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GODELIER, Maurice. O conceito de tribo. Crise de um conceito ou crise dos fundamentos empíricos da Antropologia. In: Horizontes da Antropologia. Lisboa: Edições 70, s/d, p.13‐160.

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J, 
Capitulo 4 
O CONCEITO DE TRIBO. 
CRISE DE UM CONCEITO 
OU CRISE DOS FUNDAMENTOS EMPÍRICOS 
DA ANTROPOLOGIA*? 
[ ... ] O método ana/itico pelo qual a critica e a compreensão devem 
começar [ ... ] não se preocupa em desenvolver as diferentes formas de 11111a 
maneira genética mas apenas em reconduzi-las pela análise à sua unidade, 
porque parte delas como sendo pressupostos dados. Mas a análise é a 
condição necessária da exposição genética, da compreensão do verdadeiro 
processo de constituição das formar na; suas diferentes farer. 
Karl Marx 
Hist. Doct. Ec., VIlI, p. 185. 
1. Duas realidades designadas por um só termo 
Os antropólogos designam habitualmente pelo termo «tribo» 
duas realidades, dois domínios de factos diferentes mas ligados. 
Por um lado, quase todos se servem dele para distinguir um tipo 
de sociedade entre outras, um modo de organização social especí-
fica que comparam a outros modos da sociedade, «bandos», «Esta-
dos», etc. Este ponto, no entanto, não tem unanimidade entre eles, 
em consequência da imprecisão, do carácter vago dos critérios selec-
cionados para definir e isolar estes diversos tipos de sociedade. 
Mas o desacordo é ainda mais profundo a propósito do segundo 
uso do termo tribo, quando serve para designar um estádio da evo-
lução da sociedade humana. 
A ligação entre estas duas formas de utilização do termo tribo, 
entendido como tipo de sociedade e como estádio de evolução é, 
aliás, muito clara, uma vez que na perspectiva dos evolucionistas, 
cada estádio de evolução é caracterizado por um tipo específico de 
organização social. Mas a maioria dos antropólogos recusa-se a con-
cluir, da existência de um modo de organização social, a existência 
(*) Uma parte dos matexiais deste texto serviu para compôr o artigo. 
«Tribo» da &.yclopaedia Univerralir, publicado em 1973· 
f ~ 131 
GODELIER, Maurice. Horizontes da Antropologia. 
Lisboa: Edições 70, s/d, p.131-160.
1 
de um estádio necessário de evolução da humanidade, e contesta 
até a possibilidade teórica de uma análise científica da evolução 
das sociedades humanas (Leach) ou recusa todo o interesse em se 
preocupar com a sua história. É o caso, com a notável excepção 
de Evans-Pritchard ou de Raymond Firth, da maioria dos antropó-
logos que se reclamam do funcionalismo ou de um certo estrutura-
lismo. O caso complica-se mais pelo facto de, mesmo entre aqueles 
que defendem o projecto de construir uma teoria científica da evo-
lução social, alguns - como Herbert Lewis - não verem no modo 
de organização tribal da sociedade um estádio necessário e geral desta 
evolução e outros - como Morton Fried - irem ainda mais longe 
e verem nele simultaneamente o efeito secundário do aparecimento 
de sociedades com Estado e um verdadeiro beco sem saída da evo-
lução da humanidade. 
Mal-estar, contestação, crise de um conceito 
Definitivamente, embora o termo tribo invadisse literalmente 
os escritos e os discursos dos antropólogos e não pareça situado 
nas zonas dos combates teóricos mais violentos da antropologia, 
desde há um decénio que a dúvida, a inquietação, a crítica e por 
vezes a recusa declarada, puderam pouco a pouco surgir a seu pro-
pósito e chegaram, hoje, a uma crise aberta. Neiva, na sequência de 
Leach, clama contra a «escandalosa imprecisão do conceito», Jlian 
Steward, ele próprio evolucionista, incita à maior prudência perante 
aquilo a que chama um conceito «que dá para tudo», e outros como 
Swartz, Turner ou Toden escolheram ignorá-lo sistematicamente e 
fazer silêncio sobre a sua existência, embora explorem um domínio, 
a antropologia política, no interior do qual o conceito de tribo 
desempenhava tradicionalmente o papel de uma palavra-mestra. 
