antiga, com reis e rainhas, basta que as letras sejam floreadas para que os viewers (leitores multimodais) sejam transportados no tempo. Figura 6: cartaz do filme “As crônicas de Narnia” Fonte: http://www.omelete.com.br 56 Introdução à Multimodalidade Em tipo de letra que evoca uma época antiga de fadas, bruxas, reis e rainhas, o cartaz do filme As crônicas de Narnia, graças à escolha tipográfica das letras, imediatamente transporta o leitor para essa época mágica. Afora essas questões tipográficas, o leitor carece observar igualmente o alinhamento das palavras no texto. As palavras podem ser alinhadas à esquerda ou à direita, podem também ser justificadas, centralizadas, ou distribuídas livremente sem nenhum tipo de regra gráfica. O que importa isso à discussão? Importa muito. Segundo a cultura do leitor, esse aspecto pode ser valioso na leitura de textos multimodais. Certo professor relatou que um de seus orientandos de doutoramento lhe dizia que não se sentia confortável ao ler textos acadêmicos americanos com alinhamento livre. Para ele, o texto com esse formato não lhe passava credibilidade. A questão cultural no exame da questão tipográfica, portanto, não deve ser ignorada, pois todos esses fatores poderão ajudar ou não na construção de significados potenciais na leitura de textos multimodais. 2.4 O VALOR MULTIMODAL DA IMPRESSÃO Pensemos nas possibilidades de impressão de determinado texto. Podemos usar papel simples, papel de linho, papel brilhante, opaco, colorido, com ilustrações. Bem, a quem importa o papel da impressão? A todos nós porque também a gramatura e a qualidade do papel, bem como a sua beleza ou não, participam da construção multimodal do sentido potencial a ser construído pelo viewer (o leitor de textos multimodais), conforme Kress e van Leeuwen (2006 [1996]). Imaginemos a cena de duas pessoas sendo apresentadas uma a outra. Uma delas entrega um cartão de visitas à pessoa que lhe foi apresentada, esta lhe agradece, mas mesmo de relance, não ignora a 57 Josenia Vieira e Carminda Silvestre apresentação grosseira do cartão, com impressão sem qualidade, no modo econômico, com papel comum. Como podemos ver, um cartão em papel de linho, com design adequado, com impressão apurada certamente seria um diferenciador positivo nessa apresentação. Entretanto as questões ambientais e da sustentabilidade têm influenciado fortemente a reutilização e a reciclagem de diferentes tipos de papéis, o tem sido um diferencial positivo na confecção de cartões pessoais, sinalizando que esses usuários contribuem para preservação ambiental. Acrescente-se ainda que tal uso não significa desprezo da produção gráfica. Por esse motivo, ao estudarmos a multimodalidade (KRESS e VAN LEEUWEN, 2001), devemos considerar os aspectos da cultura do país, sem ignorar a sua extensão territorial e as nuances culturais regionais, um mundo de cores e de formas a ser identificado e descrito. Figura 7: exemplos de cartões de visita Fonte: http://www.rebelado.com/como/modelo-cartao-de-visita 58 Introdução à Multimodalidade À esquerda, em papel reciclado, o cartão comunica principalmente a ideologia de seu portador: os cuidados ambientais, além de simplicidade e forte preocupação ecológica. À direita, sofisticado cartão de um advogado especializado em divórcios, que, por meio de seu cartão de visitas, a sua apresentação nos dá a ideia de competência no ofício. 2.5 O DISCURSO DAS CORES E A QUESTÃO CULTURAL O discurso das cores liga-se a modos culturais específicos. O que faz com que o sujeito do discurso interprete culturalmente o discurso da cor primeiro, para depois racionalizar o pensamento em um discurso. Portanto, se não fosse mais permitido nem o uso de cores, nem o de imagens, repentinamente o mundo se tornaria cinza e com outro significado, pois as sociedades apresentam características multimodais particulares, consoante a cultura nacional. E, ainda que existamdiferenças nas preferências multimodais segundo o país, é inegável a existência de preferências nacionais. Em intento ilustrativo, relatamos a primeira impressão multimodal que tivemos de Paris. Chamou-nos particularmente a atenção o tom cinza e preto do vestuário das parisienses, em contraste com alguns países africanos visitados, em que as cores fortes e vibrantes marcavam as vestimentas femininas. As modelos africanas vestindo moda africana estabelecem contraste ao lado das modelos parisienses, pois enquanto as africanas vestem vestidos longos coloridos, com cores vivas, como o amarelo ouro, ou o vermelho distribuído em estampas criativas, as parisienses vestem preferencialmente negro ou nuances de cinza, mas nada distante desses tons degradês de preto. 59 Josenia Vieira e Carminda Silvestre Figura 8: modelos africanas Fonte: http://img212.imageshack.us/f/modaafricana.png Figura 9: Modelos parisienses Fonte: entretenimento.r7.com/moda-e-beleza/noticias 60 Introdução à Multimodalidade Figura 10 e 11: Vestimentas em diferentes culturas Fonte 10: http://www.rnw.nl/portugues/article Fonte 11: http://www.rnw.nl/portugues/article/o-martírio-de-milhões-de-viúvas-na- índia As diferenças culturais aqui são representadas pelos vestuários femininos. Na primeira foto, uma noiva vestida de vermelho, cor que simboliza alegria e entusiasmo. Na segunda, uma viúva hindu veste-se de branco, cor que simboliza energia parada, calma e conformismo. 61 Josenia Vieira e Carminda Silvestre Figura 12: Simulações em obra de Vincent van Gogh, Night Café Fonte: http://www.spartacusartgallery.com/2010/12/vincent-van-gogh-night- cafe.html Observe as mudanças no clima transmitido pelo quadro de Vincent van Gogh, Night Café, na medida em que se altera 62 Introdução à Multimodalidade sua cor. A mudança cromática realizada no primeiro quadro, revestido de amarelo intenso, mostra-se quente e original, produz clima excitante e irritante, capaz de levar alguém à loucura, é substituído a seguir por uma atmosfera calma e triste trazida pelo tom azulado. Já a versão em tons de cinza cria atmosfera fria e calma. Exercício realizado por Poynter.org. 2.6 A REPRESENTAÇÃO MULTIMODAL DOS ATORES SOCIAIS Neste ponto, cabe uma reflexão sobre os atores sociais representados pelas imagens, pois a investigação desse aspecto é extremamente relevante para o estudo da identidade dos atores sociais e também para o exame da construção da identidade, realizada principalmente pela interação social com os demais atores e pelo modo de representá-los em textos multimodais, tanto em imagens isoladas, quanto em interação com outras imagens. Obviamente, o modo como representamos os atores sociais nas imagens explicita a maneira como o produtor do texto multimodal lida e trata das imagens dos atores sociais. Para isso, Kress e van Leeuwen (2006 [1996]) legam-nos três categorias possíveis para análises multimodais: 1. com relação ao olhar; 2. quanto ao ângulo; 3. com referência à distância. Aqui neste estudo, vamos examinar apenas a primeira dessas categorias, a que se refere ao olhar. O estudo analítico do modo de representar o olhar nas imagens dos atores pode ser bastante revelador e, ao mesmo tempo, trazer contribuições à construção do sentido sensorial, tendo em vista que o leitor do texto multimodal estará inclinado a acreditar nas informações sobre o ator como resultado da interação ou da quase interação estabelecida pelo olhar representado na imagem, já que os olhares representados podem tanto oferecer informações quanto 63 Josenia Vieira e Carminda Silvestre solicitá-las. Quando os atores representados nas imagens não direcionam seus olhos diretamente ao leitor, não estabelecem interação direta com ele. Nessas circunstâncias, a postura do leitor é de observador (KRESS e VAN LEEUWEN, 2006 [1996]). A seguir, examinaremos a direção do olhar em duas imagens. Figura 13: olhar vetorizado para baixo Fonte: http://ego.globo.com/Gente/Noticias Nesta figura, os olhos da jovem não se direcionam a um interlocutor específico. O seu olhar está voltado para baixo. Nessas circunstâncias, não ocorre interação pelo olhar. Aproveitando a mesma imagem, ressaltamos também o vestido usado pela moça, o qual constitui mais um exemplo de cores e de estampa que representa uma preferência cultural. As estrelas sobre o fundo azul simbolizam a bandeira dos Estados Unidos. 64 Introdução à Multimodalidade Figura 14: Vetorização direta do olhar Fonte: http://1.bp.blogspot.com Ainda quanto ao olhar, nesta figura, a vetorização do olhar da jovem dentro da água foca diretamente um ator participante do cenário do discurso. O seu olhar estabelece interação direta. Figura 15: Revista Veja, edição de 23 de março de 1988 Fonte: http://fre akshowbusiness.com/page/111/?s 65 Josenia Vieira e Carminda Silvestre Figura 16: Edição extra de outubro de 1992 Fonte: http://portaldoprofessor.mec.gov.br/storage/discovirtual/galerias/imagem Nesses dois exemplos de capa da revista Veja, a primeira enaltece o então Governador de Alagoas, Fernando Collor de Mello. O quadro ao fundo do retrato ajuda a construir a imagem de heróico caçador de marajás, reforçada posteriormente na campanha eleitoral para Presidente. A segunda, uma edição extra da revista que noticia o impeachment, traz a imagem do político em posição desfavorecida, sem olhar diretamente para o leitor. Ao contrário, quando o olhar do ator representado na imagem interpela o leitor, torna-o coparticipante da ação multimodal. Logo, essa modalidade de representação do olhar será mais adequada às propagandas que envolvem vendas, oferta de serviços ou solicitação de apoio. A direção do olhar, 66 Introdução à Multimodalidade entretanto, nem sempre se enquadra nessas categorias. Um olhar perdido no horizonte pode levar à conclusão de que o ator social representado está introspectivo ou em estado de momentânea melancolia. De qualquer modo, o exame do olhar no texto multimodal será de muita valia para a construção do sentido do discurso. 2.7 A SINTAXE VISUAL: DANDO FORMA À COMPOSIÇÃO Na articulação dos componentes que dão corpo à sintaxe visual, a composição trata do modo como as semioses se articulam no texto visual como resultado da combinação de semioses verbais com semioses visuais, representadas pelas formas de linguagem e de imagens, articuladas com os atores presentes na composição multimodal. Desse modo, a composição para se estabelecer também se combina com a modalidade que estabelece o plano de frente e o de fundo. No caso de a composição dar destaque à imagem que aparece em primeiro plano da composição visual, essa será a principal característica do plano de frente, que pode ser composto por uma imagem maior ou por cores mais fortes que ocuparão a parte central da composição. Ao contrário do plano de fundo, cuja característica principal é preencher o fundo com cores neutras ou com figuras que não chamem a atenção demasiada do observador. O estudo da composição compreende, portanto, a investigação do modo como as múltiplas semioses se articulam na sintaxe visual, com o intuito de revelar as ideologias e as relações de poder ocultas nas ingênuas posições ocupadas pelas semioses na composição multimodal. Vale lembrar que a classificação da sintaxe visual, atribuída à combinação de imagens nos textos multimodais, não 67 Josenia Vieira e Carminda Silvestre obedece a princípios de linearidade, como os seguidos pela escrita, porquanto a sintaxe visual ora articula-se por processos associativos ou metafóricos, ora por padrões metonímicos, que estabelecem certa relação de sentido pela posição de contiguidade ocupada pelas imagens. Se certo anúncio está tratando de louças para banheiros, por exemplo, é provávelque utilize lado a lado, para compor o anúncio, certos objetos usados em banheiros, como uma pia, ao lado de uma banheira, próxima a um vaso sanitário. Os objetos serão distribuídos, obedecendo às posições de contiguidade. Já se o reclame estiver tratando de tolhas felpudas e macias, o processo para construir o sentido será o associativo, devendo evocar algo macio que não deverá necessariamente estar presente na composição, mas que, por meio de processo associativo, trará à lembrança o objeto usado como referência à ideia de maciez. A gramática do design visual de Kress e van Leeuwen (2006 [1996]) dá-nos três critérios para analisar a sintaxe visual dos textos multimodais: saliência, valor da informação e enquadramento. Saliência, conforme a definição da gramática do design visual de Kress e van Leeuwen (2006 [1996]), é o aspecto visível ao primeiro olhar do leitor para o texto. Portanto, a saliência da composição é vista em primeiro plano e participa ativamente da construção da sintaxe visual. Serve também como ponto de partida para o estabelecimento de articulações secundárias com outros componentes composicionais. A saliência pode ser construída de diversas modos: pelo uso de cores, de ícones, do tamanho das letras ou das imagens; pela posição do texto verbal e pelo plano de frente. Todos esses aspectos da saliência desempenham papel relevante na determinação do significado complexo e no significado potencial 68 Introdução à Multimodalidade da composição. Por fim, a categoria de saliência faz com que haja projeção de certos elementos, chamando a atenção para determinadas partes da composição. Os elementos utilizados têm o claro intuito de atrair a atenção do espectador para diferentes aspectos da composição, como a localização em primeiro ou segundo plano; o tamanho relativo da imagem; o contraste em cores; as diferenças de nitidez entre outros aspectos. Ver análise dessas questões na parte 4 deste livro. O critério referente ao valor da informação trata especificamente da leitura do texto visual com base primeiramente no contexto social, no mundo externo, para só depois se concentrar nos aspectos internos do texto. O ato de localizar os valores da informação na composição contribuem para a articulação nos vários espaços da composição. Por essa razão, é impossível ignorar a relevância para a leitura do texto visual da relação do contexto social com as práticas sociais. Já o critério do enquadramento busca estudar o direcionamento do foco da lente ao captar a imagem que pode tanto ser dado pela saliência quanto pelo jogo de sombra e luz ou ainda pela captação do ângulo do olhar dos atores representados no texto visual, pois o elemento que antecede deve se combinar com o que sucede, estabelecendo uma relação contínua de construção de significado. Então, se o enquadramento é tido como um critério de sintaxe visual, é indispensável que possamos perceber o que é mostrado na sintaxe do texto. O enquadramento, denominado como framing por Kress e van Leeuwen (2006 [1996]) significa a presença ou a ausência de estratégias de enquadramento, criadas com o propósito de estabelecer divisões que podem facilitar ou dificultar a articulação no espaço destinado à composição. 69 Josenia Vieira e Carminda Silvestre Afora os critérios já discutidos, Kress e van Leeuwen (2006 [1996]) levantam ainda quatro outras modalidades de análise para a composição multimodal: a localização direita e esquerda na página (dado e novo), conforme mostrado na parte 4. Essa orientação direita-esquerda mostra a expectativa do que é esperado que o leitor leia. A informação dada, já conhecida, deve aparecer ao lado esquerdo do texto e a informação nova deve se situar à direita, conforme Halliday (1985). Essa é a regra, mas quando examinamos o emprego dessa categoria em propagandas em revistas e em outras fontes midiáticas, logo nos damos conta quão inconsistente é o seu uso pelas agências de publicidade, sendo frequente a presença de anúncios que fazem exatamente o oposto do que recomenda a gramática visual. Na categoria do eixo da verticalidade, topo e pé de página (ideal-real), a orientação de cima para baixo mostra o que pode ser tomado como real e como ideal. Aquilo que aparece ao pé da página, na parte inferior, é o que deve ser tomado como real e o que aparece acima, no topo, deve ser considerado como o ideal. O eixo vertical trata, portanto, do real e do ideal. A parte inferior da página (bottom) comumente é a parte mais informativa e prática, colocando em evidência o real; a parte superior (top) costuma fazer um apelo às emoções e mostra, de modo geral, o ideal. As relações dado-novo e real-ideal mostram-se altamente produtivas já que podem estruturar tanto as composições textuais, concebidas somente com semiose verbal, como composições com diferentes semioses que incluem texto verbal e imagem. 70 Introdução à Multimodalidade Figura 17: Propaganda de xampu Fonte: http://blogdotrapa.blogspot.com/2009/02/propaganda.html Este anúncio publicitário explora a conhecida imagem do cantor Ney Matogrosso em uma propaganda de shampoo e de seu conjunto musical (Secos & Molhados). O anúncio posiciona à direita o novo, no caso, a imagem de três frascos de xampu. Ao mesmo tempo as imagens dos xampus estão localizadas na parte inferior da página, indicando um produto real. A obervação da imagem do cantor revela que essa imagem do cantor, está à esquerda, pois constitui uma informação dada, velha, isto é, já conhecida, ao mesmo tempo que ocupa a parte superior da página, o lugar do ideal. No centro da página, ocupando um lugar de saliência, está o nome do shampoo: SHAMPOO NEY MATOGROSSO. Logo abaixo do nome recomenda: para cabelos secos e molhados, em clara alusão ao nome de seu conjunto musical. Quanto à análise da categoria centro e periferia, deve ser identificada a organização hierárquica das imagens que 71 Josenia Vieira e Carminda Silvestre compõem o texto multimodal, as semioses e a direção em que a composição modulada é apresentada em segmentos (triptych), comumente usados em murais, panteões e trípticos. Essa categoria, que distribui as semioses no centro-periferia da composição, mais a composição triptych, mostram as relações de importância nessa modalidade composicional, principalmente com relação ao movimento do olhar. Desse modo, concluímos o exame das principais categoriais de análise das composições multimodais dadas por Kress e van Leeuwen (2006 [1996]). CONCLUSÕES O propósito desta parte foi apresentar aspectos teóricos que possam auxiliar no estudo do texto multimodal e, desse modo, contribuir para o avanço das pesquisas em multimodalidade. À luz da discussão levada a efeito, fazemos considerações que reforçam as posições teóricas e práticas defendidas sobre o uso dos textos multimodais em diferentes eventos sociais. Assim, é impossível relegar a segundo plano o que Kress e van Leeuwen (2006 [1996]) dizem ao afirmar que qualquer texto escrito é multimodal, composto por mais de um modo de representação. Normalmente, todo o texto carrega outras formas de representações, além do modo verbal, que não podem ser ignoradas porque desempenham relevante papel na construção do sentido. Por fim, nenhum modo semiótico deve ser visto isoladamente, pois eles complementam-se no momento em que o sentido é composto, fazendo com que o discurso participe da construção das representações da realidade, estabeleça relações sociais, crie e reforce as identidades sociais (FAIRCLOUGH, 1992). 72 Introdução à Multimodalidade Por fim, não podemos ignorar que o sentido do texto é estabelecido pelas diferenças ou semelhanças existentes entre a imagem e o contexto social nas diversas culturas. Além disso, todas as dimensões semióticas carecem de serem desenvolvidasem práticas textuais multimodais em todos os gêneros textuais. DISCURSO E METÁFORAS VISUAIS 3ª PARTE 75 Josenia Vieira e Carminda Silvestre 3. O PAPEL DAS METÁFORAS VISUAIS NO DISCURSO Josenia Vieira Por meio do estudo das metáforas visuais presentes no discurso, pretendemos investigar a multimodalidade, um dos principais efeitos dos meios eletrônicos, que acrescentam ao texto novas linguagens integradas com tipos diferenciados de letras, cores e luz, além de movimento e som, tornando-o mais rico pelo uso de metáforas visuais e de designs gráficos especiais. Essas mudanças ensejaram o surgimento de uma linguagem multimodal híbrida, construída com palavras e imagens, fruto da criação da nova geração de designers gráficos. Eles lidam com esses múltiplos recursos semióticos, multiplicando cada vez mais esse hibridismo que tende a se tornar dominante. Como resultado, podemos dizer que a linguagem hegemônica deste século reside no uso de variadas semioses, característica da linguagem multimodal. Dizem os artistas que a poesia é mais visual do que a música e a linguagem verbal e que o poeta é uma espécie de designer da linguagem. Assim, a rápida e crescente viragem do discurso para o visual, mais do que nunca nos aproxima desse modo de pensar, tornando-nos coletivamente novos poetas da pós-modernidade. Desse modo, a poesia concretista trouxe à baila a discussão do caráter visual da linguagem ao antecipar as modalidades de representação da linguagem nos modos visuais, 76 Introdução à Multimodalidade gestuais, hoje manifestos também nos discursos de diferentes gêneros, presentes no artístico e no publicitário entre outros. Não podemos ignorar a força da imagem, hoje viva na palavra e no discurso, corporificando-se na linguagem contemporânea. Em consequência, os discursos apresentam-se profundamente marcados pelo visual, sendo impossível dissociar a imagem do discurso, pois o uso dos computadores e dos avançados programas gráficos ensejam aos novos designers da linguagem infindáveis possibilidades de construir criativos discursos visuais. Assim, o papel da imagem faz mais do que dar vida ao discurso, pois ao colori-lo, provoca afetividade e emoção, direcionando a atenção do leitor ao propósito do discurso. Em se tratando do uso de imagens, muitas vezes, utilizam-se fotos de personalidades ou de artistas famosos para atrair consumidores. A esse respeito, Barthes (1978, p. 43) declara: Nesse deserto lúgubre, me surge, de repente, tal foto; ela me anima e eu a animo. Portanto, é assim que devo nomear a atração que a faz existir: uma animação. A própria foto não é nada animada, mas ela me anima: é o que toda aventura produz. Portanto, é esse lado da emoção e do afeto que devemos levar para o trabalho com o visual, com a fotografia e com a linguagem visual, fazendo com que elas sejam mais do que uma ilustração, que sejam fonte de conhecimento, de memorização, mas sobretudo fonte de construção de representação de sentido. Para a marketização de certos produtos no mundo da publicidade, é frequente o uso de fotografias de famosos em anúncios milionários. Examinaremos, a seguir, um exemplo do 77 Josenia Vieira e Carminda Silvestre emprego de foto do conhecido ator cinematográfico, George Clooney, em um anúncio da Nespresso. Nessa proposta, em tentativa deliberada de ignorar a fama do ator, o anúncio enquadra a imagem de um cafezinho como o tópico de maior relevância na propaganda, mas, de fato, a Nespresso está vendendo o cafezinho por meio da metáfora visual construída sobre a imagem do artista e mesmo que o discurso verbal diga: Nespresso. Que mais? Quem tem Nespresso não precisa nem do Clooney. A bem da verdade, a intenção publicitária é de que a imagem do ator venda o café, pois ele constitui o conhecido, a informação dada. Assim, o propósito do reclame é que, por processo associativo, os consumidores passem a desejar as preferências de Clooney, no caso o café Nespresso. Figura 18: Anúncio do Nespresso Fonte: http://www.tottalmarketing.com 78 Introdução à Multimodalidade Nesse sentido, a utilização desse tipo de publicidade nos mercados tem sido usada amplamente tanto para a apresentação de produtos novos, como para a oferta de produtos na mídia impressa, como jornais e revistas. Para a ilustração do assunto, as ideias apresentadas devem se transformar em imagens e devem permitir ao mesmo tempo a visualização de aspectos particulares dos sentidos construídos. Esse é um dos usos frequentes da fotografia nas práticas dos mercados consumidores. Em razão disso, o emprego de fotos como agente fixador das informações para vendas agrega elementos, como cor e volume, que facilitam a memorização. Do mesmo modo, o detalhamento, como a visualização por meio de fotografias e de imagens, aprofunda pormenores, sendo também possível usar a fotografia para documentar a pesquisa social. Além desses usos, sugerimos que o próprio discurso da linguagem fotográfica seja objeto de discussão. Assim, ressaltamos a importância do estudo da fotografia na vida diária dos mercados porque o conhecimento da fotografia como linguagem permite que o sujeito se situe melhor no mundo de hoje, no qual crianças e jovens são apresentados à linguagem da fotografia desde cedo. Tais experiências concretas com fotos trazem mudanças nas práticas sociais, fazendo com que os eventos contemporâneos sejam intensamente fotografados. 