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SUMÁRIO R$ 8.16 Copyright © 1986, Roque de Barros Laraia Todos 05 direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, no todo Apresentação 7 ou em parte, constitui violação do copyright. (Lei 9.610) Copyright © 2001 desta edição: Primeira parte DA NATUREZA DA CULTURA Jorge Zahar Editor Ltda. OU DA NATUREZA À CULTURA 9 rua México 31 sobreloja 20031-144 Rio de Janeiro, RJ determinismo biológico 17 tel.: (21) 240-0226 / fax: (21) 262-5123 e-mail: jze@zahar.com.br 2. O determinismo geográfico 21 site: www.zahar.com.br 3. Antecedentes históricos do conceito de cultura 25 Edições anteriores: 1986, 1987, 1988, 1989, 1991, 4. O desenvolvimento do conceito de cultura 30 1992, 1993, 1994, 1995, 1996, 1997, 1999, 2000 5. Idéia sobre a origem da cultura 53 Capa: Carol e Sérgio Campante 6. Teorias modernas sobre cultura 59 Segunda parte COMO OPERA A CULTURA 65 Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. 1. A cultura condiciona a visão de mundo do homem 67 Laraia, Roque de Barros, 1932- L331c Cultura: um conceito antropológico / Roque 2. A cultura interfere no plano biológico 75 14.ed de Barros Laraia. 14.ed. Rio de Janeiro: Jorge 3. Os indivíduos participam diferentemente Zahar Ed., 2001 de sua cultura 80 (Antropologia social) 4. A cultura tem uma lógica própria 87 Anexos 5. A cultura é dinâmica 94 Inclui bibliografia ISBN 85-7110-438-7 Anexo Uma experiência absurda 102 1. Cultura. Título. Série. Anexo 2 A difusão da cultura 105 CDD 306 109 22 smo 01-0157 CDU 316.7 Notas 113Da natureza da cultura 11 embora seja ele a primeira pessoa do Estado, OS filhos não terão qualquer direito à cidadania.² DA NATUREZA DA CULTURA Ao considerar OS costumes dos lícios diferentes de das as outras nações do mundo", Heródoto estava tomando OU DA NATUREZA À CULTURA como referência a sua própria sociedade agindo de uma maneira etnocêntrica, embora ele próprio tenha teoricamente renegado esta postura ao alirmar: Este volume trata da discussão de um dilema: a conciliação Se oferecêssemos aos homens a escolha de todos OS da unidade biológica e a grande diversidade cultural da espécie costumes do mundo, aqueles que lhes parecessem me- humana.¹ Um dilema que permanece como tema central lhor, eles examinariam a totalidade e acabariam prefe- de numerosas polêmicas, apesar de Confúcio ter, quatro rindo 05 seus próprios costumes, tão convencidos estão séculos antes de Cristo, enunciado que "A natureza dos de que estes são melhores do que todos OS outros. homens é a mesma, são OS seus hábitos que mantêm A surpresa de Heródoto pela diversidade cultural dos separados". lícios não é diferente da de Tácito (55-120), cidadão roma- Mesmo antes da aceitação do monogenismo, OS homens no, em relação às tribos germânicas, sobre as quais escreveu se preocupavani com a diversidade de modos de comporta- com admiração: mento existentes entre diferentes povos. Até mesmo Heródoto (484-424 a.C.), grande historia- Por tudo isso, casamento na Alemanha é austero, não dor grego, preocupou-se com 0 tema quando descreveu há aspecto de sua moral que mereça maior elogio. São sistema social dos lícios: quase únicos, entre bárbaros, por se satisfazerem com uma mulher para cada. As exceções, que são extrema- Eles têm um costume singular pelo qual diferem de to- mente raras, constituem-se de homens que recebem das as outras nações do mundo. Tomam 0 nome da mãe, ofertas de muitas mulheres devido ao seu posto. Não há e não do pai. Pergunte-se a um lício quem é, e ele questão de paixão sexual. O dote é dado pelo marido à responde dando seu próprio nome e o de sua mãe, e mulher, e não por esta àquele.⁴ assim por diante, na linha feminina. Além disso, se uma mulher livre desposa um homem escravo, seus filhos Marco Polo, legendário viajante italiano que visitou a cidadãos integrais; mas se um homem livre desposa China e outras partes da Ásia, entre OS anos 1271 e 1296, uma mulher estrangeira, ou vive com uma concubina, assim descreveu costumes dos tártaros: 1012 Cultura: um concelto antropológico Da natureza da cultura 13 Têm casas circulares, de madeira e cobertas de feltro, Montaigne (1533-1572) procurou não se espantar em que levam consigo onde vão, em carroças de quatro demasia com OS costumes dos Tupinambá, de quem teve rodas... asseguro-lhes que as mulheres compram, ven- notícias e chegou mesmo a ter contato com três deles em dem e fazem tudo que é necessário para seus maridos Ruão, afirmando não ver nada de bárbaro ou selvagem no suas Os homens não se têm de preocupar com que diziam a respeito deles, porque coisa alguma, exceto a caça, a guerra e a falcoaria... Não têm objeções a que se coma a de cavalos e cães, e na verdade, cada qual considera que não se se tome leite de égua... Coisa alguma no mundo os pratica em sua terra. faria tocar na mulher do outro: têm extrema consciência de que isto é um erro e uma desgraça...⁵ Imbuído de um pioneiro sentido de relativismo cultu- O padre José de Anchieta (1534-1597), ao contrário de ral, Montaigne assim comentou a dos Tupi- nambá: Heródoto, se surpreendeu com DS costumes patrilineares dos índios Tupinamba e escreveu aos seus superiores: Não me parece excessivo julgar bárbaros tais atos de crueldade, mas que 0 fato de condenar tais defeitos não O terem respeito às filhas dos irmãos é porque lhes chamam filhas e nessa conta as têm, e assim neque nos leve à cegueira acerca dos nossos. Estimo que é mais fornicarie as conhecem, porque têm para si que paren- bárbaro comer um homem vivo do que comer depois tesco verdadeiro vem pela parte dos pais, que são agen- de morto; e é pior esquartejar um homem entre tes; e que as mães não são mais que uns sacos, em cios e e queimar aos poucos, ou entregá-lo a cães e porcos, a pretexto de devoção e fé, como não respeito dos pais, em que se criam as crianças, e por esta somente 0 lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos causa filhos dos pais, posto que sejam havidos de nossos conterrâneos. escravas e contrárias cativas, são sempre livres e tão estimados como outros; e OS filhos das fêmeas, se são E terminou, ironicamente, após descrever diversos COS- filhos de cativos, OS têm por escravos e OS vendem, e às vezes matam e comem, ainda que sejam seus netos, tumes daqueles Tupi: "Tudo isso é interessante, mas, que diabo, essa gente não usa calças." filhos de suas filhas, e por isto também usam das filhas Desde a Antigüidade, foram comuns as tentativas de das irmãs sem nenhum pejo ad copulam, mas não que haja obrigação e nem costume universal de as terem explicar as diferenças de comportamento entre homens, a partir das variações dos ambientes físicos. por mulheres mais que as outras, como dito é.⁶ Marcus V. Pollio, arquiteto romano, afirmou enfatica- mente:14 Cultura: um antropológico Da natureza da cultura 15 Os povos do sul têm uma inteligência aguda, devido à OS costumes de nossos contemporâneos que vivem no cha- raridade da atmosfera e ao calor; enquanto os das na- mado mundo civilizado. ções do Norte, tendo se desenvolvido numa atmosfera Esta comparação pode começar pelo sentido do trânsito densa e pelos vapores dos ares carregados, têm na Inglaterra, que segue a mão esquerda; pelos hábitos uma inteligência preguiçosa.⁸ culinários franceses, onde rãs e escargots (capazes de causar repulsa a muitos são considerados como iguarias, até Ibn Khaldun, árabe do século XIV, tinha uma outros usos e costumes que chamam mais a atenção para as opinião semelhante, pois também acreditava que habi- diferenças culturais. tantes dos climas quentes tinham uma natureza passional, No Japão, por exemplo, era costume que devedor enquanto aos dos climas frios faltava a vivacidade. insolvente praticasse suicídio na véspera do ano-novo, Jean Bodin, filósofo do século XVI, desenvolveu como uma maneira de limpar seu nome e 0 de sua família. a teoria que povos do norte têm como líquido dominante O harakiri (suicídio ritual) sempre considerado como da vida 0 fleuma, enquanto do sul são dominados pela uma forma de heroísmo. Tal costume justificou apareci- bílis negra. Em decorrência disto, DS nórdicos são fiéis, leais mento dos "pilotos suicidas" durante a Segunda Guerra aos governantes, cruéis e pouco interessados sexualmente; Mundial. enquanto OS do sul são maliciosos, engenhosos, abertos, Entre 05 ciganos da Califórnia, a obesidade é considera- orientados para as ciências, mas mal adaptados para as da como um indicador da virilidade, mas também é utilizada atividades para conseguir beneficios junto aos programas governamen- Contudo, explicações deste gênero não foram suficien- tais de bem-estar social, que a consideram como uma defi- tes para resolver 0 dilema proposto, tanto é que D'Holbach ciência física. replicava em 1774: A carne da vaca é proibida aos hindus, da mesma forma que a de porco é interditada aos muçulmanos. Será que sol que brilhou para DS livres gregos e nudismo uma prática tolerada em certas praias romanos emite hoje raios diferentes sobre seus dege- nerados européias, enquanto nos países islâmicos, de orientação xiita, as mulheres mal podem mostrar rosto em público. Nesses mesmos países, 0 adultério é uma contravenção Qualquer um dos leitores que quiser constatar, uma vez grave que pode ser punida com a morte ou longos anos de mais, a existência dessas não necessita retornar prisão. ao passado, nem mesmo empreender uma viagem a Não é necessário tão longe, nesta de exem- um grupo indígena, localizado nos confins da floresta ama- plos que poderia se estender infinitamente; basta verificar zônica ou em uma distante ilha do Pacífico. Basta comparar que em algumas regiões do Norte do Brasil a gravidez é16 Cultura: um conceito antropológico considerada como uma enfermidade, e 0 ato de parir é 1. O DETERMINISMO BIOLÓGICO denominado "descansar". Esta mesma palavra é utilizada, no Sul do país, para se referir à morte (fulano descansou, isto é, morreu). Ainda entre nós, existe uma diversidade de interdições alimentares que consideram perigoso consu- mo conjunto de certos alimentos que isoladamente são inofensivos, como a manga com leite etc. (Enfim, todos estes exemplos e que se seguem servem São velhas e persistentes as teorias que atribuem capacida- para mostrar que as diferenças de comportamento entre des específicas inatas a "raças" ou a outros grupos humanos. homens não podem ser explicadas através das diversidades Muita gente ainda acredita que nórdicos são mais inteli- somatológicas ou determinismo geo- gentes do que negros; que alemães têm mais habilidade gráfico como determinismo biológico, como mostraremos para a mecânica; que judeus são avarentos e negociantes; a seguir, foram incapazes de resolver dilema proposto no que norte-americanos são empreendedores e interessei- início deste trabalho. ros; que OS portugueses são muito trabalhadores e pouco inteligentes; que japoneses são trabalhadores, traiçoeiros e cruéis; que OS ciganos são por instinto, e, final- mente, que brasileiros herdaram a preguiça dos negros, a dos índios e a luxúria dos portugueses. Os antropólogos estão totalmente convencidos de que as diferenças genéticas não são determinantes das diferenças culturais. Segundo Felix Keesing, "não existe correlação significativa entre a distribuição dos caracteres genéticos e a distribuição dos comportamentos culturais. Qualquer criança humana normal pode ser educada em qualquer cultura, se for colocarda desde início em situação conve- niente de Em outras palavras, se transportar- mos para Brasil, logo após seu nascimento, uma criança sueca e a colocarmos sob OS cuidados de uma família serta- neja, ela crescerá como tal e não se diferenciará mentalmen- te em nada de seu irmãos de criação. Ou ainda, se retirarmos uma criança xinguana de seu meio e a educarmos como filha 1718 Cultura: um concelto antropológico Da natureza da cultura 19 de uma familia de alta classe média de Ipanema, mesmo A espécie humana se diferencia anatômica e fisiologica- acontecerá: ela terá as mesmas oportunidades de desenvol- mente através do sexual, mas é falso que as vimento que OS seus novos irmãos. diferenças de comportamento existentes entre pessoas de Em 1950, quando 0 mundo refazia da catástrofe e do sexos diferentes sejam determinadas biologicamente. A an- terror do racismo nazista, antropólogos físicos e culturais, tropologia tem demonstrado que muitas atividades geneticistas, biólogos outros especialistas, reunidos em das às mulheres em uma cultura podem ser aos Paris sob OS auspícios da Unesco, redigiram uma declaração homens em outra. da qual extraímos dois A verificação de qualquer sistema de divisão sexual do trabalho mostra que ele é determinado culturalmente e não 10. Os dados cientílicos de que dispomos atualmente em função de uma racionalidade biológica. 0 transporte de não confirmam a teoria segundo a qual as diferenças para a aldeia é uma atividade feminina no Xingu (como genéticas hereditárias constituiriam um fator de impor- nas favelas cariocas). Carregar cerca de vinte litros de água tância primordial entre as causas das diferenças que se sobre a cabeça implica, na verdade, um esforço físico consi- manifestam entre as culturas e as obras das civilizações dos diversos povos ou grupos étnicos. Eles nos infor- derável, muito maior do que necessário para manejo de mam, pelo contrário, que essas diferenças se explicam, um arco, arma de uso exclusivo dos homens. Até muito antes de tudo, pela história cultural de cada grupo. Os pouco tempo, a carreira diplomática, quadro de funcioná- fatores que tiveram um papel preponderante na evolu- rios do Banco do Brasil, entre outros exemplos, eram ativi- ção do homem são a sua faculdade de aprender e a sua dades exclusivamente masculinas. exército de Israel de- plasticidade. Esta dupla aptidão é D apanágio de todos monstrou que a sua eficiência bélica continua intacta, mes- 05 seres humanos. Ela constitui, de fato, uma das carac- mo depois da maciça admissão de mulheres soldados. terísticas específicas do Homo sapiens. Mesmo as diferenças determinadas pelo aparelho repro- dutor humano determinam diferentes manifestações cultu- 15. b) No estado atual de nossos conhecimentos, não foi rais. Margareth Mead (1971) mostra que até a amamentação ainda provada a validade da tese segundo a qual OS pode ser transferida a um marido moderno por meio da grupos humanos diferem uns dos outros pelos traços mamadeira. E nossos índios Tupi mostram que marido psicologicamente inatos, quer se trate de inteligência on pode ser protagonista mais importante do parto. É ele que temperamento. As pesquisas cientificas revelam que se recolhe à rede, e não a mulher, e faz 0 resguardo conside- nível das aptidões mentais é quase mesmo em todos rado importante para a sua saúde e a do recém-nascido. grupos étnicos. Resumindo, comportamento dos indivíduos depende de um aprendizado, de um processo que chamamos de20 Cultura: um antropológico endoculturação. Um menino e uma menina agem diferente- 2. O DETERMINISMO GEOGRÁFICO mente não em função de seus hormônios, mas em decorrên- cia de uma educação diferenciada. O geográfico considera que as diferenças do ambiente físico condicionam a diversidade cultural. São explicações existentes desde a do tipo das formuladas por Pollio, Ibn Khaldun, Bodin e outros, como vimos anteriormente. Estas teorias, que foram desenvolvidas principalmente por geógrafos no final do século XIX e no início do século XX, ganharam uma grande popularidade. Exemplo significativo desse tipo de pensamento pode ser encontrado em Hunting- ton, em seu livro Civilization and Climate (1915), no qual formula uma relação entre a latitude e OS centros de ção, considerando clima como um fator importante na dinâmica do progresso. A partir de 1920, antropólogos como Boas, Wissler, Kroeber, entre outros, refutaram este tipo de determinismo e demonstraram que existe uma limitação na influência geográfica sobre fatores culturais. E mais: que é possível e comum existir uma grande diversidade cultural localizada em um mesmo tipo de ambiente físico. Tomemos, como primeiro exemplo, OS lapões e es- quimós. Ambos habitam a calota polar norte, primeiros no norte da Europa e 05 segundos no norte da Vivem, pois, em ambientes geográficos muito semelhantes, caracterizados por um longo e rigoroso Ambos têm22 Cultura: um concello antropológico Da natureza da cultura 23 ao seu dispor flora e fauna semelhantes. Era de se esperar, portanto, que encontrassem as mesmas respostas culturais Os índios Pueblo e Navajo, do sudoeste americano, para a sobrevivência em um ambiente hostil. Mas isto não ocupam essencialmente 0 mesmo hábitat, sendo que ocorre: alguns índios Pueblo até vivem hoje em "bolsões" den- tro da reserva Navajo. Os grupos Pueblo são aldeões, Os esquimós constroem suas casas (iglus) cortando blo- com uma economia agrícola baseada principalmente no de neve e amontoando-os num formato de milho. Os Navajo são descendentes de apanhadores de Por dentro a casa forrada com peles de animais e com que se alimentavam de castanhas selvagens, 0 auxílio do fogo conseguem manter 0 seu interior sementes de capins e de caça, mais ou menos como OS suficientemente quente. É possível, então, desvenci- Apache e outros grupos vizinhos têm feito até tempos lhar-se das pesadas roupas, enquanto no exterior da modernos. Mas, obtendo ovinos dos europeus, OS Nava- casa a temperatura situa-se muitos graus abaixo de jo são hoje vivendo espalhados com zero grau Quando deseja, o esquimó aban- seus rebanhos em grupos de O espírito criador dona a casa tendo que carregar apenas seus pertences do homem pode assim envolver três alternativas cultu- e vai construir um novo retiro. rais bem diferentes apanha de viveres, cultivo, pasto- Os lapões, por sua vez, vivem em tendas de peles de reio no mesmo ambiente natural, de sorte que não rena. Quando desejam mudar OS seus acampamentos, foram fatores de hábitat que proporcionaram a determi- necessitam realizar um árduo trabalho que se inicia pelo nante principal. Posteriormente, no mesmo habitat, CO- desmonte, pela retirada do gelo que se acumulou sobre lonizadores americanos tiveram que criar outros siste- as peles, pela secagem das mesmas e seu transporte mas de vida baseados pecuária, na agricultura irriga- para novo sítio. da e na urbanização.² Em compensação, lapões são excelentes criadores de renas, enquanto tradicionalmente esquimós limi- O terceiro exemplo pode ser encontrado no interior de tam-se à caça desses mamiferos.¹ nosso país, dentro dos limites do Parque Nacional do Xingu. A aparente pobreza glacial não impede que OS esquimós Os xinguanos propriamente ditos (Kamayurá, Kalapalo, tenham uma desenvolvida arte de esculturas em pedra-sa- Trumai, etc.) desprezam toda a reserva de proteínas existentes nos grandes cuja caça lhes é interdi- bão e nem que resolvam OS seus conflitos com uma tada por motivos culturais, e se dedicam mais intensamente cada competição de canções entre competidores. à pesca e caça de Os Kayabi, que habitam Norte do Um segundo exemplo, transcrito de Felix Keesing, é a variação cultural observada entre OS indios do sudoeste Parque, são excelentes caçadores e preferem justamente OS norte-americano: de grande porte, como a anta, o veado, caititu etc.1. A CULTURA CONDICIONA A VISÃO DE MUNDO DO HOMEM Na primeira parte deste trabalho discutimos desenvolvi- Ruth Benedict escreveu em seu livro O crisantemo e a espa- mento, na antropologia, do conceito de cultura. Mostramos da¹ que a cultura é como uma lente através da qual homem também as explicações da ciência para processo de evolu- vê 0 mundo. Homens de culturas diferentes usam lentes ção biocultural do homem. Em outras palavras, vimos como diversas e, portanto, têm visões desencontradas das coisas. a cultura, a principal característica humana, desenvolveu-se Por exemplo, a floresta amazônica não passa para o antro- simultaneamente com o equipamento fisiológico do ho- pólogo desprovido de um razoável conhecimento de mem. Preocupamo-nos então em fornecer uma descrição botânica de um amontoado confuso de árvores e arbus- diacrônica do próprio desenvolvimento teórico da antropo- tos, dos mais diversos tamanhos e com uma imensa varieda- logia. Nesta segunda parte pretendemos mostrar, de uma de de tonalidades verdes. A visão que um Tupi tem maneira mais prática, a atuação da cultura e de que forma deste mesmo cenário é totalmente diversa: cada um desses ela molda uma vida "num ser biologicamente preparado vegetais tem um significado qualitativo e uma referência para viver mil vidas". espacial. Ao invés de dizer como nós: "encontro-lhe na esquina junto ao X", eles freqüentemente usam determinadas árvores como ponto de referência. Assim, ao contrário da visão de um mundo vegetal amorfo, a é vista como um conjunto ordenado, constituído de formas vegetais bem definidas. A nossa herança cultural, desenvolvida através de meras gerações, sempre nos condicionou a reagir deprecia- tivamente em relação ao comportamento daqueles que agem fora dos padrões aceitos pela maioria da comunidade. Por isto, discriminamos comportamento desviante. Até recen- temente, por exemplo, homossexual corria risco de 66 6768 Cultura: um concelto antropológico Como opera a cultura 69 agressões físicas quando era identificado numa via pública e alegria. Todos 05 homens riem, mas 0 fazem de maneira ainda é objeto de termos depreciativos. Tal fato representa diferente por motivos diversos. um tipo de comportamento padronizado por um sistema A primeira vez que vimos um índio Kaapor rir foi um cultural. Esta atitude varia em outras culturas. Entre algu- motivo de susto. A emissão sonora, profundamente alta, mas tribos das planícies norte-americanas, homossexual assemelhava-se a imaginários gritos de guerra e a expressão era visto como um ser dotado de propriedades mágicas, facial em nada se assemelhava com aquilo que estávamos capaz de servir de mediador entre 0 mundo social e acostumados a ver. Tal fato se explica porque cada cultura sobrenatural, e