Mas isto não passa da metade do mal, pois a estas criticas de ordem 
teórica junta-se um mal-estar e violentos ataques contra o emprego 
ideológico que é feito do conceito na forma derivada e prima do 
conceito de «tribalismo». A existência de organizações tribais na 
África, América, Oceania e Ásia parece, com efeito, responsável 
pelas dificuldades que jovens Estados-Nações encontram no seu 
desenvolvimento económico e político e na conquista da sua inde-
pendência. A existência de vestígios mais ou menos vivazes de 
organizações tribais pré-coloniais parece fornecer as razões de 
acontecimentos tão dramáticos como a guerra do Biafra, a revolta 
dos Mau-Mau, a dissidência dos Tuaregs ou das tribos «animistas» 
do Sul do Sudão, a decadência dos Índios da América do Sul, etc. 
O que está em jogo, aqui, como mostrou Jomo Kenyatta na sua 
célebre obra Au pied du mont Kel!Ja, não é apenas interpretar o 
mundo, mas agir sobre as suas contradições, transformá-lo a partir 
de uma análise exacta. Ora, são numerosos os antropólogos e os 
políticos que recusam como teoricamente falso e politicamente 
nocivo o emprego dos conceitos de «tribo» e de «tribalismo» para 
132 
'bi)rti•xt1 , ••• '. .... 
definir estas contradições modernas dos países «sub-desenvolvidos». 
Vêem, pelo contrário, nestas contradições imputadas ao tribalismo, 
menos a tara imposta por estruturas pré-coloniais, por organizações 
tribais que se julgava destruídas e que voltariam a aflorar com vio-
lência, do que o legado do período colonial e das novas relações 
da dominação neo-colonial. Eliott Skinner, antropólogo e embaixa-
dor, em 1967, dos Estados Unidos junto da República do Alto-Volta, 
escrevia: 
«É triste que o termo 'tribalismo', com todas as suas cono-
tações de primitivismç> e de tradicionalismo, seja o nome que se deu 
à identidade que na Africa contemporânea é utilizada pelos grupos 
que estão em competição pelo poder e pelo prestígio. Alguns dos 
nomes utilizados hoje como símbolos da identidade de certos de 
entre estes grupos referem-se a várias entidades socio-culturais do 
passado. No entanto, muitos destes pretensos grupos «tribais» foram 
criações do período colonial, e mesmo aqueles grupos que podiam 
ter pretensões a uma continuidade com o passado perderam tanto 
das suas características tradiconais que podemos considerá-los, de 
facto, como entidades novas~' 
O conceito de tribo está, portanto, «em crise», e há uma dupla 
urgência, teórica e prática, em remontar às raízes do mal que o 
atinge e em redifini-lo para se fazer a sua critica e se avaliar o seu 
alcance real. Para o fazer, o melhor método parece ainda ser o de 
retraçar de uma forma .. breve a história deste conceito, desde Mor-
gan, o fundador da antropologia, até aos nossos dias - sobretudo 
até Marshall Sahlins, o autor que recentemente efectuou o esforço 
mais firme e mais brilhante para redefinir rigorosamente este con-
ceito e reinterpretar os novos materiais etnográficos acumulados 
desde há um século. Talvez que, no fim deste caminho, descubra-
mos que o mal não atinge apenas um conceito e que a crise é a dos 
fundamentos e dos métodos empíricos da antropologia e das ciên-
cias sociais. 
II. Breve evocação das origens indo-europeias do termo 
O francês «tribu» e o inglês «tribe» remetem para o latim tribus, 
para o úmbrio triftí ou para o seu equivalente grego phule ( yvÀYJ), 
term<;>s que pertencem ao vocabulário mais antigo das instituições 
indo-europeias. É necessário reportarmo-nos, a este propósito, às 
soberbas análises etimológicas e semânticas deste vocabulário fei-
tas por Emile Benvéniste. Portanto, na origem, estes conceitos são 
conceitos empíricos e receberam necessariamente um conteúdo 
diverso no decorrer da história destas populações, mas, na sua 
camada mais antiga, descrevem uma forma especifica de organização 
social e política que existia em todas estas sociedades. Uma tribo 
indo-europeia era a forma de organização social e política mais 
vasta que existia no interior destas populações antes do aparecimentoda cidade-Estado. Reagrupava unidades sociais elementares, de 
133 
l 
r 
tamanho mais pequeno, o génos ( yévoc,) e a phratra ( yyl)('t'l)(p) entre 
os Gregos, e a gens e a curia entre os Latinos. O essencial, aqui, está 
em verificar que todos estes termos (excepto curia) pertencem 
simultaneamente ao vocabulário do parentesco e ao vocabulário da 
politica, o que pressupõe uma relação interna, real ou suposta, 
entre parentesco e organização política. De facto, como sublinha 
Benvéniste, «as principais línguas indo-europeias estão de acordo 
em colocar a pertença a um mesmo 'nascimento' como o fundamento 
de um grupo social (1)». Neste sentido, o que apresentava espon-
taneamente no pensamento e na língua dos indo-europeus o con-
ceito de tribo era um dado da sua experiência, um facto de obser-
vação. 