3.1 A IMAGEM DA PALAVRA Ao fazermos referência à linguagem verbal, entendemos que há apenas duas modalidades: a falada e a escrita, ignoramos as mudanças profundas do discurso atual que se manisfesta por múltiplas semioses. Mas, com a sofisticação cada vez maior da imprensa e da publicidade, novas possibilidades abriram-se aos 79 Josenia Vieira e Carminda Silvestre novos usos visuais do alfabeto que incluem desde a variação de fontes até aos novos tipos gráficos. Recentemente, o uso revolucionário dos meios eletrônicos acrescentaram novos tipos de letras, de cores e de luzes ao discurso multimodal, além de movimentos, como nos vídeo-textos, por exemplo, tornando a escrita mais rica pelo uso dos computadores e dos criativos designs gráficos. Essas mudanças favoreceram o surgimento de um discurso híbrido, construído pela combinação de palavras e de imagens, fruto da criação da nova geração de designers gráficos, que lidam com letras, palavras e imagens, multiplicando cada vez mais essa linguagem híbrida que tende a se tornar dominante. Como resultado, podemos dizer que a linguagem hegemônica deste século não reside apenas na imagem, nem na palavra, mas no uso híbrido de várias semioses. 3.2 A CONSTRUÇÃO DE METÁFORAS VISUAIS NO DISCURSO Como vimos, é constante a criação de campanhas publicitárias firmadas no uso de imagens de artistas ou de obras famosas. Aqui, para efeito de análise, utilizaremos a imagem de uma obra de arte conhecida ─ A Mona Lisa ─ em um anúncio da Bom Bril. Essa propaganda se direciona às donas de casa, possíveis e potenciais compradoras desses produtos. Alegoricamente, o garoto-propaganda da Bom Bril transforma- se em uma Mona Lisa, dona de casa. Usa óculos, sem nenhum adereço, com cabelo em desalinho, como seria o usual às milhares de mulheres do lar em momentos de atividade doméstica, as verdadeiras consumidoras que efetivamente poderão comprar o produto oferecido, o amaciante Mon Bijou. O anúncio, desse modo, constrói uma expressiva metáfora visual 80 Introdução à Multimodalidade que toma como referência básica essa obra universalmente conhecida de Leonardo Da Vinci. Figura 19: Mona Lisa da Bom Bril Fonte: http://direitobemfeito.wordpress.com/2010/11/17/bombril-e-mona-lisa/ O anúncio pretende vender o amaciante Mon Bijou,para isso construiu um texto multimodal (KRESS e VAN LEEUWEN, 2006 [1996]) por meio da combinação de recursos semióticos de diferentes linguagens que servem como matéria prima na construção de processos metafóricos (VAN LEEUWEN, 2005; FAIRCLOUGH, 2003; LAKOFF e JOHNSON, 2002 [1980]). Chamamos atenção para o modo como o discurso do anúncio incorpora certos traços da obra original, como o cabelo, a roupa, a postura e, principalmente, o sorriso da Mona Lisa, características emprestadas à musa da 81 Josenia Vieira e Carminda Silvestre Bom Bril no intuito de vender o produto. No anúncio, atrás da figura da Mona Lisa, aparece o logotipo da Bom Bril, ocupando posição relevante e central, servindo de pano de fundo à versão publicitária da obra de arte. Assim, o incontestável valor artístico do quadro de Da Vinci legitima o produto Mon Bijou, fazendo com que inúmeras semioses participem da construção discursiva do anúncio, como as cores branca e vermelha da Bom Bril. Já o valor metafórico é construído no anúncio pelo recurso semiótico visual, representado por Moreno no papel de Mona Lisa, e pela representação do produto propriamente dito, que conjugado com o verbal, é colocado em lugar privilegiado à frente da composição multimodal do anúncio: MON BIJOU DEIXA A SUA ROUPA UMA PERFEITA OBRA-PRIMA. Assim, o produto Mon Bijou da Bom Bril, semelhantemente à Mona Lisa de Da Vinci, é, para as consumidoras brasileiras, uma perfeita obra prima em forma de amaciante. De igual modo, os três amaciantes, colocados à esquerda no anúncio, são considerados como informação conhecida, tratado como informação velha, a informação nova aqui é o fato de o amaciante da Bom Bril ser uma obra-prima. 3.3 METÁFORAS VISUAIS: OS NOVOS AGENTES MULTIMODAIS Os textos multimodais, por meio das metáforas visuais frequentes nos anúncios publicitários, têm se tornado importantes agentes dos mercados consumidores, pois contribuem para o aumento das vendas nos espaços internáuticos e também nos espaços midiáticos e televisivos. A cor, o traço e a imagem fortalecem a conexão entre os diversos recursos semióticos, gerando nova gama de discursos multimodais. Assim, uma tese, um livro ou mesmo um texto após receberem 82 Introdução à Multimodalidade enquadramento multimodal tornam-se diferentes, com muito mais poder de comunicação. Entretanto, a fala não apresenta cores, nem imagens, mas, em contrapartida, o tom de voz, os gestos e as expressões faciais podem agir como recursos multimodais, pois sempre que levantamos ou baixamos a voz ocorre uma certa modalização do discurso. No campo dos anúncios publicitários, com características multimodais, há produções, como outdoors, placas, publicidade em revistas e em jornais nos quais o uso de certos recursos semióticos faz parte do gênero multimodal, mas, por serem utilizados de modo mais frequente como recursos ilustrativos, no entanto, abrem espaço para outro tipo de composição textual no qual os elementos multimodais, como a imagem e as cores, fundem-se em composições textuais multimodais, cuja principal característica é apoiar a sua composição em várias linguagens semióticas, para depois serem incorporados pelo discurso da sociedade contemporânea. Assim, se repentinamente não fosse mais permitido o uso de cores e de imagens na produção textual, certamente o mundo se tornaria cinza, e nós não o apreciaríamos mais, pois fazemos parte de uma sociedade multimodal. E, ainda que hajam preferências multimodais, segundo o país, considerando que cada cultura tem as suas escolhas, ainda assim a sociedade seria multimodal. A esse respeito, podemos dizer que cada nação desenvolve caraterísticas marcantes que definem uma identidade nacional. Assim, cada vez que estamos em um dado país, chamam-nos a atenção certas características da cultura nacional. Nesse sentido, o uso abundante do cinza e do preto pelas parisienses marcam a cidade luz, Paris, enquanto no continente africano saltam aos olhos as cores fortes e vibrantes, traço 83 Josenia Vieira e Carminda Silvestre distintivo das vestes tanto de homens quanto de mulheres da África. Costumamos observar também as construções e as cores de cada país: alguns são brancos, como Portugal e Grécia, outros, ocre-escuro, como o Reino Unido e Espanha. Nesse particular, em Israel, Jerusalém, a cidade sagrada, é toda revestida com uma pedra creme, levemente brilhante, sendo proibido o uso nas edificações de outro material que não aquele. Então, cada país incorpora à sua identidade nacional cores definidas por suas culturas. Logo, as preferências individuais nessa área são condicionadas também culturalmente, agregando a essas escolhas forte carga semântica e ideológica. Gostaria de reportar ainda dois fatos ligados a cores. O primeiro é que no Brasil nenhuma brasileira se sentiria bem em um evento festivo com um vestido verde e amarelo, cujas cores pertencem à bandeira nacional; já nos Estados Unidos não é incomum o uso das cores da bandeira americana em roupas e adereços masculinos e femininos. Outro fato que mencionamos, a título de ilustração, é o de uma festa de casamento em Portugal na qual toda a decoração do evento festivo e a cor do vestido da noiva ou eram pretos ou em nuances próximas a essa cor, que, embora tanto na cullura portuguesa quanto na brasileira, de modo geral, essas cores simbolizem tristeza e morte, nunca a alegria de casamentos. Mas, ainda que essa não seja uma prática social comum nesses Países, mesmo assim pode ocorrer por conta de um estilista de moda específico, sem refletir, portanto, a integralidade da cultura nacional. Por essa razão, os recursos multimodais, quando usados na publicidade, devem considerar não apenas as preferências pessoais e as empresariais, mas também aquelas que subjazem às identidades sociais formadas culturamente em determinados grupos e nações. 84 Introdução à Multimodalidade 3.4 MULTIMODALIDADE ─ COMO TRABALHAR ESSAS SEMIOSES? E PARA QUE FIM? Considerando que qualquer texto com imagem pode se transformar em fenômeno semiótico complexo, devemos indagar sobre as consequências ideológicas que esse tipo de construção provoca, porquanto vários sentidos se articulam até a completa construção simbólica. Os exemplos de construção de marcas e de logotipos mostrados a seguir ilustram os procedimentos semióticos que acontecem em nosso mundo contemporâneo. Esses processos se tornam naturalmente interessantes, tanto do ponto de vista das semioses que participam dessa construção, quanto do ideológico, mas carecem de algum tipo de teoria para explicar como os textos e as imagens agem nesses produtos na disputa pelos mercados. Para isso, vamos examinar como é construída uma publicidade da famosa e cara marca de carro: Audi. Figura 20: Anúncio da Audi Fonte: Revista Telva, maio de 2008 O que inusitadamente chama a atenção neste anúncio da Audi é o fato de ser um comercial para a venda de carros, sem, 85 Josenia Vieira e Carminda Silvestre no entanto, apresentar carros no texto publicitário. Passemos ao anúncio. No primeiro plano, há um imenso e forte céu azul, com nuvens brancas que tomam todo o espaço publicitário. O detalhe interessante é que as nuvens brancas recortam no azul o contorno dos mapas da América do Sul e do Norte e também o da Europa. E só. Nada mais. Não há outras imagens a não ser o logotipo da Audi, formado por quatro anéis entrelaçados que figuram bem ao pé da página, ressaltado apenas pelo nome Audi, em vermelho, à extrema direta do anúncio. À esquerda, um pouco mais acima, o discurso verbal, a frase: DESCUBRA OUTRO MUNDO, AUDI CABRIO 84. O anúncio é um texto publicitário simples e despojado que imediatamente estabelece contato com o leitor. A amplidão do céu, recortando os mapas em azul, metaforicamente, significao outro mundo, desconhecido pelos prováveis usuários dessa marca de carro. O sentido construído promete, por meio do Cabrio 84, a oportunidade para que você descubra esses insondáveis mistérios. A categoria multimodal do novo aqui (KRESS e VAN LEEUWEN, 2006 [1996]) é representada pela marca do carro e, embora já seja conhecida, o que está sendo trabalhado efetivamente no anúncio é a marca Audi, trazida como o elemento novo. Esse é o produto que o anúncio deseja vender: a marca Audi. O tipo de carro ─ Cabrio 84 ─ é colocado no lugar da informação já dada, conhecida. O que vemos aqui, ou é um erro de construção publicitária, ou a intenção real é 86 Introdução à Multimodalidade trabalhar a marca Audi e não o tipo de carro, o Cabrio 84, pois o que é novo, em termos de informação, é dado como informação já conhecida, e o que é considerado informação já dada, conhecida, é dada como nova. Daí a necessidade de os publicitários conhecerem a teoria da multimodalidade para que os anúncios atinjam os seus objetivos: vender o produto. Nesse sentido, a obra Reading Images de Kress e de van Leeuwen (2006, [1996]) estabelece diferentes categorias para trabalhar a multimodalidade nesse tipo de discurso, o que nos permitem aproveitar ao máximo cada imagem em uso no discurso publicitário. Outra construção referente às marcas que também merece exame especial é o caso das joias Switzer, empresa portuguesa do ramo joalheiro, que utilizava inicialmente esse nome para nominar a empresa, porém gradualmente esse nome foi incorporando valores simbólicos, transformando-se na marca e no logotipo da empresa. Tais casos requerem uma análise multimodal para que possamos compreender os mecanismos envolvidos nessas construções multimodais. Ademais, considerando que as marcas de empresas são textos discursivos e como tal se tornam objetos de estudo extremamente necessários, especialmente porque ao serem usados produzem sentido. Nomes, nesses casos, deixam de ser meros nomes para se tornarem ─ marcas de produtos. Com o intuito de conhecermos mais essa marca, examinaremos uma chamada comercial dessa marca, divulgada para seus clientes pela internet. 87 Josenia Vieira e Carminda Silvestre Figura 21: Press release das Joias Switzer ─ Portugal Fonte: recebido por internet em maio de 2008 No texto, destaca-se, em primeiro plano, um belíssimo anel de pérolas, que, por ser incomum, excede às expectativas. A peça compõem-se de seis pérolas de diferentes cores, com invulgar brilho e forma, além de possuir original design. De forma particular, sobre o anel incide uma luz branca, como se viesse do céu, sendo essa imagem reforçada pelo discurso verbal, à esquerda: SIMPLESMENTE DIVINO. Então, a leitura metafórica será de que ao comprar joias Switzer a cliente terá uma joia com atributos divinos, com pureza e leveza de formas. A metáfora construída pelo comercial da Switzer é a de que seu anel possui beleza divina. Se olharmos, entretanto, as teorias sobre o assunto, nos damos conta de que há um descompasso entre as teorias que envolvem esses sistemas semióticos e os estudos do modo como eles operam. O motivo é que linguistas comumente se interessam mais por textos verbais, todavia a sociedade visual que está sendo construída, muda rapidamente e, ao mesmo tempo, cada vez mais cobra de nós conhecimentos profundos e determinados sobre essas mudanças. 88 Introdução à Multimodalidade Pela amplitude do tema, não pretendemos exaurir as categorias que compõe o texto multimodal, desenvolvidas especialmente na década passada ao abrigo da Teoria Multimodal (KRESS e VAN LEEUWEN, 2006 [1996]) e da Análise de Discurso Crítica (FAIRCLOUGH, 2003; 2006). Contudo, vale ressaltar que os princípios da teoria multimodal direcionam como tais principíos podem ser usados não só na publicidade, mas também em outras áreas, como a educação, por exemplo, transformando-se em porta-voz das ideologias contemporâneas. A respeito dessas possibilidades de uso da Teoria Multimodal, Kress e van Leeuwen discutem a função ideacional representada por meio de imagens e a atuação dos processos interacionais por meio de atores e de circunstâncias relevantes. A função interpessoal é tratada em termos de “interpelação”, representada por meio do olhar, do ângulo etc, e a função composicional é tratada por meio de enquadres, de linhas paralelas, verticais, horizontais, diagonais, e assim por diante (para mais detalhes teóricos, para o estudo do design, da produção e da distribuição do discurso, ver Kress e van Leeuwen 2006 [1996]). Essas categorias de análise da Teoria Multimodal tratam do modo como os textos multimodais devem ser construídos para cooperarem entre si, como os discursos são produzidos e como são colocados à disposição dos consumidores em contextos sociais e culturais específicos. O estudo mostra a importância de focarmos nossa atenção nas metáforas visuais representadas nos textos multimodais como defendem Kress e van Leeuwen (2006 [1996]) e nos textos multissemióticos, como trata Vieira (2007), cujos argumentos principais são de que os textos contemporâneos caminham a passos largos para uma 89 Josenia Vieira e Carminda Silvestre composição multimodal e de que desse fato a atividade publicitária, artística e educacional não pode fugir. Frente a essas mudanças concretas, é impossível não aderir à multimodalidade, aos textos híbridos compostos com múltiplos recursos semióticos, construídos com base em metáforas visuais, e, em decorrência, os sujeitos que não souberem lidar com a linguagem visual, com a multimodalidade, estarão sujeitos à exclusão social. Para esse fato, chamam atenção Kress e van Leeuwen: [...] Acreditamos que a comunicação visual está se tornando um campo cada vez menos de especialistas e cada vez mais crucial à comunicação pública. Isso inevitavelmente leva ao surgimento de novas regras, mais formais de ensino. Não ser letrado em comunicação visual poderá acarretar sanções sociais. Dominar o chamado letramento visual será uma questão de sobrevivência especialmente nos locais de trabalho (2006 [1996], p. 13). Sabemos que todo o sujeito é capaz de ler imagens porque possui competência específica para realizar essa modalidade de leitura, entretanto uma educação favorável à realização de uma leitura multimodal pode contribuir para acelerar e para desenvolver os processos de leitura de textos multimodais. Assim, quando a leitura de imagens é precedida pela escolaridade necessária, tal preparo contribui para o desenvolvimento de estratégias de leitura de textos multimodais, visando à compreensão eficiente e à habilidade específica para lidar com mídias concebidas com diferentes tecnologias. Tais conhecimentos certamente contribuirão para o aprimoramento de habilidades específicas para a leitura do sentido construído entre os diversos recursos semióticos usados de modo integrado nos textos multimodais. 90 Introdução à Multimodalidade Vale lembrar que a cultura de nossa sociedade visual tem se mostrado extremamente sensível ao apelo da imagem, a qual por si só promove o avanço na leitura e na interpretação dos sentidos, pois a conjunção do significado com as várias semioses que compõem a multimodalidade é um processo motivador que traz para as atividades publicitárias ou pedagógicas a riqueza de uma linguagem desenvolvida de maneira significativa principalmente a partir no século XX. Esse novo design do discurso esteve durante muito tempo distanciado da linguagem dos mercados, das artes e da educação, mais pela resistência ao uso da imagem e pelo desconhecimento por parte dos especialistas dessas áreas das teorias sobre as linguagens multissemióticas do que por outros motivos concretos. Embora muitos desses estudiosos utilizem imagens, não enfatizam, na prática profissional,o estudo e a construção de textos multimodais ou a leitura deles. Assim, no que toca às informações visuais, deve-se mencionar o modo como elas foram concebidas e os critérios estéticos utilizados em sua produção. Também deve ser levada em conta a identificação do autor e a do processo usado por ele na organização e na combinação das imagens, do modo como recortou a cena, o que colocou como central e a maneira como organizou e utilizou a iluminação. No que concerne às informações textuais do texto multimodal, deve ser observado se contribuem para que o consumidor do texto compreenda aquilo que vê, com base nos discursos verbais e visuais colocados a sua disposição. De igual modo, deve-se prestar especial atenção às informações contextuais relacionadas ao ato criador da imagem, assim como às intenções do autor. 91 Josenia Vieira e Carminda Silvestre Em razão da imersão da sociedade em um mundo visual, alicerçado em avançada tecnologia que influencia as formas de interação, passíveis de mudança segundo as tecnologias usadas pela sociedade, devemos prestar atenção ao modo de interagir das pessoas já que são diretamente influenciadas pelo desenvolvimento tecnológico. Em razão disso, muitos conceitos deverão ser revistos. O primeiro conceito a carecer revisão é o de letramento, que deve englobar tanto o letramento visual quanto o letramento midiático, pois o conceito de letramento, referente à habilidade de ler e de escrever como resultado de uma prática social, tornou-se insuficiente para cobrir todas as formas de representação do conhecimento presentes em nossa sociedade, pois para que o sujeito seja considerado letrado nos dias atuais deverá ser capaz de construir sentidos em diferentes discursos, usando múltiplas fontes de linguagem. Não devemos desconsiderar que os recursos tecnológicos utilizados na construção dos gêneros discursivos motivam uma função retórica na construção de sentidos, haja vista que observamos o aumento cada vez maior da combinação de aspectos visuais com os de escrita. Certamente não podemos ignorar o fato de que vivemos em uma sociedade da informação cada vez mais visual e de que a representação por meio de imagens produz textos especialmente construídos que revelam as nossas relações com a sociedade e com o que ela representa. Assim é que o letramento visual se relaciona diretamente com o modo como as sociedades se organizam e, consequentemente, com o modo de organização dos gêneros textuais. Se lembrarmos, por exemplo, das pinturas das cavernas que registravam a história daquela comunidade, logo nos 92 Introdução à Multimodalidade daremos conta de que aquela sociedade e que seus membros sabiam como ler e interpretar aqueles desenhos. Por fim, devemos prestar atenção às culturas que, de modo geral, possuem sistemas de comunicação visual específicos, marcados pela ideologia e pela cultura, lembrando- nos sempre de que as grandes obras medievais representam para nós verdadeiros compêndios visuais que muito têm a nos ensinar sobre a política, a religião, os costumes e os valores desse tempo. Portanto, saber ler metáforas visuais em textos multimodais no mundo globalizado é possuir a chave do mundo dos sentidos. MULTIMODALIDADE E LITERACIA 4ª PARTE 95 Josenia Vieira e Carminda Silvestre 4. LITERACIA MULTIMODAL Carminda Silvestre O conceito de literacia, na sua aceção tradicional, está associado à capacidade cognitiva para ler e escrever e, fundamentalmente, está relacionado a esta capacidade no uso da linguagem no seu modo verbal escrito. Em contextos educativos, os materiais pedagógicos centram-se essencialmente na linguagem oral e escrita. Sempre que os professores usam materiais audiovisuais, tais como a televisão, filmes ou outro meio, estes tendem a ser explorados no âmbito do conceito tradicional de linguagem: como um meio de veicular informação, uma mensagem, limitando o seu papel no texto como um suporte ilustrativo da linguagem verbal. Em contextos educativos, os materiais pedagógicos centram-se essencialmente na linguagem oral e escrita. Sempre que os professores usam materiais audiovisuais, tais como a televisão, filmes ou outro meio, estes tendem a ser explorados no âmbito do conceito tradicional de linguagem: como um meio de veicular informação, uma mensagem, limitando o seu papel no texto como um suporte ilustrativo da linguagem verbal. Hoje, a linguagem verbal, nos seus modos oral e escrito, continua a ter um papel central na vida das pessoas e o sistema educativo não é exceção a esta realidade. No âmbito da comunicação, como resultado da evolução das novas tecnologias, têm sido integrados outros modos de comunicar, para além da linguagem verbal, conforme referido na parte 1. Embora a linguagem verbal, na sua forma impressa, se tenha 96 Introdução à Multimodalidade tornado uma forma privilegiada de veicular o conhecimento através dos tempos, nas últimas décadas, juntamente com o modo visual, este modo tem se convertido em co-modo. A palavra impressa no jornal, na revista, articula-se com a imagem ou com a fotografia; o livro escolar ou académico já não é apenas um texto constituído pela palavra escrita, mas um texto multimodal, em que a palavra escrita interage com gráficos, quadros, tabelas, desenhos, imagens, na construção de significados. Os produtores de texto fazem escolhas deliberadas relativamente ao uso dos modos de representação e a respetiva articulação de forma a construir os seus textos multimodais. No entanto, embora se verifique uma crescente coexistência dos diversos modos semióticos, os modos visuais continuam a ser ignorados como elementos constitutivos de significado. A leitura parcial de um texto multimodal apenas na sua vertente de linguagem verbal escrita revela-se insuficiente numa sociedade que se caracteriza pela emergência do modo visual. Repare-se, por exemplo, nos textos publicitários da Benetton em que a ausência da linguagem verbal escrita é total, para além do logótipo da marca, conforme mostra a figura 22. Cumpre clarificar que o conceito de texto aqui usado é o da perspetiva de Halliday (1989). Para este autor, nome fundamental da Linguística Sistémico-Funcional (GSF), e seus seguidores nas áreas da Semiótica Social, Análise Crítica do Discurso, para enunciar apenas algumas abordagens ao estudo da linguagem, o conceito desvia-se do seu sentido tradicional, sendo definido como uma unidade de significação materializada através de uma porção de linguagem usada para fins de comunicação num contexto de situação. 