portanto respeitado. Um outro exemplo de tem um determinado padrão para este fim. Os alunos de atitude diferente de comportamento desviante encontramos uma nossa sala de aula, por exemplo, estão convencidos de entre alguns povos da onde a prostituição não um fato anômalo: jovens da praticavam que cada um deles tem um modo particular de rir, mas um relações sexuais em troca de moedas de ouro, a fim de observador estranho a nossa cultura comentará que todos acumular um dote para 0 casamento. eles riem de uma mesma forma. Na verdade, as diferenças O modo de ver 0 mundo, as apreciações de ordem moral percebidas pelos estudantes, e não pelo observador de fora, e valorativa, OS diferentes comportamentos sociais e mesmo são variações de um mesmo padrão cultural. Por isto é que as posturas corporais são assim produtos de uma herança acreditamos que todos japoneses riem de uma mesma cultural, ou seja, 0 resultado da operação de uma determi- maneira. Temos a certeza de que OS japoneses também estão nada cultura. convencidos que riso varia de indivíduo para indivíduo Graças ao que foi dito acima, podemos entender fato dentro do Japão e que todos OS ocidentais riem de modo de que indivíduos de culturas diferentes podem ser facil- igual. mente identificados por uma série de características, tais Pessoas de culturas diferentes riem de coisas diversas. O como modo de agir, vestir, caminhar, comer, sem mencio- repetitivo pastelão americano não encontra entre nós a nar a evidência das diferenças fato de mais mesma receptividade da comédia erótica italiana, porque em imediata observação empírica. nossa cultura a piada deve ser temperada com uma boa dose Mesmo exercício de atividades consideradas como de sexo e não melada pelo arremesso de tortas e bolos na parte da fisiologia humana podem refletir diferenças de face do adversário. Voltando aos japoneses: riem muitas cultura. Tomemos, por exemplo, 0 riso. Rir é uma proprie- vezes por questão de etiqueta, mesmo em momentos evi- dade do homem e dos primatas superiores. riso se expres- dentemente desagradáveis. Enfim, poderíamos continuar sa, primariamente, através da contração de determinados indefinidamente mostrando que riso é totalmente condi- músculos da face e da emissão de um determinado tipo de cionado pelos padrões culturais, apesar de toda a sua fisio- som vocal. riso exprime quase sempre um estado de logia.70 Cultura: um antropológico Como opera a cultura 71 Ainda com referência às diferentes maneiras culturais inves de ser determinada geneticamente (todas as formigas de efetuar ações fisiológicas, gostaríamos de citar clássico de uma dada espécie usam 05 seus membros uniformemen- artigo de Marcel Mauss (1872-1950) "Noção de técnica te), depende de um aprendizado e este consiste na cópia de no qual analisa as formas como as homens, de padrões que fazem parte da herança cultural do grupo. sociedades diferentes, sabem servir-se de seus corpos. Se- Não pretendemos nos estender neste ponto porque gundo Mauss, podemos admitir com certeza que se "uma exemplos seriam inumeráveis, mas vamos acrescentar mais criança senta-se à mesa com 05 cotovelos junto corpo e um exemplo: 0 homem recupera a sua energia, a sua força permanece com as mãos nos joelhos, quando não está de trabalho, através da alimentação. Esta é realizada de mendo, ela é inglesa. Um jovem não sabe mais se formas múltiplas e com alimentos diferentes. dominar: ele abre OS cotovelos em leque e apóia-os sobre É evidente e amplamente conhecida a grande diversida- mesa". Não é dificil imaginar que a posição das crianças de da espécie humana. Freqüentemente, esta brasileiras, nesta mesma situação, pode ser bem diversa. diversidade é utilizada para classificações depreciativas; as- Como exemplo destas diferenças culturais em atos que sim, no início do século americanos denominavam OS podem ser classificados como naturais, Mauss cita ainda as franceses de "comedores de rãs". Os índios Kaapor discrimi- nam Timbira chamando-os pejorativamente de "comedo- técnicas do nascimento e da obstetricia. Segundo ele, "Buda res de cobra". E a palavra potiguara pode significar realmen- estando sua mãe, agarrada, reta, a um ramo de te "comedores de camarão", mas resta uma dúvida árvore. Ela deu à luz em pé. Boa parte das mulheres da Índia tica desde que em Tupi ela soa muito próximo da palavra ainda dão à luz desse modo". Para nós, a posição normal é a que significa "comedores de fezes". mãe deitada sobre as costas, e entre OS Tupis e outros índios As pessoas não se chocam, apenas, porque as outras brasileiros a pósição é de cócoras. Em algumas regiões do comem coisas diferentes, mas também pela maneira que meio rural existiam cadeiras especiais para parto sentado. agem à mesa. Como utilizamos garfos, surpreendemo-nos Entre estas técnicas pode-se incluir 0 chamado parto sem com uso dos palitos pelos japoneses e das mãos por certos dor e provavelmente muitas outras modalidades culturais segmentos de nossa sociedade: que estão à espera de um cadastramento etnográfico. Dentro de uma mesma cultura, a utilização do corpo é "Vida de Pará, Vida de descanso, diferenciada em função do sexo, As mulheres sentam, cami- Comer de arremesso nham, gesticulam etc. de maneiras diferentes das do ho- E dormir de mem. Estas posturas femininas são copiadas pelos travestis. Resumindo, todos OS homens são dotados do mesmo Em algumas sociedades ato de comer pode ser equipamento anatômico, mas a utilização do mesmo, ao em outras uma atividade privada. Alguns rituais de boas72 Cultura: um concelto antropológico Como opera a cultura 73 maneiras exigem um forte arroto, após a refeição, como em seus casos extremos pela ocorrência de numerosos con- sinal de agrado da mesma. Tal fato, entre nós, seria conside- flitos sociais. rado, no mínimo, como indicador de má educação. Entre OS O etnocentrismo, de fato, é um fenômeno É latinos, 0 ato de comer é um verdadeiro rito social, segundo comum a crença de que a própria sociedade é centro da qual, em horas determinadas, a família deve toda sentar-se humanidade, ou mesmo a sua única expressão. As autode- à mesa, com chefe na cabeceira, e somente iniciar a nominações de diferentes grupos refletem este ponto de alimentação, em alguns casos, após uma prece. vista. Os Cheyene, índios das planícies norte-americanas, se Roger Keesing em seu manual New Perspectives in Cul- autodenominavam "os entes humanos"; grupo tural começa com uma parábola que aconte- Tupi do Sul do Pará, consideram-se "os homens"; OS esqui- ceu ser verdadeira: "Uma jovem da Bulgária ofereceu um também se denominam "os homens"; da mesma forma jantar para estudantes americanos, colegas de seu mari- que OS Navajo se intitulavam "o povo". Os australianos do, e entre eles convidado um jovem asiático. Após OS chamavam as roupas de "peles de fantasmas", pois não convidados terem terminado OS seus pratos, a per- acreditavam que 05 ingleses fossem parte da humanidade; e nossos Xavante acreditam que seu território tribal está guntou quem gostaria de repetir, pois uma situado bem no centro do mundo. É comum assim a crença que deixasse seus convidados se retirarem famintos esta- no povo eleito, predestinado por seres sobrenaturais para ser ria desgraçada. O estudante asiático aceitou um segundo superior aos demais. Tais crenças contêm germe do racis- prato, e um terceiro enquanto a ansiosamente mo, da intolerância, e, freqüentemente, são utilizadas para preparava mais comida na cozinha. Finalmente, no meio de justificar a violência praticada contra os outros. seu quarto prato estudante caiu ao solo, convencido de A dicotomia "nós e OS outros" expressa em dife- que agiu melhor do que insultar a pela recusa da rentes essa tendência. Dentro de uma mesina sociedade, a comida que lhe eTa oferecida, conforme costume de seu divisão ocorre sob a forma de parentes e não-parentes. Os país." Esta parábola, acrescenta Keesing, reflete a condição primeiros são melhores por definição e recebem um trata- humana. O homem tem despendido grande parte da sua mento diferenciado. A projeção desta dicotomia para 0 pla- história na Terra, separado em pequenos grupos, cada um no extragrupal resulta nas manifestações nacionalistas ou com a sua própria linguagem, sua própria visão de mundo, formas mais extremadas de seus costumes e expectativas. ponto fundamental de referência não é a humanida- O de que 0 homem mundo através de sua de, mas 0 grupo. a reação, pelo menos a estranheza, cultura tem como a propensão em considerar em relação aos estrangeiros. A chegada de um estranho em 0 seu modo de vida como mais correto e mais natural. determinadas comunidades pode ser considerada como a Tal tendência, denominada etnocentrismo, é responsável quebra da ordem social ou sobrenatural. OsComo opera a cultura 95 5. A CULTURA É DINÂMICA tente entre dois documentos, a afirmar que não ocorreu modificação naquela sociedade no último século. Mas seria verdadeira tal dedução? A resposta é negativa. Em primeiro lugar, porque ritos religiosos situam-se entre as partes de uma sociedade que parecem ter uma menor velocidade de mudança. Em segundo lugar, porque a foto Num exercício de imaginação, suponhamos que um dos não cobre todas as variáveis do ritual. Consideremos que, missionários jesuitas do século XVI, durante a sua perma- em vez do ritual xinguano, DS dois documentos retratassem nência no Brasil, tenha dividido as suas observações entre uma parte da missa O aspecto apenas visual dos mesmos daria a falsa impressão de que não houve nenhuma comportamento dos indígenas e hábitos das formigas saúva. Quatro séculos depois, qualquer entomologista po- mudança no ritual E nós sabemos que estas mudanças ocorreram. derá constatar que não houve qualquer mudança nos hábi- A resposta do antropólogo seria, portanto, diferente da tos dos referidos insetos. Durante quase meio milênio, as da maioria dos leigos. O espaço de quatro séculos seria habitantes do formigueiro repetiram OS procedimentos de suficiente para demonstrar que a referida sociedade indige- suas antecessoras, obedecendo apenas às diretrizes de seus na mudou, porque homens, contrário das formigas, padrões genéticos. Supondo, por outro lado, numa hipótese têm a capacidade de questionar 05 seus próprios hábitos e quase absurda, que um dos grupos indígenas observados modificá-los. O antropólogo concordaria, porém, que as tenha aos quatro séculos de dizimação, graças a sociedades isoladas têm um ritmo de mudança um isolamento em relação aos brancos, que constataria menos acelerado do que 0 de uma sociedade complexa, um antropólogo moderno? atingida por sucessivas inovações tecnológicas. Esse ritmo A tendência de muitos leigos seria a de responder que indígena decorre do fato de que a sociedade está satisfeita essas pequenas sociedades tendem a ser estáticas e que, com muitas de suas respostas ao meio e que são resolvidas portanto, 0 antropólogo confirmaria as observações do mis- por suas soluções tradicionais. Mas esta satisfação é relativa; sionário. Essa tendência decorre do fato de que as chamadas muito antes de conhecer D machado de aço, OS nossos sociedades simples dão realmente uma impressão de estati- tinham a consciência da do machado de cidade. Por exemplo, em 1964 um ritual xin- pedra. Por isto, nosso machado representou um grande item na atração dos guano e a foto foi, posteriormente, comparada a um dese- nho de Von den Steinen, que ali esteve 80 anos antes. Desta No Manifesto sobre aculturação, resultado de um semi- comparação ser levados, tal a identidade exis- nário realizado na Universidade de Stanford, em 1953, OS autores afirmam que "qualquer sistema cultural está num 9496 Cultura: um antropológico Como opera a cultura 97 contínuo processo de modificação. Assim sendo, a mudança que é inculcada pelo contato não representa um salto de um ção, utilizado desde início do século pela antropologia estado estático para um dinâmico mas, antes, a passagem de e a partir de 1928 pelos antropólogos anglo-saxões. uma espécie de mudança para outra. O contato, muitas Através destes conceito atinge 0 nosso meio estimula a mudança mais brusca, geral e rápida do mas somente passa a ser utilizado amplamente a partir dos que as internas". anos 50, depois que Eduardo Galvão apresentou seu Podemos agora afirmar que existem dois tipos de mu- "Estudo de aculturação dos grupos indígenas brasileiros", na Reunião Brasileira de Antropologia, em 1953. dança cultural: uma que é interna, resultante da do próprio sistema cultural, e uma segunda que é resulta- Deixaremos de lado as mudanças mais espetaculares, do do contato de um sistema cultural com um outro. como as decorrentes de uma revolução política como a No primeiro caso, a mudança pode ser lenta, quase francesa ou soviética; as resultantes de uma inovação cien- impercebivel para observador que não tenha o suporte de tífica como as conseqüências da invenção do avião ou da bons dados diacrônicos. ritmo, porém, pode ser alterado pílula anticoncepcional para, num exercício didático, dis- por eventos históricos tais como uma catástrofe, uma gran- corrermos mais sobre as que agem lentamente sobre OS de inovação tecnológica ou uma dramática situação de con- nossos hábitos culturais. É necessário, porém, lembrar sem- tato. pre que ambas pertencem a um mesmo tipo de fenômeno, O segundo caso, como vimos na afirmação do Manifesto vinculadas que são ao caráter dinâmico da cultura. sobre aculturação, pode ser mais rápido e brusco. No caso Comecemos pela descrição de um tipo carioca, feita por dos brasileiros, representou uma verdadeira catástro- Machado de Assis, em Dom Casmurro: "E vimos passar com Mas, também, pode ser um processo menos radical, onde suas calças brancas engomadas, presilhas, rodaques e grava- a troca de padrões culturais ocorre sem grandes traumas. ta de mola. Foi dos últimos que usaram presilhas no Rio de Este segundo tipo de mudança, além de ser mais Janeiro, e talvez neste mundo. Trazia as calças curtas para estudado, é 0 mais atuante na maior parte das sociedades que lhe bem esticadas. A gravata de cetim preto, humanas. É praticamente impossível imaginar a existência com um arco de aço por dentro, imobilizava-lhe pescoço; de um sistema cultural que seja aletado apenas pela mudan- era então moda. rodaque de chita, veste caseira e leve, ça interna. Isto somente seria possível no caso, quase absur- parecia nele uma casaca de cerimônia." Não há dúvida que do, de um povo totalmente isolado dos demais. Por isto, a as vestimentas masculinas mudaram muito, nestes últimos mudança proveniente de causas externas mereceu sempre 100 anos, na cidade do Rio de Janeiro. Muitas outras mu- uma grande atenção por parte dos antropólogos. Para aten- danças sucederam as descritas por Machado de Assis, pas- dê-la foi necessário desenvolvimento de um esquema sando pelas pesadas vestimentas de casimira preta do inicio conceitual específico. Surge, então, conceito de acultura- do século, até modo informal de vestir dos dias de hoje.98 Cultura: um antropológico Como opera a cultura 99 São mudanças como essas que comprovam de uma tempo constitui um elemento importante na análise maneira mais evidente 0 caráter dinâmico da cultura. de uma cultura. Nesse mesmo quarto de século, mudaram- Basta que jovem leitor converse com seus pais e se OS padrões de beleza. Regras morais que eram vigentes compare a nossa vida quotidiana com a dos anos 50, por passaram a ser consideradas nulas: hoje uma jovem pode exemplo. Ele poderá, então, imaginar estar em plena noite, fumar em público sem que a sua reputação seja ferida. Ao postado diante de um espelho, ajeitando nó triangular de contrário de sua mãe, pode ceder um beijo ao namorado em sua gravata, bem no centro de seu colarinho, mantido reto plena luz do dia. Tais fatos atestam que as mudanças de pela ação das hastes de barbatana. Poderá também imaginar costumes são bastante comuns. Entretanto, elas não ocor- seu sentimento de vaidade ao reparar quão bem passado rem com a tranqüilidade que descrevemos. Cada mudança, está seu terno de casimira azul. Enfim, estava pronto para por menor que seja, representa desenlace de numerosos brilhar em mais um baile. Antes, porém, de entrar no salão conflitos. Isto porque em cada momento as sociedades hu- não dispensaria reforço de uma dose de bebida, seguida do manas são palco do embate entre as tendências conservado- mastigar de um chiclete capaz de disfarçar forte cheiro de ras e as inovadoras. As primeiras pretendem manter OS aguardente. Com esta dose adicional de coragem, jovem hábitos inalterados, muitas vezes atribuindo aos mesmos estaria apto para audaciosamente atravessar 0 salão e, numa uma legitimidade de ordem sobrenatural. As segundas con- discreta mesura diante da escolhida, perguntar: "a senhorita testam a sua permanência e pretendem por me dá 0 prazer desta dança?" novos procedimentos. Tudo estaria bem com a resposta afirmativa da moça. Assim, uma moça pode hoje fumar tranqüilamente em Mas, se esta, rompendo OS limites da etiqueta, não aceitava público, mas isto somente é possível porque antes dela o convite, mundo abria aos pés do jovem, que voltava numerosas jovens suportaram as zombarias, as recrimina- murcho e cabisbaixo para seu lugar, lamentando a "bruta ções, até que estas se esgotaram diante da nova evidência. tábua que levara". Por isto, num mesmo momento é encontrar numa Um quarto de século depois, esse pequeno drama social mesma sociedade pessoas que têm juízos diametralmente era perfeitamente desconhecido para muitos jovens que opostos sobre um novo fato. jamais compreenderão perfeitamente como era esse estra- Talvez seja mais fácil explicar a mudança raciocinando nho ritual denominado baile. em termos de padrões ideais e padrões reais de comporta- São essas aparentemente pequenas mudanças que ca- mento. Nem sempre 05 padrões ideais podem ser efetivados. vam fosso entre as gerações, que faz com que as pais não Neste caso, as pessoas agem diferentemente (esta ação cons- se reconheçam nos filhos e estes se surpreendam com a titui 05 padrões reais), mas consideram que OS seus procedi- "caretice" de seus progenitores, incapazes de reconhecer mentos não são exatamente OS mais desejados pela socieda- que a cultura está sempre mudando. de. Tomemos, como exemplo, as regras matrimoniais dos100 Cultura: um conceito antropológico Como opera a cultura 101 Tupi. Os índios Akuáwa-Asurini (do sudeste do Pará) con- publicação desses resultados mesmo deixando de lado a sideram que um homem deve casar preferencialmente com validade da amostra levantada na pesquisa causou uma a filha do irmão da mãe; ou com a filha da irmã do pai; ou grande reação por parte de diferentes setores e a revista teve ainda com a filha da irmã. Mas razões diversas, entre elas as a sua edição apreendida. Menos de dez anos depois, uma de ordem demográfica, fazem com que nem sempre ho- outra revista repetiu a pesquisa, com uma amostragem bem mem encontre esposas dentro dessas categorias genealógi- maior, e OS resultados foram mais significativos do que OS da cas. Assim, qualquer outro casamento é tolerado desde que vez anterior. Comprovavam enfaticamente uma mudança a mulher não seja mãe, filha ou irmã do noivo. Em decor- no comportamento feminino. Dessa vez, contudo, a reação rência destas regras, OS Akuáwa-Asurini classificam O casa- não ocorreu e a revista circulou livremente. Tal fato signifi- mento segundo três tipos. Ao primeiro denominam de ca, sem dúvida, a ocorrência de mudanças nos padrões "katu-eté" (muito bom) e é referente a todas as uniões ideais da sociedade de forma a ajustá-la aos eventos reais. realizadas de acordo com as regras preferenciais relaciona- Em outras palavras, a mudança chegou a uma tal dimensão das acima. O segundo tipo é aquele que engloba todos OS que modificou próprio padrão ideal. casamentos que não estão de acordo com as regras preferen- Concluindo, cada sistema cultural está sempre em mu- ciais, mas também não são proibidos, e que são denomina- dança. Entender esta dinâmica é importante para atenuar 0 dos "katu" (bom). Do ponto de vista estatístico este é tipo choque entre as gerações e evitar comportamentos precon- de casamento mais comum. Finalmente, O terceiro tipo, ceituosos. Da mesma forma que é fundamental para a huma- denominado "katu-i", é referente às uniões dentro das nidade a compreensão das diferenças entre povos de cultu- categorias proibidas, ou seja, aquelas que levam ao rompi- ras diferentes, é necessário saber entender as diferenças que mento da proibição do incesto. ocorrem dentro do mesmo sistema. Este é 0 único procedi- O de que a maioria dos matrimônios não corres- mento que prepara homem para enfrentar serenamente ponde ao ideal somente pode ser considerado uma mudança este constante e admirável mundo novo do porvir. quando as pessoas, além de agirem diferentemente, come- çam a colocar em dúvida a validade do modelo. Tomemos agora um exemplo de nossa sociedade. No início dos anos 70, uma revista fez uma pesquisa sobre comportamento sexual da mulher brasileira. 0 resultado indicou que existia uma porcentagem significativa que não agia de acordo com padrões tradicionais da sociedade. Ou seja, tornavam-se mais freqüentes as relações sexuais pré- matrimoniais e 0 número de relações extraconjugais. AIV CULTURA POPULAR E SOCIEDADE DE MASSAS¹ A maior contribuição da antropologia para o campo das ciências humanas foi, provavelmente, desenvolvimento do conceito de cultura com todos OS seus subprodutos e desdobramentos. Não cabe aqui examinar com minúcias as origens e a gênese do conceito, mas sim procurar situá-lo diante de desafios da sociedade contemporânea, particularmente da brasileira.