Mas o que se ocultou mais ou menos, no decurso dos séculos, 
após o desaparecimento das instituições da antiguidade indo-euro-
peia, foi a relação interna entre parentesco e política e, portanto, 
a compreensão da natureza exacta dos grupos sociais designados 
pelos termos, clã, ftatria, tribo. Como nota Morgan, no meio do 
século XIX, quando a antropologia se tornou uma disciplina cien-
tífica, havia muito tempo que estes termos eram empregados indi-
ferentemente pelos missionários, administradores, geógrafos e via-
jantes esclarecidos e esta era a situação de partida quando o próprio 
Morgan empreendeu a análise científica das formas de organização 
social dos Iroqueses, seguida, pouco a pouco, da de numerosas 
outras populações índias da América do Norte e do Sul. 
O ponto de partida: Morgan ( l 8 77) 
Para compreender as teses de Morgan no que se refere às for-
mas de organização social «tribais», é preciso lembrar brevemente 
aquilo que constituiu a sua grande descoberta, consignada na obra 
Systems of Consanguinity and Afftnity of the Human Family (Washington, 
1871). Aí, Morgan demonstrou em primeiro lugar que as relações 
sociais que dominavam a organização da maioria das sociedades 
primitivas eram relações de parentesco. Em seguida, mostrou que 
estas relações de parentesco tinham uma lógica interna que era neces-
sário procurar no estudo minucioso das regras de casamento e das 
terminologias de parentesco, regras e termos que, o mais das vezes, 
apareciam desprovidas de qualquer lógica aos olhos dos europeus, 
desconcertados perante os sistemas de parentesco «classificatórios» 
que se encontram na África, Asia, Oceania, América. Supôs, além 
disso, que estes sistemas de parentesco tinham uma história e se 
sucederam numa ordem necessária desde que o homem saiu da 
animalidade e da promiscuidade sexual das hordas primitivas e que, 
pouco a pouco, se foram desenvolvendo a proibição do incesto e a 
(1) Le Vocabulaire des inrlitutions indo-européennes, Editions de Minuit, 
Paris, 1969, t. I, p. 258. 
134 
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interdição do casamento entre categorias cada vez mais vastas de 
parentes consanguíneos. A «família humana» tinha evoluído desde 
a forma primitiva do «casamento por grupo», hoje totalmente desa-
parecida, até à monogamia das familias nucleares europeias. Morgan 
supôs, finalmente, que os sistemas de parentesco matrilineares pre-
cederam na evolução os sistemas patrilineares. 
A partir deste resumo sumário, pode compreender-se a defini-
ção de Morgan da organização tribal. Uma tribo é uma «sociedade 
completamente organizada» (p. 122) portanto uma forma de organi-
zação social capaz de se reproduzir. «Ela ilustra a condição da huma-
nidade no estado de barbárie», quer dizer, da humanidade que saiu da 
selvajaria primitiva mas não atingiu ainda o estádio da civilização, 
da sociedade «política», do Estado. No entanto, se uma tribo é 
«uma sociedade completamente organizada», não se pode compreen-
der o seu funcionamento sem compreender primeiro a «estrutura e 
as funções» dos grupos elementares que a compõem, os clãs. Um 
clã é <mm grupo de parentes consanguíneos descendentes de um 
mesmo antepassado comum, que se distinguem por um nome de 
gens e estão ligados entre si por relações de sangue». Após ter des-
coberto «a identidade de estruturas e de funções» do clã dos Índios 
da América e do genos ou da gens dos antigos Gregos e Latinos, 
Morgan utilizou o termo gens preferindo-o ao termo clã e falou de 
«sociedade gentílica» mais do que de «sociedade tribal». Uma tribo é 
conjunto de clãs. «Cada tribo é individualizada por um nome, por 
um dialecto separado, por um governo supremo e pela posse de um 
território que ocupa e defende como sendo seu». Por «governo 
supremo», Morgan entende um conselho de 'sachems' e de chefes 
eleitos pelas gentes e, em certos casos, um «chefe supremo» da tribo. 
É necessário mencionar ainda duas outras «funções e atributos» da 
organização tribal: «a posse de uma fé religiosa e de um culto 
comuns» e - como o sublinha vigorosamente a polémica entre as 
teses de McLennan em Primitive Marriage - a tribo é um grupo 
endógamo enquanto que o clã é exógamo (pp. 5 I 8-5 24). Clãs e 
tribos multiplicaram-se e diferenciaram-se constantemente na 
sequência das migrações devidas ao crescimento das populações e 
à limitação dos meios de subsistência. «Com o tempo, os emigran-
tes tornavam-se diferentes pelos seus interesses, estrangeiros pelos 
seus sentimentos e em último lugar, divergentes pela sua língua. 