97 Josenia Vieira e Carminda Silvestre Figura 22: Texto publicitário da Benetton Fonte: http://www.ocorvo.com.br/?cat=9 Podemos definir texto, provavelmente na sua forma mais simples, por linguagem que é funcional. Por funcional, queremos dizer simplesmente que é a linguagem que realiza alguma tarefa em determinado contexto, por oposição a palavras ou frases isoladas que poderei escrever no quadro […]. Assim qualquer excerto de linguagem em uso que faz parte de um contexto de situação, poder-lhe-emos chamar de texto. Este pode ser tanto oral como escrito, ou em qualquer outro modo de expressão. (HALLIDAY, 1989, p. 10, tradução nossa.) A referência a outros modos de expressão que não seja apenas a linguagem verbal, escrita ou oral, sugere o entendimento de linguagem verbal como um sistema semiótico de entre uma diversidade de outros sistemas semióticos que constituem os vários recursos disponíveis na comunicação. 98 Introdução à Multimodalidade Assim, o termo linguagem abarca não apenas a aceção da linguagem humana, mas as várias linguagens naturais e convencionais existentes como recursos comunicativos que coocorrem e interagem na construção da produção desentido. Portanto, quando usamos o conceito de linguagem, este inclui amplas e variadas formas de comunicação naturais e convencionais que abrange a linguagem verbal, mas também a linguagem de outros sistemas semióticos como a moda, a culinária, as formas, os sons, o espaço ou até a linguagem do silêncio, para referir apenas alguns. O texto multimodal é, por conseguinte, uma unidade de significação, constituída pelos recursos semióticos dos diversos sistemas escolhidos pelo produtor de texto, num contexto de situação, para determinados fins comunicativos. Deste modo, a necessidade de adequar o conceito de literacia aos avanços tecnológicos, nomeadamente ao uso da internet ou às imagens que predominam no espaço público e privado, como parte integrante do habitat do homem pós- moderno, é urgente e primordial, pois é no âmago dessas linguagens que pesquisamos o desenvolvimento do conceito. Não queremos com isto depreciar a linguagem verbal, mas somente reclamar um espaço para o estudo de outros sistemas semióticos na sua relação e articulação com a linguagem verbal no ato comunicativo. A exclusividade da linguagem verbal oral e escrita como única forma de conhecimento é determinada por condicionalismos históricos alicerçados no saber analítico que a linguagem verbal possibilita, como o recurso à metalinguagem, por exemplo, permitindo a legitimação consensual e institucional de que esse saber é o fundamental, negligenciando a importância dos saberes e potencialidades das linguagens não verbais 99 Josenia Vieira e Carminda Silvestre enquanto elementos necessários à inclusão do conceito de literacia perspetivado de forma semiótica. Pelo que acabámos de dizer, intui-se que o conceito de literacia, na sua aceção tradicional, revela-se um conceito que requer alguma reflexão e uma redefinição para fazer face à realidade de hoje. Já em 1965, num congresso dos Ministros da Educação, a Unesco sugeriu que a literacia deveria ser entendida não como um fim em si, mas deveria ser entendida como uma forma de preparar o indivíduo para a vida, nas suas vertentes social, cívica e económica e, neste sentido, no contexto da educação, deveria ir para além do ensino da leitura e da escrita (McARTHUR, 1998, p. 357). Nesta perspetiva, o conceito deixa de ser direcionado para um fim, isto é, um produto, para passar a ser entendido como “uma forma de preparar o indivíduo para a vida”, ou seja, um processo. Desta forma, o entendimento do conceito parece orientar-se para uma efetiva participação do indivíduo nos processos sociais. Estamos perante uma ressemantização, ou seja, uma mutação semântica de um estado “ser literato” para um processo em desenvolvimento “construir- se literato”; o enfoque deixa de ser o conhecimento para passar a ser a atividade. Assim, quando falamos em literacia informática não queremos apenas significar a capacidade para ler e escrever, mas a capacidade de envolvimento na atividade de comunicar através deste artefacto: o computador. Por conseguinte, as mudanças sociais resultantes das inovações tecnológicas que perpassam a sociedade exigem uma aprendizagem permanente e uma adaptação contínua a novas formas de comunicação. Contudo, e apesar da redução semântica do conceito tradicional às necessidades do momento, a língua portuguesa tem se acomodado às novas realidades recorrendo a modificadores como nas expressões “literacia informática”, 100 Introdução à Multimodalidade “literacia económica”, “literacia financeira”, “literacia visual”, entre outras, expandido, desta forma, o domínio semântico do conceito. Em muitos dos casos, a expressão parece dissociada do conceito tradicional de ler e escrever, abrangendo antes a integração de competências como a leitura de números, gráficos, imagens entre outras competências integradas numa cultura. No entanto, estas expressões remetem para a necessidade do conhecimento básico nas diferentes áreas de aplicação. Em resultado da expansão do conceito e da sua natural saturação, a clarificação e delimitação do seu uso no contexto deste trabalho é fundamental. Assim, passamos de imediato a clarificar o contexto no qual este é usado. Autores como Kress e van Leeuwen (2006 [1996], p. 15), Luke (2000, p. 73), Unsworth (2001, p. 71) reivindicam a necessidade desta articulação de forma a integrar as literacias visuais e verbais necessárias a uma aprendizagem crítica das crianças à multimodalidade, aos textos multimodais do século XXI. Necessitamos, portanto, de uma teoria dos recursos de produção de significados. A Semiótica Social, baseada numa teoria de linguagem sistémico-funcional, em que os estudos da linguagem em uso dentro de um contexto de situação e de um contexto de cultura, vem possibilitar analisar os vários sistemas semióticos, como a linguagem verbal, a linguagem visual, a linguagem gestual, etc, permitindo analisá-los de um ponto de vista gramatical. O enfoque do presente trabalho, porém, reside na inclusão dos modos de significação visual, oral, espacial, gestual e linguístico na escrita e a respetiva articulação dos diferentes modos. Isto significa que todos os elementos provenientes de sistemas semióticos diversos que coocorrem nos textos multimodais podem ser analisados, relacionados uns com os 101 Josenia Vieira e Carminda Silvestre outros e interpretados em termos das escolhas feitas entre os recursos semióticos disponíveis e em termos das suas contribuições para a função social e comunicativa do texto. O significado do texto não é, por conseguinte, produzido unicamente por um único modo, mas pela composição dos diversos elementos. Por outras palavras, no presente capítulo pretendemos explorar sobre a necessidade da redefinição do conceito no sentido de nele integrar as necessidades básicas constitutivas de textos multimodais. Neste pressuposto, o entendimento de literacia circunscreve-se ao: (i) tratamento do conceito na sua relação com a linguagem; (ii) uso do conceito num enquadramento teórico da linguística ─ o estudo teórico da linguagem como forma de a compreender. Como Hasan (1996, p. 379) refere, a definição do conceito tem como primórdio a capacidade para compreender o princípio da representação. A linguagem é um dos meios através dos quais os pensamentos, ideias e sentimentos são representados. Esta competência consiste em relacionar qualitativamente diferentes tipos de fenómenos ─ uma expressão e um conteúdo ─ de forma que a significação de um seja compreendida em termos do outro. Para tornar mais clara esta asserção passaremos a explicar que a literacia visual pressupõe a capacidade de “ver” e “compreender” um fenómeno como representativo de outro, nomeadamente a sua representação escrita. A capacidade de relacionar a expressão, significante, e o conteúdo, significado, desta forma é uma condição necessária ao uso de qualquer sistema semiótico. Definindo o primórdio de literacia como a capacidade para compreender e construir o sentido num sistema de significação possibilita ao conceito uma variedade de praxis semióticas. 102 Introdução à Multimodalidade Assim, um signo não se limita à linguagem verbal, ou seja, ao signo linguístico. Os modos de representação gráfica podem incluir a linguagem verbal no seu modo escrito, sob a forma de letras, palavras, frases ou sob a forma de números. Para além desta forma de representação, outras formas como, por exemplo, o desenho, a fotografia ou a pintura são representadas sob a forma de linguagem visual. O uso de um lenço ou um tecido branco como forma de acenar é interpretado como um sinal de paz. O artefacto, tecido de cor branco, constitui o significante, isto é, a materialidade do signo cujo significado é o sinal de paz na comunicação interpessoal em contexto de conflitualidade. O modo usado para a expressão deste significadoé a linguagem corporal, embora o sistema da cor seja fundamental para a interpretação desse significado. São amplamente conhecidos os exemplos de recursos semióticos em contextos de comunicação intercultural. Para além deste recurso semiótico como sinal de paz, temos um outro gesto, como o exemplo da figura 23 ou ainda no âmbito de um outro sistema semiótico, a imagem, a pomba branca da figura 24. Assim, em três sistemas semióticos como a cor, o gesto e a imagem encontramos signos ou recursos semióticos representativos de paz. Figura 23: Símbolo da paz como recurso semiótico do sistema da linguagem gestual Fonte: http://excluidosnageral.blogspot.com/2010 103 Josenia Vieira e Carminda Silvestre Figura 24: A pomba branca (de Picasso) como símbolo de paz no sistema semiótico visual Fonte: http://symbolom.com.br/wp/?cat=30 O termo “recurso semiótico” é usado para referir as ações, materiais e artefactos que usamos para fins comunicativos, quer produzidos fisiologicamente como, por exemplo, as cordas vocais, os músculos usados nas expressões faciais ou gestos, quer tecnologicamente, por exemplo, a caneta e a tinta ou o software do computador, que sob formas combinadas e organizadas se constituem como recursos. Van Leeuwen (2005, p. 3) adota esta terminologia em oposição ao termo “signo” por considerar que os recursos semióticos têm um potencial de significação, baseados nos seus usos passados, conjuntos de potencial semiótico baseados nas suas possibilidades de uso, que poderão ser atualizados em contextos sociais concretos em que os seus usos estão subjacentes a formas de regime semiótico. Assim, o conceito de signo, no seu entendimento saussureano constituído por significante e significado, parece ter um caráter mais estático, implicando de 104 Introdução à Multimodalidade que um signo está para algo em vez de algo. O significante é a materialidade do signo, isto é, o som ao dizermos a palavra “cão” ou o conjunto de letras “c ã o” materializadas no papel e o significado é o conceito mental a que se refere. A relação entre o meu conceito de cão e a realidade física dos cães é a significação ─ a minha maneira de conferir significado à palavra, de a compreender. Esta relação tem de ser interpretada em contextos culturais específicos. Na língua portuguesa, por exemplo, o significante “rapariga” ao ser pronunciado de forma oral através dos sons que resultam da junção de “r a p a r i g a” tem um significado diferente quer estejamos a usar o PE (Português Europeu) ou o PB (Português do Brasil). No primeiro caso significa menina, moça, jovem, e no segundo, dependendo da região do Brasil, pode significar uma menina de comportamento socialmente pouco aceitável. O significado não está no objeto, pessoa ou palavra. Somos nós que o construímos, que o fixamos pelo sistema da representação. Este é construído e fixado pelo código ou, se quisermos generalizar, pelos diferentes sistemas semióticos. Um exemplo simples ilustrativo de como as linguagens funcionam como sistemas de representação é o código das estradas. Os semáforos, por exemplo, máquina que assinala através de diferentes cores de forma sequenciada, vermelho, amarelo e verde, a proibição de passagem, cautela na passagem de veículos ou pedestres e permissão de passagem. As cores em si mesmas não representam parar ou avançar, pois estas não têm qualquer significado fixo. 105 Josenia Vieira e Carminda Silvestre Figura 25: Semáforos Fonte: http://emdurb.blogspot.com/2010/12/emdurb-da-continuidade-implantacao- de.html Figura 26: Sinal de stop do código das estradas Fonte: http://pt.fotolia.com/id/27229158 A arbitrariedade da cor como sistema de representação é aqui ilustrada pelo uso do luto como sistema simbólico. O preto é usado no mundo ocidental, conforme figura 27, o branco é usado em países africanos e alguns países árabes, o azul é usado no Irão, o vermelho é usado em algumas etnias de África do Sul, como representado na figura 28. 106 Introdução à Multimodalidade Figura 27: Cor preta como símbolo do luto para a cultura ocidental Fonte: http://www.elpais.com/recorte Figura 28: Cor vermelha como expressão do luto numa etnia na África do Sul Fonte: http://danny111.spaceblog.com.br/r26395/Moda-e-Estilo/ No âmbito dos sistemas convencionais, como são os signos aqui assinalados, incluímos a escrita. A escrita não emerge como um outro modo de expressão da linguagem a par com a linguagem oral. Historicamente a escrita é um sistema 107 Josenia Vieira e Carminda Silvestre semiótico que emerge da necessidade de mapear a fala e as figuras, isto é, um modo de representação visual. Os exemplos de signos inseridos em sistemas semióticos não se restringem aos acima enunciados, estes vão desde sistema semióticos naturais, como são a forma e a cor das nuvens como sinais de mau tempo ou de bom tempo, como são o caso das figuras 29 e 30. Figura 29: Nuvens indiciam temporal Fonte: http://www.fotoplatforma.pl/pt/fotos/2550/ Figura 30: Nuvens indiciam bom tempo Fonte: http://www.umaquariana.blogspot.com/2011/02/dia-limpo.html 108 Introdução à Multimodalidade Naturalmente que não podemos interpretar um signo de forma fragmentada; a interpretação do signo na sua relação com outros signos, os tipos de relações estabelecidas e a contextualização são determinantes para a interpretação. Por conseguinte, tanto o contexto comunicacional da interação como o contexto situacional são fundamentais. O signo tem significado apenas num contexto com outros signos e a significação ocorre sempre em contexto de uma situação social. No plano da representação, o que Halliday (1994, p. 179) na sua teoria de linguagem classifica de metafunção ideacional, está relacionado com a construção da experiência, ou seja, a linguagem como uma teoria da realidade, como um recurso para refletir sobre o mundo. Usamos a linguagem para representar, falar sobre a nossa experiência no mundo, nomeadamente o mundo físico e mental, para descrever eventos e estados, para além das entidades neles envolvidos. Por outras palavras, os recursos semânticos ideacionais constroem o mundo circundante e o mundo interior. Os fenómenos da nossa experiência são construídos como unidades de significação que podem ser nivelados em hierarquias e organizados em redes de tipo semânticos. As unidades de significação são estruturadas em configurações de funções (papéis) de diferentes níveis na hierarquia (HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2006 [1999], p. 11). Inscrita nesta metafunção como modo de significação, podemos explorar, por exemplo, como uma oração constrói a experiência através da categorização e a sua configuração numa imagem, como explicaremos de forma pormenorizada na parte 5. Na teoria de linguagem de Halliday (1994) para além da metafunção ideacional referida, existem ainda a metafunção interpessoal e a metafunção textual. Na metafunção interpessoal, a linguagem como praxis da intersubjetividade, usamos a 109 Josenia Vieira e Carminda Silvestre linguagem como recurso para interagir com os outros, para estabelecer e manter relações com estes, influenciar o seu comportamento, expressar o nosso ponto de vista sobre o mundo, provocá-los ou mudá-las. Ao usarmos a linguagem como discurso, na construção dos significados ideacionais e interpessoais, organizamos a nossa mensagem de forma a fazer sentido. Esta é a metafunção textual. A linguagem como um recurso semiótico da realidade entendida como um processo (discurso) ou como um produto (texto). No âmbito das preocupações de Kress e van Leeuwen (2006 [1996], p. 15) acerca das necessidades de integrar novas competências nas escolas e universidades e de fornecer literacia visual, este livro pretende explorar instrumentos de análise possibilitadores de uma literacia multimodale fornecer uma maior compreensão da interface entre os diferentes elementos que constituem os textos multimodais (escrito, oral, visual, entre outros). Todos conhecemos o impacto que as imagens têm nos valores, crenças, opiniões e comportamentos dos indivíduos e testemunhamos o crescente domínio deste território como texto. Deste modo, a necessidade de conferir atenção aos significados visuais na sua relação com os significados linguísticos expressos nos textos multimodais são requisitos fundamentais de forma a desenvolver competências críticas de leitura dos textos. Assim, a literacia não implica apenas a vertente tradicional da capacidade cognitiva de ler e escrever, mas envolve também o processo, a vertente da atividade referida anteriormente, e a participação no discurso, componente que queremos enfatizar a da participação e da resistência como forma de emancipação e de fortalecimento dos sujeitos no ato de aprendizagem da cidadania. Neste último sentido, a nossa proposta articula-se com o conceito de literacia tal como Halliday (1996, p. 357) o apresenta em que ser literato 110 Introdução à Multimodalidade não implica apenas participar no discurso de uma sociedade de informação, mas resistir-lhe, defendermo-nos e defender os outros contra o discurso tecnologizante antissemântico e antidemocrático. Para isso, mais do que nunca, necessitamos de conhecer como a linguagem funciona, como a gramática na sua perspetiva sistémica de léxico-gramática interage com a tecnologia para alcançar os seus efeitos. No sentido de Kress e van Leeuwen (2006 [1996]), assume-se aqui que as imagens não são meras ilustrações dos textos; estas têm a sua própria gramática na construção de significados e, por conseguinte, estas devem ser entendidas como um recurso semiótico no processo/produto do nosso sistema semiótico: a linguagem visual. Neste pressuposto, iremos explorar alguns exemplos para mostrar a estruturação do visual na sua articulação com a linguagem verbal, identificando como os elementos são composicionalmente agrupados e simultaneamente identificar padrões de linguagem usados de forma sistematizada na construção do nosso universo social. Assim, a teorização aqui subjacente implica sempre compreender, isto é, descrever, analisar e explicar a experiência humana de modo a identificarmos um padrão e porventura perceber as razões pelas quais as pessoas comunicam como comunicam, encontrando maneiras de compreender a atividade humana de uma forma que os próprios humanos a possam reconhecer. MULTIMODALIDADE: CONTRIBUTOS PARA UMA LITERACIA MULTIMODAL 5ª PARTE 113 Josenia Vieira e Carminda Silvestre 5. CONTRIBUTOS PARA UMA LITERACIA MULTIMODAL Carminda Silvestre Partindo do pressuposto de que existe a necessidade de incorporar novos conceitos e teorias da linguagem para fazer face a um mundo cada vez mais visual, teremos de recorrer a instrumentos analíticos capazes de responder às questões levantadas por uma realidade social que se tem vindo a reconfigurar perante os avanços tecnológicos, nomeadamente ao uso da internet ou ao crescente número de imagens que imperam no espaço público e privado. A nova realidade requer uma aprendizagem de multiliteracias em que modos de comunicação não se circunscrevem à linguagem verbal e o entendimento desta se configure de uma forma abstrata. Assim, como entidades propiciadoras de fazer sentido do mundo, as escolas e universidades têm de incorporar novas ferramentas para fortalecer os cidadãos. Neste contexto, o professor tem um papel fundamental na seleção e construção de materiais para desenvolver as competências dos alunos nas multiliteracias. A partir de dois livros de literatura infantojuvenil, o presente capítulo explora os sistemas semióticos verbal e visual e as suas relações. Deste modo, definimos como objetivos gerais (i) mostrar que a Semiótica Social, baseada numa teoria da linguagem sistémico-funcional, da linguagem em uso dentro de um contexto de situação e de um contexto de cultura, permite trilhar percursos de leitura de diferentes sistemas semióticos como são a linguagem verbal no seu modo escrito e a linguagem 114 Introdução à Multimodalidade visual na forma de desenho para criança que se articulam na produção do texto multimodal, i.e., uma unidade de significação constituída pelos recursos semióticos dos sistemas verbal e visual escolhidos para os fins comunicativos em apreço; (ii) mapear caminhos de desenvolvimento na leitura de imagens. No âmbito destes propósitos gerais, foram definidos os seguintes objetivos específicos: a) identificar como as imagens localizam as entidades no espaço; b) identificar a correlação dos dois sistemas semióticos (imagem e escrita); c) mapear as emoções nas imagens; d) identificar as correlações das emoções em textos multimodais; e) explorar as relações dos dois sistemas semióticos, circunscrevendo a análise na função de complementaridade. O livro que só queria ser lido é o título do livro escrito por José Jorge Letria, eminente escritor português de literatura infantojuvenil, e ilustrado por Daniel Silva (fig. 31). Este livro constitui o corpus da análise das duas primeiras subpartes: a localização das entidades no espaço e o mapeamento das emoções nos sistemas semióticos verbal e visual. É um livro catalogado como sendo literatura infantojuvenil para um público-alvo cuja idade se propõe acima dos 8 anos. Como resumo, temos a história de um livro que teve o seu tempo, que esteve na moda, que passou de mão em mão, que teve leitores apaixonados e que depois acabou na prateleira do esquecimento e da solidão, alimentando apenas o sonho de voltar a ser lido. Na sua solidão, teve por companhia uma velha máquina de escrever, também ela condenada ao esquecimento. Juntos, foram encontrando formas de ultrapassar a tristeza de se sentirem sozinhos. 115 Josenia Vieira e Carminda Silvestre Figura 31: Capa do livro (visual e verbal) Fonte: http://www.bertrand.pt/catalogo Na procura de esbater as fronteiras que delimitam os diferentes sistemas semióticos (escrita e visual) pretendemos dar resposta às perguntas: “Como é que as imagens localizam as entidades no espaço?”; “Como é que padrões de dois sistemas semióticos interagem na produção de significados?”; “Como são mapeadas as emoções nas imagens?”; “Como estão as representações dos dois sistemas semióticos relacionados no texto multimodal?”. Colocadas as questões, passaremos, assim, a analisar em primeiro lugar a localização das entidades no espaço e, de seguida, derivaremos para o mapeamento das emoções como representação. Paralelamente, procuraremos dar resposta ao tipo de relações estabelecidas entre os sistemas semióticos na produção de significados. 