² Hoje em dia, cultura faz parte do vocabulário básico das ciências humanas e sociais. O seu emprego distingue-se em relação ao senso comum no sentido que esse dá às noções de homem culto e inculto. Assim como todos OS homens em princípio interagem social- mente, participam sempre de um conjunto de crenças, valores, visão de mundo, rede de significados que definem a própria natureza humana. Por outro lado, cultura é um conceito que só existe a partir da constatação da diferença entre nós e OS outros. Implica confirmação da existência de modos distintos de construção social da realidade com a produção de padrões, normas que contrastam socie- dades particulares no tempo e no espaço. Assim, podemos distinguir, por exemplo, a cultura da sociedade francesa, do século XIII, a cultura trobriandesa estudada por Malinowski, a cultura da sociedade grega do século IV a.C. ou a cultura brasileira contemporânea. 1. Publicado originalmente em Piracema: revista de arte e cultura, n. 1, ano 1, Funarte/IBAC, 1993, p. 57-63. 2. Ver meu artigo, em co-autoria com Eduardo Viveiros de Castro, "O conceito de cultura e estudo das sociedades complexas". Artefato, n. 1, Jornal de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, 1978, 4-9. 6364 projeto e metamorfose cultura popular e sociedade de massas 65 Desse modo e reagindo contra preconceitos e etnocentrismo, perspectiva, por conseguinte, a sociedade complexa é vista OS antropólogos, progressivamente, passaram a insistir em que constituída por dois conjuntos culturais básicos que produzem cada cultura deve ser entendida em seus próprios termos. Essa é e vivem essa relação de oposição complementar. Os autores, a base do relativismo cultural. sabemos, vão variar no grau e ênfase que dão aos aspectos de Quando definimos cultura como um conceito, sabemos que ela dominação, exploração e antagonismo existentes. Na tradição pode ser e foi utilizada para efetuar recortes em função de inte- marxista, quando se distingue, por exemplo, classe trabalhado- resses específicos da investigação científica. Mas o pressuposto ra dentro do universo maior e mais heterogêneo das camadas básico para a sua utilização é a possibilidade de identificar um e/ou classes populares, está havendo uma opção por valorizar conjunto de fenômenos socioculturais que possa ser diferenciado a importância da estrutura de classes na sociedade capitalista, e contrastado com outros conjuntos a que também denominamos sublinhando seus conflitos constitutivos básicos. Por outro culturas. Assim, podemos trabalhar tanto num plano tão amplo, lado, dependendo do interesse do investigador e de sua visão como cultura ocidental, quanto em planos mais restritos, como da complexidade da sociedade, matizes e nuanças podem sur- cultura afro-brasileira, xavante, gaúcha etc. gir, desenfatizando a polaridade para valorizar combinações e meios-tons. A partir dessas considerações podemos passar a examinar a relação entre cultura popular e sociedade de massas no caso brasileiro A cultura popular pode, portanto, no caso de se marcar seu ca- contemporâneo. ráter heterogêneo e plural, ser desdobrada em culturas populares.⁴ Nesse caso, sublinha-se a sua diversidade regional, étnica, ocu- pacional, religiosa etc. O povo, as camadas e/ou classes populares são focalizados, sob esse ângulo, nos seus diferentes modos de A noção de cultura popular remete à dicotomia elites e classes ser e de se expressar. Podemos falar, então, em tradição artesanal e/ou camadas populares. Essa visão dualista distingue dois nordestina, em mundo do candomblé, em tradições ligadas aos níveis de cultura dentro de uma sociedade, relacionados não imigrantes italianos, alemães, japoneses, em festas populares ca- tólicas etc. só à desigualdade econômica e política como, de um modo geral, a visões de mundo e experiências sociais peculiares. Den- Estaremos, assim, lidando com a complexidade e heterogenei- tro da tradição antropológica, com autores como Robert Red- dade da vida cultural da sociedade contemporânea, com seus field com sua noção de contínuo folk-urbano, enfatizou-se sempre diversos níveis, dimensões e combinações. As relações entre esses caráter dinâmico e relacional entre diferentes níveis de constituem um dos temas mais fascinantes da moderna pesquisa cultura. Pensadores e historiadores como Bahktin e Ginzburg, histórica, antropológica e folclórica, apresentando-se como um por sua vez, exploraram não só a distinção de níveis como, desafio dos mais estimulantes. Cabe registrar que o fenômeno da sobretudo, essa sua natureza relacional e interativa.³ Nessa diferenciação é identificado tanto dentro das camadas populares como das elites, embora essas, por definição, tenham maior ten- dência, se não à homogeneidade propriamente dita, a uma certa 3. Ver, por exemplo, Redfield, Robert. The folk culture of Yucatan. Chicago, The University of Chicago Press, 1968; Bahktin, Mikhail. A cultura popular concentração de padrões e estilo de vida, ligada ao seu processo de reprodução e continuidade. na Idade Média e no Renascimento: contexto de François Rabelais. São Paulo, Hucitec/Edusp; Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1987; Ginzburg, Car- lo. O queijo e vermes: cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo, Companhia das Letras, 1987; id. História noturna: 4. Ver também a importante contribuição de Canclini, Néstor García. Las decifrando 0 sabá. São Paulo, Companhia das Letras, 1991. culturas populares en el capitalismo. México, Editorial Nueva Imagem, 1982.66 projeto e metamorfose cultura popular sociedade de massas 67 No caso brasileiro, encontramos fenômenos que, por sua rique- com elevada renda e prestígio social, confundindo-se em certos za e densidade, põem em xeque esquemas e classificações dema- siadamente rígidos. Refiro-me, principalmente, às religiões e cul- contextos com o mundo das elites. As diferentes ocupações, back- ground e trajetórias compõem um quadro de estilos de vida e tos possessão que atravessam quase toda a estrutura social. No plano cultural, não há como exagerar a importância da crença visões de mundo altamente diversificado, dificultando generali- zações do tipo "cultura de classe média". generalizada em espíritos e nas suas possibilidades de se comu- nicarem, manifestarem e influenciarem a vida cotidiana. Can- domblé, umbanda, espiritismo, kardecismo, catolicismo popular, diversas seitas de origem protestante, com todas as suas impor- tantes diferenças e até pelos seus conflitos e acusações recíprocas, Sem dúvida, uma das características mais marcantes da socie- têm como referência permanente um domínio do sobrenatural dade é o seu caráter de massificação. mais ou menos benigno ou maligno, mas de algum modo mani- processo de urbanização, desenvolvimento das grandes pulável, sempre presente nas ações humanas.⁵ regiões metropolitanas e das megalópoles, meios de transporte Embora esse fenômeno seja localizado principalmente nas ca- e comunicação, OS avanços tecnológicos produziram uma trans- madas populares, OS trabalhos mencionados e outros apontam a formação inédita na história da humanidade quanto a alterações presença nos diferentes cultos, embora em distribuição desigual, de padrões de sociabilidade e interação, costumes e rotinas. de indivíduos de diversos setores e segmentos médios e também Mas vale sublinhar que as diferentes sociedades e culturas de elites. Configura-se, assim, como um dramático exemplo da interpretaram e lidaram de modo singular com essas mudanças, fluidez das fronteiras entre níveis de cultura, destacando-se como impedindo que se pense em um processo efetivamente uniforme. uma das características mais gerais e identificadoras da sociedade Embora existam semelhanças, as diferenças são cruciais para per- A gênese dessas crenças está associada, como sabem, aos ceber os significados e definições de realidade em cada situação. escravos e culturas africanos, mas também a tradições cristãs ligadas Isso é importante para não cairmos em esquemas evolucionistas ao exorcismo, à bruxaria e a outras práticas e crenças seculares. apressados e empobrecedores. Ao lado dessas particularidades e matizes culturais, há que Um dos exemplos mais ricos e polêmicos, no caso brasileiro, é o atentar, portanto, para a complexidade propriamente sociológica das telenovelas. Elas são vistas e acompanhadas, diariamente, por do Brasil. dezenas de milhões de indivíduos em todo o país. Aparecem, por- No caso mencionado, citamos a importância da participação tanto, como um dos exemplos mais expressivos da sociedade de das camadas médias, que são, pela sua constituição, variadas e massas. Alguns autores já criticaram a idéia de que as telenovelas fluidas. Incluem desde pequenos funcionários e comerciários na fronteira da classe trabalhadora até universos intelectualizados, ticulares.⁷ uniformizam a sociedade, apagando e afetando as identidades par- 5. Ver, entre outros, Maggie, Yvonne: Guerra de orixá: um estudo de ritual e conflito. Rio de Janeiro, Zahar, 1975; id. Medo de feitiço: relações entre magia e 7. Ver, por exemplo, Prado, Rosane Manhães. Mulher de novela e mulher de poder no Brasil. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1993; Viveiros de Castro verdade: estudo sobre cidade pequena, mulher e telenovela. Rio de Janeiro, Cavalcanti, Maria Laura. O mundo invisível: cosmologia, sistema, ritual e noção PPGAS/Museu (dissertação de mestrado), 1987; Coutinho, de pessoa no espiritismo. Rio de Janeiro, Zahar, 1983; e Prandi, Reginaldo. Os Mônica Roque. Telenovela e texto cultural: análise antropológica de um gênero candomblés de São Paulo: a velha magia na metrópole nova. São Paulo, Huci- em construção. Rio de Janeiro, PPGAS/Museu Nacional/UFRI (dissertação tec/Edusp, 1991. de mestrado), 1993; e Kottak, Conrad Phillip. Prime Time Society: an anthro- 6. Ver OS Capítulos I e II deste livro. pological analysis of television and culture. Belmont, California, Wadsworth Publishing Company, 1990.68 projeto metamorfose cultura popular e sociedade de massas 69 Frisam que OS diferentes grupos sociais, com sua socialização sando de uma esfera de significados para outra, em fluxo contí- e peculiaridades, fazem leituras e interpretações particulares da- nuo, acionando aspectos diferentes de sua experiência e persona- quilo a que assistem na tevê. Essas observações relativizam as lidade social. Os diversos papéis que vive e os diferentes códigos teorias sobre "aldeia global" e coisas do gênero. De fato, está se que aciona lhe fornecem um repertório simbólico e cultural que afirmando que os indivíduos não são folhas de papel em branco invalida a idéia de que, pelo fato de ver tevê regularmente, possa onde são impressas as imagens e mensagens da televisão, parti- se tornar um "mero joguete" da cultura de massas. cularmente de suas novelas. Mesmo em se tratando das novas gerações que são expostas a esse veículo desde praticamente o nascimento, há que mencionar a existência de outros mecanismos e agências socializadoras, como a família, a igreja, o grupo de pares, a comunidade, a escola O universo das camadas populares brasileiras é, portanto, am- etc. Por outro lado, a comunicação de massas também é hetero- plo, variado e heterogêneo. Além da classe trabalhadora, pro- gênea de vários modos, impedindo que se fale em um movimento priamente dita, no campo e na cidade, identificamos campone- único e avassalador. Além do mais, ela é produzida dentro de uma ses, pequenos proprietários, bóias-frias, pescadores, desempre- cultura e sociedade, não se constituindo em um fenômeno alie- gados, semi-empregados, marginais ao mercado de trabalho e nígena, por mais que se possa criticar OS excessos dos enlatados de todos outros tipos, empregados domésticos, funcionários americanos. públicos, colarinhos-brancos, técnicos de nível médio, comer- Não só a "matéria-prima" de fatos e informações, mas modelos, ciários, bancários, diversos setores de camadas médias, mora- juízos, valores são acionados a partir de significados, experiências dores de favelas, conjuntos, subúrbio, periferia etc. As relações e vivências culturalmente construídos, elaborados e articulados. desse universo com outras categorias e grupos sociais podem Portanto, as telenovelas fazem parte da sociedade e cultura bra- ser mais ou menos inclusivas ou antagônicas, variando em sileiras, com suas virtudes, dificuldades e problemas. Isso não contextos históricos e regionais. A indiscutível iniqüidade so- significa, obviamente, que veículos de comunicação não atuem cial brasileira estabelece terríveis fossos, mas não exclui a pos- e afetem a vida das pessoas. Mas, além de as mensagens e influên- sibilidade de interações sociais e simbólicas entre diferentes cias não serem homogêneas e unidirecionais, indivíduos e mundos e classes, mediante relações de dominação ou de outra natureza, como já foi mencionado. grupos movem-se em uma rede de papéis e significados que faz com que a recepção seja diferenciada, e as interpretações, hetero- Toda essa riqueza e a complexidade de tradições e visões de gêneas. Logo, estamos lidando com um mapa dinâmico, de múl- mundo exigem um grande esforço de compreensão e análise. O tiplos planos e em permanente mudança. No plano individual, a trabalho dos cientistas sociais em geral, particularmente dos pes- participação em mundos diferenciados e o desempenho de múl- quisadores de cultura popular, é imprescindível para conhecer tiplos papéis levam ao desenvolvimento de um potencial de meta- melhor país e poder promover uma ação social de apoio aos morfose particularmente rico.⁸ setores mais carentes e com dificuldade de acesso e inserção no Assim, um indivíduo de classe trabalhadora, freqüentador de mundo do trabalho e na esfera pública em geral. um terreiro de umbanda, torcedor do Flamengo e músico de Para sucesso desse empreendimento é crucial apoio do pagode, vive no seu cotidiano a experiência de estar sempre pas- Estado. Só o poder público tem condições de liderar e coordenar esse processo que envolve investigação científica e política social. As ações desenvolvidas pelo antigo Instituto Nacional de Fol- 8. Para a discussão desse conceito ver Capítulos anteriores, especialmente o I. clore, atual Coordenação de Folclore e Cultura Popular, apesar de70 projeto e metamorfose todas as dificuldades, têm demonstrado esse propósito. A pesqui- sa, com trabalho de campo e observação participante, soma-se à investigação bibliográfica, no esforço de estudar e apoiar comu- nidades e setores específicos. O estímulo à criatividade das cama- das populares, associado à preocupação de garantir espaço para a continuidade de tradições valorizadas pelos grupos, procura dar conta dos dilemas e pressões inerentes à mudança social. A importância de um Museu do Folclore, por outro lado, consiste em garantir e dignificar a memória da cultura popular, reagindo a preconceitos de todas as ordens. A atividade multi e interdisci- plinar, integrando folclore, antropologia e história, é a base de um conhecimento mais sofisticado, resistente a manipulações e pater- nalismo. Essa sutil, mas vigorosa, combinação de pesquisa cien- tífica, apoiada na academia, com uma política social democrática é certamente caminho adequado de instituições como o 9. INF foi particularmente massacrado pela chamada "reforma adminis- trativa" Collor-Santana. Perdeu boa parte de seu quadro técnico-científico, dano não reparado até a época de preparação deste livro.Enigma do 2 A Cultura uma O PAPEL GENERATIVO DA CULTURÁ vai aumentar, na arkhé -sociedade, com 0 desenvolvimento das regras organizacio nais, a multiplicação e a complexificação do conhecimento técnico, a complexificação da linguagem. No que se refere à linguagem, tudo nos leva a acredi- tar que esta, como sistema de dupla articulação, foi cons- 1925 tituída entre OS antecessores do sapiens. Mas, com 0 sapiens, efetuou provavelmente um salto qualitativo-quan- titativo último, em virtude da intensificação das microco- municações (relações no seio da família e entre indivíduos) e das macrocomunicações na sociedade e entre sociedades. Na realidade, as línguas dos grupos menos evoluídos de que se tem notícia apresentam, de fato, uma complexidade de estrutura igual à de nossas línguas modernas. Mas caráter próprio à arkhé-cultura é muito mais do que 0 desenvolvimento de uma cultura já emergida no período hominídeo: é uma nucleação noológica nova, ligada ao surgimento do mito e da magia no sapiens. A Integração Sociocultural Tudo acontece como se uma prodigiosa proliferação de mitos, de ritos e de magia estivesse parasitando, como uma hera, já muito complexo edifício social, mas tudo acontece, igualmente, como se ela constituísse um cimento integrador que se introduz em todas as suas fendas. Já parece, na verdade, que 0 cérebro do sapiens segrega, para todas as coisas, sua explicação, sua legitimação, em que se misturam inextricavelmente uma lógica ordenadora, uma sutileza interpretativa surpreendente, intuições pro-168 ENIGMA DO HOMEM A CULTURA 169 fundas, fantasias arbitrárias. Também parece, da mesma assustam as mulheres e as crianças. Já as mulheres não forma, que mito e magia instituem aquele compromisso estão totalmente desarmadas, magicamente: poder "neurótico", ou seja, adaptativo, entre, por um lado, a masculino deve respeitar e honrar princípio feminino de do sapiens, suas contradições in- fecundidade, tanto na ordem cósmica quanto na ternas, e, por outro lado, as realidades exteriores do mundo sócio-antropológica; ele só controla OS gênios da organi- e as realidades organizacionais da sociedade. zação, da predação, da guerra. Mas, no que se refere aos. Com efeito, a mitologia arcaica integra noologicamente jovens, controle mágico é mais total e opera-se no rito a sociedade e homem no mundo. Estabelece correspon- da iniciação. Pela iniciação, a classe masculina adulta dências analógicas entre universo ecossistêmico e uni- quebra em duas partes sociológicas continuum bioló- verso antropológico, qual, de modo quer fragmentado, gico da adolescência; remata, portanto, uma cisão que quer completo, aparece como um microcosmo integrado impede a constituição de uma classe juvenil e exerce con- no macrocosmo (Morin, A organização do espaço- trole absoluto do direito de entrada no universo adulto. -tempo social molda-se no espaço-tempo cósmico. A socie- Esta operação é feita por meio de provas e de torturas dade deve-se manter a ordem do mundo, tal como a ordem que culminam numa cerimônia de morte-renascença, do mundo se deve manter a vida social. Os ritos consti- que a criança, tornando-se homem, adquire um novo nome tuem as técnicas de harmonização. Assim, ciclo prático e uma nova personalidade. Assim, O poder de classe fir- das atividades está integrado num ciclo cosmo-mitológico; ma-se e dissimula-se numa grandiosa operação mítico- as cerimônias e as festas inflamam esse ciclo, trazendo, -cosmológica em que intervêm OS espíritos e OS deuses. ao mesmo tempo, a grande comunicação com todo e a tal como em outras questões, a magia, mito e grande comunhão entre todos. A festa, além do mais, 11- rito são dotados de uma tamanha credibilidade, de uma berta OS impulsos inibidos, expulsa catarticamente as tamanha força de nas suas injunções ou forças da desordem, deixa-as mesmo submergir tempora- interditos, estes são tão profundamente interiorizados que riamente a ordem social, que fortifica essa mesma ordem; tornam acessórios e, por vezes, até mesmo inúteis a repres- é de modo periódico, rítmico, que a complexidade social, são ou punição, com 0 sistema não acionando qualquer por um afrouxamento controlado do controle, se serve das coerção física, qualquer sujeição pelo corpo. tendências para a desorganização que ela transmuda em forças regenerativas. É por isso, de resto, que a recreação social é vivida A Identidade Sociocultural mitologicamente como uma recriação do mundo. E a festa, longe de afastar provisoriamente sapiens do seu próprio caminho, revela, exprime e alimenta sua natureza híbrica A identidade individual e coletiva afirma-se, já não na de- e extática. pendência imediata de dado grupo, como na Ao mesmo tempo, mito, rito e magia rematam a inte- primática, mas sim pelo e no conjunto dos fios gração interna da sociedade, envolvendo, precedendo, que ligam indivíduo a seu parentesco real e mítico e que dão a uma cultura sua identidade singular. O nome liga acompanhando as atividades práticas, as operações de fun- cionamento, de orientação, de repressão, bem como ciclo a identidade individual a uma filiação sociocultural esta- de vida individual desde nascimento até a morte. Longe belece, ao mesmo tempo, a diferença e a dependência: de eliminar OS modos técnicos ou de deixar eliminar por quando se diz "filho de", tem-se em mente não apenas OS eles, OS modos mágicos OS completam e OS protegem. genitores, mas também antepassados, a Magia, rito e mito consagram as regras de organi- social. O mito alimenta a recordação, 0 culto e a presença zação da sociedade e, por isso mesmo, reforçam com uma do antepassado, mantendo, por isso mesmo, a identidade justificativa transcendente a dominação da classe masculi- Este tema do antepassado, das origens na. Esta ocupa, todavia, as posições-chaves mágico-reli- e da genealogia retorna sempre, obsessivo, nos símbolos, giosas, monopolizando as relações com OS espíritos, que nas tatuagens, nos emblemas, nos adornos, nos ritos, nas cerimônias, nas festas.170 0 ENIGMA DO HOMEM A CULTURA 171 Por outro lado, a identidade social vai encontrar-se Neste sentido, a teoria culturalista dos "modelos de aumentada, reforçada, pelo confronto com as outras SO- cultura" determinando uma "personalidade de base", tem ciedades que, embora tendo uma organização de base se- sua verdade, desde que a provincialize, a relativize, a melhante, se diferenciam pela linguagem, 0 mito genealó- dialetize, gico e cósmico, espíritos, OS deuses, OS símbolos, OS Com efeito, a herança cultural oferece 0 modelo de emblemas, adorno, rito, a magia, isto é, pelos carac- uma personalidade "ideal" e favorece estatisticamente a teres noológicos. E, assim, a esfera noológica da cultura emergência de traços que lhe correspondem. Contudo, define a identidade de cada indivíduo, bem como de cada a hereditariedade genética não se deixa reduzir e pode sociedade, não