Seguiam-se separação e independência, embora os territórios fos-
sem contíguos. Uma nova tribo era assim criada [ ... ] por um pro-
cesso que deve ser olhado como um resultado natural e irredutível, 
simultaneamente da organização gentílica e das necessidades liga-
das ao estado social em que se encontravam estas populações». 
(P. 106). 
A diferenciação dos modos de vida e dos stocks linguísticos 
é, portanto, devida a esta «tendência constante para a desintegração 
[ ... ] seguida de uma segmentação completa» (p. 107) que caracteriza 
a organização tribal. Esta multiplicação das tribos foi acompanhada 
por um estado de guerra permanente entre ~las, uma vez que cada 
135 
~-_ .... ____ ........... ______________ .._...._,,<> 1 
1 
tribo se considerava como em guerra com todas aquelas com que 
não tinha formalmente assinado um tratado de paz, aliás provisório 
(pp. III e n9). Segmentação e guerras incessantes foram «um pode-
roso obstáculo ao progresso das tribos selvagens e bárbaras». 
Foram, no entanto, algumas destas sociedades tribais que fize-
ram aceder a humanidade à civilização, mas ao preço da dissolução 
e do desaparecimento da sua organização clãnica e tribal. Para Mor-
gan, a civilização surge com o Estado e o Estado assenta no con-
trolo de um território e das pessoas que vivem neste território 
mas que já não estão organizadas em grupos de parentesco, mas 
sobretudo em grupos territoriais, em cidades, por exemplo. As refor-
mas de Sólon e de Clístenes na Grécia Antiga manifestavam aos seus 
olhos a impossibilidade radical «de fundar uma sociedade política 
ou um Estado sobre gente.r» (p. xz;) e a necessidade de transformar 
estes antigos grupos de parentesco em grupos territoriais. 
O chefe supremo de certas tribos índias não era um monarca 
mas um chefe de guerra provisoriamente eleito, como o era o Basi-
leus entre os Gregos. Para Morgan, os pretensos reinos aztecas, 
incas, etc. não eram senão «democracias militares» (ver o seu famoso 
artigo sobre O Banquete de Moctezuma). «Todos os membros de uma 
gens iroquesa eram pessoalmente livres e eram obrigados a defender 
a sua liberdade reciproca. Eram iguais em privilégios e em direitos 
pessoais, o sachem e os chefes não reivindicavam qualquer superio-
ridade; liberdade, igualdade, fraternidade, embora nunca formula-
das, eram os princípios cardeais da gens» (p.8 5 ). O aparecimento 
do Estado exigiu uma <<mudança fundamental» e é o produto neces-
sário da desintegração da sociedade gentilica como consequência do 
aparecimento e do desenvolvimento da propriedade privada dos 
rebanhos, do solo, e a acumulação desigual destas riquezas privadas 
caminha a par da consolidação da familia monogâmica. Isto leva-
-nos ao último ponto, fundamental, das teses de Morgan. A evolu-
ção geral da humanidade, a determinação e a sucessão destes está-
dios, são devidas ao facto de o homem se ter elevado à civilização 
«trabalhando sobre si próprio». O mecanismo desta transformação 
é duplo. Inventando novas artes de subsistência, o homem desen-
volveu os germes do seu pensamento, as ideias que estavam em 
germe no seu cérebro e que faziam parte do plano da «Suprema 
Inteligência>>, de Deus. Isto explica que Morgan possa afumar simul-
taneamente que «a sucessão das artes da subsistência forneça provavel-
mente a base mais satisfatória das divisões» (da evolução da humani-
dade em períodos étnicos) e construa o seu livro analisando suces-
sivamente o desenvolvimento paralelo de três ideias: a ideia de 
governo, a ideia de família e a ideia de propriedade, deixando pro-
visoriamente de lado o desenvolvimento das ideias religiosas, domí-
nio difícil e mal conhecido de costumes «grotescos e até certo 
ponto ininteligíveis» (p. 5 ). 