116 Introdução à Multimodalidade 5.1 A LOCALIZAÇÃO DAS ENTIDADES NO ESPAÇO O entendimento de linguagem verbal é de um sistema semiótico de entre uma diversidade de outros sistemas semióticos que constituem os vários recursos disponíveis na comunicação. Assim, o termo linguagem abarca não apenas a aceção da linguagem humana, mas as várias linguagens naturais e convencionais existentes como recursos comunicativos que coocorrem e interagem na construção da produção de sentido, como foi referido anteriormente, na parte 4. Esta análise enquadra-se, portanto, na Semiótica Social (HODGE e KRESS, 2006 [1988]; KRESS e van LEEUWEN, 2006 [1996]; KRESS, 1997, 2003) e na Gramática Sistémico- Funcional (GSF) de Halliday (1994, 1985), uma teoria de linguagem, cuja visão tem sido expandida e aplicada a outros recursos semióticos por inúmeros seguidores. No seguimento de Kress e Van Leeuwen (2006 [1996], 2001), Kress (2003), Iedema (2003), Baldry (2000), Baldry e Thibault (2006), O’Halloran (2004), para enunciar apenas alguns2008 e 2009, na Escola Superior de Tecnologia e Gestão, do Instituto Politécnico de Leiria, em Portugal, pela Doutora Josenia Vieira, da Universidade de Brasília (UnB), pós-doutoramento acompanhado pela Doutora Carminda Silvestre, da instituição portuguesa. Do trabalho realizado pelas autoras, foi selecionada a parte cujo fio condutor possibilitasse uma unidade para o estudo da multimodalidade, objeto de estudo pouco desenvolvido em Língua Portuguesa e com publicação exígua nesse idioma. Dessa constatação e do trabalho conjunto resultou a obra, escrita em Português do Brasil (PB) e em Português Europeu (PE), coexistência propositada de forma a ficar marcado o respeito pelas duas variedades de língua, suprimindo, desse modo, qualquer possibilidade de colonização linguística de uma das variedades. Quer por essa razão, quer pelos seus títulos, quer ainda pelos seus conteúdos, as seis partes do livro podem parecer uma colectânea de ensaios sobre tópicos vagamente relacionados entre si. No entanto, a estrutura do livro é bastante intricada, com duas vias de investigação, uma que começa no primeiro capítulo com enfoque na pesquisa da multimodalidade na publicidade e a outra que começa no capítulo quatro com a pesquisa em literacia 10 Introdução à Multimodalidade (letramento) multimodal aplicada às artes em geral, aqui apresentada por meio da literatura infanto-juvenil e do filme de animação. A parte 1 começa por focar questões teóricas sobre multimodalidade ─ globalização e tecnologias: uma perspectiva multimodal da linguagem ─, resultante das mudanças sociais, políticas e econômicas, e evidencia como essas transformações afetam a linguagem. A parte 2 ─ a multimodalidade nos eventos de letramento ─ insere estudos multimodais voltados aos eventos de letramento e apresenta possibilidades para proceder à análise multimodal. A parte 3 ─ o papel das metáforas visuais no discurso ─ explora a metáfora visual aplicada a textos artísticos e publicitários, mostrando as potencialidades desse recurso discursivo na construção e na manutenção das ideologias. Na parte 4 ─ literacia multimodal ─ é equacionado o conceito de literacia na perspectiva tradicional, trazendo para a discussão vários conceitos que estão reconfigurados à luz da realidade presente. A parte 5 ─ contributos para uma literacia multimodal ─ articula a teoria e a prática pela apresentação de excertos com análise de sintaxe visual, análise semântica de metáforas conceptuais e de relações de complementaridade dos modos semióticos verbal e visual. Na parte 6 ─ o gênero como elemento multimodal da atividade humana ─, exploramos o gênero textual como outra categoria analítica relacionada com o modo. A análise é feita com base em uma narrativa visual mediada por um filme de animação. Desenvolvemos a análise de forma a mostrar que o gênero nunca é formalmente independente das tecnologias ou dos processos de mediação, e dos modos que constituem o gênero. As partes constituem o todo, que traz à evidência o objetivo geral do livro: a necessidade do estudo da 11 Josenia Vieira e Carminda Silvestre multimodalidade e da literacia multimodal pelas diferentes áreas (da educação às artes, dos contextos acadêmicos às profissões) e do seu uso como ferramenta fundamental para a criação e para a interpretação dos textos multimodais da contemporaneidade. Não menos interessante, vale ressaltar o outro objetivo, o contributo para a maior consciência do papel central que o discurso desempenha nas transformações políticas, econômicas e culturais da sociedade e as implicações que essas acarretam no quotidiano das diferentes áreas da vida em sociedade. As autoras GLOBALIZAÇÃO, TECNOLOGIAS E LINGUAGENS 1ª PARTE 15 Josenia Vieira e Carminda Silvestre 1. GLOBALIZAÇÃO E TECNOLOGIAS: UMA PERSPECTIVA MULTIMODAL DA LINGUAGEM Josenia Vieira Esta parte, sob o título “Globalização e tecnologias: uma perspectiva multimodal da linguagem”, tem como principal intuito discutir a linguagem no universo da globalização sob a influência das novas tecnologias, cuja interferência é diretamente visível na reorganização das práticas sociais e dos gêneros discursivos. Tal fato enseja relevantes mudanças, assinaladas pelo surgimento de textos multimodais, marcados pela presença de múltiplas semioses em sua composição. A mudança da linguagem frente às tecnologias e à globalização é tratada como reconfiguração em Vieira (2004, p. 7) e em Ormundo (2007, p. 116) e como multissemióticos em Vieira (2007, p. 3). Mas foi Poster (1995, 1996, 2000) quem inicialmente percebeu características no discurso capazes de provocar a reconfiguração da linguagem. Para isso, centrou sua discussão no modo de organizar a informação. Poster (2000) defende que os sistemas de comunicação eletrônica sejam tratados como linguagens que determinam a vida social de todos os indivíduos nos eventos sociais, econômicos, políticos e culturais. A sua tese geral concentra-se na forma como a informação circula e a ela atribui a responsabilidade pela reconfiguração da linguagem. Atualmente, os sistemas de comunicação eletrônica são considerados linguagens determinantes na vida dos sujeitos e dos 16 Introdução à Multimodalidade grupos sociais e, segundo Poster, os meios e as formas de comunicação determinam as relações de poder e de dominação nas sociedades contemporâneas. Daí a tese de Poster (1996) recair sobre o modo de informação como sendo o principal responsável pelas mudanças e pela reconfiguração da linguagem, fato que estabelece estreita ligação entre linguagem e globalização, ambas sujeitas a profundas alterações motivadas pelas tecnologias da comunicação. Em face disso, o propósito deste capítulo é examinar como a globalização, juntamente com o advento da sociedade da informação e da sociedade em rede, usuárias de ferramentas tecnológicas, reconfiguram a linguagem, agregando-lhe múltiplas formas multimodais para a representação do significado no discurso. 1.1 A QUESTÃO DA REPRESENTAÇÃO DO SIGNIFICADO A discussão da representação do significado ancora-se em alguns princípios teóricos da Análise de Discurso Crítica (ADC) (FAIRCLOUGH, 1989, 1992, 2003a, 2006; CHOULIARAKI e FAIRCLOUGH, 1999) e pela Teoria Multimodal do Discurso, (TMD) (KRESS e VAN LEEUWEN, 2001, 2006 [1996]) e (VAN LEEUWEN, 2005). Para a abordagem do tema “Globalização e tecnologias: uma perspectiva multimodal da linguagem”, colocamos em destaque a questão da representação no discurso. Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 42) atribuem a mudança de significado à interação midiática, motivada pela natureza textualmente mediada da vida social contemporânea. Nessa perspectiva, esses linguistas consideram o discurso escrito como um discurso mediado porque, segundo eles, contribui para aumentar o distanciamento espaço-temporal entre os agentes do discurso. Acresce dizer 17 Josenia Vieira e Carminda Silvestre ainda que um evento discursivo que migra de um domínio social para outro carrega o caráter simbólico da primeira representação e, ao ser reutilizado em outro contexto social, em outro espaço, terá a seu dispor um leque de possibilidades para a nova simbolização agora midiatizada. Por essa razão, o evento discursivo escrito já não representa exatamente o fato real, pois já se tornou uma representação de outro discurso anteriormente representado, tornando-se assim uma segunda ordem de representação mais complexa do que a primeira. Então, cada vez que certo evento discursivo é mediado por diferentes tecnologias é, do mesmo modo, objeto de nova representação, ao que denominamos reconfiguração ou recontextualização do discurso, fato que agrega cada vez mais complexidade a essas representações. Caso semelhante repete-se com o discursonomes, este trabalho inscreve-se numa teoria em que a linguagem verbal não é entendida como um fenómeno isolado. Este permite analisar como os diferentes recursos são ressemiotizados e interagem na produção de sentido. Apresentado o quadro teórico, passaremos de imediato para a análise das entidades localizadas no espaço. Sabemos que a forma como colocamos os objetos no espaço e as relações estabelecidas entre si envolve o reconhecimento da existência de relações simétricas e assimétricas. Nas relações assimétricas entre o objeto que queremos colocar e o objeto em relação ao qual o queremos posicionar, há escolhas que têm de ser feitas. As relações assimétricas podem ser criadas em relação à posição, à ordem, à 117 Josenia Vieira e Carminda Silvestre distância, ao tamanho ou outros tipos de relações. A entidade, o participante representado da história (livro), é colocada na página como um recurso semiótico que juntamente com outros recursos semióticos possibilitam um potencial de significações, especificando possibilidades de caminhos de leitura. Como referimos anteriormente, o termo “recurso semiótico” é usado para referir as ações, materiais e artefactos que usamos para fins comunicativos, quer produzidos fisiologicamente pelas cordas vocais quando falamos, quer pelos músculos usados nas expressões faciais ou gestos, quando comunicamos pela linguagem corporal, quer a folha em branco, o lápis e a tinta, quando desenhamos, quando ilustramos, que, sob formas combinadas e organizadas, constituem-se como recursos. No uso destes recursos, e como referimos acima, há escolhas que têm de ser feitas. A noção de escolha é crucial na Semiótica Social. Todos os elementos provenientes de sistemas semióticos diversos que ocorrem na construção de um texto multimodal podem ser analisados, relacionados uns com os outros e interpretados em termos das escolhas feitas entre os recursos semióticos disponíveis e em termos das suas contribuições para a função social e comunicativa do texto. O título do livro O livro que só queria ser lido é uma metáfora ontológica ─ O LIVRO É UM SER VIVO ─ (LAKOFF e JOHNSON, 2002 [1980]) denominam este tipo de metáfora de “personificação”. Como ser vivo, o livro tem sentimentos, emoções, que são exploradas, sendo como metáfora um tributo ao livro e à leitura, que expressam uma verdade essencial: os livros partilham as nossas vidas e são parte da aventura para o conhecimento. 118 Introdução à Multimodalidade Os recursos semióticos usados são as imagens e a linguagem verbal escrita. O livro não é o único participante representado da história, mas é o mais importante ─ o protagonista. Como tal, é localizado na capa, assumindo o seu nível de importância. Iremos neste passo da análise focar a nossa atenção na organização do texto. Van Leeuwen (2005) denomina o layout de composição que, no caso da capa, materializa a metafunção textual (HALLIDAY, 1994), na terminologia da GSF. Nesta metafunção, a linguagem é usada para relatar aquilo que é escrito ou ilustrado, para mencionarmos apenas os recursos inscritos nos dois sistemas semióticos aqui tratados (a linguagem verbal escrita e a linguagem visual). Isto envolve a linguagem na organização do próprio texto. Relembramos que o entendimento de texto aqui usado é o de Halliday (1989), em que este é assumido como uma unidade de significação materializada por uma porção de linguagem para fins comunicativos num contexto de situação, qualquer que seja o sistema semiótico no qual este é expresso. Em termos de composição, ou para usarmos a terminologia da GSF, na metafunção textual, as noções de centro, margem, direita, esquerda, em cima ou em baixo são dimensões da nossa experiência espacial, mas a aquisição e a interiorização de valores positivos e negativos constituem extensões metafóricas semiotizadas nos diversos sistemas semióticos. Estas noções são determinadas culturalmente. Assim, a página impressa é um espaço visual da organização textual. Na figura 28 (capa), os dois sistemas semióticos estão organizados de forma a construir uma unidade de significação. A proeminência visual é dada ao livro localizado à esquerda na primeira prateleira. 119 Josenia Vieira e Carminda Silvestre Quando falamos ou escrevemos começamos com algo que é “dado”, algo já conhecido ou já mencionado de forma que o nosso interlocutor possa passar para o “novo”, para o conhecimento que o locutor quer introduzir. Considerando a estrutura da informação, a organização espacial do livro e a sua relação com as prateleiras mostra que este está localizado no espaço do “dado”, i. e., conhecido, tanto no sistema semiótico visual como no sistema semiótico verbal, materializando a ordem da esquerda para a direita. É o elemento visual mais destacado. O mesmo é verdadeiro para o título, como vemos no quadro 1. O livro que só queria ser lido Dado Novo Quadro 1: Título do livro Esta ordem não é, portanto, restrita à linguagem verbal. A ressemiotização ao nível da linguagem visual também segue esta direção. A atenção é concentrada no primeiro elemento, o livro. Esta informação (dado) é normalmente localizada no início da oração. A outra informação (novo) é o enfoque da mensagem, aquilo que o torna especial, único: que só queria ser lido. A localização da impressão das letras segue a ordem estrutural horizontal da esquerda para a direita, mas graficamente a escolha feita é a ordem hierárquica vertical descendente (de cima para baixo), seguindo a orientação de alongamento (elongation) vertical, como Kress e van Leeuwen (2006 [1996], p. 57) 120 Introdução à Multimodalidade classificam, em que o mais importante está em cima. Esta última escolha é da responsabilidade de um terceiro elemento do processo: o designer gráfico. Em segundo lugar, o facto de o livro estar posicionado na primeira prateleira, quando estão pintadas mais prateleiras, sugere uma construção hierárquica da imagem, sugerindo a orientação da página como uma ordem vertical descendente. De facto, a localização da identidade no espaço é sugerida pelo sistema semiótico verbal que coocorre com o sistema visual, como mencionado na página 7 do referido livro “Era o caso deste livro, que encontrara o seu pouso certo numa prateleira alta de uma estante colocada ao lado da secretária, onde agora era rei e senhor o computador”. O leitor, pelos exemplos dados, percebe padrões de semelhança da linguagem verbal e da linguagem visual. Contudo, a localização espacial do livro é expressa verbalmente num contexto mais amplo do que a visual. Circunscrevendo a análise a este tópico específico, o apagamento da imagem, parece ser uma estratégia semiótica em que a redução existe por questões de gestão do espaço. O tipo de relações entre os dois sistemas semióticos não se restringe ao enunciado. Relações de expansão, de projeção, entre outros (para um maior desenvolvimento, ver UNSWORTH, 2006), poderão ser estabelecidas. Por conseguinte, a organização espacial das entidades podem ser descritas linguisticamente de variadas maneiras, expressando cada uma delas as escolhas do escritor. O mesmo é verdadeiro para as imagens. A organização espacial é uma escolha que o ilustrador faz de forma a representar esta vertente semiótica do texto num processo de ressemiotização e, por conseguinte, de produção de significado. Iedema (2003) considera o uso deste conceito (ressemiotização) consistente na sua aplicação aos textos 121 Josenia Vieira e Carminda Silvestre multimodais por duas razões: (i) esboça como os sistemas semióticos são traduzidos de um sistema para o outro como processos sociais; (ii) questiona o porquê de um sistema semiótico ser mobilizado em vez de outro para concretizar algo em tempos específicos. No âmbitoda Gramática Sistémico-Funcional, a metafunção ideacional assume que qualquer sistema semiótico tem de ter a facilidade de comunicar acerca da representação do mundo interior ou exterior. Na linguagem verbal, a organização da oração realiza os significados ideacionais, a representação dos tipos de processos e dos participantes associados. De acordo com Halliday e Matthiessen (2006 [1999], p. 52) uma imagem é uma representação da experiência na forma de uma configuração, consistindo num processo, com participantes fazendo parte desse processo e de circunstâncias associadas. Acrescentam que há inúmeros tipos de processos no universo não semiótico, mas que estes são construídos semioticamente de acordo com a forma como os participantes são configurados num reduzido número de processos tipo: ser, fazer, sentir e dizer. Se analisarmos de forma mais próxima a representação linguística, conforme o quadro 2, identificaremos duas entidades envolvidas no processo. O livro não é o único participante da história. É o mais importante, mas existe a máquina de escrever que sofre do mesmo problema ─ ser relegada para um segundo plano ─ já que agora o computador é rei e senhor. Os processos relacionais são aqueles que codificam significações estabelecidas por relações de ser. Este tipo de processo envolve o estabelecimento de uma relação entre dois termos. Neste caso, as duas entidades representadas são o livro e a máquina de escrever. A relação estabelecida entre estas duas entidades é a de posse. Isto é codificado no processo. O livro é o possuidor, 122 Introdução à Multimodalidade “tinha” o processo, é um processo possessivo atributivo, e “a máquina de escrever” o atributo, o possuído. De facto, o livro, objeto não humano antropomorfizado, é representado ao longo da história fundamentalmente como experienciador e portador cujas emoções e relações são expostas. Por outro lado, a representação visual dos dois participantes segue a estrutura do sistema semiótico verbal, como pode ser observado no quadro 2. (Linguagem verbal) A única companhia com que o livro podia contar era a de uma velha máquina de escrever que já tivera, naquela casa, a sua época e a sua utilidade. (Representação dos 2 sistemas semióticos) possuidor ─ verbo relacional ─ possuído (Linguagem visual) Fonte: O livro que só queria ser lido O alongamento horizontal (KRESS e van LEEUWEN, 2006 [1996]) é realizado visualmente pela colocação do livro no local do “dado”, a informação considerada familiar para o leitor e que serve de ponto de partida da oração, ao passo que a máquina de escrever é colocada na posição do “novo”, a 123 Josenia Vieira e Carminda Silvestre informação até ao momento desconhecida para o leitor, materializando o local do atributo possuído. Uma possível relação das entidades no espaço em termos de localização seria colocar o livro na estante e a máquina de escrever na secretária. Seguindo tanto a ordem da posição como a de relação, o livro é posicionado à esquerda da máquina, sua companheira de infortúnio. O livro materializa assim a posição da esquerda, enquanto a máquina fica na posição da direita. Especificando este tipo de relação espacial entre as duas entidades (livro e máquina), o livro é percecionado como tendo o papel do “dado” na imagem, à semelhança do que acontece com a linguagem verbal [O livro tinha como companheira uma máquina de escrever]. Deste modo, quando comparamos os dois sistemas semióticos, nas suas funções de criação de significados, a orientação da localização das entidades no espaço segue a direção da esquerda para a direita (tanto na frase como na imagem). A localização das entidades no espaço pode ser descrita linguisticamente de variadas maneiras, cada uma expressando as escolhas do escritor. O mesmo é verdadeiro para as imagens. A organização espacial das imagens é resultante das escolhas que o ilustrador faz para representar os recursos deste sistema semiótico num processo de correlação na articulação da produção de significados. Seguindo tanto a relação da posição como da ordem, o livro é posicionado à esquerda da prateleira: tem uma posição experienciador enquanto a máquina de escrever é posicionada à direita. Quando especificamos o tipo de relação espacial entre as duas entidades (livro e máquina de escrever) encontramos um padrão espacial comum nos dois sistemas semióticos. A 124 Introdução à Multimodalidade estrutura espacial da imagem é organizada de forma similar à estrutura verbal, criando proposições significativas em termos de sintaxe visual. Assim, ao compararmos os dois sistemas semióticos na construção de significados, ambos seguem a orientação da esquerda para a direita da frase. As máquinas de escrever são, na generalidade, maiores do que os livros, seguindo a condição de assimetria no que se refere ao tamanho. A organização espacial destas duas entidades é aqui representada como relativamente simétrica em termos de tamanho, seguindo, uma configuração de amigável simetria relacional. 