só por sua própria imagem, mas também mostrar-se renitente, O que estabelece uma diversidade por oposição à da cultura estrangeira. muito grande nas resultantes das combinações entre he- rança cultural e hereditariedade genética; assim, cons- 0 Código Cultural titui-se sempre uma minoria de desviados (que vão contri- buir para a complexidade social, se forem tolerados e A cultura reúne em si um duplo capital por um lado, um respeitados, mas não quando são reprimidos ou elimi- capital técnico e cognitivo de saberes e de conheci- nados) mentos que pode ser transmitido, em princípio, a toda Deste modo, a combinação entre a hereditariedade ge- e qualquer sociedade e, por outro lado, um capital espe- nética e a herança cultural opera-se de modo, ao mesmo cífico que constitui as características de sua identidade tempo, complementar, concorrente e antagonista, tenden- original e alimenta uma comunidade singular por referên- do, por isso mesmo, a criar uma nova complexidade in- cia a seus antepassados, seus mortos, suas tradições. dividual ao introduzir em cada indivíduo uma dualidade O conjunto constitui sistema generativo de uma SO- mais ou menos bem integrada entre sua personalidade SO- ciedade sapiental; através de regras, normas, interditos, cial seu "personagem" e sua pessoa subjetiva. Mas, quase-programas e estratégias, controla a existência feno- ao mesmo tempo, "modelo" cultural, O tipo ideal de menal da sociedade, de tal modo que assegura a manuten- personalidade, tende a reduzir a variedade individual e, ção da complexidade social e se autoperpetua através da sobretudo, OS efeitos sociais dessa variedade e, neste sen- sucessão das gerações, reproduzindo-se em cada indivíduo. tido, inibe as possibilidades de complexificação. Desde que nasce, todo indivíduo começa a receber a Em todos estes casos, a interação entre hereditarie- herança que assegura a sua formação, sua orien- dade genética e herança cultural aprofunda e complexifi- tação, seu desenvolvimento de ser social. A herança cul- ca ainda mais a integração biopsicossocial que a arkhé-so- tural não vem somente sobrepor-se à hereditariedade ge- ciedade efetua. Toda e qualquer personalidade é nética. Combina-se com esta. Determina estimulações e duto da interferência dos dois princípios generativos, inibições que contribuem para cada ontogênese individual biológico e cultural (e, evidentemente, da interferência e modulam a expressão genética no fenótipo humano. complementar, concorrente, antagonista, dos acontecimen- Assim, cada cultura, por meio de seus imprintings preco- tos singulares de sua própria Trata-se de um ces, seus tabus, seus imperativos, seu sistema de educa- fenômeno antropológico-chave que OS paladinos das dis- ção, seu regime alimentar, OS talentos que requer para ciplinas de ambos OS lados da barreira desconheciam. A suas práticas, seus modelos de comportamento no ecossis- antropologia cultural quis sempre ignorar que 0 homem tema, na sociedade, entre indivíduos etc., recalca, inibe, vivo não era amassado, como massa para modelar, pela favorece, sobredetermina a atualização desta ou daquela cultura e, finalmente, alcançou beco sem saída de uma de tal traço psicoafetivo, faz sofrer suas pressões personalidade de base sem qualquer base genética. A bio- multiformes sobre 0 conjunto do funcionamento cerebral, logia ignorou durante muito tempo que a cultura repre- exerce mesmo efeitos endocrínicos próprios e, assim, in- sentava um papel ativo no estoque hereditário, determi- tervém nalidade. para co-organizar e controlar conjunto da perso- nando pressões seletivas sobre genótipo e intervindo na determinação do fenótipo.172 O ENIGMA DO HOMEM A CULTURA 173 Na verdade, sistema cultural não suplanta 0 sistema tos de uso ou de consumo, idéias etc., tomados da cultura genético; é a herança cultural que, assegurando a estrangeira. Podem, enfim, surgir da própria vida da SO- ção do indivíduo numa sociedade específica, complementa ciedade, em que um desvio individual pode introduzir um a hereditariedade e assegura a perpetuação da sociedade. comportamento novo, que pode, por si mesmo, espalhar-se O sistema cultural, como sistema generativo, já disse- e tornar-se costume, podendo nascer dele uma invenção mos, assegura a autoperpetuação da complexidade de uma que será integrada no capital cultural. sociedade, isto é, sua autoprodução ou auto-reorganização Assim sendo, pode-se compreender tão bem a conser- permanente. Esta autoprodução permanente determina, vação da unidade organizacional fundamental da em especial, a reprodução, mais ou menos parcial, do sis- ciedade quanto a extraordinária diversificação das ar- tema cultural em cada indivíduo. Mas é erradamente que khé-sociedades. A multiplicação diaspórica sobre toda a certos autores, que, porém, descobriram nó do proble- superfície do globo, nos mais diversos nichos ecológicos, ma, chamam reprodução social seja ao que é autoprodu- as deformações e transformações trazidas pelos "ruídos" ção (auto-reorganização) social, seja ao que é reprodução à transmissão das inúmeras mensagens culturais, as ino- cultural nos indivíduos. Por outro lado, pode-se falar de vações técnicas e noológicas, tudo isso fez derivar as cul- reprodução social quando uma colônia se separa da socie- turas umas das outras, diferenciando-as. As linguagens dade-mãe e se constitui de modo autônomo segundo tornaram-se cada vez menos inteligíveis umas às outras, mesmo sistema cultural. Este processo de reprodução SO- OS mitos, crenças e símbolos seguiram por caminhos ra- cial é aquele pelo qual se efetuou a multiplicação da mificados, as regras de organização tornaram-se aqui mais arkhé-sociedade, partindo de uma origem comum, isto é, flexíveis, ali mais rígidas, OS modelos de personalidade a diáspora da humanidade (voltaremos a isto algumas li- divergiram e as sociedades puderam parecer heterogêneas nhas mais adiante) umas às outras a ponto de que, muitas vezes, homem primeiro lugar, é preciso considerar que a cultu- de uma cultura se sinta de uma espécie diferente da do ra, como sistema generativo, constitui um quase-código estrangeiro, tornado seja deus que se venera, seja ani- cultural, ou seja, uma espécie de equivalente sociológico mal que se abate. daquilo que código genético é para OS seres vivos. O Todavia, ainda que tenham florescido de modo dife- "código cultural" mantém a integridade e a identidade do rente, ainda que algumas tenham vegetado ao nível da ne- sistema social, assegura sua autoperpetuação ou sua re- cessidade e que outras tenham conhecido admiráveis produção invariante, protegendo-o da incerteza, da even- desabrochamentos, as arkhé-sociedades conservaram a tualidade, da confusão, da desordem. mesma organização de base. Todavia, ainda que seja conservador da invariância, Na realidade, esta sociedade mostrou-se de extraordi- 0 código genético pode modificar-se, no momento da au- nária estabilidade no que se refere ao conjunto do pla- to-reprodução, sob 0 efeito de uma perturbação aleatória. neta, durante dezenas de milhares de anos, com as socie- código cultural pode modificar-se, não só no momento dades históricas, conforme vamos ver, tendo nascido em da auto-reprodução social (formação de colônias), mas condições ecológicas e demográficas excepcionais. também durante próprio processo permanente de auto- Ela manteve sua estabilidade, primeiramente, graças produção, sob efeito de acontecimentos aleatórios cer- à sua nucleação noológico-cultural. Esta induziu seus fun- tos, mas diretamente saídos da experiência fenomenal da damentos organizacionais do caráter sagrado, investiu-os sociedade. Estes acontecimentos podem ser provenientes da Autoridade infalível da Tradição e da Revelação, de- de modificações do ecossistema natural, que repercutem vido ao que todo e qualquer atentado perturbador seria sobre a prática social, suscitam novos usos, novas regras uma transgressão fatal. Num certo sentido, essa sagração e talvez novas técnicas, novos mitos. Podem, também, ser da cultura inibiu em quase tudo a grande perturbação provenientes de encontros com sociedades vizinhas, a técnica, ideológica, sociológica que teria obrigado a arkhé- partir do que uma cultura pode integrar técnicas, produ- -sociedade a reorganizar-se totalmente. Em outro174 O ENIGMA DO HOMEM A CULTURA 175 mito, rito e a magia asseguraram um notável compro- inteira, todas elas semelhantes, todas diferentes, estran- misso, ele mesmo de extrema estabilidade, não só com a geiras umas às outras; a maioria poderia ter realidade incerta do mundo exterior, com a vida e a morte, sua vida indefinidamente, se não tivessem sido recalcadas, mas também entre a hipercomplexidade cerebral e a com- devastadas pelas sociedades históricas e, finalmente, ani- plexidade sociocultural. (Pode-se pensar que a arkhé-so- quiladas pela nossa. ciedade inibiu e controlou as demências destruidoras que, depois, vieram a transbordar.) Mas foi também 0 conjunto do sistema social, que possuía tais virtudes, que constituiu um verdadeiro SU- cesso seletivo. Aliava, à rigidez sacralizada do aparelho cultural, uma flexibilidade muito grande na sua adaptabi- lidade às condições ecológicas. Geograficamente móvel, demograficamente restrita, a arkhé-sociedade constituiu uma própria para todos OS terrenos, que lhe permitiu introduzir-se no frio polar e na floresta tropical, no deserto e no pântano. Tendo desenvolvido um tipo de indivíduo extremamente sensível a todas as mensagens do ecossistema em virtude da acuidade de todos OS seus sentidos e das aptidões manuais, verdadeiramente poli- técnicas, dispondo de um capital de conhecimentos capaz de lhe fazer variar seus instrumentos em função das mais diversas condições, a arkhé-sociedade, nascida da caça, podia, portanto, já então, não só variar sua caça, mas viver sem a caça, viver da colheita, da apanha, da pesca. Admiravelmente articulada na sua relação interna entre microestrutura e macroestrutura, ela constituiu a organização talvez mais complexa possível para uma po- pulação restrita e essa complexidade permitiu um pleno emprego dos dons polivalentes de cada indivíduo na prá- tica fenomenal. Ainda que dominada hierarquicamente por uma classe masculina, mas com cada um de seus membros ligado pessoalmente aos dominados, mulheres e adolescentes, ela não tinha de sofrer a exploração de uma classe estran- geira, desdenhosa, exploradora, nem a opressão parasítica de um poder de Estado policial ou funcionário. Ela não conhecia, portanto, contradições internas nem instabilidade destruidora ou criadora que a teria levado a transformar-se radicalmente. Efetivamente, as arkhé-sociedades eliminaram as SO- ciédades hominídeas anteriores e toda tentativa que não correspondesse ao modelo deve ter sido igualmente eli- minada. Multiplicaram-se e cobriram rapidamente a terraHoje, a simples obediência como principio de disciplina parece uma fórmula caduca e impraticável e daí, sobretudo, a instabilidade constante de nossa vida social. Desaparecida a possibilidade desse freio, é em vão que temos procurado importar dos sistemas de ou- 2 tros povos modernos, ou criar por conta própria, um sucedâneo ade- quado, capaz de superar OS efeitos de nosso natural inquieto e de- TRABALHO & AVENTURA sordenado. A experiência e a tradição ensinam que toda cultura só absorve, assimila e elabora em geral traços de outras culturas, quando estes encontram uma possibilidade de ajuste aos seus qua- dros de vida. Neste particular cumpre lembrar que se deu com as Portugal e a colonização das terras tropicais culturas européias transportadas ao Novo Mundo. Nem contato Dois princípios que regulam diversamente as e a mistura com raças ou adventícias fizeram-nos tão dife- atividades dos homens rentes dos nossos avós de além-mar como às vezes gostaríamos de Plasticidade social dos portugueses sê-lo. No caso brasileiro, a verdade, por menos sedutora que possa Civilização parecer a alguns dos nossos patriotas, é que ainda nos associa à pe- Carência de orgulho racial nínsula Ibérica, a Portugal especialmente, uma tradição longa e viva, labéu associado aos trabalhos vis bastante viva para nutrir, até hoje, uma alma comum, a despeito de Organização do artesanato; tudo quanto nos separa. Podemos dizer que de nos veio a forma sua relativa debilidade na América portuguesa atual de nossa cultura; resto foi matéria que se sujeitou mal ou Incapacidade de livre e duradoura associação bem a essa forma. A "moral das senzalas" e sua influência Malogro da experiência holandesa Nota ao capítulo 2: Persistência da lavoura de tipo predatório Sergio Raizes 40Pioneiros da conquista do trópico para a civilização, tiveram OS portugueses, nessa proeza, sua maior missão histórica. E sem em- bargo de tudo quanto se possa alegar contra sua obra, forçoso é re- conhecer que foram não somente OS portadores efetivos como DS por- tadores naturais dessa Nenhum outro povo do Velho Mundo achou-se tão bem armado para aventurar à exploração intensa das terras próximas à linha OS homens de- pressa degeneram, segundo 0 conceito generalizado na era quinhen- tista, e onde dizia um viajante francês do tempo "la chaleur si véhémente de l'air leur tire dehors la chaleur naturelle et la dissipe; et par ainsi sont chaulds seulement par dehors et froids en dedans", ao contrário do que sucede aos outros, OS habitantes das terras frias, OS quais "ont la chaleur naturelle serrée et constrainte dedans par le froid extérieur qui les rend ainsi robustes et vaillans, car la force et faculté de toutes les parties du corps dépend de cette naturelle cha- Essa exploração dos trópicos não se processou, em verdade, por um empreendimento metódico e racional, não emanou de uma vonta- de construtora e enérgica: fez-se antes com desleixo e certo abandono. Dir-se-ia mesmo que se fez apesar de seus autores. E 0 reconheci- mento desse fato não constitui menoscabo à grandeza do esforço por- tuguês. Se 0 julgarmos conforme OS critérios morais e políticos hoje dominantes, nele encontraremos muitas e sérias falhas. Nenhuma, porém, que leve com justiça à opinião extravagante defendida por um número não pequeno de detratores da ação dos portugueses no Brasil, muitos dos quais optariam, de bom grado, e confessadamente, pelo triunfo da experiência de colonização holandesa, convictos de que nos teria levado a melhores e mais gloriosos rumos. Mas, antes de abordar esse tema, é preferível encarar certo aspecto, que parece singularmente instrutivo, das determinantes psicologias do movimen- to de expansão colonial portuguesa pelas terras de nossa 43tência real fora do mundo das idéias. Mas também não há dúvida que os dois conceitos nos ajudam a situar ea melhor ordenar nosso Nas formas de vida coletiva podem assinalar-se dois princípios conhecimento dos homens e dos conjuntos sociais. E é precisamente que se combatem e regulam diversamente as atividades dos homens. nessa extensão superindividual que eles assumem importância ines- Esses dois princípios encarnam-se nos tipos do aventureiro e do traba- timável para estudo da evolução das sociedades. lhador. Já nas sociedades rudimentares manifestam-se eles, segundo Na obra da conquista e colonização dos novos mundos coube sua predominância, na distinção fundamental entre povos caçadores ao "trabalhador", no sentido aqui compreendido, papel muito li- ou coletores e OS povos lavradores. Para uns, 0 objeto final, mira de mitado, quase nulo. A época predispunha aos gestos e façanhas au- todo esforço, ponto de chegada, assume relevância tão capital, que daciosos, galardoando bem OS homens de grandes vôos. E não foi chega a dispensar, por secundários, quase supérfluos, todos proces- fortuita a circunstância de se terem encontrado neste continente, em- SOS intermediários. Seu ideal será colher fruto sem plantar a penhadas nessa obra, principalmente as nações onde 0 tipo do tra- Esse tipo humano ignora as fronteiras. No mundo tudo se apre- balhador, tal como acaba de ser discriminado, encontrou ambiente senta a ele em generosa amplitude e, onde quer que se erija um obs- menos propício. táculo a seus propósitos ambiciosos, sabe transformar esse obstácu- Se isso é verdade tanto de Portugal como da Espanha, não em trampolim. Vive dos espaços ilimitados, dos projetos vastos, é menos da Inglaterra. surto industrial poderoso que atingiu a na- dos horizontes distantes. ção britânica no decurso do século passado criou uma idéia que está O trabalhador, ao contrário, é aquele que enxerga primeiro longe de corresponder à realidade, com relação ao povo inglês, e uma dificuldade a vencer, não 0 triunfo a alcançar. esforco lento, pouco idéia de que antigos não partilhavam. A verdade é que inglês compensador e persistente, que, no entanto, mede todas as possibi- típico não é industrioso, nem possui em grau extremo senso da eco- lidades de esperdício e sabe tirar 0 máximo proveito do insignifican- nomia, característico de seus vizinhos continentais mais próximos. te, tem sentido bem nítido para ele. Seu campo visual é naturalmen- Tende, muito ao contrário, para a indolência e para a prodigalida- te restrito. A parte maior do que todo. de, e estima, acima de tudo, a "boa vida". Era essa a opinião cor- Existe uma ética do trabalho, como existe uma ética da aventu- rente, quase unânime, dos estrangeiros que visitavam a Grã-Bretanha Assim, indivíduo do tipo trabalhador só atribuirá valor moral antes da era vitoriana. E, não menos, a dos moralistas e economis- positivo às ações que sente ânimo de praticar e, inversamente, tas que buscavam OS remédios para a condição de inferioridade em por imorais e detestáveis as qualidades próprias do aventureiro que durante longo tempo se encontrou 0 país em face de seus compe- audácia, imprevidência, irresponsabilidade, instabilidade, vagabun- tidores. Em 1664, no panfleto intitulado England's treasure by for- dagem tudo, enfim, quanto se relacione com a concepção espa- raigne trade, Thomas Mun censurava nos seus compatriotas a impre- çosa do mundo, característica desse tipo. vidência, o gosto da dissipação inútil, amor desregrado aos prazeres Por outro lado, as energias e esforços que se dirigem a uma re- e ao luxo, a ociosidade impudica lewd idleness "contrária à compensa imediata são enaltecidos pelos aventureiros; as energias lei de Deus e aos usos das demais nações", e atribuía a tais vícios que visam à estabilidade, à paz, à segurança pessoal e OS esforços sua impossibilidade de medir-se seriamente com sem perspectiva de rápido proveito material passam, ao contrário, Conceitos semelhantes a esses volta a exprimir, em nossos dias, esse por viciosos e desprezíveis para eles. Nada lhes parece mais estúpido bom conhecedor e historiador do caráter inglês que é William Ralph e mesquinho do que ideal do trabalhador. Inge. deão da catedral de St. Paul observa, em livro rico de inte- Entre esses dois tipos não há, em verdade, tanto uma oposição ressantes sugestões, que 0 "inglês médio não tem presentemente ne- absoluta como uma incompreensão radical Ambos participam, em nhum gosto pela diligência infatigável, laboriosa, dos alemães, ou maior ou menor grau, de múltiplas combinações e é claro que, em pela frugalidade parcimoniosa dos franceses". E acrescenta a essa estado puro, nem aventureiro, nem trabalhador possuem exis- observação mais esta, que a muitos deve parecer desconcertante 44 45nova: "A indolência é vício que partilhamos com naturais de al- origem, fizeram-no com uma facilidade que ainda não encontrou, gumas terras quentes, mas não com qualquer outro povo do Norte talvez, segundo exemplo na Onde lhes faltasse 0 pão de tri- da Europa" go, aprendiam a comer 0 da terra, e com tal requinte, que afir- mava Gabriel Soares a gente de tratamento só consumia farinha de mandioca fresca, Habituaram-se também a dormir Essa pouca disposição para 0 trabalho, ao menos para traba- em redes, à maneira dos indios. Alguns, como Vasco Coutinho, lho sem compensação próxima, essa indolência, como diz 0 deão In- donatário do Espírito Santo, iam ao ponto de beber e mascar fumo, ge, não sendo evidentemente um estímulo às ações aventurosas, não segundo nos referem testemunhos do tempo. Aos tomaram deixa de constituir, com notável aspecto negativo do ainda instrumentos de caça e pesca, embarcações de casca ou tronco ânimo que gera as grandes empresas. Como explicar, sem isso, que escavado, que singravam rios e águas do litoral, modo de culti- os povos ibéricos mostrassem tanta aptidão para a caça aos bens ma- var a terra ateando primeiramente fogo aos matos. A casa peninsu- teriais em outros continentes? "Um português", comentava certo lar, severa e sombria, voltada para dentro, ficou menos circunspec- viajante em fins do século XVIII, "pode fretar um navio para Bra- ta sob novo clima, um pouco de sua aspereza, ganhando sil com menos dificuldade do que lhe é preciso para ir a cavalo de a varanda externa: um acesso para mundo de fora. Com essa nova Lisboa ao Porto. disposição, importada por sua vez da Ásia oriental e que substituía E essa ânsia de prosperidade sem custo, de honoríficos, com vantagem, em nosso meio, tradicional pátio mourisco, for- de posições e riquezas fáceis, tão notoriamente característica da gente maram padrão primitivo e ainda hoje válido para as habitações de nossa terra, não é bem uma das manifestações mais cruas do es- européias nos trópicos. Nas suas plantações de cana, bastou que de- pírito de aventura? Ainda hoje convivemos diariamente com a prole senvolvessem em grande escala processo já instituído, segundo to- numerosa daquele militar do tempo de Eschwege, que não se enver- das as probabilidades, na Madeira e em outras ilhas do Atlântico, gonhava de solicitar colocação na música do palácio, do amanuense que não receava pedir um cargo de governador, do simples aplica- onde negro da Guine era utilizado nas fainas rurais. dor de ventosas que aspirava às funções de cirurgião-mor do reino... Não é certo que a forma particular assumida entre nós pelo la- Não raro nossa