Tal é, no essencial, o conteúdo dos conceitos de clã e de tribo, 
segundo Morgan. É claro que não se trata de conceitos menores da 
sua obra e que respondem a problemas cruciais da antropologia e 
136 
r 
\ 
.l 
da história. Notemos que Morgan estabeleceu uma ordem de prio-
ridade (estrutural, funcional e histórica) entre estes dois conceitos, 
ao mostrar que o conceito de tribo só pode ser rigoro.ramente definido 
após e a partir de um conceito que designe <<Um facto primário» da 
organização social tribal, o conceito de grupo de descendência de 
linhagem e segmentar, o conceito de clã (p. 5 18). Ainda que as des-
cobertas posteriores da antropologia tenham vindo infirmar a tese 
da universalidade das relações de parentesco unilineares demons-
trando a existência de relações não lineares (descendência cognática), 
o conceito de tribo continua a designar realidades de um nível 
segundo, integrando numa unidade social mais vasta unidades ele-
mentares segmentares (seja qual for a sua natureza) e que consti-
tuem, segundo a própria expressão de Morgan a propósito dos clãs, 
«a base fundamental do sistema social e governamental da sociedade 
arcaica». Compreende-se, portanto, porque é que a obra de Morgan, 
através desta mistura compósita de teses materialistas e idealistas, 
deu lugar a interpretações opostas, das quais a mais célebre é a de 
Marx e Engels no sentido do materialismo, embora, nos nossos dias, 
Opler tenha uma releitura idealista. 
O ponto fundamental, quando se aprecia a obra de Morgan, já 
não está em louvar e aceitar o arrojo e a profundidade das suas 
hipóteses gerais (o que Marx e Engels fizeram) nem em rejeitá-las 
ou ridicularizá-las examinando as extrapolações sem provas e as pro-
vas que vão em sentido contrário (Goldenweiser, Murdock, etc.), 
mas em remontar até à razão teórica que fez com que o seu método 
não pudesse produzir as provas das suas próprias hipóteses. É esta 
análise das deficiências fundamentais do método de Morgan em 
relação às suas hipóteses que está ausente do texto que E. Terray 
consagrou à obra de Morgan e esta ausência reduz em muito o 
alcance da comparação que faz entre Marx e Morgan. Porque Marx 
tinha chehado, na Ideologia Alemã (1845), à mesma hipótese geral que 
Morgan apresenta em Sociedade Primitiva (1877), a saber, que as 
condições sociais da produção da vida material determinam, em 
última análise, o conteúdo, a forma e a evolução das sociedades. 
Mas a importância teórica de Marx vem de ter empreendido, a par-
tir desta hipótese, o estudo em profundidade de uma forma de 
sociedade, a sociedade burguesa, e da base material que lhe é pró-
pria, «o modo de produção capitalista>>. E este estudo, fê-lo afas-
tando-se desde o início do empirismo e procurando, para além das 
aparências do sistema, estruturas profundas que explicassem a sua 
lógica, tanto a oculta como a aparente. O que ele visava era des-
vendar o mecani.rmo pelo qual este modo de produção podia reprodu-
zir-se e o mecanismo pelo qual a sua reprodução arrastava a transfor-
mação de toda a sociedade. Empreendimento pioneiro e único, que 
ficou por acabar mas que seria necessário tentar repôr em curso no 
estudo das sociedades e dos modos de produção pré-capitalistas, 
tarefa que o próprio Marx deixou para outros. E é esta ausência do 
mecanismo exacto da causalidade estrutural da economia que não 
137 
-~~t>iLt'"",-.i..,>~-
l 
, 
r 
permitiu ao método de Morgan produzir as provas das suas próprias 
hipóteses. 
É provável que a sucessão das artes da subsistência que fizeram 
o seu aparecimento com longos intervalos de tempo, forneça, 
no ftm de contas, as bases mais satisfatórias destas divisões [da evo-
lução da humanidade] pelo facto da grande influência que devem 
ter exercido sobre a condição da humanidade. Mas a pesquisa não foi 
levada suficientemente longe nesta direcção para produzir a informação 
necessária» (p. 9). 
Desde logo, tudo o que Morgan pôde fazer, foi pôr em paralelo, 
de maneira hipotética e bastante especulativa, séries de invenções 
materiais e estádios da evolução social (p. r 2), sem poder mostrar 
as suas relações internas e necessárias, quer dizer, reconstruir o meca-
nismo da causalidade destas estruturas. 
Onde estamos hoje? O que é que se manteve, se desmoronou 
ou se desenvolveu destas análises de Morgan do conceito de tribo? 
Um sécttlo mais tarde: funcionalistas e neo-evolucionistas 
Se consultarmos hoje, por exemplo, o artigo «Tribo», escrito 
por John ]. Honigman para o Dictionary of the Social Sciences, publi-
cado em 1964 sob os auspícios da U.N.E.S.C.O., verificamos que a 
definição de Morgan se manteve na sua parte descritiva de um tipo 
de sociedade, mas foi completamente amputada de qualquer refe-
rência a um estádio de evolução ao qual corresponderia este tipo de 
sociedade: 
«Em geral, os antropólogos estão de acordo sobre os critérios 
por meio dos quais uma tribo (enquanto sistema de organização 
social) pode ser descrita: um território comum, uma tradição de 
descendência comum, uma linguagem comum, uma cultura comum 
e um nome comum - constituindo todos estes critérios a base da 
união de grupos mais pequenos, como aldeias, bandos, distritos, 
linhagens» (2). 