5.2 O MAPEAMENTO DAS EMOÇÕES NOS SISTEMAS SEMIÓTICOS VERBAL E VISUAL Nesta parte da análise, pretendemos mostrar o mapeamento das emoções, isto é, como é que as emoções estão representadas no texto multimodal, e procurar identificar os diferentes sentimentos linguístico, pela análise da Atitude (MARTIN, 2008), e pela da imagem, pela análise da metáfora conceptual (LAKOFF e JOHNSON, 2002 [1980]). As relações destes dois sistemas semióticos, linguagem verbal do modo escrito e imagem, são identificadas e explicadas. A análise é circunscrita no âmbito dos significados representacionais ou, para usarmos um termo da GSF, no da metafunção ideacional (HALLIDAY, 1994). Como tem vindo a ser evidenciado, a linguagem é um sistema semiótico pelo qual os pensamentos, ideias e sentimentos são representados numa determinada cultura. A imagem, ou o sistema semiótico visual, é outro modo por meio do qual os pensamentos, ideias e sentimentos são representados nessa mesma cultura. O modo escrito é o modo privilegiado na 125 Josenia Vieira e Carminda Silvestre educação pelo qual construímos a realidade e fazemos sentido dela, mas sendo as imagens outro modo, elas também representam conceitos, ideias e sentimentos. Por conseguinte, a linguagem não é um sistema isolado de comunicação, mas exige referência a outros sistemas na construção de sistemas de significação. A metáfora como conceito também é multimodal no sentido de que pode ser usada noutros sistemas semióticos para além do verbal. Lakoff e Johnson (2002 [1980]) trazem à evidência que este recurso cognitivo é um mecanismo básico na compreensão da experiência, da nossa compreensão do mundo. O livro é apresentado como uma metáfora conceptual ontológica, como referido anteriormente, em que este objeto físico constituído por papel, constrói-se como um ser humano, com todas as experiências, sentimentos, motivações que só aos humanos é possível viver, percecionar e sentir. Por meio da personificação do livro, entidade não humana, este passa a ser apresentado em termos humanos, termos esses que podemos entender com base nas nossas próprias experiências, comportamentos, emoções e motivações. Polarizadas entre tristeza e alegria, a maior parte das emoções enunciadas ao longo da história estão mapeadas em sentimentos circunscritos na esfera do pólo negativo, tais como tristeza, esquecimento, abandono e solidão. As emoções são representadas linguisticamente pelo uso de várias realizações léxico-gramaticais. O livro começa com “Era uma vez um livro triste”. O adjetivo é por natureza um modificador do substantivo e “triste” é o modo de ser do “livro triste”. Martin (2008), no estudo da “atitude”, defende que o “afeto” se refere aos recursos usados para construir as reações 126 Introduçãoà Multimodalidade emocionais. Registam os sentimentos positivos e negativos, isto é, se nós nos sentimos tristes ou felizes, confiantes ou ansiosos. Estes sentimentos são localizados tanto linguisticamente como em imagens, como vamos passar a analisar. Ao considerarmos a linguagem corporal como um modo de comunicação ou configurarmos esse modo como discurso, isto é, como uma prática social, a configuração de algumas propriedades (braços, pernas e olhos projetados para baixo, vetorizadas de forma descendente) mostram que a imagem do livro expressa tristeza. As diferentes partes do corpo identificadas (ver quadro 3) são percecionadas de forma consistente com características (gestos) que agrupados constituem a configuração de propriedades que têm sido instanciadas pelas propriedades de frequência e de tempo nas nossas perceções do mundo. Estas propriedades constituem os padrões de comportamento adotados pela comunidade e, por conseguinte, fazem parte das nossas próprias práticas (HASAN, 2004, p. 18). O papel da metáfora orientacional é aqui um instrumento analítico fundamental na instanciação da “atitude” nas imagens. As metáforas orientacionais (LAKOFF e JOHNSON, 2002 [1980]) constituem um instrumento de orientação físico- espacial fundamental na compreensão da realidade desencadeada pelo esquema de imagens que lhe estão subjacentes. Esta metáfora organiza todo o sistema de conceitos em relação a um outro. A orientação espacial pode se realizar em diferentes direções (para cima; para baixo; frente; trás etc). Um exemplo típico desta metáfora é FELIZ É PARA CIMA e TRISTE É PARA BAIXO, que se manifesta em enunciados como, por exemplo, “estou a sentir-me em baixo”, “ele está na mó de baixo”, “ela anda de rastos”, “estamos num alto astral”, “ando 127 Josenia Vieira e Carminda Silvestre nas nuvens”, “estou no céu”. As locuções prepositivas “para cima de” e “para baixo de” são exemplos amplamente divulgados como propiciando associações que estão ligadas a preconceitos negativos relacionados com a locução “para baixo de” e ideias opostas em relação a “para cima de”. Refira-se, no entanto, que a orientação é determinada por esquemas cognitivos determinados por culturas específicas. Apresentamos a título de exemplificação a diferença entre a língua portuguesa e o mandarim. Em português, expressamos o tempo passado, em termos de configuração linear, na direção horizontal “trás” e o futuro na direção “frente”. Em mandarim, o passado assume a direção “frente” (gian) e o futuro, por oposição, assume a direção “trás” (hou). Nesta língua o tempo “passado” também pode ser representado na direção vertical “cima” (shang) e o futuro na direção vertical “baixo” (xia), direção não considerada no português. Partes do corpo (imagem) Partes do corpo (descrição) Linguagem verbal: atitude Olhos: olhar direcionado para baixo Era uma vez um livro triste. Ombros / braços: direcionados para baixo Sentiu-se ainda mais só, triste e esquecido o pobre livro. Pernas: direcionadas para baixo; não hirtas Porque me sinto muito só e triste… Quadro 3: representação de tristeza 128 Introdução à Multimodalidade Retomando a metáfora orientacional usada no livro em análise, o quadro 4 mostra, por outro lado, através de algumas características da imagem, significados opostos. Sabendo que esta é a última imagem do livro, podemos concluir que este tem um final feliz. O livro está aberto. Os braços e as pernas estão vetorizados para cima. Os olhos estão completamente abertos direcionados para cima. A configuração da linguagem corporal é a representação de emoções de reconhecimento e glória, estado que é polarizado como sendo a expressão da felicidade. E se houvesse na casa uma tabela dos mais procurados, como há nas livrarias, o livro teria ficado várias semanas seguidas no primeiro lugar, sem rival à vista. E bem merecia esse momento de reconhecimento e consagração. Quadro 4: Última imagem do livro (reconhecimento e consagração) As diferentes partes do corpo do livro, identificadas no quadro 4, são percebidas como consistentes com determinadas características (gestos) que, agrupados, dão uma certa configuração das propriedades da representação de emoções positivamente avaliadas. Como foi referido anteriormente, estes gestos têm sido instanciados através da frequência e do tempo nas nossas perceções do mundo. Essas perceções constituem padrões de comportamento adotados pela comunidade e, deste modo, são parte integrante das nossas práticas, como as ilustrações parecem expressar. A coarticulação e interseção dos 129 Josenia Vieira e Carminda Silvestre dois sistemas semióticos contribuem para a produção da construção de significados. Partes do corpo (imagem) Partes do corpo (descrição) Linguagem verbal: atitude Olhos: olhar direcionado para cima E bem merecia esse momento de reconhecimento e consagração. Ombros / braços: direcionados para cima Sentiu-se ainda mais só, triste e esquecido o pobre livro. Pernas: cruzadas direcionadas para cima Quadro 5: representação de reconhecimento e consagração (felicidade) Os padrões de linguagem corporal identificados no quadro 5 constituem padrões de ressemiotização da linguagem verbal que o ilustrador escolheu para representar as emoções aqui verbalizadas como as polarizadas de forma positiva. Deste modo, consideramos a hipótese de que as relações entre as características visuais das imagens e as da linguagem verbal escrita estão materializadas por meio de metáforas visuais que encontram relações de complementaridade metafórica no instrumento analítico da “avaliação”. 130 Introdução à Multimodalidade Em forma de conclusão, o modo como apreendemos o mundo está subordinado a categorizações. A linguagem verbal é um modo de percecionarmos e expressarmos essa realidade. Outros sistemas semióticos existem que ocorrem como outros modos de expressarmos essa mesma realidade. Esperamos ter mostrado também que o quadro teórico da Avaliação das práticas sociais, neste caso concreto, de parte de práticas sociais que constituem o discurso, mais especificamente o afeto ─ atitude associada à emoção ─ indica uma visão positiva ou negativa dos atores envolvidos nos processos, bem como as metáforas conceptuais (LAKOFF e JOHNSON, 2002 [1980] permitem analisar os recursos semióticos constitutivos dos textos multimodais. Fornecem também instrumentos analíticos conducentes a uma multiliteracia e, neste caso específico, na leitura de imagens, bem como a articulação dos diferentes sistemas semióticos usados no nosso dia a dia. Este quadro teórico permite, como o tem demonstrado a investigação recente em áreas, como o cinema (O’HALLORON, 2004), cartoons (SANZ, 2008) por oposição à semiótica, no seu início, quando eram procuradas as articulações linguísticas da linguagem visual, tendo se refletido, por isso, sobre as pontencialidades da arte, em geral, como linguagem. Apenas nos anos 80, Massironi (2010 [1982]) desenvolveu de forma aprofundada a análise do desenho partindo do quadro teórico da psicologia (perceção de imagens) e da semiologia (produção de sinais). Em conformidade com o exposto, defendemos que este é um passo metodológico a desenvolver no sentido de uma maior compreensão de formas contemporâneas de comunicação. O livro que só queria ser lido privilegia o modo escrito. Nem tudo o que é escrito é materializado pelo uso de imagens, podem existir ações, atores, circunstâncias que são submetidos a 131 Josenia Vieira e Carminda Silvestre um apagamento (redução visual). No entanto, as relações existentes entre estes dois sistemas semióticos não se esgotam neste exemplo. Por outro lado, foram encontrados padrões de semelhanças entre osdois sistemas semióticos, nomeadamente no que se refere à localização do valor da informação, no âmbito dos significados composicionais, verificando-se os mesmos padrões de organização dos sistemas como são as orientações de cima para baixo e da esquerda para a direita ditadas pelas normas da escrita ocidental. 5.3 LINGUAGEM VERBAL E VISUAL: RELAÇÕES DE COMPLEMENTARIDADE DOS SISTEMAS SEMIÓTICOS Como tem sido explorado nos diferentes capítulos, no âmbito do estudo da multimodalidade, a linguagem verbal e a linguagem visual não são tomadas como sistemas semióticos isolados cuja função deste último seria meramente decorativa, ilustrativa ou decorativa. Entendemos o texto multimodal como uma unidade de significação em que os produtores de texto fazem escolhas de forma a construírem um produto com um propósito comunicativo pelo uso desses sistemas (para um maior desenvolvimento, ver 6ª parte, sobre género). Assim, para respondermos à pergunta ─ Qual o tipo de relação estabelecida entre a linguagem visual e a linguagem verbal? ─, iremos analisar um pequeno excerto de um livro nos modos verbal e visual. Com base em O Pardal de Espinosa, escrito por José Jorge Letria e ilustrado por Daniel Silvestre Silva, iremos focar a nossa atenção sobre o tipo de relação complementar estabelecido entre os dois sistemas semióticos, questão brevemente aflorada no ponto anterior. 132 Introdução à Multimodalidade O livro infanto-juvenil é a história de um dos mais importantes filósofos do século XVII, Espinosa, polidor de lentes, de profissão, que se dedicou a ideais de liberdade. Espinosa estabelece uma relação de amizade com um pardal, testemunha do seu labor diário e do seu modo de vida, a quem o filósofo explica a sua perceção do mundo. Sendo um texto ficcionado, a biografia de Espinosa é construída pela tecitura de valores, possibilitando aos pequenos leitores o contacto com um grande vulto da filosofia europeia. Os produtores de texto ─ escritor e ilustrador ─, reconstruíram o contexto histórico e cultural de forma exímia, embora recorrendo a recursos diferentes determinados pelos modos semióticos. O sistema semiótico visual aqui analisado é a ilustração, forma artística resultante de uma elaboração cognitiva desenvolvida e mediada pela linguagem verbal, como demonstrámos no capítulo 5. Conforme Massironi (2010 [1982], p.15) refere, o desenho tem sido historicamente tratado como um instrumento dócil do qual todos se podem servir, mas que nunca ninguém sentiu a necessidade de analisar para compreender o seu funcionamento, o que o diferencia de outros, e para explicar a sua ampla disponibilidade na absorção de funções comunicativas diversas. Em conformidade com esta constatação e com as preocupações da Semiótica Social, reiteramos a ideia de que a linguagem visual, em sentido lato, tanto como processo ou como produto, tem potencialidades nas suas várias expressões e articulações que carecem de mais investigação. Roth et al. (2005), com base num estudo desenvolvido a partir de livros de ciências, propõem quatro funções para as relações entre linguagem verbal e imagens: (i) decorativa 133 Josenia Vieira e Carminda Silvestre (imagens normalmente colocadas no início do capítulo sem referência ao texto principal); (ii) ilustrativa (capta e descreve o que o leitor deve ver); (iii) explicativa (dá uma explicação ou classificação do que é representado); (iv) complementar (fornece conteúdos proposicionais não explicitados no texto verbal). Com base na classificação (iv), função complementar, iremos analisar esta função com vistas a apresentar uma reformulação do entendimento do tipo de relação existente entre os sistemas semióticos verbal e visual e com o intuito de avançar no estudo das relações intersemióticas dos dois sistemas. No âmbito da metafunção ideacional da linguagem (HALLIDAY, 1994), esta é usada para organizar, compreender e expressar as nossas perceções do mundo físico e interior, como referido em diferentes pontos deste volume. A complementaridade ideacional em textos multimodais refere-se ao tipo de relação estabelecida pelos conteúdos proposicionais (aquilo que é representado) em linguagem verbal e linguagem visual. Embora podendo diferir, os conteúdos são complementares, o que significa que o contributo dos dois sistemas expressa mais do que cada um dos sistemas semióticos considerados isoladamente. No excerto, a seguir, as relações de complementaridade são estabelecidas pelos dois sistemas semióticos. Os dois sistemas tecem relações de expansão entre si, isto é, o sistema de expansão existe tanto na linguagem verbal como na linguagem visual, conforme iremos demonstrar no quadro 6. 134 Introdução à Multimodalidade Quadro 6: Excerto do livro O Pardal de Espinosa Na sua relação de complementaridade, a linguagem verbal através de relações de expansão dos conteúdos semânticos 1. Linguagem verbal Todas as manhãs, o velho pardal cumpria o seu ritual. Pousava no parapeito da janela, observava o homem arqueado sobre as lentes, no interior do quarto, e depois batia levemente com o bico no vidro. Dando-se conta da sua presença, o homem levantava-se da mesa de trabalho, abria a janela e colocava sobre o parapeito pedaços de pão, de carne e de queijo que o arisco pardal depois ia transportando até ao local onde tinha as suas crias. 2. Linguagem Visual 135 Josenia Vieira e Carminda Silvestre dos seus recursos semióticos permite estabelecer relações sequenciais mediadas pelos seguintes processos materiais: O homem levantava-se da mesa de trabalho, abria a janela e colocava sobre o parapeito pedaços de pão, de carne e de queijo que o arisco pardal depois ia transportando até ao local onde tinha as suas crias. A linguagem verbal permite-nos construir pela representação um quadro mais alargado no que diz respeito aos processos. Considerando as características do sistema semiótico visual, as representações dos processos pelas imagens são simplificados comparativamente à possibilidade da complexidade de representação do sistema verbal. A representação visual pode ser realizada pela representação narrativa, que descreve os participantes numa ação, ou pela representação conceptual, esta de natureza estática em que os participantes são apresentados em termos de essência, como eles são, em termos de classe, estrutura ou significado. Nesta representação narrativa, processo transacional unidirecional, temos Ator (Espinosa) e a Meta (o pardal) interligados por um vetor (materializado pela orientação do olhar do ator e da sua linguagem corporal inclinada para o pardal, ou seja, a reta). Ao compararmos este processo da narrativa visual com os processos verbais destacados a itálico no excerto acima, verificamos que há uma ressemiotização do verbal em que a maioria dos processos são agregados. Por outro lado, os recursos semióticos visuais estabelecem relações de espaço mediadas pela localização das entidades e outros recursos semióticos no espaço. Sabemos que o espaço comunica. Conforme Svorou (1993, p. 8) refere, é da nossa natureza localizar objetos em 136 Introdução à Multimodalidade relação a outros objetos, de uma forma relativista. O ato de localizar um objeto para efeitos comunicativos implica a existência de elementos que desempenham um papel fundamental. Parafraseando uma ideia anteriormente expressa, o posicionamento dos objectos e o estabelecimento de relações entre si envolve o reconhecimento de relações (as)simétricas inscritas num espaço específico. Essas escolhas constroem sempre significados associados a cada uma das diferentes possibilidades materializadas pelo produtor de texto. Deste modo, as relações assimétricas podem ser de natureza vária, indo além daquela aqui analisada, como temos vindo a referir. Para alémdos significados construídos pelo espaço, são usados outros recursos semióticos visuais que nos permitem encontrar a expansão dos conteúdos semânticos em relação à linguagem verbal, como é o exemplo do moinho de vento característico dos Países Baixos, colocado na paisagem, visualisado através da janela aberta. Outros exemplos de expansão visual poderão ser dados, como é o caso do vestuário da época. De facto, o potencial de significado de textos multimodais é expandido quando comparado com textos constituídos apenas por um sistema semiótico. Recursos semióticos linguísticos de complementaridade (expansão). Recursos semióticos visuais de complementaridade (expansão). Relações sequenciais mediadas pelos processos. Relações de espaço mediadas pela localização das entidades no espaço. Quadro 7: Diferentes recursos semióticos 137 Josenia Vieira e Carminda Silvestre A análise aqui apresentada confirma a hipótese de que o recurso a diferentes modos transmite detalhes ou nuances que são omitidos apenas por um dos modos de representação. Em forma de conclusão, e articulando com as conclusões anteriormente apresentadas, fica claro, na contemporaneidade, os modos semióticos disponíveis por meio dos quais os produtores de texto podem fazer as suas escolhas são muitos, graças à sociedade de informação, ao seu funcionamento em rede e aos avanços tecnológicos. Os sistemas, modos e recursos semióticos são selecionados, organizados e integrados no processo de produção de texto de forma a maximizar o potencial da criação de significados e os seus efeitos, pelo que a literacia multimodal se reveste de importância fundamental para o desenvolvimento da aquisição de competências possibilitadoras de um empowerment dos cidadãos nas diversas áreas profissionais e pessoais, conforme explanado na parte 2. GÉNERO E MULTIMODALIDADE 6ª PARTE 141 Josenia Vieira e Carminda Silvestre 6. O GÉNERO COMO ELEMENTO MULTIMODAL DA ATIVIDADE HUMANA Carminda Silvestre O conceito de género apresenta nuances na sua formulação em consequência de perspectivas resultantes dos enquadramentos teóricos onde o conceito é estudado (O’ HALLORAN, 2004). O enfoque teórico determina, assim, a forma como definimos o conceito. Na classificação do género, há três vertentes que são recorrentes para essa tipificação: o conteúdo, a forma e a função (cf. Van LEEUWEN, 2005). Por exemplo, os contos de fadas são classificados de acordo com o conteúdo; no caso do quarteto de cordas, a abordagem da forma é determinante para a sua classificação. A forma de expressão do quarteto de cordas, qualquer que seja a música tocada, é classificada em conformidade com a composição da forma de expressão; o texto publicitário é classificado em conformidade com a função do texto, ou seja, o propósito do ato comunicativo ─ vender produtos ou serviços. Existe, assim, alguma fluidez na classificação, mas apesar dessa ausência de rigidez classificatória, as pessoas, regra geral, reconhecem as convenções de género. Estamos perante um campo em que a diversidade de classificação é grande como também são as abordagens teóricas aos géneros textuais. A análise do género aqui desenvolvida é fundamentalmente guiada por Martin (2008). Encontramos em 142 Introdução à Multimodalidade Martin (1984, p. 25) uma definição do conceito de género que interessa registar: “A genre is a staged, goal-oriented, purposeful activity in which speakers engage as members of our culture”. Aqui o género é considerado uma atividade, orientada para um objetivo, com um propósito comunicativo. Nesta definição, a referência de que o género é faseado implica que este seja constituído por diferentes etapas que levam o produtor de texto, pelas escolhas dos recursos semióticos (léxico-gramaticais ou visuais), a alcançar o seu objetivo geral, isto é, a função comunicativa. A abordagem da Gramática Sistémico-Funcional e da Semiótica Social ao género segue a perspetiva da função do texto nos seus múltiplos contextos, ou seja, aquilo que as pessoas fazem com os textos. Assim, as diferentes estruturas ─ início, meio e fim ─ são importantes na construção do ato comunicativo. O género tem sido encarado como mutável resultante de alterações das variáveis de registo6 (campo, relações e modo). Para Martin (1992), o género (contexto de cultura) é instanciado mediante escolhas das variáveis de registo (contexto de situação) associando-as a partes específicas da estrutura esquemática e usando a linguagem, isto é, os recursos semióticos em conformidade. Deste modo, a partir da categoria género textual, especificamente da narrativa, pretendemos mostrar que a escolha do modo implica a construção de significados diferentes. De forma sucinta, podemos afirmar que o recurso a diferentes modos é igual a diferentes significados textuais, ou seja, 6 As variáveis de registo são o campo (a natureza da prática social ─ o que está a acontecer), as relações (quem está envolvido), o modo (o papel desempenhado pela linguagem), responsáveis pela configuração textual. 143 Josenia Vieira e Carminda Silvestre significados que medeiam os significados ideacionais e os interpessoais em textuais, como passaremos a explicar ao longo do ponto seguinte. 6.1 NARRATIVA VISUAL: O INTERPLAY ENTRE MODO E ESTRUTURAS ESQUEMÁTICAS A presente parte do livro pretende explorar o conceito de narrativa visual com base numa animação (a partir de desenho) com recurso ao modo visual (linguagem visual) e apoio sonoro (para-linguagem). Enquadrado numa abordagem da Semiótica Social, iremos mostrar que a escolha do modo vai determinar as estruturas esquemáticas do género narrativo resultante da escolha do modo no qual o género é realizado. Por modo, queremos significar o papel da linguagem, ou seja, a natureza do meio pela qual os significados são construídos. De acordo com a categorização proposta por Bordwell e Thompson (2001), os filmes são classificados em ficção, documentário, experimental e animação de acordo com a natureza do filme e a forma como o material foi escolhido. Os autores acrescentam que os filmes têm uma forma básica ou um sistema de relações entre as partes que podem ser classificados de narrativa, categórico, retórico, abstrato e associativo. O corpus em análise, de acordo com essa proposta, inscreve-se no filme de animação na forma narrativa. O corpus é constituído por um filme de animação, O Dia em que o Sr. Raposo…, realizado por alunos da Escola Superior de Arte e Design, das Caldas da Rainha (ESAD.CR). Andreia Páscoa, João Cabaço e Daniel Silva foram responsáveis pelo desenho, som e animação; Hugo Guerra, pela montagem. Realizaram este trabalho no âmbito da disciplina de Animação, 144 Introdução à Multimodalidade do 5º ano do curso de Artes Plásticas, no ano letivo de 2003- 2004. Trata-se de um remake, em versão humana, da fábula O corvo e a raposa. A fábula, que remonta ao séc. VI a.C. e é atribuída a Esopo, conhece a notoriedade que hoje lhe asseguramos com La Fontaine (1621-1695), que se terá inspirado naquele autor da Antiguidade (bem como em fabulistas italianos do Renascimento) para compor esta e as restantes fábulas que integram os diversos livros dos volumes que compõem a sua famosa recolha. É sabido que La Fontaine se serve de Animais para instruir os Homens, como ele próprio diz na Dedicatória da obra que oferece ao Delfim (o primogénito de Luís XIV). Mas a versão de O corvo e a raposa que a equipa de estudantes da ESAD.CR trouxe para o cinema de animação elimina os animais da sua trama mantendo, no entanto, o propósito moral recebido da tradição, tanto grega e renascentista, quanto a que o séc. XVII francês nos legou pelopunho direto de La Fontaine. Ou seja, no final da história que acompanhamos em versão animada, a lição clássica que atravessou séculos e chegou incólume aos dias de hoje permanece a mesma e vem ao de cima: a lisonja leva à perda de quem se deixa lisonjear. Porém, a graça e a novidade deste remake residem em dois fatores principais: primeiro, no facto de a moral da fábula ser protagonizada por um casal de idosos (de quem não se esperam senão atos moralmente irrepreensíveis), ele no papel de raposa7 (ainda que sem a malícia explícita desta) e ela no de corvo (exibindo uma ponta de mal disfarçada afetação), e, 7 O nome da personagem não engana: ele é o Sr. Raposo, deixando adivinhar, nos atos que pratica, todo o programa de ação da velha raposa da fábula. 145 Josenia Vieira e Carminda Silvestre segundo, no achado feliz de ser uma dentadura a ocupar o lugar do queijo na versão tradicional, simbolizando este objeto (por relação metonímica com o queijo e de forma bem icónica) o desejo básico de comer e o meio prático de o satisfazer, e dando forma quase caricatural ao problema pessoal do Sr. Raposo que, por falta de dentes, sofre por não poder mastigar os alimentos. No âmbito do trabalho que realizamos, importa estudar tanto textos canónicos como aqueles produzidos por pessoas não especializadas, cujos produtos (textos) foram aceites, interpretados e consumidos. Dessa forma, podemos analisar e compreender como funciona a linguagem naquilo que se constitui como individual e único, mas, simultaneamente, fazendo parte do género. 