capacidade de ação esgota-se nessa procura inces- tifúndio agrário fosse uma espécie de manipulação original, fruto sante, sem que a neutralize uma violência vinda de fora, uma reação da vontade criadora um pouco arbitrária dos colonos portugueses. mais poderosa; é um esforço que se desencaminha antes mesmo de Surgiu, em grande parte, de elementos adventícios e ao sabor das encontrar resistência, que se aniquila no auge da força e que se com- conveniências da produção e do mercado. Nem se pode afiançar que promete sem motivo patente. sistema de lavoura, estabelecido, aliás, com estranha uniformida- E, no entanto, gosto da aventura, responsável por todas essas de de organização, em quase todos territórios tropicais e subtro- fraquezas, teve influência decisiva (não a única decisiva, é preciso, picais da América, tenha sido, aqui, 0 resultado de condições intrín- porém, dizer-se) em nossa vida nacional. Num conjunto de fatores secas e específicas do meio. Foi a circunstância de não se achar a tão diversos, como as raças que aqui se chocaram, OS costumes e pa- Europa industrializada ao tempo dos descobrimentos, de modo que drões de existência que nos trouxeram, as condições mesológicas e produzia gêneros agrícolas em quantidade suficiente para seu pró- climatéricas que exigiam longo processo de adaptação, foi D elemento prio consumo, só carecendo efetivamente de produtos naturais dos orquestrador por excelência. Favorecendo a mobilidade social, esti- climas quentes, que tornou possível e fomentou a expansão desse sis- mulou OS homens, além disso, a enfrentar com denodo as asperezas tema ou resistências da natureza e criou-lhes as condições adequadas a tal É instrutivo, a propósito, fato de 0 mesmo sistema, nas colô- empresa. nias inglesas da América do Norte, ter podido florescer apenas em Nesse ponto, precisamente, portugueses e seus descendentes regiões apropriadas às lavouras do tabaco, do arroz e do algodão, imediatos foram inexcedíveis. Procurando recriar aqui meio de sua produtos tipicamente "coloniais". Quanto às áreas do centro e às 46 47da Nova Inglaterra, tiveram de contentar-se com uma simples agri- Numa produção de índole semicapitalista, orientada sobretudo cultura de subsistência, enquanto não se abria passo à expansão CO- para 0 consumo externo, de prevalecer por força critérios gros- mercial e manufatureira, fundada quase exclusivamente no traba- seiramente quantitativos. Em realidade, só com alguma reserva se lho livre. clima e outras condições físicas peculiares a regiões tro- pode aplicar a palavra "agricultura" aos processos de exploração picais só contribuiram, pois, de modo indireto para semelhante re- da terra que se introduziram amplamente no país com OS engenhos sultado. de cana. Nessa exploração, européia serviu apenas para fazer Aos portugueses e, em menor grau, aos castelhanos, coube, sem ainda mais devastadores OS métodos rudimentares de que se valia dúvida, a primazia no emprego do regime que iria servir de modelo o em suas plantações. Se tornou possível, em certos casos, à exploração latifundiária e monocultora adotada depois por outros fixação do colono, não cabe atribuir tal fato a esse zelo carinhoso povos. E a boa-qualidade terras do Nordeste brasileiro para a pela terra, tão peculiar ao homem rústico entre povos genuinamente lavoura altamente lucrativa da cana-de-açúcar fez com que essas terras agricultores. A verdade é que a grande lavoura, conforme se prati- se tornassem 0 cenário onde, por muito tempo, se elaboraria em seus e ainda se pratica no Brasil, participa, por sua natureza perdu- traços mais tipo de organização agrária mais tarde caracte- lária, quase tanto da mineração quanto da agricultura. Sem braço rístico das colônias européias situadas na zona tórrida. A abundância escravo e terra farta, terra para gastar e arruinar, não para proteger de terras férteis e ainda mal desbravadas fez com que a grande pro- ciosamente, ela seria irrealizável. priedade rural se tornasse, aqui, a verdadeira unidade de produção. O que 0 português vinha buscar sem dúvida, riqueza, mas riqueza que custa ousadia, não riqueza que custa trabalho. A mes- Cumpria apenas resolver 0 problema do trabalho. E verificou-se, frus- ma, em suma, que se tinha acostumado a alcançar na Índia com as tradas as primeiras tentativas de emprego do braço que especiarias e OS metais preciosos. Os lucros que proporcionou de recurso mais fácil estaria na introdução de escravos africanos. cio, 0 esforço de plantar a cana e fabricar 0 açúcar para mercados Pode dizer-se que a presença do negro representou sempre fator europeus, compensavam abundantemente esse esforço efetuado, obrigatório no desenvolvimento dos latifúndios coloniais. Os antigos de resto, com as mãos e OS pés dos negros mas era preciso que moradores da terra foram, eventualmente, prestimosos colaborado- fosse muito simplificado, restringindo-se ao estrito necessário às di- res na indústria extrativa, na caça, na pesca, em determinados ferentes operações. cios mecânicos e'na criação do gado. Dificilmente se acomodavam, Não foi, por conseguinte, uma civilização tipicamente agrícola porém, ao trabalho acurado e metódico que exige a exploração dos 0 que instauraram os portugueses no Brasil com a lavoura açucarei- canaviais. Sua tendência espontânea era para atividades menos SC- Não foi, em primeiro lugar, porque a tanto não conduzia 0 dentárias e que pudessem exercer-se sem regularidade forçada e sem gênio aventureiro que trouxe à em seguida, por causa vigilância e fiscalização de estranhos. Versáteis ao extremo, eram- da escassez da população do reino, que permitisse emigração em larga lhes inacessíveis certas noções de ordem, constância e exatidão, que escala de trabalhadores rurais, e finalmente pela circunstância de a no europeu formam como uma segunda natureza e parecem requisi- atividade agrícola não ocupar então, em Portugal, posição de pri- tos fundamentais da existência social e civil.6 O resultado in- meira grandeza. No mesmo ano de 1535, em que Duarte Coelho de- compreensões recíprocas que, de parte dos assumiam quase sembarcava em sua donataria pernambucana, humanista Clenardo, sempre a forma de uma resistência obstinada, ainda quando silen- escrevendo de Lisboa a seu amigo Latônio, dava notícia das miserá- ciosa e passiva, às imposições da raça dominante. Nisto assemelha- veis condições em que jaziam no país as lides do campo: "Se em al- vam-se àqueles aruaques das Antilhas, dos quais diziam OS colonos gum lugar a agricultura foi tida em desprezo", dizia, incontesta- franceses, comparando-os aos negros: "Regarder un sauvage de tra- velmente em Portugal. E antes de mais nada, ficai sabendo que vers c'est le battre, le battre c'est le tuer battre un nègre c'est le que faz nervo principal de uma nação é aqui de uma debilidade extrema; para mais, se há algum povo dado à preguiça sem ser 48 49português, então não sei onde ele exista. Falo sobretudo de nós ou- guém ocorria 0 recurso de revigorar solos gastos por meio de fer- tros que habitamos além do Tejo e que respiramos de mais perto tilizantes, faltava estímulo a melhoramentos de qualquer natureza. ar da África". E algum tempo mais tarde, respondendo às críticas A noção de que 0 trabalho de saraquá ou enxada é único que as dirigidas por Sebastião Münster aos habitantes da península hispâ- nossas terras suportam ganhou logo Em São Paulo, onde, nica, Damião de Góis admitia que labor agrícola era menos atraente como em outros lugares do Brasil, emprego de processos menos para seus compatriotas do que as aventuras marítimas e as glórias rudimentares chegara a ser tentado desde segundo século da colo- da guerra e da nização, se não antes em inventário datado de 1637 já se assinala Quando lamentamos que a lavoura, no Brasil, tenha permane- "hum ferro de arado" entre OS deixados por certo lavrador da zona cido tão longamente aferrada a concepções rotineiras, sem progres- de Parnaíba¹⁰ a força dessa logo contagiava filhos SQS técnicos que elevassem nível da produção, é preciso não esque- do reino, conforme atesta em 1766 um capitão-general, em carta cer semelhantes fatores. E é preciso, além disso, ter em conta que ao então conde de Oeiras. Todos, dizia, sustentam que a terra, no meio tropical oferece muitas vezes poderosos e inesperados obstá- Brasil, só tem sustância na superfície, "que se não pode usar arado, culos à implantação de tais melhoramentos. Se a técnica agrícola ado- que alguns já usaram dele, que tudo se lhes perdeu; e finalmente to- tada aqui pelos portugueses representou em alguns casos, compara- dos falam pela mesma da às da Europa, um retrocesso, em muitos pontos verdadeiramente Que assim sucedesse com relação aos portugueses não é de ad- milenar, é certo que para isso contribuíram as resistências da natu- mirar, sabendo-se que, ainda em nossos dias, os mesmos métodos reza, de uma natureza distinta da européia, não menos do que a inér- predatórios e dissipadores se acham em uso entre colonos de pura cia e a passividade dos colonos. O escasso emprego do arado, estirpe germânica, e isso, não só no meio tropical que constituem exemplo, em nossa lavoura de feição tradicional, tem sua explica- as baixadas espírito-santenses, mas também em regiões de clima re- ção, em grande parte, nas dificuldades que ofereciam lativamente temperado como as do Rio Grande do Deve-se, ao seu manejo resíduos da pujante vegetação E em todo caso, considerar que a origem principalmente mercantil e preensível assim que não se tivesse generalizado esse emprego, mui- citadina da maioria desses colonos, seu número não muito conside- to embora fosse tentado em épocas bem anteriores àquelas que rável, OS limitados recursos materiais de que dispunham ao se trans- tumam ser mencionadas em geral para sua introdução. plantarem do Velho Mundo explicam, em grande parte, a docilida- Há notícia de que, entre senhores de engenho mais abastados de com que se sujeitaram a técnicas já empregadas por brasileiros do Recôncavo baiano, era corrente uso do arado em fins do sécu- de ascendência lusitana. 13 Na economia agrária, pode dizer-se que lo Cumpre considerar, em todo caso, que esse uso se res- OS métodos maus, isto é, rudimentares, danosos e orientados apenas tringe unicamente à lavoura canavieira, onde, para se obterem sa- para 0 imoderado e imediato proveito de quem OS aplica, tendem fras regulares, já se faz necessário um terreno previamente limpo, constantemente a expulsar os bons métodos. Acontece que, no Bra- destocado e arroteado. Sem embargo disso, sabemos por depoimen- sil, as condições locais quase impunham, pelo menos ao primeiro tos da época que, para puxar cada arado, era costume, entre fazen- deiros, empregarem juntas de dez, doze ou mais bois, que vinha contato, muitos daqueles métodos "maus" e que, para suplantá-los, era mister uma energia paciente e sistemática. não só da pouca resistência desses animais no Brasil, como também que, com segurança, se pode afirmar dos portugueses e seus de custarem as terras mais a abrir pela sua descendentes é que jamais se sentiram eficazmente estimulados a es- A regra era irem buscar lavradores novas terras em lugares sa energia. Mesmo comparados a colonizadores de outras áreas on- de mato dentro, e assim raramente decorriam duas gerações sem que uma mesma fazenda mudasse de sítio, ou de dono. Essa transitorie- de viria a predominar uma economia rural fundada, como a nossa, no trabalho escravo, na monocultura, na grande propriedade, sem- dade, oriunda, por sua vez, dos costumes indígenas, servia apenas pre se distinguiram, em verdade pelo muito que pediam à terra e para corroborar caráter rotineiro do trabalho rural. Como a nin- pouco que lhe davam em retribuição. Salvo se encarados por um cri- 50 51tério estritamente quantitativo, métodos que puseram em vigor assentes no solo, não tinham exigências mentais muito grandes e 0 no Brasil não representam nenhum progresso essencial sobre que, Céu parecia-lhes uma realidade excessivamente espiritual, remota, antes deles, já praticavam OS do país. póstuma, para interferir em seus negócios de cada dia. contraste entre as condições normais da lavoura brasileira, ainda na segunda metade do século passado, e as que pela mesma época prevaleciam no sul dos Estados Unidos é bem mais apreciável A isso cumpre acrescentar outra face bem típica de sua extraor- do que as semelhanças, tão complacentemente assinaladas e exage- dinária plasticidade social: a ausência completa, ou praticamente radas por alguns historiadores. Os fazendeiros oriundos dos estados completa, entre eles, de qualquer orgulho de raca. menos do or- confederados, que por volta de 1866 emigraram para 0 Brasil, e a gulho obstinado e inimigo de compromissos, que caracteriza OS cuja influência se tem atribuído, com ou sem razão, 0 desenvolvi- vos do Norte. Essa modalidade de seu caráter, que OS aproxima das mento do emprego de arados, cultivadores, rodos e grades nas pro- outras nações de estirpe latina e, mais do que delas, dos muçulma- priedades rurais paulistas, estiveram bem longe de partilhar da mes- nos da África, explica-se muito pelo serem portugueses, ma opinião. Certos depoimentos da época refletem, ao contrário, em parte, e já ao tempo do descobrimento do Brasil, um povo de pasmo causado entre muitos deles pelos processos alarmantemen- mestiços. Ainda em nossos dias, um antropólogo distingue-os racial- te primitivos que encontraram em uso. Os escravos brasileiros, diz mente dos seus próprios vizinhos e irmãos, espanhóis, por osten- um desses depoimentos, plantam algodão exatamente como OS in- tarem um contingente maior de sangue negro. A isso atribui fato dios norte-americanos plantam 0 de OS da África Oriental considerarem quase como seus O principio que, desde OS tempos mais remotos da colonização, iguais e de OS respeitarem muito menos de que aos outros civiliza- norteara a criação da riqueza no pais não cessou de valer um só mo- dos. Assim, afirma, para designar os diferentes povos da Europa, mento para a produção agrária. Todos queriam extrair do solo ex- OS discriminam sempre: europeus e portugueses.¹⁶ cessivos benefícios sem grandes sacrifícios. Ou, como já dizia mais Neste caso Brasil não foi teatro de nenhuma grande novida- antigo dos nossos historiadores, queriam servir-se da terra, não CO- de. A mistura com gente de cor tinha começado amplamente na pró- pria metrópole. Já antes de 1500, graças ao trabalho de pretos trazi- mo senhores, mas como usufrutuários, "só para a desfrutarem e a deixarem 15 dos das possessões ultramarinas, fora possível, no reino, estender Não cabia, nesse caso, modificar OS rudes processos dos a porção do solo cultivado, desbravar matos, dessangrar pântanos genas, ditados pela lei do menor esforço, uma vez, é claro, que se e transformar charnecas em lavouras, com que se abriu passo à fundação de povoados novos. Os benefícios imediatos que de seu acomodassem às conveniências da produção em larga escala. Instru- trabalho decorriam fizeram com que aumentasse incessantemente a mentos sobretudo passivos, nossos colonizadores aclimaram-se facil- procura desses instrumentos de progresso material, em uma nação mente, cedendo às sugestões da terra e dos seus primeiros habitantes, onde se menoscabavam cada vez mais OS ofícios sem cuidar de impor-lhes normas fixas e indeléveis. Mesmo compa- As lamentações de um Garcia de Resende parecem refletir bem, rados aos castelhanos, destacaram-se eles por esse aspecto. Na maior por volta de 1536, alarma suscitado entre homens prudentes por parte das suas possessões da América, castelhano raramente se iden- essa silenciosa e sub-reptícia invasão, que ameaçava transtornar tificou a tal ponto com a terra e a gente da terra: apenas superpôs-se, próprios fundamentos biológicos onde descansava tradicionalmen- com freqüência, a uma e outra. Entre nós, domínio europeu foi, te a sociedade portuguesa: em geral, brando e mole, menos obediente a regras e dispositivos do que à lei da natureza. A vida parece ter sido aqui incomparavelmen- Vemos no reino meter, Tantos cativos crescer, mais suave, mais acolhedora das dissonâncias sociais, raciais, e E irem-se naturais morais. Nossos colonizadores eram, antes de tudo, homens que sa- Que se assi for, , serão mais biam repetir que estava feito ou 0 que lhes ensinara a rotina. Bem Eles que nós, a meu 52 53A já mencionada carta de Clenardo a Latônio revela-nos, pela tuída de homens de cor. O escravo das plantações e das minas não mesma época, como pululavam OS escravos em Portugal. Todo ser- era um simples manancial de energia, um carvão humano à espera viço era feito por negros e mouros cativos, que não se distinguiam de que a época industrial 0 substituísse pelo combustível. Com fre- de bestas de carga, senão na figura. "Estou em crer", nota ele, "que qüência as suas relações com OS donos oscilavam da situação de em Lisboa OS escravos e escravas são mais que os portugueses." Di- dependente para a de protegido, e até de solidário e afim. Sua in- ficilmente se encontraria habitação onde não houvesse pelo menos fluência penetrava sinuosamente recesso doméstico, agindo como uma negra. A gente mais rica tinha escravos de ambos OS sexos, e dissolvente de qualquer idéia de separação de castas ou de qual- não faltava quem tirasse bons lucros da venda dos filhos de escra- quer disciplina fundada em tal separação. Era essa a regra geral: não vos. "Chega-me a parecer", acrescenta o humanista, "que OS criam impedia que tenham existido casos particulares de esforços tendentes como quem cria as pombas para ir ao mercado. Longe de se ofende- a coibir a influência excessiva do homem de cor na vida da colônia, rem com as ribaldias das escravas, estimam até que tal suceda, por- como aquela ordem régia de 1726, que vedava a qualquer mulato, que 0 fruto segue a condição do ventre: nem ali padre vizinho, nem até à quarta geração, 0 exercício de cargos municipais em Minas Ge- eu sei lá que cativo africano 0 podem rais, tornando tal proibição extensiva aos brancos casados com mu- Embora cálculos estatísticos acerca da introdução de negros lheres de Mas resoluções como essa decorrente, ao que no reino fossem, em geral, escassos e vagamente aproximativos, é consta, da conjuração dos negros e mulatos, anos antes, naquela ca- de notar que, em 1541, defendendo bom nome dos portugueses pitania estavam condenadas a ficar no papel e não perturbavam e espanhóis contra as críticas de Münster, Damião de Góis estimas- seriamente a tendência da população para um abandono de todas se em 10 a 12 mil escravos da Nigrícia que entravam anualmente as barreiras sociais, políticas e econômicas entre brancos e homens em seu país. E que um decênio depois, conforme Sumário de Cris- de cor, livres tóvão Rodrigues de Oliveira, Lisboa contava 9950 escravos para A própria Coroa não hesitou, ocasionalmente, em temperar total de 18 mil vizinhos. Isso significa que formavam cerca de uma zelos de certos funcionários mais infensos a essa tendência. Assim quinta parte da A mesma proporção ainda se guarda- ocorreu, por exemplo, quando a um governador de Pernambuco se va mais para fins do século, a julgar pelos informes de Filippo Sas- expediu ordem, em 1731, para que desse posse do ofício de procura- setti, que andou em Portugal entre OS anos de 1578 e dor ao bacharel nomeado, Antônio Ferreira Castro, apesar da cir- Com correr do tempo não deve ter diminuído essa intrusão cunstância alegada de ser provido um mulato. Porque, diz a ordem de-sangue estranho, que progredia, ao contrário, e não só nas cida- de d. João V, "o defeito de ser pardo não obsta para este ministério des. Em 1655, Manuel Severim de Faria pode lastimar que OS mais e se repara muito que vós, por este acidente, um bacharel dos lavradores se sirvam de escravos de Guine e mulatos. E em fins formado provido por mim para introduzirdes e conservardes um ho- do século seguinte, a célebre procissão dos Passos, em Lisboa, deve- mem que não formado, 0 qual nunca 0 podia ser por lei, havendo ria ser espetáculo quase comparável ao que proporcionava qualquer bacharel formado" cidade brasileira, daquelas onde contingente negro fosse mais no- tável. Um visitante estrangeiro dizia em 1798 que participavam dos préstitos entre "4 e 5 mil almas, sendo a maior parte constituída de É preciso convir em que tais liberalidades não constituíam lei negros e mulatos, de negras e mulatas". Em outro depoimento, es- geral; de qualquer modo, 0 exclusivismo "racista", como se diria crito setenta anos antes dessa data, a cor trigueira da gente hoje, nunca chegou a ser, aparentemente, fator determinante das portuguesa a efeito do clima e mais ainda "da mistura com OS ne- medidas que visavam reservar a brancos puros 0 exercício de deter- gros, muito ordinária no povo baixo". minados empregos. Muito mais decisivo do que semelhante exclusi- Compreende-se, assim, que já fosse exíguo sentimento de dis- vismo teria sido labéu tradicionalmente associado aos trabalhos tância entre OS dominadores, aqui, e a massa trabalhadora consti- vis a que obriga a escravidão e que não infamava apenas quem 54 55praticava, mas igualmente seus descendentes. A esta, mais do que a outras razões, cabe atribuir até certo ponto a singular importância que sempre assumiram, entre portugueses, as habilitações de Uma das da escravidão e da hipertrofia da lavoura Também não seria outra a verdadeira explicação para fato de latifundiária na estrutura de nossa economia colonial foi a ausência, se considerarem aptos, muitas vezes, OS gentios da terra e OS mame- praticamente, de qualquer esforço sério de cooperação nas demais lucos, a ofícios de que OS pretos e mulatos ficavam legalmente ex- atividades produtoras, ao oposto do que sucedia em outros países, cluídos. O reconhecimento da liberdade civil dos índios mesmo inclusive nos da América espanhola. Pouca coisa existiu, entre nós, quando se tratasse simplesmente de uma liberdade "tutelada" ou comparável ao que refere um historiador peruano a respeito