Esta amputação explica-se em parte pelo desmoronamento, no 
princípio deste século, das teorias evolucionistas do século passado 
e pelos próprios princípios da corrente funcionalista que se impôs, 
a seguir, em antropologia. Para os funcionalistas, com excepção, no 
entanto, de Evans-Pritchard e de alguns outros pesquisadores, um 
sistema social é um todo cujas partes estão necessariamente ligadas, 
mas sobre esta necessidade a própria história do sistema não pode, 
a seu ver, ensinar-nos nada, pois a história é a ordem do aconteci-
mento e do acidental e não do necessário. Existem bastantes leis 
de funcionamento das sociedades, mas não existem leis da sua evo-
lução ou da sua transformação necessária. 
(2) John J. Honigmann, Dktionary of the S1cial Sciencer, 1964, p. 729. 
138 
T 
.• i. 
'" 
... 
No entanto, mesmo amputada, desembaraçada do seu conteúdo 
evolucionista, o conceito de tribo apresenta outras brechas que lhe 
fendem a parte preservada. Algumas são de importância menor. 
Demonstrou-se que unidade linguística, unidade cultural e unidade 
«tribal» não coincidiam em numerosos casos. (Ver os artigos citados 
de M. Fried. G. Dole e ostrabalhos dos linguistas Dell Hymes, 
John Gumperz, Paul Friedrich, C. Voegelin, ou de estatísticos como 
Driver, Naroll. As pesquisas devem, em parte, o seu impulso aos 
trabalhos de Boas, o crítico de Morgan). Mostrou-se que os nomes 
das tribos eram frequentemente termos aplicados a um grupo por 
grupos estranhos, ou queriam simplesmente dizer «as pessoas» 
(Leach, Fried), que a descendência comum dos membros de uma 
tribo a partir de antepassados fundadores era uma ficção (Mali-
novsky, Leach). Mostrou-se, finalmente, que a existência de um sen-
timento de grupo e de uma ideologia de pertença comum não per-
mitia, muitas vezes, concluir que esta comunidade étnica era uma 
tribo, enquanto que para Lintan era o «teste» da unidade tribal. 
(Cf. Moerman, a propósito dos Lué da Finlândia, com a resposta 
de Naroll, o artigo de Bessac sobre os Mongurs e os Yogur); mais 
profundamente, sublinhou-se que não estava demonstrada a ante-
rioridade cronológica dos grupos de descendência matrilinear em 
relação aos grupos patrilineares, que a estrutura dos bandos de caça-
dores-recolectores era uma realidade muito complexa, que existiam 
verdadeiras aristocracias e chefaturas hereditárias entre as tribos pri-
mitivas, enquanto que Morgan contestava a sua possibilidade teó-
rica (p. 259), que os Incas e os Aztecas não eram «democracias 
militares» nem simples chefaturas, mas verdadeiras sociedades esta-
tais onde a classe dominante se confundia com o Estado, e onde a 
organização tribal não tinha desaparecido, etc. É talvez aqui, à volta 
do problema da natureza das relações políticas que caracteriza o 
modo de organização tribal, que se concentram as principais difi-
culdades do conceito de tribo. Honigmann sublinha-o aliás, com 
a maior clareza: 
«Uma vez que existe um acordo geral sobre as características 
já estabelecidas do que é uma tribo (Cf. definição acima), surgem 
dificuldades a partir do momento em que se discutem as caracterís-
ticas políticas da tribo». 
Honigmann cita, então, uma classificação bastante propagada 
entre os antropólogos, que distingue três tipos de tribos por refe-
rência à forma da sua organização política: as tribos acéfalas não 
segmentares, as tribos acéfalas segmentares, as tribos centralizadas. 
É então levado a definir como «tribos» tanto os bandos de pescadores 
caçadores esquimós, os agricultores ibo de África (tribo acéfala não 
segmentar) os pastores nuer do Sudão, ou os horticultores - pesca-
dores matrilineares das ilhas Dobu da Oceania (tribos acéfalas 
segmentares), como as antigas chefaturas polinésias do Hawai, de 
Tonga, os Khanats mongóis, os reinados Mossi (tribos centralizadas). 