6.2 O INTERPLAY ENTRE MODO E ESTRUTURAS ESQUEMÁTICAS: O CASO DO FILME DE ANIMAÇÃO “O DIA EM QUE O SR. RAPOSO…” Em termos de orientação espacial das imagens no espaço textual (filme de animação), as imagens, constituídas por frames, seguem o esquema da esquerda para a direita, à semelhança da escrita na narrativa. O óbvio desta asserção é-o apenas no âmbito da cultura ocidental. No mundo árabe, por exemplo, a orientação espacial das imagens é materializada de forma inversa, ou seja, da direita para a esquerda, à semelhança da direção da sua escrita. Como referido anteriormente, a abordagem da Semiótica Social ao género focaliza a função dos textos nas interações sociais, no que as pessoas fazem com os textos. Neste pressuposto, as sequências das estruturas “princípio-meio-fim” ajudam a ordenar as práticas comunicativas. As sequências das ações comunicativas estão enquadradas em práticas sociais que 146 Introdução à Multimodalidade contêm outros elementos como, por exemplo, atores, tempo, ou local, entre outros. Perguntas como “o que acontece aqui?”, “quem são os atores?”, “quem é responsável pela ação?”, “quem sofre a ação?”, “onde?”, “quando?” são algumas das questões colocadas mais frequentemente na narrativa. Por conseguinte, na análise da narrativa visual em estudo iremos dar respostas a estas questões pela leitura das frames, consideradas importantes no âmbito das estruturas esquemáticas e no avanço da história. Antes de passarmos para a análise, lembramos que Labov, citado por van Leeuwen (2005, p. 125-6), apresenta as diferentes fases da narrativa como género na seguinte sequência: (i) o resumo, que inicia a história e contém um sumário ou indicação do tópico para atrair a atenção do leitor; (ii) a orientação, que introduz o cenário ─ quem está envolvido, quando, onde ─ e o acontecimento, que faz avançar a história. Elementos de orientação podem ocorrer mais tarde na história, quando novas pessoas, locais e coisas são introduzidas; (iii) a complicação, que é o acontecimento que constitui o âmago da história; (iv) a avaliação, que pode ocorrer em vários momentos da história, quando o produtor de texto responde a questões como, por exemplo, “por que razão devemos achar isto interessante?”; (v) a resolução, que fornece o acontecimento final da história; (vi) a coda, que não ocorre sempre, mas que move do tempo da história para o tempo de a contar e fornece a sua relevância aos leitores. Uma das questões a considerar na narrativa visual é identificar se as estruturas esquemáticas constitutivas da narrativa se aplicam ao modo visual. Considerando as estruturas propostas por Labov, das seis fases, há três que são obrigatórias para podermos considerar a narrativa como género e sentirmos a existência de uma apropriação do produtor de texto que vai ao 147 Josenia Vieira e Carminda Silvestre encontro das nossas expectativas e daquilo que conhecemos do mundo: a orientação, a complicação e a resolução. Assim, para falarmos em narrativa visual temos de identificar as estruturas obrigatórias e as estruturas facultativas, que poderão variar. Embora o filme de animação seja um texto dinâmico por natureza, a metodologia de análise usada é a de um texto estático. Em termos metodológicos, iremos recorrer à paráfrase do texto multimodal, que interpretamos do modo visual, pois essa paráfrase ajuda-nos a percorrer as frames que compõem o filme e a recontar, a partir destas e de forma mais desenvolvida, a sua história. Vamos recorrer a ela como meio de facilitar o comentário à estrutura narrativa da história e à evolução cronológica dos principais acontecimentos nela ocorridos (a reconstituição da sequência de ações). A primeira parte da animação é dedicada à orientação. Esta é constituída pelo cenário (setting) de um bairro típico, que poderá ser Lisboa antiga (fig. 32), com as suas casas encavalitadas umas nas outras, ruas estreitas, escadarias, praças, miradouros e uma população envelhecida, em que os homens têm como ponto de encontro as praças ou pequenos jardins para jogarem às cartas e as mulheres, de forma mais individualizada, se dedicam às tarefas domésticas, de portas e janelas bem abertas. Tanto homens como mulheres coabitam com gatos e pombos nestes bairros populares, que vão alimentando ao sabor da sua solidão compassiva. 148 Introdução à Multimodalidade Figura 32: Bairro típico de Lisboa antiga A par do cenário, a narrativa tem as suas personagens. O Sr. Raposo, personagem principal da história, nomeado através do título do filme de animação, faz parte dessa população envelhecida, com poucos recursos económicos. O Sr. Raposo desloca-se todos os dias ao mesmo miradouro para, solitariamente, apanhar sol enquanto tenta mordiscar umas bolachas. Ele tem por única companhia os pombos daquele local, que acorrem em bando ao seu encontro para comerem as bolachas que o Sr. Raposo não consegue mastigar por falta de dentição. A narrativa visual trata fundamentalmente de ações. Como tal, os processos usados são predominantemente materiais (verbos de fazer) e comportamentais (verbos de comportamento) para mostrar o que está a acontecer (ver quadro 8). Halliday 149 Josenia Vieira e Carminda Silvestre (1994) através da categoria da transitividade, na qual o falante manifesta a sua experiência do mundo (metafunção ideacional da linguagem), classifica os tipos de processos em materiais, mentais, verbais, relacionais, comportamentais e existenciais. O estudo da transitividade permite-nos, pela oração (unidade básica de análise da léxico-gramática), analisar a representação de quem faz o quê, a quem, e as respetivas circunstâncias. Figura 33: O Sr. Raposo dá comida aos pombos A forma que dá origem ao enredo é a série de sequências em que a motivação do Sr. Raposo se constrói com base nas semelhanças e repetições, diferenças e variação da conhecida fábula A raposa e o corvo. A personagem principal caminha até ao miradouro e tenta levar à boca as suas bolachas. Só depois de várias tentativas inglórias para mastigar, ele resolve dá-las aos pombos. Nesta frame, os participantes são o Sr. Raposo (ator) e 150 Introdução à Multimodalidade os pombos (alvo). No processomaterial (fazer), o ator é a pessoa ou objeto que pratica a ação, enquanto o alvo é quem (pessoa ou objeto) é atingido pela ação. Neste processo, temos um alvo pelo que o processo é denominado ação transaccional unidirecional. Em processos materiais em que o alvo é inexistente, estes são classificados de ação não transacional. Figura 34: O Sr. Raposo está triste por não ter dentes para comer as bolachas A estrutura esquemática que institui a complicação é constituída pela consciência que o Sr. Raposo tem em relação à sua triste condição: a de um velho desdentado, incapaz de saborear umas simples bolachas. Um dia, o Sr. Raposo é arrancado da tristeza em que está mergulhado (fruto da sua desconsolada condição de desdentado) pelo cantarolar de uma voz feminina (fig. 35). 151 Josenia Vieira e Carminda Silvestre Figura 35: O Sr. Raposo ouve alguém cantar Seguindo o som daquela voz maviosa é surpreendido pela visão de uma velhota que sacode o tapete à janela (fig. 36). Figura 36: Sr. Raposo caminha em direção ao local de onde ouve cantar 152 Introdução à Multimodalidade Cabe aqui fazer um parêntesis para lembrar que a nossa intenção é mostrar como esta narrativa visual tem um esquema constituído por estruturas esquemáticas obrigatórias, fazendo das ausentes as estruturas esquemáticas opcionais. A variação é determinada nas escolhas feitas pelo produtor de texto relativamente ao modo. Assim, escolhido o modo, urge determinar quais as estruturas obrigatórias, quais as opcionais, quais as estruturas que podem ocorrer mais de uma vez ao longo do texto, qual a ordem fixa e a ordem variável das respetivas estruturas. Importa referir também que a paráfrase ajuda-nos a trazer à evidência um aspeto que não deverá ser esquecido quando se trata de observar narrativa em filme. Recontando a história com base na sucessão de imagens em “frames”, é mais difícil esquecer que o efeito da tridimensionalidade criado dentro do mundo da história é obtido tanto por meio de linhas, cores, ângulos, formas, etc. (que têm como quadro de referência o jogo de claro/escuro bidimensional criado no espaço do ecrã) como por meio de um sistema de sons (palavras, música e ruídos) que sofrem transformação tanto no mesmo referido espaço do ecrã como na relação dos objetos entre si no interior da história. Este último ponto é particularmente importante na narrativa em causa, já que ela joga na ausência de palavras, na opção explícita de eliminar do universo do narrado a linguagem verbal. Em alternativa, aposta na criação de um discurso “articulado” por sons vocais indiscerníveis, e em música, cujo efeito para o sentido geral da história advém da articulação entre intensidade (pitch) e contraste auditivos. É portanto preciso ouvir para se perceber o que se passa no plano da diegese desta animação e, nesse sentido, o som nesta narrativa visual animada levanta também questões de narração (ou de discurso narrativo), que, 153 Josenia Vieira e Carminda Silvestre sendo fundamental para a criação de significado, não será analisado no presente estudo. O Sr. Raposo aproxima-se, ouve a canção que a senhora canta e aplaude (fig. 37). Figura 37: O Sr. Raposo lisonjeia a autora da cantoria Repara na sua bela dentadura. O Sr. Raposo encontra na autora da cantiga, a segunda personagem do enredo (uma senhora também idosa, provavelmente viúva e sozinha), uma fonte de inspiração para ultrapassar aquilo que é o seu problema e que constitui a complicação do enredo. Assim, lisonjeia a senhora, pedindo-lhe para cantar mais e mais alto. Tomada de brio e vaidade, a velhota canta mais alto e tanto e tão mais alto que, boca aberta, inadvertidamente deixa cair a dentadura da janela abaixo (fig. 38). 154 Introdução à Multimodalidade Figura 38: Cedendo aos elogios, a senhora canta alto Nesse momento, o Sr. Raposo vê a oportunidade que não pode perder: apodera-se da dentadura da mulher e coloca-a na sua própria boca (fig. 39). Figura 39: O Sr. Raposo apanha a dentadura 155 Josenia Vieira e Carminda Silvestre A resolução foi materializada por meio da dentadura da senhora que caiu, enquanto cantava, e imediatamente apropriada pelo Sr. Raposo. Figura 40: O Sr. Raposo está feliz com a sua dentadura nova Obtido o objeto de desejo, a história termina com o Sr. Raposo a regressar às suas rotinas, mas mais feliz por ter resolvido o seu problema. Regressa ao banco do jardim para, na companhia dos pombos seus amigos, poder, enfim, mastigar e engolir as tão desejadas bolachas (fig. 41). Visualmente, essa resolução é-nos dada pelo travelling inicial e final sobre a cidade ─ deslocamento físico da câmara sobre o espaço das ações da personagem, assinalando a resolução do seu problema de forma plana e sequencial a fim de percebermos que tudo o que vimos não passou de um episódio na vida (rotineira) do Sr. Raposo. 156 Introdução à Multimodalidade Figura Linguagem visual (descrição) Classificação Estrutura esquemática 1 bairro típico de Lisboa antiga Cenário orientação 2 o Sr. Raposo dá comida aos pombos quem; onde; processo material orientação 3 o Sr. Raposo está triste por não ter dentes para comer as bolachas Processo relacional complicação 4 o Sr. Raposo ouve alguém cantar processo mental complicação 5 o Sr. Raposo caminha em direção ao local de onde ouve cantar processo material complicação 6 o Sr. Raposo lisonjeia a autora da cantoria processo comportamental complicação 7 cedendo aos elogios, a senhora canta deixando cair a dentadura processo comportamental resolução 8 o Sr. Raposo apanha a dentadura processo material resolução 9 o Sr. Raposo está feliz com a sua nova dentadura Processo relacional resolução 10 o Sr. Raposo regressa à sua rotina processo material resolução Quadro 8: Estruturas esquemáticas da narrativa visual 157 Josenia Vieira e Carminda Silvestre Figura 41: O Sr. Raposo regressa à sua rotina, feliz, porque já tem dentes para mastigar Esquematicamente apresentamos o enredo do filme no quadro 8, permitindo, desta forma, visualizar as fases constitutivas do género visual com a identificação das imagens, a legenda correspondente à linguagem visual, o respetivo processo e a identificação da fase. Uma narrativa puramente no modo visual poderá não contemplar todas as estruturas de uma narrativa que recorre aos dois sistemas de linguagem ─ verbal e visual, por exemplo. Para além do modo, o meio (medium) como este é organizado implica uma variação. Uma narrativa verbal escrita ou oral implica escolhas que vão determinar a variação relativamente ao pré- 158 Introdução à Multimodalidade género8. Também o meio de suporte digital ou suporte papel são determinantes no género. Uma narrativa construída para a criação de um jogo digital pode determinar uma variedade no género, em relação a uma narrativa em suporte papel. Como referido anteriormente, e retomando a ideia de que o género segue a perspectiva da função do texto nos múltiplos contextos (aquilo que as pessoas fazem com os textos), um dos objetivos da narrativa é contar uma história que envolve personagens integradas num determinado contexto. As diferentes estruturas ─ início, meio e fim ─ são importantes na construção do ato comunicativo. O estudo do modo refere o papel que a linguagem desempenha na realização da ação social. Este influencia os significados textuais, os significados que ao nível ideacional e interpessoal constituem o textual, fazendo da linguagem usada uma variante fundamental tanto para o cotexto como para o contexto. A partir da narrativa visual O dia em que o Sr. Raposo… e a fábula A raposa e o corvo, apresentamos de forma sucinta, no quadro 9, três dimensões do modo que, alterada uma dessas dimensões, contribuirápara uma variedade no género e, consequentemente, nas estruturas esquemáticas que o constituem, bem como na léxico-gramática usada ou, melhor 8 Swales (1993, p. 61), por exemplo, no seu livro Genre Analysis refere a narrativa como um pré-género, definindo-o da seguinte forma “A narração (falada ou escrita) opera através de um quadro de sucessões temporais nas quais, pelo menos, alguns dos acontecimentos são reacções a acontecimentos anteriores. Outras características da narrativa são aquelas em que os discursos tendem a ser fortemente orientados para os agentes dos acontecimentos descritos, em vez de ser para os próprios eventos, sendo a estrutura tipicamente a de ‘um enredo’”. (Tradução nossa). 159 Josenia Vieira e Carminda Silvestre dizendo, nos recursos semióticos. Assim, podemos dizer que em ambos os textos (O dia em que o Sr. Raposo… e a fábula A raposa e o corvo) o canal usado é gráfico. Outra dimensão do modo é o meio. O dia em que o Sr. Raposo… é visual, enquanto a fábula é verbal. Esta dimensão vai determinar uma mudança no género narrativo. Estamos perante dois sistemas semióticos com características e potencialidades diferentes. Por conseguinte, as características léxico-gramaticais pelas quais os propósitos das fases são realizados na fábula não são iguais às características dos recursos semióticos através dos quais os propósitos das diferentes fases são realizados na animação. Assim, se for introduzida uma mudança nas variáveis canal, meio e papel, a linguagem do texto, como produto, necessariamente mudará também, contribuindo, dessa forma, para uma variação no género. Dimensões Sr. Raposo (narrativa visual) A raposa e o Corvo (narrativa verbal) canal gráfico gráfico/fónico meio visual verbal (escrito/falado) papel constitutivo ─ contar uma história humoristicamente constitutivo ─ instruir os homens Quadro 9: Dimensões do modo A possibilidade de diversidade de tipos específicos de narrativa pode ocorrer, variando cada uma da norma pré-género. 160 Introdução à Multimodalidade CONCLUSÕES Apesar das fraquezas resultantes de trabalharmos o filme de animação, um texto dinâmico, recorrendo a uma metodologia de análise de um texto estático, com as inevitáveis omissões de outros sistemas semióticos que se articulam na produção de significados, acreditamos que o presente trabalho alcançou o seu objectivo principal: mostrar como a variável modo é determinante na realização das estruturas esquemáticas do género narrativa visual. Aqui, as escolhas semióticas estão construídas visualmente e com recursos sonoros não verbais. A imagem visual é o meio que o produtor de texto usa de forma a construir os significados interpretados pelo leitor/espectador. Cabe, assim, ao espectador, com base no conhecimento que tem do mundo, e perante o enredo, a organização do material no filme, criar a história individualmente com base nos dados do enredo. Em forma de conclusão, e porque trabalhámos o remake da fábula A raposa e o corvo, cabe dizer que a felicidade do Sr. Raposo foi conseguida à custa da infelicidade alheia. Porém, como a vaidade é um vício condenável e foi por causa dela que quem não soube resistir-lhe perdeu o que tinha de tão precioso, a ação parcialmente reprovável do Sr. Raposo que fica com aquilo que lhe não pertence é justificada, e mesmo suplantada pela função moral corretora que a sua “transgressão” acaba por adquirir no contexto em que ocorre. No entanto, mais do que elaborarmos sobre o ensinamento a retirar da história, quisemos debruçar-nos sobre a importância do modo na construção da narrativa, objetivo principal deste capítulo. As estruturas esquemáticas identificadas na análise são constituídas por atores, lugares, ações e tempo. As respostas colocadas nas perguntas 161 Josenia Vieira e Carminda Silvestre mais frequentes na narrativa foram mediadas pelas imagens e sons mostrando quem fez o quê, a quem. 163 Josenia Vieira e Carminda Silvestre REFERÊNCIAS BALDRY, A. (ed.) Multimodality and multimediality in the distance learning age. Campobasso, Italy: Palladino Editore, 2000. BALDRY, A.; THIBAULT, P. J. Multimodal transcription and text analysis. London: Equinox, 2006. BARTHES, R. A mensagem fotográfica, In: Teoria da cultura de massa, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. BAUMAN, Z. Amor líquido. Sobre a fragilidade dos laços humanos. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2003. BAUMAN, Z. Vidas para consumo. 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CARMINDA SILVESTRE Doutorada em Linguística Aplicada pela Universidade de Lisboa. Professora Coordenadora na Escola Superior de Tecnologia e Gestão (ESTG), do Instituto Politécnico de Leiria, Portugal. Desenvolve trabalho de investigação no âmbito da Análise Crítica do Discurso, Semiótica Social e Gramática Sistémico-Funcional aplicada ao Discurso Empresarial, Discurso da Marca, Educação e Artes. Investigadora no Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC), Portugal. Neste livro, a Gramática Sistêmico-Funcional, a Semiótica Social e a Análise de Discurso Crítica, enquadramentos teóricos aqui usados para o estudo da Multimodalidade, partilham entre si uma perspectiva de linguagem como constructo social, em que linguagem e sociedade se modelam de formas bidirecionais, ou seja, a linguagem modela a sociedade e é modelada por esta.multimodal, pois acreditamos que as múltiplas semioses desempenham relevante papel na construção dessas camadas de reconfiguração da linguagem, tendo em vista que as representações realizadas por meio das imagens e das cores, por exemplo, aproximam mais o discurso representado da realidade. Particularmente Fairclough (2003a), para explicar como é construída a representação do significado, emprega a palavra mediação com o propósito de marcar o movimento do significado de uma prática social a outra, assim como de um evento a outro ou de um texto a outro, o que forma um processo discursivo complexo. Esses processos, por sua vez, ocorrem em redes de textos, sujeitas a transformações em seus contextos sociais e culturais, podendo também se tornarem agentes de mudanças nas diferentes redes ou domínios sociais da linguagem. 18 Introdução à Multimodalidade Já a respeito da representação multimodal do significado no discurso, Kress e van Leeuwen (2006 [1996], p. 2) afirmam que a representação sígnica é sempre múltipla, negando-lhe, por esse princípio, a existência fixa e unívoca do signo. Acreditam que os significados são construídos por agentes do discurso de modo intencional e não arbitrário e por meio de multissignos, que enfeixam uma gama variada de semioses. Desse modo, a defesa da Linguística tradicional (que primeiramente se identificou com Saussure no século passado, defensor de uma Linguística como parte da Semiologia (a ciência geral dos signos) seria impossível segundo a proposta de Kress e van Leeuwen, pois esses teóricos se alinham com os princípios da Sistêmica Funcional de Halliday, marco inspirador da Teoria Multimodal. Vejamos no original o que Kress e van Leeuwen (2006 [1996]) declaram a respeito da Gramática Sistêmico- Funcional, desenvolvida por Michael Halliday. Assim dizem: É o caso em que nosso ponto de partida tem sido a gramática sistêmico-funcional do Inglês, desenvolvida por Michael Halliday, embora atentássemos para o uso dos aspectos semióticos gerais em vez de suas especificidades linguísticas como a base para a nossa gramática. Como Ferdinand de Saussure havia feito no início do século passado, vemos a linguística como parte da semiótica, mas não vemos a linguística como a disciplina que pode fornecer um modelo pré- fabricado para a descrição dos modos semióticos além da linguagem. (KRESS e VAN LEEUWEN, 2006 [1996], p. 1) 1 (tradução nossa). 1 It is the case that our starting point has been the systemic functional grammar of English developed by Michael Halliday, though we had and have attempted to use its general semiotic aspects rather than its specific 19 Josenia Vieira e Carminda Silvestre Logo, com as revolucionárias transformações nos gêneros discursivos, provocadas pelas tecnologias e pela multimodalidade, as práticas discursivas multiplicaram-se e passaram a cooperar também para a feição reconfigurada desse novo discurso, que se apoiou em muitos aspectos na Sistêmica Funcional. Nesse sentido, vale ainda mencionar a incorporação aos estudos do discurso do conceito de gramática, capturado da Teoria Sistêmico-Funcional em substituição aos conceitos tradicionais. A esse respeito, assim se posiciona Halliday: A gramática vai além de regras de correção. É um meio de representar padrões de experiência... Possibilita aos seres humanos construírem uma imagem mental da realidade para dar sentido a sua experiência sobre o que está acontecendo ao seu redor e dentro deles (HALLIDAY, 1985, p. 101) 2 (tradução nossa). Concordamos plenamente com Halliday, quando defende a gramática de uma língua como sendo mais do que regras de correção, devendo ser o meio de representar os padrões culturais de experiência, possibilitando ao sujeito do discurso retratar a realidade e, sobretudo, atribuir sentido às experiências que ocorrem ao seu derredor e também em seu interior. linguistically focused features as the grounding for our grammar. As Ferdinand de Saussure had done at the beginning of the last century, we see linguistics as a part of semiotics; but we do not see linguistic as the discipline that can furnish a ready-made model for the description of semiotic modes other than language (KRESS e VAN LEEUWEN, 2006 [1996], p. 1). 2 Grammar goes beyond formal rules of correctness. It is a means of representing patterns of experience… It enables human beings to build a mental picture of reality to make sense of their experience of what goes on around them and inside them (HALLIDAY, 1985 p. 101). 20 Introdução à Multimodalidade De posse dessa posição teórica, agregamos ainda a proposta de Kress e van Leeuwen, a Teoria Multimodal do Discurso, cujo principal alicerce se fundamenta na gramática do design visual, apresentada na obra Reading images (KRESS e VAN LEEUWEN, 2006 [1996]). Desse modo, acreditamos que a Teoria Multimodal do Discurso é capaz de incorporar e de dar conta das mudanças na linguagem, provocadas pela globalização e pelas novas tecnologias, permitindo-nos tratar do discurso por essa perspectiva, conforme as palavras de seus mentores: O mesmo ocorre com a gramática do design visual. Como as estruturas linguísticas, as estruturas visuais apontam para interpretações particulares das formas de experiência de interação social. Até certo ponto, estas também podem ser expressas linguisticamente. Os significados pertencem à cultura, em vez de pertencerem a modos semióticos específicos. (KRESS e VAN LEEUWEN, 2006 [1996], p.2) 3 (tradução nossa). Entendemos que os discursos nas diferentes línguas são constituídos em culturas particulares. Logo, só uma abrangente imersão cultural permitirá a leitura significativa desses discursos. Assim, quando Kress e van Leeuwen dizem que os significados pertencem à cultura e não a um modo semiótico específico, concordamos plenamente, pois, se no discurso verbal já acontece isso, quanto mais quando tratamos de significados construídos visualmente. Desse modo, só será possível realizar uma leitura produtiva em diferentes modos semióticos se conseguirmos, 3 The same is true for the grammar of visual design. Like linguistic structures, visual structures point to particular interpretations of experience forms of social interaction. To some degree these can also be expressed linguistically. Meanings belong to culture, rather than to especific semiotic modes (KRESS e VAN LEEUWEN, 2006 [1996], p. 2). 