da pros- "protegida", segundo a sutil discriminação dos juristas tendia a peridade dos grêmios de oficiais mecânicos já existentes no primeiro distanciá-los do estigma social ligado à escravidão. É curioso notar século da conquista de Lima, com alcaides jurados e vedores, taxa como algumas características ordinariamente atribuídas aos nossos de jornais, exames de competência, inscrição, descanso dominical indígenas e que OS fazem menos compatíveis com a condição servil obrigatório e fundações pias de assistência mútua nas diversas confra- sua sua aversão a todo esforço disciplinado, sua rias de mesteirais. Conhece-se ainda hoje regimento dos prateiros "imprevidência", seu gosto acentuado por ati- da Cidade dos Reis, cujo manuscrito é conservado na Beneficência vidades antes predatórias do que produtivas ajustam-se de forma Pública da capital peruana. Esses oficiais mecânicos, em sua maioria bem precisa aos tradicionais padrões de vida das classes nobres. E índios e mestiços, tinham capela na nave esquerda da igreja de San- deve ser por isso que, ao procurarem traduzir para termos nacionais to Agostinho. Sua organização estabelecera perfeitamente dotes e a temática da Idade Média, própria do romantismo europeu, escri- pensões de velhice para as famílias dos agremiados. Os sapateiros tores do século passado, como Gonçalves Dias e Alencar, iriam re- e curtidores constituíram-se no ano 1578, com propriedade da cape- servar ao índio virtudes convencionais de antigos fidalgos e cavalei- la de São Crispim C São Crispiniano, na catedral. Aí celebravam suas ros, ao passo que negro devia contentar-se, no melhor dos casos, funções e festas. Tal como sucedeu no Brasil, mas em escala mais com a posição de vítima submissa ou rebelde. ampla do que entre nós, certos grêmios impuseram nome a ruas e Longe de condenar OS casamentos mistos de indígenas e bran- praças, onde tinham agrupadas suas tendas e, por vezes, também cos, governo português tratou, em mais de uma ocasião, de suas moradas; assim botoeiros, barreteiros, esteireiros, mantei- estimulá-los, e é conhecido alvará de 1755, determinando que OS ros, algibebes, taberneiros, sombreireiros (de vicunha ou de palha de jipijapá), espadeiros, guitarreiros, oleiros, saboeiros e ferreiros. cônjuges, nesses casos, "não fiquem com infâmia alguma, antes mui- Havia também fazedores de talabartes, na maioria brancos, in- to hábeis para OS cargos dos lugares onde residirem não menos que seus filhos e descendentes, quais até terão preferência para qual- dios e mestiços, assim como negros mulatos eram, em regra, OS cirurgiões e barbeiros. Seguiam-se a esses grêmios de seleiros quer emprego/honra ou dignidade, sem dependência de dispensa al- e fabricantes de jaezes e guarnições, dos fundidores, dos ebanistas, guma, ficando outrossim proibido, sob pena de procedimento, dar- se-lhes nome de caboclos, ou outros semelhantes, que se possam carpinteiros, alarifes, alvanéis, curtidores, surradores de couro, ce- rieiros, luveiros, chapineiros, alfaiates ou costureiros (os brancos com reputar injuriosos". Os pretos e descendentes de pretos, esses conti- a confraria de São Francisco, Grande), confeiteiros e pasteleiros. nuavam relegados, ao menos em certos textos oficiais, a trabalhos Esses grêmios, definitivamente organizados por d. Francisco de To- de baixa reputação, negro jobs, que tanto degradam indivíduo ledo, foram durante longos anos, para vice-reinado, uma garantia que OS exerce, como sua geração. Assim é que, em portaria de 6 de de prosperidade, riqueza e estabilidade, não obstante as vicissitudes agosto de 1771, vice-rei do Brasil mandou dar baixa do posto de do trabalho mineiro e a decadência do império colonial capitão-mor a um índio, porque "se mostrara de tão baixos senti- No Brasil, a organização dos segundo moldes trazidos mentos que casou com uma preta, manchando seu sangue com esta do reino teve seus efeitos perturbados pelas condições dominantes: aliança, e tornando-se assim indigno de exercer referido 25 preponderância absorvente do trabalho escravo, indústria caseira, 56 57capaz de garantir relativa independência aos ricos, entravando, por da colonial, de que nas tendas de comerciantes se distribuíam outro lado, comércio, e, finalmente, escassez de artífices livres na as coisas mais disparatadas deste mundo, e era tão fácil comprarem-se maior parte das vilas e cidades. ferraduras a um boticário como vomitórios a um ferreiro.³⁰ Poucos São freqüentes, em velhos documentos municipais, as queixas indivíduos sabiam dedicar-se a vida inteira a um só mister sem se contra mecânicos que, ou transgridem impunemente regimentos de deixarem atrair por outro negócio aparentemente lucrativo. E ainda seu ofício, ou se esquivam aos exames prescritos, contando para is- mais raros seriam casos em que um mesmo ofício perdurava na com a proteção de juízes benévolos. Uma simples licença com fia- mesma família por mais de uma geração, como acontecia normal- dor era, em casos tais, bastante para exercício de qualquer pro- mente em terras onde a estratificação social alcançara maior grau fissão, e desse modo se abriam malhas numerosas na disciplina só de aparentemente rígida das posturas. Os que conseguiam acumular al- Era esse um dos sérios empecilhos à constituição, entre nós, não gum cabedal, esses tratavam logo de abandonar seus ofícios para po- só de um verdadeiro artesanato, mas ainda de oficiais suficientemente derem desfrutar das regalias ordinariamente negadas a mecânicos. habilitados para trabalhos que requerem vocação decidida e longo Assim sucede, por exemplo, a certo Manuel Alves, de São Paulo, Outro empecilho vinha, sem dúvida, do recurso muito que deixa em 1639 sua profissão de seleiro para subir à posição de ordinário aos chamados "negros de ganho" ou "moços de ganho", "homem nobre" e servir OS cargos da que trabalhavam mediante simples licenças obtidas pelos senhores Por vezes, nem tal cautela se torna imprescindível: muitos eram em benefício exclusivo destes. Assim, qualquer pessoa com fumaças os casos de pessoas consideradas nobres que se dedicavam, como meio de nobreza podia alcançar proveitos derivados dos trabalhos mais de vida, a serviços mecânicos, sem perderem as prerrogativas perti- humildes sem degradar-se e sem calejar as mãos. Spix e Martius ti- nentes à sua classe. Contudo não seria essa a lei geral: é plausível veram ocasião de assinalar a radical incompatibilidade existente en- admitir que constituisse antes um abuso reconhecido como tal, em- tre esse hábito e princípio medieval das corporações de bora largamente tolerado, pois do contrário não se compreende que ainda bem vivo em muitos lugares da Europa ao iniciar-se século um Martim Francisco, já em começo do século passado, se admiras- passado. se de que muitos moradores de Itu, sendo "todos pelo menos no- Da tradição portuguesa, que mesmo em território metropolita- bres"; a ofícios mecânicos, "pois que pelas leis do reino no jamais chegara a ser extremamente rígida nesse particular, pouca derrogam a nobreza". coisa se conservou entre nós que não tivesse sido modificada ou re- Embora a lei não tivesse cogitado em estabelecer qualquer hie- laxada pelas condições adversas do meio. Manteve-se melhor do que rarquia entre as diferentes espécies de trabalho manual, não se pode outras, como é fácil imaginar, a obrigação de irem ofícios em- negar que existiam discriminações consagradas pelos costumes, e que bandeirados, com suas insígnias, às procissões reais, 0 que se expli- uma intolerância maior prevaleceu constantemente com relação aos ca simplesmente pelo gosto do aparato e dos espetáculos colori- ofícios de mais baixa reputação social. Quando, em 1720, Bernardo dos, tão peculiar à nossa sociedade colonial. Pereira de Berredo, governador do estado do Maranhão, mandou assentar praça de soldado a certo Manuel Gaspar, eleito almotacé, alegando que "bem longe de ter nobreza, havia sido criado de ser- O que sobretudo nos faltou para 0 bom desta e de tantas vir", conformou-se logo senado com a decisão e, ainda por cima, outras formas de labor produtivo foi, seguramente, uma capacidade anulou a eleição de outro indivíduo, que "vendia sardinhas e berim- de livre e duradoura associação entre OS elementos empreendedores do país. Trabalhos de coletiva espontaneamente aceitos po- Nos ofícios urbanos reinavam 0 mesmo amor ao ganho fácil e diam ocorrer nos casos onde fossem de molde a satisfazer certos sen- a infixidez que tanto caracterizam, no Brasil, trabalhos rurais. timentos e emoções coletivos, como sucede com OS misteres relacio- Espelhava bem essas condições fato, notado por alguém, em fins nados de algum modo ao culto religioso. Casos, por exemplo, como 58 59da construção da velha matriz de Iguape, em fins do século XVII, tém OS indivíduos respectivamente separados ou unidos entre si. Na em que colaboraram os homens notáveis e povo da vila, carregan- rivalidade, ao contrário, como na prestância, objetivo material CO- do pedras desde a praia até ao lugar onde ficava a ou da mum tem significação praticamente secundária; 0 que antes de tudo velha matriz de Itu, erigida em 1679 com auxílio dos moradores, que importa é dano ou benefício que uma das partes possa fazer à outra. de longa distância levavam à cabeça, em romaria, a terra de pedre- Em sociedade de origens tão nitidamente personalistas como a gulhos com que foram pilados OS Não é difícil distinguir, nossa, é compreensível que OS simples vinculos de pessoa a pessoa, em tais casos, uma sobrevivência de costumes reinóis, cuja implan- independentes e até exclusivos de qualquer tendência para a coope- tação no Brasil data pelo menos dos tempos de Tomé de Sousa e da ração autêntica entre tenham sido quase sempre OS edificação da cidade do Salvador. mais decisivos. As agregações e relações pessoais, embora por vezes precárias, e, de outro lado, as lutas entre facções, entre famílias, entre regionalismos, faziam dela um todo incoerente e amorfo. pecu- Outros costumes, como do muxirão ou mutirão, em que OS liar da vida brasileira parece ter sido, por essa época, uma acentuação roceiros se socorrem uns aos outros nas derrubadas de mato, nos singularmente enérgica do afetivo, do irracional, do passional, e uma plantios, nas colheitas, na construção de casas, na fiação do algo- estagnação ou antes uma atrofia correspondente das qualidades or- dão, teriam sido tomados de preferência ao gentio da terra e fundam- denadoras, disciplinadoras, racionalizadoras. Quer dizer, exatamente contrário do que parece convir a uma população em vias de se, ao que parece, na expectativa de auxílio recíproco, tanto quanto organizar-se politicamente. na excitação proporcionada pelas ceias, as danças, descantes e desafios que acompanham obrigatoriamente tais serviços. Se OS ho- mens se ajudam uns aos outros, notou um observador setecentista, À influência dos negros, não apenas como negros, mas ainda, fazem-no "mais animados do espírito da caninha do que do amor e sobretudo, como escravos, essa população não tinha como ofere- ao 35 É evidente que explicações semelhantes são exatas cer obstáculos sérios. Uma suavidade dengosa e açucarada invade, apenas na medida em que patenteiam que há de excêntrico e mais desde cedo, todas as esferas da vida colonial. Nos próprios domí- ostentoso na verdade: realismo do traço grosso e da caricatura. nios da arte e da literatura ela encontra meios de exprimir-se, princi- Por outro lado, seria ilusório pretender relacionar a presença palmente a partir do Setecentos e do rococó. O gosto do exótico, dessas formas de atividade coletiva a alguma tendência para a COO- da sensualidade brejeira, do chichisbeísmo, dos caprichos sentimen- peração disciplinada e constante. De fato 0 alvo material do trabalho tais, parece fornecer-lhe um providencial terreno de eleição, e per- em comum importa muito menos, nestes casos, do que OS sentimen- mite que, atravessando oceano, vá exibir-se em Lisboa, com OS lun- tos e inclinações que levam um indivíduo ou um grupo de indivíduos dus e modinhas do mulato Caldas Barbosa: a socorrer vizinho ou amigo precisado de Nós lá no Brasil Para determinar 0 significado exato desse trabalho em comum A nossa ternura seria preciso recorrer à distinção que recentes estudos antropológi- A açúcar nos sabe, depois de examinados e confrontados padrões de comporta- Tem muita mento de vários povos naturais, permitiram estabelecer entre a ge- Oh! se tem. nuína "cooperação", e a "prestância" Distinção Tem mel mui saboroso que se aparenta, de certo modo, à que investigações anteriores já ti- É bem bom, é bem nham fixado entre "competição" e "rivalidade". nhanhã, venha escutar Tanto a competição como a cooperação são comportamentos Amor puro e verdadeiro, orientados, embora de modo diverso, para um objetivo material Com preguiçosa docura, mum: é, em primeiro lugar, sua relação com esse objetivo o que man- Que é Amor de 60 61Sinuosa até na violência, negadora de virtudes sociais, contem- Entre seus generais mais famosos, um era fidalgo polonês Cris- porizadora e narcotizante de qualquer energia realmente produtiva, tóvão Arciszewski, que fora obrigado a deixar sua pátria, onde, se- a "moral das senzalas" veio a imperar na administração, na econo- gundo consta, era perseguido devido às suas idéias socinianas e an- mia e nas crenças religiosas dos homens do tempo. A própria cria- tijesuíticas, outro alemão Sigismundo von Schkopp, sobre cujos ção do mundo teria sido entendida por eles como uma espécie de antecedentes nada se sabe de certo até hoje. abandono, um languescimento de Deus. População cosmopolita, instável, de caráter predominantemente urbano, essa gente ia apinhar-se no Recife na nascente Maurits- stad, que começava a crescer na ilha de Antônio Vaz. Estimulando, O sucesso de um tipo de colonização como dos holandeses po- assim, de modo prematuro, a divisão clássica entre engenho e a deria fundar-se, ao contrário, na organização de um sistema eficiente cidade, entre senhor rural e mascate, divisão que encheria, mais de defesa para a sociedade dos conquistadores contra princípios tão tarde, quase toda a história pernambucana. dissolventes. Mas seria praticável entre nós semelhante sistema? O Esse progresso urbano era ocorrência nova na vida brasileira, que faltava em plasticidade aos holandeses sobrava-lhes, sem dúvi- e ocorrência que ajuda a melhor distinguir, um do outro, OS proces- da, em espírito de empreendimento metódico e coordenado, em ca- SOS colonizadores de "flamengos" e portugueses. Ao passo que em pacidade de trabalho e em coesão social. Apenas 0 tipo de colonos todo resto do Brasil as cidades continuavam simples e pobres que eles nos puderam enviar, durante todo 0 tempo de seu domínio dependências dos domínios rurais, a metrópole pernambucana "vi- terras do Nordeste brasileiro, era menos adequado a um país via por Ostentavam-se nela palácios monumentais como o de em formação. Recrutados entre aventureiros de toda espécie, de to- Schoonzicht e de Vrijburg. Seus parques opulentos abrigavam dos OS países da Europa, "homens cansados de eles exemplares mais vários da flora e da fauna indígenas. Neles é que vinham apenas em busca de fortunas impossíveis, sem imaginar criar OS sábios Piso e Marcgrave iam encontrar à mão material de que fortes raizes na precisavam para a sua Historia naturalis brasiliae e onde Franz Post O malogro de várias experiências coloniais dos Países Baixos se exercia em transpor para a tela as cores magníficas da natureza no continente americano, durante 0 século XVII, foi atribuído em par- tropical. Institutos científicos e culturais, obras de assistência de to- te, e talvez com justos motivos, à ausência, na mãe-pátria, de des- da ordem e importantes organismos políticos e administrativos (basta contentamentos que impelissem à migração em larga escala. Esse ma- dizer-se que em 1640 se reunia em Recife 0 primeiro Parlamento de logro representou, em realidade, conforme nota historiador H. J. que há notícia no hemisfério ocidental) davam à sede do governo Priestley, testemunho do bom êxito da República holandesa como da Nova Holanda um esplendor que a destacava singularmente no comunidade nacional.³⁸ E, com efeito, as condições econômico- meio da miséria americana. Para completar quadro, não faltavam políticas das Províncias Unidas tinham alcançado tamanho grau de sequer OS aspectos escuros, tradicionais na vida urbana de todos OS prosperidade, após as lutas de independência, que nos escritórios da tempos: já em 1641, a zona do porto de Recife constituía, para al- Companhia das Índias Ocidentais só se anunciavam, à procura de guns zelosos calvinistas, verdadeiro "antro de perdição". passagens, soldados licenciados, que tinham ficado sem lar em vir- Não há dúvida, porém, que 0 zelo animador dos holandêses na tude da Guerra dos Trinta Anos, germanorum profugi de Bar- sua notável empresa colonial só muito dificilmente transpunha laeus, pequenos artesãos, aprendizes, comerciantes (em parte judeus muros das cidades e não podia implantar-se na vida rural de nosso de ascendência portuguesa), taberneiros, mestres-escolas, mulheres Nordeste, sem desnaturá-la e perverter-se. Assim, a Nova Holanda do mundo e "outros tipos perdidos", informa-nos um pesquisador da história do Brasil holandês. exército da Companhia, que luta- exibia dois mundos distintos, duas zonas artificiosamente agregadas. va em Pernambuco, constava principalmente de alemães, franceses, O esforço dos conquistadores batavos limitou-se a uma gran- ingleses, irlandeses e neerlandeses.³ deza de fachada, que só aos incautos podia mascarar a verdadeira, a dura realidade econômica em que se debatiam. 62 63Seu empenho de fazer do Brasil uma extensão tropical da pá- A própria língua portuguesa parece ter encontrado, em confron- tria européia sucumbiu desastrosamente ante a inaptidão que mos- to com a holandesa, disposição particularmente simpática em muitos traram para fundar a prosperidade da terra nas bases que lhe seriam desses homens rudes. Aquela observação, formulada séculos depois naturais, como, bem ou mal, já tinham feito portugueses. Se- por um Martius, de que, para nossos indios, idiomas nórdicos apre- gundo todas as aparências, bom êxito destes resultou justamente sentam dificuldades fonéticas praticamente insuperáveis, ao passo de não terem sabido ou podido manter a própria distinção com 0 que 0 português, como castelhano, lhes é muito mais mundo que vinham povoar. Sua fraqueza foi sua força. puderam fazê-la bem cedo invasores. Os missionários protestan- Não pouparam esforços, OS holandeses, para competir com seus tes, vindos em sua companhia, logo perceberam que uso da língua predecessores na vida da lavoura. Apenas OS elementos de que dis- neerlandesa na instrução religiosa prometia escasso êxito, não só entre punham não se adaptavam a essa vida. Só um ou outro arriscava-se africanos como entre gentio da terra. Os pretos velhos, esses a abandonar a cidade pelas plantações de cana. E, em 1636, mem- positivamente não aprendiam nunca. O português, ao contrário, bros do Conselho Político, alarmados ante a perspectiva de ruína, era perfeitamente familiar a muitos deles. A experiência demonstrou, por estarem em mãos de portugueses e sobretudo luso-brasileiros as ao cabo, que seu emprego em sermões e prédicas dava resultados mais grandes fontes de riqueza da Nova Holanda, pensaram resolver E assim serviram-se, às vezes, do idioma dos ven- problema, tentando importar numerosas famílias de lavradores da cidos no trato com OS pretos e naturais da terra, quase como OS mãe-pátria. Seria esse modo de se prevenirem contra germes de se serviam da língua-geral para catequizar índios, mesmo futuras complicações. "Só quando tivermos numerosos filhos dos tapuias. Países Baixos residindo entre portugueses nos terrenos da lavoura Importante, além disso, é que, ao oposto do catolicismo, a reli- é que estará assegurado nosso domínio sobre 0 elemento mais irre- gião reformada, trazida pelos invasores, não oferecia nenhuma es- quieto da população", diziam Statthalter e Conselho ao Diretório pécie de excitação aos sentidos ou à imaginação dessa gente, e assim da Companhia das Indias Ocidentais, em janeiro de 1638. Para isso não proporcionava nenhum terreno de transição por onde sua reli- reclamava-se com urgência, de Amsterdam, a remessa de mil a 3 mil giosidade pudesse acomodar-se aos ideais cristãos. camponeses. Mas esperou-se em vão. Os camponeses deixaram-se Desses calvinistas holandeses impossível dizer-se, como se disse, ficar, aferrados aos seus lares. Não OS seduzia uma aventura que ti- por exemplo, dos puritanos da América do Norte, que, animados nham boas razões para supor arriscada e pela inspiração bíblica, se sentiam identificados com 0 povo de Is- O insucesso da experiência holandesa no Brasil é, em verdade, rael a ponto de assimilarem OS indivíduos de outra casta, de outro mais uma justificativa para a opinião, hoje corrente entre alguns an- credo e de outra cor, estabelecidos na Nova Holanda, aos cananeus tropologistas, de que europeus do Norte são incompatíveis com do Antigo Testamento que Senhor entregara à raça eleita para se- rem destruídos e É bem notório, ao contrário, que as regiões tropicais. indivíduo isolado observa uma autoridade não faltaram entre eles esforços constantes para chamar a si pre- no assunto pode adaptar-se a tais regiões, mas a raça, essa deci- tos e indígenas do país, e que esses esforços foram, em grande par- didamente não; à própria Europa do sul ela já não se adapta. Ao te, bem-sucedidos. que parece ter faltado em tais contatos foi a contrário do que sucedeu com holandeses, português entrou em simpatia transigente e comunicativa que a Igreja católica, sem dúvi- contato íntimo e freqüente com a população de cor. Mais do que da mais universalista ou menos exclusivista do que protestantis- nenhum outro povo da Europa, cedia com docilidade ao prestígio mo, sabe infundir nos homens, ainda quando as relações existentes comunicativo dos costumes, da linguagem e das seitas dos indígenas entre eles nada tenham, na aparência, de impecáveis. e negros. Americanizava-se ou africanizava-se, conforme fosse pre- Por isso mesmo não parecem ter conseguido, para sua fé, tan- ciso. Tornava-se negro, segundo expressão consagrada da costa da tos prosélitos, ou tão dedicados, como OS conseguiam, sem excessi- África.