Vemos, assim, surgir a dificuldade maior do conceito de tribo, 
dificuldade que exprime com eloquência a reserva de Honigmann, 
139 
,,......,,.....~~-
r 
quando se abstém de acrescentar os critérios políticos aos outros 
critérios «já estabelecidos» que definem este conceito: seja qual for 
a sociedade primitiva - ou pelo menos todas aquelas no interior 
das quais não existem formas claramente caracterizadas de relações 
de classe ou de poder de Estado - ela pode ser caracterizada como 
uma sociedade tribal. E mesmo esta restrição não é totalmente 
exacta, uma vez que numerosos reinos africanos ou asiáticos são 
verdadeiras sociedades de Estado. Podemos, portanto, legitima-
mente interrogar-nos sobre o interesse de um tal conceito integra-
dor, conceito «nocturno» no sentido em que Hegel fala na Filosofia 
do Direito, de «a noite em que todos os gatos são pardos». 
Ora, foi este conceito, herdado de Morgan, amputado pelos fun-
cionalistas de uma parte do seu conteúdo e submetido a um esfalfa-
mento crítico incessante, que Marshall Sahlins, Service e outros neo-
-evolucionistas tentaram rigorosamente definir e reempregar em 
todas as suas utilizações iniciais, quer dizer, para cracterizar simul-
taneamente um tipo de sociedade no quadro de uma antropologia 
comparada e um estádio de evolução social no quadro de uma teo-
ria da história. 
Sahlins em 1961 e Service em 1962, apresentaram um esquema 
de evolução social da humanidade em quatro estádios: o estádio dos 
bandos, o estádio das tribos, o das chefaturas e finalmente o das 
sociedades de Estado com as quais a civilização fez a sua entrada na 
história. «Um bando é somente uma associação residencial de famílias 
nucleares ( 3)». 
Uma tribo é «da ordem de uma larga colecção de bandos, mas 
não é somente uma colecção de bandos ( 4)». Uma chefatura «distin-
gue-se do nível tribal particularmente pela presença de centros que 
coordenam as actividades económicas sociais e religiosas ( 5) e «redis-
tribuem uma grande parte da produção das comunidades locais». 
Em seguida aparece o Estado, que reforça esta centralização e cons-
titui uma estrutura política definitivamente superior e exterior aos 
grupos sociais locais transformando as desigualdades sociais de 
estratos em privilégios de classes. 
É este, grosseiramente, o esquema de Morgan, mas reordenado, 
para levar em conta os dados novos da etnologia. Realçaremos apenas 
duas destas reordenações. Por um lado, o conceito de «bando» 
tomou o lugar do conceito da «horda primitiva» para descrever o 
«tipo dominante de sociedade de paleolítico» (6); por outro lado, a 
existência das «chefaturas», sociedades que não tinham, na obra de 
Morgan, estatuto teórico muito assegurado, é doravante reconhe-
cida. 
(3) M. Sahhins «The Segmentary Lineage: an Organization of Predatory 
Expansion», America Anthropologist, 1961, p. ~24; E. R. Service, Primili11e Social 
Organization, Pandom House, Nova Iorque, 1962, p. III. 
(4) M. Sahhins, «The Segmentary Lineage ... », op. cit., p. 326. 
(5) lbid., p. 143. 
( 6) lbid., p. 3 24. 
140 
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Quais as hipóteses que subentendem a construção de semelhante 
esquema? A evolução rus sociedades teria procedido, em princípio, 
como a dos organismos vivos, do indiferenciado ao diferenciado, do 
simples ao complexo, e cada um dos estádios distintos correspon-
deria, portanto, a um nírel cada vez mais complexo de diferenciação 
e de integração estruturais (7). Os fundamentos desta evolução, pro-
cura-os Sahlins nas transformações da economia, na «revolução neo-
lítica» que teria permitido, não verdadeiramente o nascimento mas a 
generalização e a dominação de sociedades tribais sobre as socieda-
dades de caçadores-recolectores da idade paleolítica. A partir destas 
hipóteses, o método de Sahlins e Service consistiu em construir uma 
representação «verosím& deste processo, seleccionando «traços» do 
funcionamento de algumas sociedades reais que parecem correspon-
der a cada um destes níveis e em alojar estes materiais nas diferentes 
«casas» do esquema que os esperava. É de notar que o próprio facto 
de colocar estas sociedades reais nesta ou naquela «casa» metamotfo-
seava automaticamente estas sociedades em representações «típicas» 
da organização da socfoiade humana neste ou naquele estádio do 
seu desenvolvimento e que assim desaparecia automaticamente a evo-
lução real, singular, destas sociedades, a sua história, a História. 
E ao mesmo tempo, unu vez que estas sociedades servem para ilus-
trar um estádio que elas próprias não franquearam, adquirem, por-
tanto, um futuro imaginário no próprio momento em que o seu 
passado real desaparece. 