21 Josenia Vieira e Carminda Silvestre efetivamente, realizar uma leitura multimodal completa por meio de uma abordagem que contemple tanto a cultura local quanto a global. Desse ângulo, a Análise de Discurso Crítica, defendida principalmente por Fairclough (1992, 2003a, 2006), para quem a linguagem é resultado da prática social de um contexto globalizado, e pela Teoria Multimodal do Discurso de Kress e van Leeuwen (2006 [1996]) e de van Leeuwen (2005), que acreditam ser o significado da linguagem representado por outras semioses de cunho multimodal, recebemos as condições teóricas e práticas para lidar adequadamente com os textos multimodais da atualidade, fruto das mudanças provocadas pelas tecnologias e pela globalização. Para o exame do discurso em uma perspectiva semiótica, discutida inicialmente em Fairclough (1992, 2003a, 2003b) e em Chouliaraki e Fairclough (1999), encontramos a defesa de que o discurso é o reflexo contínuo de práticas sociais e discursivas, sujeito permanentemente às mudanças sociais, desempenhando o papel de agente duplo de mudança, porque, ao mesmo tempo em que é mudado pelo social, também age como agente modificador desse mesmo social e, além disso, o discurso estásimultaneamente sujeito às influências das múltiplas semioses, presentes nos demais discursos multimodais que nos circundam. Portanto, ao examinarmos o discurso por meio dessa vertente crítica, temos acesso aos princípios teóricos e às categorias que nos permitem analisar o discurso representado nesses múltiplos processos e também nas relações estabelecidas com outras redes discursivas. Desse modo, o conceito de prática discursiva introduzido por Fairclough (1992, 1995, 1996, 2006) permite-nos vincular a 22 Introdução à Multimodalidade análise diretamente às formas de produção, de distribuição e de consumo de textos e, no caso da globalização e dos modernos produtos tecnológicos, podemos ligá-los às novas práticas discursivas, que culminam nos discursos multimodais (KRESS e VAN LEEUWEN, 2001, 2006 [1996]), cujos aspectos devem também, em última instância, ser considerados na Análise de Discurso Crítica. 1.2 DISCURSO E GLOBALIZAÇÃO Para dar conta de discutir “Discurso e globalização”, temos de apreciar ainda a posição de Fairclough (2000, 2002, 2006) com relação a discurso e à globalização. Para ele, discurso é um dos componentes da globalização, mais do que isso, considera-o como parte dela, pois Fairclough considera a globalização um processo discursivo extremamente objetivo para tratar do mundo real, o qual é descrito nas ciências sociais por meio de um discurso com retórica específica, altamente representativo da globalização, que costuma ser amplamente usado para legitimar as ações e as políticas dos poderes hegemônicos e, para isso, emprega argumentos carregados de ideologia que contribuem para marcar os limites do domínio e os contornos do mapa do poder, sustentados por práticas discursivas específicas, compartilhadas por membros das comunidades discursivas. Consideramos também que Fairclough (2006), ao trazer a globalização para o centro da discussão, defende a ideia de que o discurso representa a globalização porquanto contribui com informações para a sua melhor compreensão. Chama-nos atenção também para o fato de que o discurso pode, muitas vezes, ser enganoso e mascarar a globalização, o que pode confundir e criar errôneas impressões sobre ela. Ademais, a 23 Josenia Vieira e Carminda Silvestre retórica do discurso empregada pela globalização pode construir uma visão que pode justificar e também legitimar ações particulares tanto de agências sociais como de seus agentes. Então, com o advento da globalização, cada vez mais se fortalece uma inovadora prática discursiva ─ a recontextualização do discurso ─, denominação atribuída por Fairclough (2006) ao processo discursivo pelo qual textos específicos incorporam outros textos ou agregam seletivamente práticas sociais, discursos, gêneros e estilos que com eles se relacionam por meio da (de)locação e da (re)locação. Com suas pesquisas, Fairclough (2006) concluiu que as mudanças nas práticas discursivas ocorrem principalmente por meio da recontextualização, que se expressa por intermédio de um hibridismo intertextual e interdiscursivo, presente em elementos recontextualizados que estabelecem novas articulações discursivas, às quais adjungem outros elementos de discursos já existentes. Esses, por sua vez, transformam-se em novos modos discursivos, agregados aos novos gêneros e estilos do discurso. Após esse recorte sobre discurso e globalização, retomamos novamente ao ponto de vista de Poster (1996), que defende que a linguagem, para se reconfigurar em quaisquer práticas discursivas, deve refletir as mudanças decorrentes dos usos dos media na comunicação, os quais contribuem para estabelecer, divulgar e reproduzir ideologias, capazes de sustentar ou de manter desigualdades e injustiças sociais, além de revelar as relações de poder presentes no discurso, aspecto também defendido por Fairclough (1989). Por esse motivo, enquanto Fairclough (2006) acredita que a recontextualização ou a delocação do discurso constitui a principal fonte de mudança da linguagem, Poster defende que a 24 Introdução à Multimodalidade linguagem está sujeita à reconfiguração no momento que determinado evento discursivo é mediado por outro meio, como por exemplo, quando um discurso é proferido diante das câmeras da TV e depois esse mesmo discurso é colocado na internet ou publicado nos jornais do país, ou é caricaturado. A esses casos, Poster denomina reconfiguração, mudança a que o discurso está sujeito por trocar de mídia para ser distribuído (nessas situações, entram em ação outros gêneros discursivos, incluindo-se a participação da multimodalidade por meio de múltiplas semioses) e Fairclough, por seu turno, trata esse mesmo processo ─ como delocação ou recontextualização do discurso. Decerto qualquer mudança dos media para difundir certo evento discursivo pode ser considerada um agente de reconfiguração da linguagem, segundo a perspectiva de Poster e, ao falarmos em globalização e em mudanças provocadas por esse discurso, entramos em sintonia com o proposto por Fairclough (2006), que nomeia esses mesmos processos como delocação ou recontextualização. Além dessas duas posições, vale mencionar o ponto de vista de Iedema (2003), que considera esses mesmos fatores de mudança da linguagem como uma ressemiotização do discurso, responsável, em última instância, pelas combinações híbridas dos textos contemporâneos. Esse conceito será examinado mais adiante na 5ª parte do presente volume. Logo, com as mudanças proporcionadas pela globalização, pelas mídias impressas e pela publicidade, juntamente com o advento das novas tecnologias para mediar a produção do discurso on-line, abriram-se novas possibilidades, como a variação e o tamanho dos tipos gráficos, os modernos programas para desenho, sem falar dos potentes computadores que revolucionaram a escrita não só nos meios eletrônicos, mas 25 Josenia Vieira e Carminda Silvestre também na adesão às novas semioses para a produção do sentido. Todo esse sofisticado aparato tecnológico motivou a construção de arrojados designs gráficos, e de fotocomposições cada vez mais comuns nos e-books e nos fotolivros, que, com o elevado número de usuários, tornaram-se cada vez mais acessíveis às grandes massas. Por tudo isso, as novas tecnologias, associadas aos avanços da sociedade da informação, à sociedade em rede (CASTELLS, 2003) provocam mudanças aceleradas na recontextualização do discurso. E, embora muitos teóricos tratem dessas duas sociedades como apenas uma, Cardoso (2006) distingue a sociedade de informação da sociedade em rede. Vejamos: Sociedade de Informação e Sociedade em Rede são designações para realidades diferentes e mesmo a sua formulação trabalhada num contexto institucional e político com objetivos claros de mobilização estratégica das sociedades e cidadãos, procurando valorizar uma dimensão comum a diversas esferas da actividade social. Já a segunda tem por objectivo distinguir um modelo de organização social a partir da investigação e análise das nossas sociedades nas suas dimensões económicas, políticas e culturais (CARDOSO, 2006, p. 53). Concordamos com Cardoso quando declara que essas duas sociedades têm raízes diferentes, sendo a sociedade de informação um produto institucional e a sociedade em rede resultado de um modelo social de organização, mas para o propósito para o qual estamos trazendo estes conceitos, cabe reforçar que ambas as sociedades desempenham relevante papel para a realização dos novos desenhos do discurso contemporâneo. 26 Introdução à Multimodalidade Em face disso, o desenvolvimento dessas duas sociedades ensejou saudável discussão sobre o modo como a sociedade se adequou às novas práticas de discurso, principalmente após o advento da World Wide Web (www), pois o rápido avanço das tecnologias passaram a ofereceraos sujeitos e às instituições acesso imediato, em tempo real, a páginas on-line, aos softwares e a toda sorte de dados, motivando transformações no modo de viver das sociedades, cujas práticas e gêneros discursivos tiveram de passar por profunda revisão para acompanhar os novos tempos. Portanto, com a globalização, a revolução tecnológica acelerou-se, fazendo com que o mundo globalizado reconfigurasse, recontextualizasse não só as relações sociais, como também as práticas discursivas que, agora, têm de ser capazes de estabelecer comunicação em diferentes mundos com diferentes sujeitos, agora organizados em redes, e muitos com uma espécie de second life (segunda vida) extremamente ativa em mundos digitais. Todas essas mudanças estabeleceram novas perspectivas discursivas que já estão em uso em diferentes instâncias da linguagem. Ademais, devemos mencionar as práticas discursivas alimentadas pela internet, considerada uma ferramenta contemporânea poderosa tanto para o trabalho, como para o lazer e para o estímulo às relações sociais, embora haja muitos críticos à internet que a consideram a responsável pelo enfraquecimento dos laços afetivos nos relacionamentos humanos, uma vez que sujeitos raramente constroem relações pessoais duradouras. Conforme Castells (2003, p. 108), os sujeitos ligam-se e desligam-se da rede, podendo mudar rapidamente de interesses, além de poder esconder ou omitir sua verdadeira identidade, todavia, mesmo com esse caráter efêmero da comunicação 27 Josenia Vieira e Carminda Silvestre digital, Castells (2003) defende o ciberespaço como um espaço fortalecedor dos laços familiares a distância. Particularmente, chamamos a atenção para o fortalecimento dos laços familiares, que, graças às conversas virtuais, aos e-mails e às inúmeras possibilidades de falar gratuitamente via computador, membros de uma mesma família podem compartilhar alegrias e pesares de seu dia a dia em todos os espaços globais. Tem sido prática frequente famílias inteiras iniciarem-se nas práticas digitais e reformularem as suas práticas discursivas e, então, serem incluídas no mundo da informação e da tecnologia. Às novas práticas discursivas, portanto, deve-se imputar o fortalecimento das relações familiares, as quais gradativamente tornam-se mais comuns graças ao uso diário de ferramentas digitais, fazendo com que vasta gama de sujeitos iletrados digitalmente, agora, possam usá-las. Sendo, em consequência, grande fator de fortalecimento dos laços a distância quer pela prática do uso de e-mails, quer pelo uso das redes sociais, com “presença” marcante, apesar da separação geográfica. Também Castells (2003), ao analisar um dos efeitos da interatividade virtual, chama-nos a atenção para o surgimento de novos suportes tecnológicos voltados à sociabilidade, traduzido como comunidades virtuais, as quais Castells (2003) define como redes de laços interpessoais que proporcionam sociabilidade, apoio, informação, senso de integração e identidade social. Ao fim e ao cabo, todas essas vertiginosas mudanças, favoreceram a estabilização dessa linguagem híbrida, construída por combinação de palavras, de imagens, de cores, de sons e até de movimentos, tudo isso sob a batuta de uma nova geração de designers gráficos, cuja mobilidade e facilidade criadora para lidar com essas múltiplas semioses multiplicaram cada vez mais 28 Introdução à Multimodalidade o uso dessa linguagem multimodal, que tende a se tornar dominante (KRESS eVAN LEEUWEN, 2006 [1996]). Esses novos fazedores de signos, ou melhor, esses agentes ativos da construção de significados, tornaram-se os novos responsáveis pelo sentido e, como bem declaram Halliday e Hasan (1989), um texto não é construído de palavras e de sentenças, mas de significados, pois se não fosse pelo abundante uso da escrita e da imagem, a fala estaria ainda restrita aos contextos interacionais face a face. Semelhante hibridismo ao que ocorre nas relações entre texto escrito e imagem encontramos na linguagem do cinema e da televisão e, consequentemente, podemos dizer que a linguagem hegemônica deste século não reside apenas no uso da imagem, nem apenas da palavra, mas na ocorrência de ambas, na sua hibridização, combinadas ainda com outras semioses, gerando textos multimodais, conforme passaremos a explicar mais adiante. Para a análise dessas mudanças, diante da impossibilidade de examinar toda a gama de tecnologias envolvidas na produção dos novos discursos, optamos por analisar um anúncio publicitário, cuja atenção se centrou principalmente no exame da reconfiguração da linguagem publicitária e midiática. Os resultados sinalizam para a necessidade de avançarmos na investigação da linguagem vinculada às inovadoras práticas sociais, à multimodalidade e aos aspectos da globalização, pois, ao darmos ênfase à linguagem verbal ao longo da tradição dos estudos linguísticos, as pesquisas concentraram-se apenas em dois modos de linguagem: a fala e a escrita. Então, essa visão reducionista para a linguagem retrata somente a percepção linguística e leva-nos a negar as múltiplas mudanças do discurso contemporâneo, que 29 Josenia Vieira e Carminda Silvestre tende a uma visão muito mais semiótica, que passa a incorporar ao discurso outras semioses que não a fala e a escrita. No intuito de explicitarmos mais o que estamos defendendo, analisaremos uma peça publicitária na qual aplicaremos os princípios dessa proposta, tendo em vista que a ADC, ao lado da Teoria Multimodaldo Discurso, são os principais enfoques teóricos utilizados para esta análise, pois essas teorias oferecem categorias possíveis para analisar certos aspectos relacionados aos processos de produção, de distribuição e de consumo dos textos, resultantes da construção de uma rede complexa de significados sociais, responsáveis pelo significado dos discursos contemporâneos, organizados em cadeias de gêneros, cuja descrição aprofundada está em Fairclough (2003a, p. 31), que descreve como os diferentes gêneros se ligam com certa regularidade, ao mesmo tempo que envolvem transformações sistemáticas, formadoras de cadeias de gêneros que contribuem para as ações que excedem quaisquer diferenças provocadas pelo espaço e pelo tempo, pois assim ligam diferentes eventos e práticas sociais, em diferentes espaços geográficos e em diferentes tempos, sendo esse o traço essencial para definir a globalização contemporânea. De igual modo, Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 6,) propõem uma visão dialética do processo social, em que o discurso é um “momento”, entre discurso/linguagem; poder; relações sociais; práticas materiais; instituições/rituais e crenças/valores/desejos. Cada momento internaliza todos os outros ─ para que assim o discurso seja uma forma de poder, uma modalidade de formação de crenças/de valores/de desejos de uma instituição, de um modo social de relacionamento, uma prática material. Inversamente, o poder, as relações sociais, as práticas materiais, as instituições, as crenças etc. são, em parte, 30 Introdução à Multimodalidade discurso. A heterogeneidade dentro de cada momento ─ incluindo o discurso ─ reflete a sua determinação simultânea (overdetermination) por parte de todos os outros momentos. Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 6,) a esse respeito declaram: Uma visão dialética do processo social em que o discurso é um “momento” entre seis: o discurso/linguagem, o poder, as relações sociais, práticas materiais, instituições/rituais e crenças/ valores/desejos. Cada momento internaliza todos os outros ─ assim o discurso é uma forma de poder, um modo de formação das crenças/valores/desejos, uma instituição, um modo de relacionamento social, uma matéria prática. Por outro lado, o poder, as relações sociais, as práticas materiais, instituições, crenças, etc., sãoparte do discurso. A heterogeneidade dentro de cada momento ─ incluindo o discurso ─ reflete sua determinação simultânea (“sobredeterminação”) por todos os outros momentos. (CHOULIARAKI e FAIRCLOUGH, 1999, p. 6) 4 (tradução nossa). 1.3 A CONSTRUÇÃO HÍBRIDA DO DISCURSO É comum o uso dessa linguagem híbrida no discurso publicitário, sendo usadas frequentemente obras de artistas famosos na construção de apelos publicitários. Neste estudo, em que desejamos visualizar o papel da globalização e das 4 A dialectical view of the social process in which discourse is one ‘moment’among six: discourse/language; power; social relations; material practices; institutions/rituals; and beliefs/values/desires. Each moment internalises all of the others – so that discourse is a form of power, a mode of formation of beliefs/values/desires, a institution, a mode of social relating, a material practice. Conversely, power, social relations, material practices, institutions, beliefs, etc. are in part discourse. The heterogeneity within each moment ─ including discourse ─ reflects its simultaneous determination (‘overdetermination’) by all of the other moments. (CHOULIARAKI e FAIRCLOUGH, 1999, p. 6). 31 Josenia Vieira e Carminda Silvestre tecnologias nas novas perspectivas multimodais para a linguagem, o foco não é o estudo do anúncio publicitário em si, mas as mudanças que ocorreram no âmbito da linguagem e do discurso, motivadas pela globalização, pelas tecnologias e pela multimodalidade. Então, é com este intuito que passamos a examinar o uso da Mona Lisa de Da Vinci em uma propaganda veiculada na internet. Queríamos inicialmente uma obra de arte famosa utilizada em anúncios e, ao buscarmos no Google, apareceram mais de vinte Mona Lisas, todas utilizadas na composição de significados discursivos de textos publicitários presentes em anúncios de dentifrícios, de xampus, até em anúncios de joias e de outros luxuosos adereços. Ainda que todos os exemplos fossem pertinentes para o propósito, examinaremos aqui, a título de ilustração, apenas um caso: A Mona Lisa americana. Figura 1: Mona Lisa americana Fonte: http://www.universohq.com/quadrinhos/images/b-mona.jpg http://www.universohq.com/quadrinhos/images/b-mona.jpg 32 Introdução à Multimodalidade Ao examinarmos as duas Mona Lisas: a do before e a do after uma semana nos Estados Unidos, percebemos uma nova sintaxe verbal, provocada pelo deslocamento da obra de arte de seu espaço local, o museu do Louvre de Paris, ao ser colocada lado a lado da Mona Lisa em versão americana, usada em espaço global. Esse fato estabelece forte contraste entre as duas Mona Lisas, pois a oposição entre os dois quadros acentua de modo marcante as diferenças entre ambas. Mas, o que nos chama atenção não é apenas o fato de a Mona Lisa italiana, hóspede do Louvre, ter se americanizado, tornando-se loira, mais branca, com avantajados silicones nos seios, mostrados com naturalidade. Também percebemos o preenchimento de seus lábios, o nariz mais afilado e o queixo modificado, produto de cirurgias plásticas, entretanto o que mais nos chama a atenção se liga aos ícones culturais e ideológicos, reveladores da cultura americana. Logo, qualquer texto visual pode se transformar em fenômeno semiótico complexo, com implicações ideológicas que não podem ser ignoradas, considerando-se que há a construção de várias camadas de sentido até a realização completa do significado. Identificamos nas imagens da Mona Lisa, na versão before, o cultivo da beleza e da arte da cultura italiana, representadas pela obra prima de Leonardo Da Vinci, usada para acelerar a venda de certos produtos ou ideias. No caso, a ideologia contemporânea, valoriza a beleza líquida, como diria Bauman (2003), ou a extrema importância dada ao corpo, nas palavras de Giddens (2000). A beleza líquida da mulher da modernidade tardia só permanece igual aqui e agora, pois amanhã pode estar diferente, o cabelo pode transformar-se em platinado, com luzes, alongado, entrelaçado, raspado; a face com novo contorno, com botox, implantes e pode até mesmo ter sido 33 Josenia Vieira e Carminda Silvestre submetida a plásticas reparadoras e transformadoras, anunciadas agressivamente na mídia televisiva e impressa. A mulher de hoje vive uma vida para consumo (BAUMAN, 2009). Mas, o que mais nos chama a atenção é a maneira caricata como a mulher americana foi representada aqui, reveladora dos esteriótipos a que as diferentes culturas estão sujeitas. Conforme Dyer (1995), o papel dos esteriótipos é hoje comparável ao termo abuso, pois nunca é neutro. Para reforçar seu pensamento, Dyer reporta, em seu livro The matter of images (1995), ideias de Lippmann (1956, p. 96) das quais nos apropriamos neste momento para dizer que um padrão de estereótipo, além de não ser neutro, não é apenas uma forma de substituição da realidade, nem apenas um atalho. É tudo isso e algo mais. É a garantia da nossa autoestima, sendo a projeção sobre o mundo do nosso próprio sentido do nosso próprio valor, a nossa própria posição e os nossos próprios direitos. Considera Lippmann ainda que os estereótipos são altamente cobrados juntamente com os sentimentos que a eles estão ligados, pois eles são a fortaleza de nossa tradição, e atrás de suas defesas, podemos continuar seguros da posição que ocupamos. Na verdade, no caso da Mona Lisa americana, o modo como um grupo social, ou parte dele, é representado não revela exatamente a realidade em si mesma, mas apenas outras formas de representações entre tantas outras possibilidades. Dyer (1995, p. 3) assim textualmente se posiciona sobre a representação: Este território é difícil, eu aceito que um só apreende a realidade através de representações da realidade, através de textos, discursos, imagens, não há tal coisa como o acesso sem mediações com a realidade. Mas porque se pode ver a realidade apenas através de representações, não se segue que não se vê a realidade de todo ─ parcial seletiva, incompleta, de um ponto de 34 Introdução à Multimodalidade vista ─ visão de algo que não é nenhuma visão do que por qualquer motivo (DYER, 1995, p. 3) 5 (tradução nossa) Dyer enfatisa que a apreensão da realidade é realizada somente por meio de outras representações da realidade, as quais podem estar representadas por um texto, um discurso ou uma imagem, tomando-se diferentes caminhos para capturar a realidade, diferentes atalhos para construir a representação dessa mesma realidade, mas essas outras representações não conseguem nunca representá-la de maneira completa, total, mas somente de um dado ponto de vista. Em face disso, nunca realizamos uma representação que já não tenha sido representada, daí porque os esteriótipos, além de frequentes, são também denunciadores da ideologia, das crenças e também dos preconceitos construídos por meio das representações, sempre realizadas com base em outras representações, o que faz com que a realidade seja falseada ideologicamente, como no caso dos esteriótipos. Chama-nos também a atenção a ideologia contemporânea, veiculada na mídia escrita e falada por meio de mega-anúncios de cirurgias plásticas e de outras modalidades de serviços estéticos com valores módicos a serem pagos em até 48 meses. Efetivamente, o fato, ideologicamente, nos revela que não estamos passando apenas pela comodificação da linguagem, no sentido dado por Fairclough (1991) ou pela reconfiguração da 5 his is difficult territory, I accept that one apprehends reality only through representations of reality, through texts, discourse, images; there is no such thing as unmediated access to reality. But because one can see reality only through representations, it does not follow that onedoes not see reality at all. Partial ─ selective, incomplete, from a point of view ─ vision of something is not no vision of it whatsoever (DYER, 1995, p. 3). 