⁴² trabalho, OS portugueses, para a religião católica. Disso foram 64 65testemunhas alguns colonizadores das Antilhas, aos quais OS holande- esclarecido para resistir ao hábito corrente, que consiste em fazer abrir ses estabelecidos no Brasil iam vender índios aprisionados e escravi- as covas com auxílio de um simples pedaço de pau, a fim de nelas se zados. "É diz um depoimento da época, "distinguirem-se OS colocarem as sementes. É verdade, como acima se disse, que alguns, que foram convertidos à fé pelos portugueses daqueles que perma- muito poucos, se socorrem de pás; estas, porém, não passam de po- neceram no Recife com OS holandeses, pela piedade e devoção que bres sucedâneos para grande símbolo da civilização, a última palavra mostram nas igrejas, pela sua assiduidade ao serviço divino e pelo de Tubalcain (o salvador do mundo) que é 0 seu exterior, muito mais recatado e modesto.' De então para cá, a aquisição de técnicas superiores, equiva- A essas inestimáveis vantagens acrescente-se ainda, em favor dos lente a uma subversão dos processos herdados dos antigos naturais portugueses, a já aludida ausência, neles, de qualquer orgulho de ra- da terra, não caminhou na progressão que seria para desejar. Pode-se ca. Em resultado de tudo isso, a mestiçagem que representou, certa- dizer que o desenvolvimento técnico visou, em geral, muito menos mente, notável elemento de fixação ao meio tropical não constituiu, a aumentar a produtividade do solo do que a economizar esforços. na América portuguesa, fenômeno esporádico, mas, ao contrário, Por outro lado, é inegável, entretanto, que, vencida a etapa ini- processo normal. Foi, em parte, graças a esse processo que eles pu- cial e pioneira, onde aqueles processos primitivos se apresentam quase deram, sem esforço sobre-humano, construir uma pátria nova lon- como uma fatalidade, OS descendentes dos colonos alemães ita- ge da sua. lianos se mostraram, em regra, mais bem dispostos do que OS luso- brasileiros a acolher as formas de agricultura fundadas so- bre métodos aperfeiçoados. Nota ao capítulo Essas observações colocam-nos em face de um problema que PERSISTÊNCIA DA LAVOURA toca de perto a matéria aqui tratada. Por que motivo, no Brasil, CO- DE TIPO PREDATÓRIO mo aliás em toda a América Latina, os colonizadores europeus re- trocederam, geralmente, da lavoura de arado para a de enxada, quan- É significativo testemunho de um observador norte-americano, do não se conformaram simplesmente aos primitivos processos dos R. Cleary, que, durante os últimos vinte e poucos anos da monar- quia brasileira, exerceu sua profissão de médico em Lajes, Santa Ca- No curso do presente trabalho procurou-se indicar como à es- tarina, tendo imigrado em da Guerra de Secessão nos cassa disposição dos imigrantes ibéricos para as lides agrícolas se deve, Estados Unidos. Em obra ainda inédita, cujos manuscritos se encon- em grande parte, semelhante situação. Mas fato de OS colonos eu- tram na Library of Congress, em Washington, oferece Cleary se- ropeus de outras procedências não se mostrarem, apesar de tudo, guinte depoimento acerca dos colonos alemães em São Leopoldo que, muito mais progressistas nesse particular do que OS portugueses e afirma, nada trouxeram de novo ao país adotivo e se limitaram a espanhóis indica que, ao lado do motivo mencionado, deveriam mi- plantar 0 que brasileiros já plantavam e do mesmo modo, primi- litar no sentido de atual regressão outros e ponderáveis fatores. O tivo e grosseiro: assunto constituiu objeto de um cuidadoso inquérito do dr. Herbert Conheci um irlandês em Porto Alegre [...] que tentou introduzir o uso Wilhelmy que, publicado na Alemanha durante anos geral do arado entre Não obteve o menor resultado, pois não chegou a encontrar a repercussão merecida.⁴⁸ OS colonos preferiam recorrer a enxadas ou pás e, na grande maioria Mostra-se nesse trabalho como recurso às queimadas deve pa- dos casos, a simples cavadeiras de pau, com que abriam covas para recer aos colonos estabelecidos em mata virgem de uma tão patente as sementes. Este último pormenor requer explicação: nossos próprios necessidade que não lhes ocorre, sequer, a lembrança de outros mé- trabalhadores rurais ficarão sem dúvida estarrecidos se en lhes disser todos de desbravamento. Parece-lhes que a produtividade do solo que a lavoura aqui é feita, em geral, com 0 auxílio de enxadas, mais desbravado e destocado sem auxilio do fogo não é tão grande que raramente de pás e isso mesmo onde 0 lavrador é suficientemente compense trabalho gasto em seu arroteio, tanto mais quanto são 66 67quase sempre as perspectivas de mercado próximo para a Duas causas explicam suficientemente, para Wilhelmy, a per- madeira cortada. sistência dos métodos mais primitivos de lavoura nas colônias ale- Opinião ilusória, pensa Wilhelmy, pois as razões econômicas em mãs do Sul do Brasil. A primeira está em que essas colônias se acham que se apóia este ou aquele método de trabalho não dependem ape- distribuídas, em sua maioria, ao longo da região serrana e ocupam nas dos gastos que se façam necessários para seu emprego. Muito encostas de morro, em direção aos vales. A própria conformação mais decisivo seria confronto entre rendimento de um hectare do terreno proíbe, nesses casos, emprego do arado. Por outro la- preparado por outros processos. E semelhante confronto revela, por do, parte dos colonos instalados em planícies acabou lavrando suas exemplo, que "a colheita do milho plantado em terra onde não hou- terras à maneira européia. Mas nem todos. Muitos permaneceram duas vezes do que em roçados feitos com e ainda permanecem fiéis à enxada e somente à enxada. A razão es- -lio do fogo". tá é esta a segunda causa invocada para explicar a persistência Além de prejudicar a fertilidade do solo, as queimadas, destruin- dos processos primitivos em que a experiência de vários lavrado- do facilmente grandes áreas de vegetação natural, trariam outras res mostrou como o emprego do arado é muitas vezes contraprodu- desvantagens, como a de retirar aos pássaros a possibilidade de cons- cente em certas terras tropicais e subtropicais. Muitos colonos, dos seus ninhos. "E 0 desaparecimento dos pássaros acarreta 0 mais progressistas, tiveram de pagar caro por semelhante experiência, desaparecimento de um importante fator de extermínio de pragas de como sucedeu, por exemplo, aos de Nueva Germania, núcleo funda- toda espécie. O fato é que, nas diversas regiões onde houve grande do em 1887, no Norte do Paraguai. Destes, OS que não se arruinaram destruição de florestas, a broca invade as plantações de mate e pe- precisaram voltar à lavoura de enxada e não tencionam mais aban- netra até à medula nos troncos e galhos, condenando OS arbustos doná-la, pois estão plenamente convictos de que um solo florestal a morte certa. As próprias lagartas multiplicam-se consideravelmente pode ser destruído não só pelo fogo, mas também pelo arado com a diminuição das matas." Tais não deveriam interpretar-se, todavia, como um Seja como for, OS colonos alemães, que há sessenta anos em- convite à inércia e à persistência de hábitos rotineiros, mas ao exa- pregaram recursos menos devastadores do que as queimadas, tive- me prévio das peculiaridades de cada solo, antes de se introduzirem ram de acomodar-se, finalmente, ao tradicional sistema brasileiro, aperfeiçoamentos na técnica agrária. As mencionadas experiências pois diz um depoimento da época revolvendo-se solo para parecem indicar apenas que trabalho do arado se torna prejudicial arrancar as raízes, sobem à superfície corpúsculos minerais que en- quando a relha revolve tão profundamente solo que chega a sepul- travam crescimento das plantas. tar a tênue camada de húmus sob terras pobres, isentas de micror- Uma vez efetuado desbravamento inicial, nada impediria ganismos e, em geral, das substâncias orgânicas necessárias ao de- senvolvimento das plantas cultivadas. emprego do arado, que OS colonos deviam conhecer de seus países Estudos efetuados em outros continentes tendem a corroborar de origem. Tal não se deu, entretanto, salvo em casos excepcionais. E único desses casos excepcionais que pôde registrar Wilhelmy é as observações feitas por Sapper e Wilhelmy na América tropical. dos menonitas canadenses e russos de ascendência alemã, que en- Assim, quando uma grande fábrica de tecidos de Leipzig tratou de promover em Sadani, na África Central, plantações de afgodão se- tre 1927 1930 se estabeleceram nas campinas do Chaco paraguaio. gundo métodos modernos, utilizando para isso arados que lavravam Estes não só vieram com firme deliberação de praticar a lavoura de a terra numa profundidade de 30 a 35 centímetros, a conseqüência arado sobre grandes extensões, como ainda, e por motivos de fundo foi um imediato e desastroso decréscimo na produtividade. religioso, se mostraram adversos ao sistema das queimadas. A pon- Reconhecida a causa do insucesso, passou-se a praticar uma ara- to de se terem recusado a admitir a possibilidade, quando esta sur- dura de superfície, com OS melhores resultados. Como explicar, no giu mais tarde, de uma transferência para as áreas florestais brasi- entanto, que nas suas missões do Paraguai, tenham in- leiras do estado de Santa Catarina. troduzido, desde 0 começo, e com bom a lavoura de arado? 68 69A razão deveria estar em que OS arados trazidos pelos espanhóis pa- ra suas possessões americanas lavravam, em geral, a pouca profun- didade. Sapper informa-nos que, nesse ponto, não se distinguiam muito da taclla ou arado de pé dos antigos quíchuas: a criação mais avançada da técnica agrária da América Sua van- tagem estava em que, num mesmo prazo, lavravam áreas duas e três vezes maiores. Por uma descrição datada de meados do século XVIII sabemos que os toscos arados de madeira usados nas missões jesuíticas pene- travam no solo apenas um quarto de vara e, sem embargo, tudo quan- to ali semeavam crescia bem. Cresceria melhor e daria frutos mais copiosos, sustentava padre Florian Paucke, julgando certamente segundo padrões europeus, se, à maneira dos arados de ferro, cor- tassem mais fundo e revolvessem a terra "como ocorre em nossos países alemães". 51 À América portuguesa mal chegaram esses e outros progressos técnicos de que desfrutaram índios das Missões. A lavoura entre nós continuou a fazer-se nas florestas e à custa delas. Dos lavrado- res de São Paulo dizia, em 1766, d. Luís Antônio de Sousa, seu capitão-general, que iam "seguindo mato virgem, de sorte que os Fregueses de Cutia, que dista desta Cidade sete léguas, são já hoje Fre- gueses de Sorocaba, que dista da dita Cutia vinte léguas". E tudo porque, ao modo do gentio, só sabiam "correr trás do mato virgem, mudando e estabelecendo seu domicílio por onde 70Heller, C Sobre OS Preconceitos e Terror 1970 Carlos Nelson e PRECONCEITO é a categoria do pensamento e do com portamento cotidianos. Os preconceitos sempre desempenha- ram uma função importante também em esferas que, por sua universalidade, encontram-se acima da cotidianidade; mas não procedem essencialmente dessas esferas, nem aumentam sua eficácia; ao contrário, não só a diminuem como obstaculizam a aproveitamento das possibilidades que elas comportam. Quem não se liberta de seus preconceitos artísticos, científicos e po- líticos acaba fracassando, inclusive pessoalmente. Por isso, devemos nos aproximar da compreensão dos pre- conceitos partindo da esfera da cotidianidade. São traços ca- racterísticos da vida cotidiana: o caráter momentâneo dos efei- tos, a natureza efêmera das motivações e, a fixação repetitiva do ritmo, a rigidez do modo de vida. De forma análoga, é pensamento cotidiano um pensamento fixado na experiência, empírico e, ao mesmo tempo, ultrageneralizador. Quando fa- lamos aqui em "pensamento", não queremos nos referir a teo- ria. pensamento cotidiano implica também em comporta- mento. 43De duas maneiras chegamos à ultrageneralização carac- opinião pode corretamente considerar-se como saber na vida terística de nosso pensamento e de nosso comportamento CO- cotidiana, já que é critério da ação e já que a ação cotidiana tidianos: por um lado, assumimos analogias e es- comprova conteúdo correto do juízo em que se baseia aquele quemas já elaborados; por outro, eles nos são "impingidos" saber. Voltemos, portanto, aos juízos e aos esquemas de com- pelo meio em que crescemos e pode-se passar muito tempo portamento da cotidianidade: esses juízos e esquemas são sem- até percebermos com atitude crítica esses esquemas recebidos, pre provisórios, por causa, precisamente, do caráter de doxa se é que chega a produzir-se uma tal atitude. Isso depende da que é próprio do saber Mas o "caráter provisório" época e do Em períodos estáticos, passam-se fre- não diminui absolutamente a verdade de nossa afirmação se- inteiras gerações sem que se problematizem gundo a qual juízos provisórios podem se alterar e modificar estereótipos de e pensamento. Em épocas di- na atividade social e individual: seu caráter provisório con- nâmicas, esses elementos podem tornar-se problemáticos até serva-se na própria alteração. mesmo várias vezes em uma só geração. Além disso, a pro- Do acima estabelecido, podemos inferir que a maior par- blematização é mais lenta e em caracteres inclina- te dos juízos provisórios não são preconceitos. O preconceito dos para conformismo do que em indivíduos dinâmicos e é um tipo particular de juízo provisório; e, para entender sua críticos. A tradição não é sempre a fonte da ultrageneraliza- origem, temos de considerar uma outra propriedade da estru- ção, que pode se basear também na experiência pessoal; e a tura da vida cotidiana. atitude que se contrapõe ao sistema estereotipado tradicional Pensamos no pragmatismo dessa estrutura. A vida coti- pode conter ultrageneralizações análogas à do próprio sistema diana caracteriza-se pela unidade imediata de pensamento e ao qual se opõe. Mas devemos acrescentar a essa caracterização que A ultrageneralização é inevitável na vida cotidiana. Ca- pensamento cotidiano não é jamais teoria, assim como a ati- da uma de nossas atitudes baseia-se numa avaliação proba- vidade cotidiana nunca é praxis. Na teoria e na praxis, domi- Em breves lapsos de tempo, somos obrigados a rea- nam finalidades e conteúdos que representam humano-gené- lizar atividades tão heterogêneas que não poderíamos viver se rico; ambos promovem o desenvolvimento humano-genérico e nos empenhássemos em fazer com que nossa atividade depen- produzem novidades em seu estado. A vida cotidiana pode ser fonte, exemplo, ponto de partida para a teoria, como ocorreu desse de conceitos fundados cientificamente. no caso do chamado "common sense"; pode igualmente ter Mas grau de ultrageneralização nem sempre é o mes- certa participação não consciente na praxis, sobretudo na ati- mo. A rigidez das formas de pensamento e comportamento vidade do trabalho. Mas de modo algum pode se falar, nesse cotidianos é apenas relativa, ou seja, pode se modificar len- caso, de identidade. tamente na atividade permanente e, com efeito, geralmente se A unidade imediata de pensamento e ação expressa-se modifica. Toda é um juízo provisório ou também no fato de que, na vida cotidiana, identificam-se uma regra provisória de comportamento: provisória porque se verdadeiro e que revela ser correto, útil, o que ofe- antecipa à atividade possível e nem sempre, muito pelo con- rece ao homem uma base de orientação e de ação no mundo, trário, encontra confirmação no infinito processo da prática. 0 que conduz ao êxito, é também "verdadeiro". Diferentemente do que ocorre com os juízos cotidianos, Voltemos agora à. ultrageneralização. Ela pode ser cor- juízos científicos consideram-se provisórios apenas até o mo- reta ou falsa. Uma ultrageneralização é correta quando cor- mento em que, num determinado estágio evolutivo da ciência, responde ao objetivo dado, cuja realização promove; e falsa comprovam-se como verdades, sendo confirma- quando não podemos nos afirmar através dela, quando sua das. Isso torna necessária uma rememoração da ambivalência orientação nos leva ao "fracasso". Isso ocorre nas "catástrofes" contida no conceito de "saber". que na ciência é apenas da vida Quando se trata da relação entre o homem 44 45€ a natureza (na objetivação, no consumo, ou na ampla escala de atividades que envolvem a produção e o consumo), a coin- correto algo que de nenhum modo é verdadeiro: pode, por- cidência do verdadeiro com correto não pode absolutamente tanto, basear-se num juízo provisório falso. Que é, nesse caso, tornar-se problemática. Se generalizarmos incorretamente, a um juízo provisório falso? É um juízo provisório que podería- própria atividade nos corrigirá: o produto que fabricarmos será mos corrigir mediante a experiência, o pensamento, o conheci- de má qualidade, ficaremos doentes por termos comido algu- mento e a decisão moral individual, mas que não corrigimos ma coisa inadequada, etc. Teremos de alterar imediatamente porque isso perturbaria o êxito, a "correção" evidente, ainda nossa conduta e formar um novo juízo provisório a fim de nos que não moral. orientarmos corretamente no Os juízos provisórios refutados pela ciência e por uma A estrutura pragmática da vida cotidiana tem experiência cuidadosamente analisada, mas que se conservam cias mais problemáticas quando se coloca em jogo a orientação inabalados contra todos OS argumentos da razão, são precon- nas relações sociais. Na maioria das vezes, embora decerto ceitos. Até agora, impõe-se-nos a conclusão de que pre- nem sempre, 0 homem costuma orientar-se num complexo SO- conceitos pelo menos parcialmente são produtos da vi- cial dado através das normas, dos estereótipos (e, portanto, da do pensamento cotidianos. Vamos agora estudar suas das de sua integração primária (sua classe, raízes antropológicas. camada, nação). No maior número dos casos, é precisamente Temos sempre uma fixação afetiva no preconceito. Por a assimilação dessas normas que lhe garante êxito. Essa é isso, era ilusória a esperança dos luministas de que o pre- a raiz do conformismo. Todo homem necessita, inevitavel- conceito pudesse ser eliminado à luz da esfera da Dois mente, de uma certa dose de Mas essa confor- diferentes afetos podem nos ligar a uma opinião, visão ou con- midade converte-se em conformismo quando o indivíduo não vicção: a fé e a confiança. O afeto do preconceito é a fé. aproveita as possibilidades individuais de movimento, objetiva- A fé e a confiança distinguem-se entre si nos planos an- mente presentes na vida cotidiana de sua sociedade, caso em tropológico, epistemológico e ético. As diferenças epistemoló- que as motivações de conformidade da vida cotidiana pene- gicas e éticas baseiam-se nas antropológicas. tram nas formas não cotidianas de atividade, sobretudo nas Do ponto de vista antropológico, a fé nasce da particula- decisões morais e políticas, fazendo com que essas percam ridade individual, cujas necessidades satisfaz. Todo homem é, seu caráter de decisões individuais. No mais das vezes, essas ao mesmo tempo, ente particular-individual e ente humano- duas manifestações de conformismo aparecem juntas. genérico, ou seja, uma "singularidade" e, simultaneamente, uma A possibilidade, ou mesmo probabilidade, de comporta- parte orgânica da humanidade, da história humana. Com di- mento conformístico emprestam à unidade do verdadeiro e do ferenças de grau, todo homem tem motivações que se referem correto nas relações sociais um conteúdo bastante diverso da- apenas a si mesmo, finalidades que pacificam tão-somente quele que apresenta na atividade do trabalho. que, na vida suas próprias necessidades; mas, além disso, está necessaria- cotidiana, desejamos da atividade laborativa é que nos mente inserido no desenvolvimento global da humanidade me- facilite, com menor esforço a participação na re- diante atividades objetivas (como o trabalho) e pode ter mo- produção social; o "mínimo esforço", nesse caso, identifica-se tivações que tendam a encarnar o humano-genérico, objetivos com as "necessidades normais" do indivíduo. Essa mesma nor- dirigidos "para fora". (São motivações desse tipo, por exem- ma do "mínimo que promove uma integração sem plo, as exigências éticas; e objetivos de tal ordem são aqueles conflitos com interesses de nossa integração social, pode conscientemente fundados nos valores assumidos de uma ampla "poupar" pensamento individual e decisão individual inclusive integração, como sejam a polis, o estamento, a classe ou a em campos nos quais essa individualidade é não apenas pos- pátria). sível mas necessária, com o que se chega a apresentar como Particular, de modo geral, não é aquilo em que 0 ho- mem acredita, mas sim sua relação com OS objetos da fé e com 46exemplo, ocorre que um preconceito social tí- a necessidade satisfeita pela fé. Isso se evidencia de modo pico não consiga exercer função rígida de preconceito em to- intenso nos preconceitos: OS objetos e conteúdos de nossos dos OS membros da sociedade; muitas vezes, trata-se apenas preconceitos podem ser de natureza plenamente universal; po- de um juízo provisório que consegue se afirmar tão-só até dem referir-se à totalidade de nossa natureza ou de nossa momento em que indivíduo se vê confrontado com verdades classe, a proposições morais ou religiosas, etc. Em troca, as que ignorava. O modo de "provar" se um preconceito social motivações e as necessidades que alimentam nossa fé e, com tem função de preconceito também no indivíduo ou carece ela, nosso preconceito satisfazem sempre nossa própria parti- dela consiste sempre na confrontação com OS fatos. Se a fonte cularidade individual. Na maioria