35 Josenia Vieira e Carminda Silvestre linguagem, como defendem Vieira (2004) e Ormundo (2007), mas também pela comodificação da beleza, sendo a estética apenas mais um produto de venda às gerações contemporâneas tanto femininas quanto masculinas. De semelhante modo, o culto à nova estética é um dos marcos culturais e ideológicos de nossos tempos líquidos, como bem caracteriza Bauman em sua extensa obra. O mundo está cada vez menos sólido em seus valores, os quais se tornam mais líquidos a cada instante. Assim, a linguagem reconfigurada pela sociedade líquida, com valores voláteis e igualmente líquidos, constituem as grandes metáforas de nosso tempo. Bauman (2003, p. 69) sobre a fragilidade e a liquidez dos compromissos nos relacionamentos humanos assim declara: A líquida racionalidade moderna recomenda mantos leve e condena as caixas de aço. Nos compromissos duradouros, a líquida razão moderna vê opressão; na união permanente percebe uma dependência incapacitante. Esta razão nega direitos aos vínculos e liames, espaciais ou temporais… (BAUMAN, 2003, p. 69) Afora a questão ideológica visível na análise da Mona Lisa americana, é relevante, para o nosso estudo das transformações da linguagem, focalizar a composição textual híbrida formada pelas duas imagens contrapostas para que possamos então realizar uma leitura mais profunda deste texto multimodal, reconfigurado. Desse modo, temos necessidade de conhecer a Teoria da Multimodalidade, para que a construção de significados dos anúncios atinja os seus objetivos: vender o produto. Com esse intuito, a obra Reading images: the grammar of visual design, de Kress e van Leeuwen (1996), com segunda edição revisada em 2006, estabelece uma gramática visual, que 36 Introdução à Multimodalidade oferece categorias para a análise e a leitura de imagens. Essa obra permite que aprofundemos muito mais a leitura de textos multimodais, compostos com imagens e outros elementos multimodais. Desse modo, algumas categorias, como a informação nova, colocada à direita, e a velha, à esquerda; saliente e não saliente; acima e abaixo, estabelecem valores significativos no ato de leitura de imagens em uma perspectiva multimodal. Voltando ao anúncio da figura, a categoria trazida como nova aqui está diluída, pois como ambas estão justapostas, temos de nos guiar exatamente pela imagem que está colocada à direita, lugar da informação nova, lugar aqui ocupado pela Mona Lisa americana, que é trazida como o elemento novo. Este é o produto que o anúncio deseja vender: a beleza americana. Um tipo de mulher com traços esteriotipados ao feitio da mulher americana. Não é nosso intento aprofundar aqui a Teoria Multimodal do Discuso (TMD), que participa da construção do texto contemporâneo, multimodal por excelência, desenvolvido especialmente na década passada ao abrigo da Análise de Discurso Crítica (ADC) e da Linguística Sistêmico-Funcional- (LSF). Contudo, ressaltamos que os princípios da Teoria Multimodal do Discurso podem ser usados pelos alunos com o intuito de torná-los conscientes da enorme importância dessas novas práticas de produção do texto multimodal. Apesar da relevância das pesquisas voltadas para multimodalidade, tem havido um descompasso entre as teorias que envolvem esses sistemas semióticos e as que estudam como eles operam, pois tais estudos não têm se desenvolvido na velocidade que a área necessita. O motivo é que a maioria dos linguistas comumente só se interessa por textos verbais, entretanto o tipo de sociedade visual que estamos construindo e 37 Josenia Vieira e Carminda Silvestre que vivemos, não apenas está mudando rapidamente, como também nos cobra um conhecimento mais consciente e determinado sobre essas mudanças, porque o visual, acredita Cardoso (2006, p. 117), tem ganho predominância sobre o textual, sendo que o único campo em que o texto aparentemente ainda predomina é a internet. Fora desse contexto, o que predomina é a retórica baseada na cultura visual, uma cultura assente na multiplicidade de recursos semióticos utilizados e na rapidez da conexão visual. E, embora o interesse pela semiótica não seja algo novo, haja vista a duradoura aplicação da semiótica peirceana à pesquisa em linguagem não verbal, só recentemente tem sido usada na aplicação e na sistematização das potencialidades descritivas da Linguística Sistêmica. As pesquisas mais significativas nessa perspectiva têm sido as investigações de Kress e van Leeuwen (2001, 2006 [1996]) entre outros. Os modelos de análise semiótica elaborada por eles têm sido usados com sucesso em contextos, como em estudos de museus e de galerias de arte. A boa notícia é que os interesses da Gramática Sistêmico-Funcional finalmente se expandiram para outras linguagens semióticas. Assim, temos hoje uma análise de produção de sentido que considera como essa simbiose materializa ideologias nas comunidades discursivas, encarando não só a linguagem verbal escrita, mas também as demais linguagens. Kress e van Leeuwen (2006 [1996]) discutem a função ideacional nas imagens e como os processos apresentacionais e transacionais e como os atores e as circunstâncias relevantes se realizam na função interpessoal em termos da “interpelação” por meio do olhar, do ângulo etc., e a função composicional em termos de enquadres, linhas paralelas, 38 Introdução à Multimodalidade verticais, horizontais, diagonais, e assim por diante (para mais detalhes, ver Kress e van Leeuwen 2006 [1996]). No livro, Multimodal discourse, Kress e van Leeuwen (2001) expandem sua visão teórica para as seguintes áreas: design, produção e distribuição do discurso. Isso cobre a análise do discurso de como textos e imagens são planejados para cooperarem entre si, como os discursos são produzidos e como eles são colocados à disposição dos consumidores em diferentes contextos sociais e culturais. CONCLUSÕES Por fim, esta parte, que tratou da “Globalização e tecnologias: uma perspectiva multimodal da linguagem”, coloca em tela o surgimento, a existência de inúmeras práticas discursivas, fruto da globalização e das tecnologias digitais, as quais são fortemente representadas nos novos gêneros discursivos. A prova concreta de sua existência é a reconfiguração, ou a recontextualização do discurso, realizada por meio das práticas discursivas multimodais mediadas, tanto pelas mídias digitais quanto pelas impressas no espaço discursivo globalizado. À parte as mudanças globais, que exerceram marcante influência sobre a linguagem, pertencemos a uma sociedade da imagem; somos cidadãos multimodais a ponto de descansarmos quando vemos imagens em frente à TV. Somos fruto de uma sociedade digital, uma sociedade multimodal. Foi nesse favorável contexto que o discurso monomodal encontrou terreno fértil para se ressemiotizar e compor os atuais discursos multimodais. 39 Josenia Vieira e Carminda Silvestre Por essas razões, as mudanças tecnológicas e midiáticas, que estão ocorrendo no mundo, não podem passar despercebidas. É relevante que, na qualidade de pesquisadores da linguagem, não ignoremos as impactantes mudanças pelas quais passa a linguagem. Ignorar essas mudanças é impossível. A sociedade necessita com urgência de instituições de ensino que não se coloquem à margem do mundo globalizado, necessitamos de outras alternativas de letramento, do letramento informacional e digital, que possam permitir o pleno exercício da cidadania, mas, para isso, devemos oferecer instrumentos que permitam o pleno domínio de todas essas tecnologias. Por pertinente, registro a opinião de Cardoso: (…) a cidadania na sociedade em rede depende também dodomínio dos intrumentos que nos permitem lidar com os medias como mais uma linguagem natural, e do desenvolvimento de uma literacia que vá para além de sua definição mais tradicional. (CARDOSO, 2006, p. 401) Por tudo isso, defendemos que o cidadão deve ser capaz de manejar bem as tecnologias, assim como deve saber lidar criticamente com os media, pois eles são o primeiro elo entre a vida real e o mundo representado e para que esse mesmo cidadão alcance o desejável nível crítico deve, como entende Giddens (2000), ser altamente reflexivo também no trato dos media, os quais desempenham papel extremamente relevante na vida moderna atual e no exercício da cidadania. Assim, por meio da reflexividade, os sujeitos do discurso têm de tomar decisões, de fazer escolhas, e para isso usam as sociedades em redes e as sociedades de informação para garantir apoio e suporte para essa crítica tomada de decisões. 40 Introdução à Multimodalidade E, como consequência, não só o surgimento dos media e das tecnologias e das avançadas redes de informação moldam novas reconfigurações nas relações de poder da sociedade, mas também o próprio discurso reconfigura-se por meio da multimodalidade e pelas modernas formas de distribuição digital da linguagem, pois essas inovadoras práticas discursivas on-line e off-line têm contribuído para essa reconfiguração neste contexto globalizado, ao lado de um mundo colorido que deixou em segundo plano o preto e o branco para incorporar cores, imagens, sons e movimentos aos discursos multimodais. Ademais, o uso pela sociedade contemporânea de avançados instrumentos tecnológicos e informatizados fez mais pela linguagem do que acelerar a sua velocidade transformadora, marcou de modo irreversível os seus contornos, reconfigurando- a, desenhando outros gêneros e diferentes padrões discursivos, dando-lhe nova feição e novas práticas. Por essa razão, o sujeito atual, um sujeito dividido, multifacetado, necessita de teorias da linguagem que o ensinem a lidar com as diferentes formas do discurso contemporâneo, para que, então, o sujeito dessa sociedade visual esteja habilitado para o pleno exercício discursivo crítico que os diferentes domínios da vida pública e privada exigem de todos nós, os legítimos agentes de mudanças sociais. MULTIMODALIDADE E EVENTOS DE LETRAMENTO 2ª PARTE 43 Josenia Vieira e Carminda Silvestre 2. A MULTIMODALIDADE NOS EVENTOS DE LETRAMENTO Josenia Vieira No que concerne à multimodalidade e ao letramento, pretendemos discutir as novas perspectivas para os textos multimodais presentes nos eventos e nas práticas sociais de letramento nos diferentes discursos. Ressaltamos que a composição textual multimodal tem alimentado as práticas sociais, cuja riqueza de modos de representação utilizados incluem desde imagens, até cores, movimento, som e escrita, haja vista a existência frequente de eventos híbridos de letramentos, constituídos por composições com linguagem verbal, com linguagem visual e com linguagem corporal, marcas preponderantes do discurso contemporâneo. Ora, essa posição teórica abre possibilidades para a realização de estudos de letramento, direcionados a outros gêneros multimodais que contemplem diferentes modalidades discursivas que não as presentes na leitura e na escrita tradicional. O argumento forte em defesa desse ponto de vista é o de que ser iletrado em linguagem visual denuncia vulnerabilidade social e baixo empowerment do sujeito. Nesse intuito, usaremos como suporte teórico para a discussão a Teoria do Letramento (TL), defendida por Street (1995, 1996), além de Kress (1996) e da Teoria da Multimodalidade do Discurso (TMD) com a proposta de Kress e van Leeuwen (2001, 2006 [1996]) e de van Leeuwen (2005). 44 Introdução à Multimodalidade Essa proposta se baseia em estudos das semioses sociais, que envolvem tanto as teorias linguísticas quanto as teorias sociais, em uma perspectiva transdisciplinar, para tratar do gênero multimodal como um processo decorrente de migrações midiáticas do discurso. A esse respeito, Kress, Leite-Garcia e van Leeuwen (2000) ponderam que, se os seres humanos produzem e comunicam significações em vários modos semióticos, então somente o uso da linguagem verbal se tornaria insuficiente para concentrar a atenção de quem está interessado na produção e na reprodução social de significados. Logo, se, em essência, os textos são multimodais, será impossível ler significados representados apenas por um modo linguístico. Desse modo, a Teoria do Letramento Visual, associada à Teoria Multimodal do Discurso, constitui relevante abordagem sociossemiótica das comunicações visuais e dos novos gêneros multimodais que poderão ser utilizados em diferentes espaços sociais, inclusive na sala de aula. A essa altura da discussão, caberia perguntar: qual o interesse da Teoria da Multimodalidade em desenvolver estudos sociais do uso da linguagem? A principal resposta da TMD é de que as investigações no campo da multimodalidade integram os estudos da Semiótica Social e da Teoria Crítica, sendo um de seus objetivos principais desenvolver o empowerment, o fortalecimento das pessoas comuns, pois, como defende van Leeuwen (2005), todos os sistemas semióticos são sistemas semióticos sociais. E, como tal, desempenham relevante papel na sociedade já que a descrição e os estudos derivados da Teoria Social contribuem para que o sujeito possa incorporar maior poder de discernimento a respeito do mundo multimodal, 45 Josenia Vieira e Carminda Silvestre manifesto principalmente pelos gêneros multimodais, veiculados pelos meios midiáticos circundantes. Na sequência, examinaremos as categorias possíveis de serem utilizadas para proceder a uma análise multimodal, seguindo os passos estabelecidos por Kress e van Leeuwen (2006 [1996]). 2.1 A ANÁLISE MULTIMODAL EM AÇÃO Para levar a efeito a análise multimodal, é necessário que tratemos dos modos semióticos, que descrevem como as semioses podem representar a verdade do mundo real; como as imagens constroem a realidade; como elas recortam o mundo e como intencionalmente podem omitir detalhes. Nesse sentido, só o gênero humano é capaz de criar mundos simbólicos, modificando-os por meio do discurso e, intencionalmente, por meio do uso de categorias estabelecidas pela gramática visual, conforme Kress e van Leeuwen (2006 [1996]). Decerto a posição ocupada pela humanidade é de destaque em relação às demais espécies, pois só os seres humanos são capazes de modalizar um dado sentido, ou até mesmo de potencializá-lo. Assim, em contextos multimodais, as imagens transformam-se em referências diretas ou indiretas da realidade física e social, sendo necessária uma escolha seletiva, tendo em vista que as sociedades usam imagens como um modo de legitimar argumentos e fatos relatados e descritos, entretanto não podemos ignorar que as imagens usadas pelas diversas mídias contribuem com a identificação das formações ideológicas construídas nesses diferentes espaços midiáticos e também podem revelar a manipulação de ideologias que pode ocorrer na 46 Introdução à Multimodalidade seleção das imagens mostradas e também naquelas que foram expurgadas ou ocultadas. Então, para a análise de discursos multimodais, carecemos iniciar pelo “modo”, que, na Teoria Multimodal do Discurso (KRESS e VAN LEEUWEN, 2001) constitui parte dos estudos focados na Linguística Funcional (HALLIDAY, 1994). A categoria “modo” identifica a participação dos atores nos processos discursivos. Assim, um enunciado como Maria comprou uma camisola constrói um sentido diferente daquele existente em Maria deve ter comprado uma camisola, que, por sua vez, será diferente de Maria deve comprar uma camisola. E, mesmo que os sujeitos ou atoresdo discurso sejam idênticos nos três enunciados, pois foi a Maria quem comprou a camisola, mas a relação de participação e de comprometimento entre anunciar o fato de que Maria, o agente, e o objeto, a camisola, é modalizada de modos diferentes. A essa maneira especial de enunciar o discurso é que Halliday trata como modalidade gramatical, cujo preenchimento categorial pode se dar pelo uso de recursos discursivos modalizadores, como os adjetivos e os verbos auxiliares. Em contrapartida, no discurso multimodal, quando há imagens, a modalização realiza-se pela combinação das cores entre si, pelos usos de tons claros e escuros, pela escolha de sombra e luz, ou ainda pelo uso de alto e baixo relevo, pela escolha do modelo de tipografia, de iconografia, ou modo de combinação, ou arranjo. Em face da discussão, cabe uma pergunta: como as imagens são distribuídas e combinadas para marcar a modalidade? Há alguma regra pré-estabelecida? É possível responder a essas e a outras questões com base nos estudos de 47 Josenia Vieira e Carminda Silvestre Kress e van Leeuwen (2006 [1996]), que nos oferecem uma gramática do design visual, na qual descrevem critérios que podem nos ajudar a classificar taxionomicamente o que eles denominam de escalas, dividindo-as em escalas de detalhes, de plano de frente e de fundo, de dimensionalidade, de sombra e luz, de matizes, de intensidade de cores, de brilho, de cores puras ou híbridas, de quantidade de cores, de luminosidade e, por último, escala de elementos tipográficos. Passaremos, a seguir, a detalhar mais essas escalas. Figura 2: Revista Veja, edição de 6 de abril de 2005 Fonte: http://freakshowbusiness.com 48 Introdução à Multimodalidade A foto de capa da revista narra a morte de João Paulo II, mostrando-o com uma expressão de enorme sofrimento, em contraste com a grandeza da fé sugerida pelo título. Enquanto a fé é tratada como grande, a imagem do Papa de modo contrário, revela-o como extremamente humano em sua dor. A pergunta aqui é por que razão foi colocada esta imagem e não outra entre as centenas de fotos disponíveis do Papa em momentos mais voltados para a fé? Essas formações de sentido construídas por meio de outras semioses é que nos chamam a atenção e precisam ser mais estudadas, para entendermos os meandros dos textos multimodais. Assim, como a construção do sentido deve ser a resposta a ação de um princípio integrador do uso dos vários recursos semióticos, considerando que todos os recursos utilizados devem operar significados visando a um sentido maior, diante dessa capa, cuja escolha do retrato do papa foi tão negativa, cabe a pergunta: As incongruências na construção do sentido da capa foram inocentes ou deliberadas? Houve intencionalidade ideológica contrária à fé cristã? Sem entrar no mérito, essa capa é um exemplo do que é possível construir ou desconstruir em termos de sentido no discurso multimodal. 2.2 ESCALA DE DETALHES Com relação à escala de detalhes, cabe a pergunta: há um número específico de semioses para a composição de textos multimodais? O produtor do texto deve se submeter ao uso de um certo número de detalhes ou pode usá-los livremente? Já quanto ao plano de frente e ao plano de fundo, a pergunta a ser feita é: estes dois planos estão combinados entre si para a produção do sentido ou não há articulação entre eles? Para investigar a escala de dimensionalidade, deve-se examinar se as 49 Josenia Vieira e Carminda Silvestre imagens estão representadas em mais de uma dimensão. Quantas? Em duas ou em três? Por sua vez, na análise da escala de sombra e luz, devemos observar como são representados os contornos dos objetos quanto ao uso da sombra e da luz. A pergunta possível pode ser: a luz foca, destaca o quê? O ponto mais iluminado é efetivamente o mais relevante na informação a ser dada? Com referência à escala de matizes, o pesquisador multimodal deve se preocupar com o exame das gradações de cores presentes na composição da imagem, examinar se há muitas cores. Com relação ao exame da escala de intensidade das cores, devemos investigar se as cores utilizadas são opacas ou intensas, frias ou quentes. Os pesquisadores de composições multimodais deverão se concentrar em buscar o motivo, a razão de envolver determinada informação em cores frias e outras em cores extremamente quentes. Mas, principalmente devemos nos concentrar na análise das cores no que toca aos significados, às crenças representadas e às ideologias que tais cores podem agregar ao sentido do texto. No que concerne ao exame da escala de brilho no texto multimodal, devemos nos ater ao estudo do uso das cores com o propósito de identificar não só se há cores brilhantes ou foscas, mas também para perceber que tipo de informação merece o uso de uma cor brilhante ou fosca. No que tange ao estudo da escala de cores puras ou híbridas, devemos analisar se as cores usadas nos textos multimodais são puras ou se resultam de combinações cromáticas. Além disso, devemos identificar o propósito subjacente a essas escolhas. Quanto à análise da quantidade de cores, o que deve ser examinado centra-se no exame das cores: se elas são 50 Introdução à Multimodalidade monocromáticas ou policromáticas? Por que motivo foram escolhidas estas cores e não outras? Para o estudo da escala de luminosidade, devemos observar como se apresentam os ambientes representados nos textos multimodais. Pendem para o claro ou para o escuro? Por fim, no exame da escala de tipografias, é o momento de analisar detalhadamente as fontes e os tamanhos dos elementos tipográficos utilizados na composição do texto. Por que certas informações estão em caixa alta e outras em baixa? Qual a razão para que algumas delas sejam veiculadas em fontes extremamente grandes e outras em fontes pequenas? Como os aspectos tipográficos ocupam lugar relevante nas composições multimodais, pretendemos aprofundá-los mais no item a seguir. 2.3 A AÇÃO DOS ELEMENTOS TIPOGRÁFICOS NA CONSTRUÇÃO DO SENTIDO Da mesma forma que Kress e van Leeuwen investigam as cores nas composições multimodais, a escolha tipográfica também pode ser estudada nesse tipo de composição segundo as funções da linguagem de Halliday (1994). A seleção do desenho, do tamanho e da cor das letras pode ser analisada com base nas funções ideacional, interpessoal e textual. Desse modo, o tamanho, o tipo e a cor das letras selecionadas para a composição do texto multimodal desempenham relevante papel na construção do sentido potencial do texto. Quanto ao estudo do papel dos elementos tipográficos no plano multimodal, vale ressaltar ainda que a tipografia agrega um componente diferencial. O sentido é visualizado no âmbito da lógica tipográfica principalmente pela mediação do uso das formas da letra, que estabelece, juntamente com a cultura, a possibilidade de leitura das formas linguísticas de um texto 51 Josenia Vieira e Carminda Silvestre multimodal. Desse modo, o nome de um jornal ou de uma revista escrito em cores ou em preto e branco; em letras grandes ou pequenas, é identificado inicialmente pela perspectiva ideacional, trazendo sinais multimodais para que o leitor possa fazer uma leitura do significado a respeito da mídia referida. É moderna? É mais tradicional? Logo, o estudo das dimensões da letra, sob a ótica da função interpessoal, pode significar muitas coisas, entre elas, audácia para convencer o leitor sobre a verdade, sobre as injustiças. A bem da construção do sentido, o design das letras de um jornal, de uma revista ou de documento impresso revela demasiado sobre o significado potencial do texto que será lido. Por essas razões, os elementos tipográficos selecionados para a escrita de um texto exercem papel relevante na leitura do sentido final a ser construído pelo leitor. Também