dos casos, fazem-no de mo- do direto, sem mediação: crer em preconceitos é cômodo por- de um juízo é uma autoridade, a prova será do mesmo tipo, que nos protege de conflitos, porque confirma nossas ações an- embora indiferente; pois, nesse caso, que se deve investigar teriores. Mas, muitas vezes, mecanismo é também indireto: é fundamento e respeito com quais a autoridade em nossa que não pôde alcançar seu objetivo em sua ver- questão obteve essa função de autoridade, ou seja, se é pos- dadeira atividade humano-genérica, consegue então um "sen- sível confiar com fundamento em seus juízos ou se eles são apenas merecedores de fé. tido" pleno no preconceito. Diferentemente da fé, a confiança enraiza-se no indivíduo. As reservas emocionais da fé e da confiança são de va- indivíduo está numa relação mais menos consciente com riados tipos. Podemos deixar de lado a maioria delas, por- sua essência humano-genérica e com sua particularidade indi- que apenas uma tem importância para nosso tema, qual vidual. Quando confio num homem ou numa coisa, sou eu, seja, fato de que no caso da fé sempre aparece par de quem confio; sou eu quem me ofereço, no que se refere à con- sentimentos amor-ódio; e o ódio não se dirige tão-somente fiança, tanto como no caso da fé. As necessidades desse "Eu" contra aquilo em que não temos fé, mas também contra as pessoas que não crêem no mesmo que nós. A intolerância que se oferece ou entrega não se dirigem apenas a si mesmo; emocional, portanto, é uma necessária da fé. nesse caso, sua teleologia vai além sua própria particulari- dade. O Eu assume uma certa distância com relação à sua par de sentimentos amor-ódio divide nossos precon- própria particularidade; e essa distância, por sua vez, implica ceitos em dois grupos, em preconceitos positivos e preconcei- que é extremamente importante com relação aos precon- tos negativos, em preconceitos acerca de nossa própria vida, ceitos na possibilidade de outro distanciamento com rela- nossa própria moral, nossos próprios preconceitos, nossa pró- ção à comunidade ou integração de que se faz parte, com pria comunidade, nossas próprias idéias, e preconceitos refe- relação à "consciência de nós". rentes aos "demais", alienados e contrapostos a nós: Nesse Essa diferença antropológica está na base da diferença último grupo, preconceito se deforma "para baixo" na escala epistemológica. Toda confiança se apóia no saber. Na esfera dos sentimentos. O preconceito, portanto, impede encontro cotidiana, isso significa que toda confiança regularmente re- do "valor médio" aristotélico; jamais alcança a exata medida, futada pelo pensamento e pela experiência termina por desa- tanto no que se refere à quantidade como à qualidade. parecer. Em troca, a fé está em contradição com 0 saber, ou preconceito pode ser individual ou social. homem seja, resiste sem abalos como vimos ao pensamento e à pode estar tão cheio de preconceitos com relação a uma pes- experiência que a controlam. soa ou instituição concreta que não lhe faça absolutamente Em geral, tão-somente a posteriori é que podemos deter- falta a fonte social do conteúdo do preconceito. Mas a maio- minar de modo preciso se um juízo ou um comportamento ria de nossos preconceitos tem um caráter mediata ou ime- estão ligados à fé ou à confiança, bem como se na combina- diatamente Em outras palavras: costumamos, pura e sim- ção concreta apenas individual-particular tem uma função ou plesmente, assimilá-los de nosso ambiente, para depois aplicá- se também indivíduo desempenha algum papel. Assim, por los espontaneamente a casos concretos através de mediações. 48 49Nossos preconceitos sociais podem ser estereotipados ou não estereotipados. Todo preconceito dominante ou relativa- à praxis da classe (ou camada, ou nação) em questão, os juí- mente generalizado, porém, apresenta via de regra um "núcleo" zos, em outras palavras, sobre cuja base atua essa comunidade, estereotipado, em torno do qual podem se situar "variantes" não são preconceitos. Quanto mais "em movimento" está uma semi-estereotipadas ou simplesmente não-estereotipadas. fa- classe, quanto maiores são suas possibilidades de uma praxis to de que a formulação de um preconceito possa ser mais efetiva, tanto menos são preconceitos seus juízos. A ativi- menos individual, contudo, nada diz acerca da individualidade dade política (no mais amplo sentido da expressão), a ativi- do homem que assumiu esse preconceito. dade que dirige o movimento e mobiliza as grandes integrações, Não há relação direta entre a estereotipia e a intensidade ter êxito apenas quando se coloca na altura de um pen- dos preconceitos. A intensidade dos preconceitos pode ser des- samento isento de preconceitos. Os políticos grandes e vito- coberta em seu grau de transposição prática. Allport construiu riosos foram sempre aqueles cujas representações da própria a seguinte gradação no que se refere aos preconceitos negati- classe ou nação e até mesmo dos inimigos mantiveram-se isen- vos: ressentimento, racionalização (autojustificação) estereo- tas de preconceitos. Precisamente por isso, e tão-somente por tipada, comportamento estereotipado (desde a discriminação isso, é que puderam ver com clareza o que era possível fazer, até o extermínio, passado pela tortura física) A gradação numa concreta situação determinada, com sua classe ou sua histórica não varia quando se trata da explicação social de nação, como podiam dirigi-las e que passos deveriam empre- um preconceito, ainda que nem todo preconceito atravesse to- ender para alcançar a vitória. "O covarde", por exemplo, é das as fases indicadas. Mas a gradação costuma se inverter um caso típico de conceito estereotipado pelo preconceito; se na configuração dos preconceitos no indivíduo. A primeira um político partir da pressuposição de que seu opositor é um coisa observada pela criança são modos de comportamento covarde, será inevitavelmente derrotado. preconceituoso estereotipados e as racionalizações ou justifica- A esfera política (o ato consciente de assumir a praxis ções dos mesmos feitas pelos adultos; só depois é que começa da integração), portanto, destaca-se tal como a atividade a sentir ressentimento correspondente. científica da cotidianidade. Não é casual que, nesse ponto, Partimos do fato de que a vida cotidiana produz, em sua consideremos necessário recordar nosso ponto de partida, ou dimensão social, OS preconceitos, bem como de que a base seja, a tese de que preconceito não pertence necessariamente antropológica dessa produção é a particularidade individual, à esfera da ciência e da arte, embora uma parte dos precon- ao passo que "tecido conjuntivo" emocional é a fé. Mas disso ceitos desenvolva-se precisamente em tais esferas. A fonte dos não decorre, nem fática nem logicamente, a existência do sis- preconceitos científicos e artísticos é a mesma conformidade tema de preconceitos sociais estereotipados. E ao contrário: de que já falamos acerca da vida cotidiana, O cientista ou ar- a particularidade do homem está vinculada aos sistemas de pre- tista professa esses preconceitos para poder se mover "com êxi- conceitos pelo fato de, também na própria sociedade, predo- to", "corretamente", em sua integração. O êxito de uma arte minarem embora em outro plano e com variações siste- ou de uma ciência cheias de preconceitos produz-se exclusiva- mas de preconceitos sociais estereotipados e de mente na esfera da cientista com preconcei- comportamentos carregados de preconceitos. tos pode certamente fazer carreira, mas não na esfera da ciên- Que provoca tais sistemas de preconceitos? São provoca- cia. A ciência e a arte de efetivo sucesso, cu seja, tudo aquilo dos pelas integrações sociais nas quais vivem os homens e, den- que for duradouro e promover a causa da humanidade, está tro dessas integrações, sobretudo pelas classes sociais. isento de preconceitos, pelo menos sob aquele aspecto no qual Mas, nesse ponto, devemos introduzir uma ressalva. Os é uma vitória artística ou científica. Tampouco o grande po- juízos de classe típicos, ou seja, juízos que expressam o lítico pode se manter preso a preconceitos. interesse fático de uma classe (ou camada) e que se referem juízo de classe (de camada, ou nacional) está fre- livre de ressentimentos com relação aos "demais". 50 51Se tivéssemos perguntado aos nobres latifundiários do feudalis- tema de preconceitos: estava vinculada à praxis, ao humano- mo clássico como avaliam as características de seus servos, genérico, não ao individual-particular; à confiança, não à fé. teríamos recebido como resposta, numerosas vezes, Ao contrário, em todos aqueles que declararam posteriormen- pos inteiramente positivos, características como "fiéis", "gene- te que a sociedade burguesa realizada era em sua realidade rosos", "aplicados", "trabalhadores", etc. Um juízo desse tipo efetiva "reino da razão", aquela ideologia (que já não mais é elástico porque tem de Se não se ativer em seu con- se encontrava na principal linha de força da praxis histórico- teúdo às transformações ocorridas no comportamento e no ca- universal) converteu-se num sistema de preconceitos. Por isso, ráter da parte contrária, a prática construída sobre referido Marx pôde afirmar com razão que aquilo que em Helvétius juízo estará condenada ao fracasso. E, em suas estereotipias, ainda era profundo e rico em espírito torna-se em Bentham uma verifica-se uma tão grande aspiração a obter um critério ob- superficial apologia. jetivo que, com distancia-se particularmente de sua Os preconceitos, portanto, são obra da própria integração própria nação, da classe em cujo nome se formula. social (por exemplo, da nação ou da camada, mas sobretudo Nesse ponto, devemos distinguir entre o sistema de pre- da classe) que experimenta suas reais de movi- conceitos e a falsa consciência, cuj a ideologia na qual se ex- mento mediante idéias e ideologias isentas de Os pressa essa falsa consciência. A falsa consciência (ou a falsa preconceitos servem para consolidar e manter a ideologia) está tão permeada quanto próprio sistema de pre- e a coesão da integração dada. conceitos por uma ultrageneralização de conteúdo marcada- Não podemos nos aprofundar aqui na questão das várias mente emocional. Mas nem por isso se trata de um sistema espécies e formas de preconceito. Limitar-nos-emos a mencio- de preconceitos. A falsa ideologia pode transformar-se em sis- nar algumas delas, que são bastante características. tema de preconceitos, pode adotar mais ou menos plenamente Até mesmo as ideologias isentas de preconceitos estão OS traços de um sistema desse tipo; contudo, não é necessário mais ou menos "cobertas" por eles. decisivo para a praxis que faça, e, quando fizer, não 0 fará na mesma proporção. histórico-universal de uma integração social que a situação, as Pois, na medida em que é. expressão de aspirações classistas reservas de força e inimigo sejam avaliados exatamente em essenciais motivadoras da praxis histórica total, a ideologia não seus pontos básicos, que a ação possa se apoiar na iniciativa tem caráter de preconceito, por mais simplista, tendencioso e individual e possa exigir tudo dos participantes, inclusive o deformador que seja 0 sistema intelectual no qual se expressa. sacrifício pessoal; contudo, nos momentos menos fundamentais, O alo de assumir uma ideologia é habitualmente algo bastan- desempenha uma certa função também o preconceito, porque te difícil para indivíduo, porque a ideologia não faz apelo é capaz de mobilizar a própria particularidade no interesse ao particular-individual e exige uma força mo- do objetivo preconceito pode afirmar a "onipotên- ral realmente extraordinária, assim como muita iniciativa indi- cia" de determinado dirigente e, nesse caso, a fé ocupa lu- vidual. Quando OS revolucionários franceses levantavam suas gar da confiança; mas também pode se expressar na subava- barricadas com a de estarem chamados, enquanto liação do opositor, caso em que não é inevitável que a encarnações dos antigos heróis romanos, a realizar "reino da se obscureça quando se trata de questões De qual- razão", não podiam dominar com pensamento as forças eco- quer modo, esses preconceitos "encobridores" não são de mo- nômicas e sociais a cujo serviço se colocavam; no prosaico do algum inofensivos para a praxis de uma integração. Isso mundo burguês realizado, pôde-se ver que seus juízos eram juí- pode ocorrer no mas muitas vezes eles se expan- ZOS provisórios. Mas, dado que a burguesia não podia dar dem de tal modo que impedem completamente uma visão cla- aquele passo de importância histórico-universal e que inaugurou ra das questões básicas e levam a ação ao fracasso. dominio a não ser sobre a base de uma ultrageneraliza- muito raro que um tal processo comece pelo lado da ção intelectual e emocional, aquela ideologia não era um sis- ideologia. Na maioria dos casos, começa quando principia 52 53relaxamento da coesão econômica, política e ideológica da in- tegração social ativa em questão; por exemplo, quando a coe- radoxal que consideremos como máximo "produtor" de pre- são nacional é debilitada pelas lutas de classe, a coesão da conceitos precisamente a classe que foi a primeira a comba- classe pela luta entre partidos, a coesão do partido pelas lutas tê-los (basta recordar, por exemplo, que foi feito com de fração, etc. O aumento dos preconceitos pode então se ace- preconceitos referentes à inserção numa determinada confis- lerar espontaneamente, embora também possa resultar de uma são ou num determinado estamento) Mas, embora não ne- manipulação Disso decorre que a coesão de uma in- cessitasse sancionar com preconceitos os limites aristocrático- tegração não está em razão direta da intensidade dos precon- estamentais, tornou-se-lhe absolutamente necessário o precon- sistema de preconceitos não é imprescindível a qual- ceito no mundo da igualdade e da liberdade formais, precisa- quer coesão enquanto tal, mas apenas à coesão internamente mente porque agora passavam a existir essas noções formais. ameaçada. A coesão da sociedade burguesa foi, desde o primeiro mo- A maioria dos preconceitos, embora nem todos, são pro- mento, mais instável que as da Antiguidade ou do feudalismo dutos das classes dominantes, mesmo quando essas pretendem, Por isso, chamados preconceitos de grupo (os pre- na esfera do para-si, contar com uma imagem do mundo re- conceitos nacionais, raciais, étnicos) só aparecem no plano lativamente isenta de preconceitos e desenvolver as ações cor- histórico, em seu sentido próprio, com a sociedade burguesa. respondentes. O fundamento dessa situação é evidente: as clas- O desprezo pelo "outro", a antipatia pelo diferente, são ses dominantes desejam manter a coesão de uma estrutura so- tão antigos quanto a própria Mas, até a socie- cial que lhes beneficia e mobilizar em seu favor inclusive dade burguesa, a mobilização de sociedades inteiras contra ou- homens que representam interesses diversos (e até mesmo. em tra sociedades, mediante sistemas de preconceitos, não consti- alguns casos, as classes e camadas Com ajuda tuiu jamais um fenômeno típico. Se prescindirmos de casos dos preconceitos, apelam à particularidade individual, que excepcionais, o que mais se destaca é o fato de que jamais em função de seu conservadorismo de seu comodismo e de seu foi necessário mobilizar a sociedade inteira. 0 típico, nas lu- conformismo, ou também por causa de interesses imediatos tas de então, era antes o respeito pelo inimigo: gregos e troia- é de fácil mobilização contra os interesses de sua própria in- nos estimavam-se reciprocamente. do mesmo modo como as tegração e contra a praxis orientada no sentido do humano- grandes famílias que combatiam entre si durante feudalismo genérico. camponês húngaro que se lançou com entusias- mo na Primeira Guerra Mundial, ou o operário alemão en- Dizemos tudo isso apenas com a finalidade de refutar o tregue de corpo e alma a Hitler, foram tipos humanos mani- ponto de vista dominante na sociologia contemporânea, segun- pulados através de sistemas de preconceitos. Não é casual que. do o qual a fonte dos preconceitos é grupo enquanto tal, a fossem manipulados: seus interesses imediatos, sua particula- coesão grupal em si; ora, próprio conceito de "grupo" já ridade individual, foram mobilizados contra seu ser humano- nos parece uma categoria ultrageneralizadora e, por conseguin- genérico, e de um modo tal que passaram a aceitar como in- te, de escasso rigor científico; as simples concordâncias formais tegração superior as formas ideais de serviço a uma "consciên- não são suficientes para justificar que se trate como idênticas cia de nós". as formações grupais face-to-face e as integrações sociais. Essas Deve-se observar ainda, neste contexto, que a classe bur- são hoje, como as produtoras dos preconceitos so- guesa produz preconceitos em muito maior medida que todas cialmente influentes: e não estão baseadas em relações face-to- as classes sociais conhecidas até hoje. Isso não é apenas con- face. Em troca, pequenos grupos transmitem ao indivíduo de suas maiores possibilidades técnicas, mas tam- tão-somente um sistema de preconceitos produzidos por eles bém de seus esforços ideológicos hegemônicos: a classes bur- mesmos e de natureza particularmente provinciana e efêmera. guesa aspira a universalizar sua ideologia. Talvez pareça pa- Nem todo grupo produz preconceitos socialmente típicos. Além disso, e como vimos, sua coesão e seus preconceitos não estão 54em razão direta entre si; e, finalmente, há grupos coletiva- se articula, ao invés, com uma limitação mental de mente ativos que estão completamente livres de preconceitos. fé estereotipada. O mesmo ocorre quando as qualidades ou A questão de saber qual grupo produz preconceitos e por particularidades estereotipadas se separam da concreta situação quê e como é simplesmente uma questão histórica, à qual histórica; e também quando a estereotipia tem uma função ana- só é possível responder mediante uma análise da história da lítica, mas normativa; mesmo se verifica, finalmente, quan- integração em pauta. do buscamos a priori em um indivíduo as propriedades de Podemos distinguir através do conteúdo muitos tipos de grupo e consideramo-las essenciais a ele. preconceito: preconceitos-tópicos (por exemplo: "os homens O homem predisposto ao preconceito rotula que tem dian- são maus, não é possível melhorá-los"), preconceitos morais, te de si e o enquadra numa estereotipia de grupo. Ao fazer isso, científicos, políticos, preconceitos de grupo, nacionais, religiosos, habitualmente passa por cima das propriedades do indivíduo raciais, etc. Qualquer que seja seu conteúdo, sua esfera é sem- que não coincidem com as do grupo. Mesmo quando chega a pre a vida cotidiana. que acima afirmamos sobre OS juízos percebê-las, registra-as como se se tivessem produzido apesar artísticos, científicos e políticos e sobre preconceitos pró- da integração do indivíduo em seu grupo, contra essa integra- prios dessas esferas aplica-se também aos morais. Os lugares ção. Há duas coisas que o homem predisposto nunca é capaz comuns e as estereotipias de grupo podem estar isentas de pre- de fazer: corrigir o juízo provisório que formulou sobre um conceitos, mas diferentemente dos juízos daquelas esferas grupo baseando-se em sua experiência posterior, e investigar jamais abandonam o âmbito da acerca da profundidade da integração dos indivíduos em seus Podemos ainda fazer outra observação acerca dos precon- respectivos grupos. indivíduo predisposto não investiga se ceitos morais: nos preconceitos morais, a moral é objeto de a integração de um indivíduo em seu grupo é casual ou esco- modo direto. Mas, mesmo em outros âmbitos que não dos de importância primária, secundária ou puramente ines- preconceitos morais, todos OS preconceitos se caracterizam por sencial, nem tampouco indaga qual a função que essa integra- uma tomada de posição moral, já que, como vimos, são ao ção desempenha efetivamente na existência e na consciência mesmo tempo falsos juízos de valor. Assim, por exemplo, a do indivíduo. homem predisposto não se deixa impressio- acusação de "imoralidade" costuma juntar-se aos preconceitos nar sequer pelas qualidades éticas do indivíduo. Uma vez ad- artísticos, científios, nacionais, etc. Nesses casos, a suspeita mo- ral é elo que mediatiza a racionalização do sentimento pre- quiridos OS preconceitos contra OS negros, até mesmo 0 negro conceituoso. branco é um "nigger". Por que deveria ele fazer uma distin- ção entre o "muçulmano negro" e Professor Dubois? Negamos acima que o grupo seja, enquanto tal, a fonte do preconceito. Chamamos de "preconceito de grupo" aque- Os preconceitos sociais individual-concretos são, em gran- les que se referem a todo um grupo homogêneo, independente- de parte, de procedência histórica. A explicação, predomí- mente do fato de que essa homogeneidade se baseia em crité- nio e o esgotamento dos preconceitos e dos sistemas estereoti- rios essenciais on secundários e sem tomar em consideração pados não são, de modo algum, fenômenos paralelos; um mes- o fato de que grupo em pauta seja uma integração funda- mo preconceito pode, no decorrer dos tempos, basear-se em mental uma integração derivada; trata-se, pois, de precon- sistemas estereotipados bastante diversos (basta recordar os ceitos contra membros de um grupo, tão-somente pelo fato preconceitos contra protestantes), e um mesmo estereótipo de serem membros desse grupo. A estereotipia de traços ca- pode estar subordinado a preconceitos muito diferentes. Mas, racterísticos nacionais, religiosos, étnicos, etc., é inevitavelmen- quer ou não coincidam, preconceitos e estereótipos estão sub- te acompanhada de preconceitos quando a estereotipia em ques- a uma permanente transformação tão não corresponde à função realmente desempenhada pelo Contudo, que nos interessa investigar não é se cada povo, religião, etc., considerados no decorrer da história, mas preconceito social individual é histórico, já que isso está fora 56 57