Em 1968, na sua obra Tribesmen, Marshall Sahlins modifica de 
maneira importante este esquema que reduz à sucessão de três 
estádios - bando, tribo, Estado - em lugar de quatro, sem dar 
qualquer justificação teórica desta mudança e sem que qualquer modi-
ficação doutrinal respeitante aos princípios e aos fundamentos da 
evolução social tenha precedido ou acompanhado esta mudança. As 
razõesque em 1961 fizeram excluir as «chefaturas» do estádio tribal 
- a saber, a presença de «funções hereditárias», de uma «estrutura 
política permanente» nas mãos de certas fracções da sociedade -
já não parecem exclui-la$ em 1968. As sociedades tribais e as socie-
dades de chefatura são daqui em diante postas como «dois desen-
volvimentos» de um mes1110 tipo de sociedade «segmentar», como duas 
permutações de um mesmo modelo geral que levam, uma delas a 
uma extrema descentralização destas relações sociais segmentares, 
a outra à sua integração a níveis de organização social mais elevados 
que os segmentos locais. A primeira permutação engendra «as tri-
bos segmentares propriamente ditas» (8), a segunda as «chefaturas» 
no interior das quais «a cultura tribal antecipa o Estado e as suas 
complexidades» (9). Entre estes dois tipos opostos estende-se uma 
multitude de combinações intermédias, de forma que Sahlins rea-
(7) Ibid., p. 354. 
(8) M. Sahlins, TribeSflen, Pmtice Hall, 1968, p. 20. 
(9) lbid. 
141 
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grupa sob o conceito de «sociedade tribal» a quase totalidade das 
sociedades primitivas conhecidas. Vê nesta diversidade extrema o 
produto das variações estruturais múltiplas impostas pela adaptação 
da economia «neolítica» a nichos ecológicos extremamente diversos 
no decurso de um movimento de expansão mundial que começa por 
volta de 9 ooo a. C. no Próximo Oriente e por volta de s ooo a. C. 
no Novo Mundo com as primeiras formas de domesticação das 
plantas e dos animais. Segue-se o desaparecimento progressivo dos 
caçadores-recolectores paleolíticos, pouco a pouco rechaçados para 
zonas ecológicas marginais inadaptáveis às técnicas da agricultura e 
da criação de gado neolíticas. Sob os conceitos de economia neolí-
tica e de sociedade tribal, encontram-se lado a lado as sociedades de 
agricultores que praticam a queimada da Amazónia, na Oceania, na 
África Equatorial, os pastores nómadas da cintura seca da Ásia e da 
África, os caçadores-pescadores da costa noroeste da América do 
Norte que já tinham, graças à prodigalidade do seu ambiente cir-
cundante em recursos alimentares, atingido o estádio tribal, antes 
mesmo do aparecimento da agricultura neolítica, os caçadores mon-
tados da América, que tinham rapidamente transformado as suas 
sociedades desde o momento em que redomesticaram o cavalo 
introduzido pelos brancos, sociedades praticando uma agricultura 
intensiva e frequentemente irrigada, como os Pueblos, os Poliné-
sios do Hawai, etc. 
Este inventário de sociedades e de sistemas económicos inume-
ráveis é de tal modo heteróclito que, para o justificar, seria preciso 
demonstrar rigorosamente que estamos de facto perante outras tantas 
mutações de um mesmo tipo fundamental de relações económicas 
<<neolíticas». Sahlins completa esta primeira hipótese com uma outra, 
supondo que esta diversidade ecológica e económica explica a diver-
sidade das relações sociais que se encontram nas sociedades «tribais» 
e particularmente a diversidade das relações de parentesco, quer 
estas sejam dos tipos de linhagem, cognático, etc. 
Seria absurdo criticá-lo por não ter percebido «os mistérios 
mais profundos da antropologia cultural» ( 1 O) e oferecido uma teo-
ria acabada da evolução social da humanidade. O ponto é de ordem 
epistemológica e incide no facto de Sahlins, como muito antes o 
tinha feito Lewis Morgan, ter recorrido a 11m método q11e não permite 
verificar as Slltls próprias hipóteses e que consiste, antes de tudo o mais, 
em comparar múltiplas sociedades primitivas sem Estado e sem clas-
ses, procurando isolar os seus traços comuns, deixando provisoria-
mente de lado as suas diferenças. Trata-se de um empreendimento 
empírico que está em oposição com o resultado procurado, pois para 
demonstrar que os diferentes sistemas económicos e os diferentes 
tipos de relações sociais por ele inventariados são transformações 
necessárias e reguladas de estruturas sociais a reconstruir pelo pensa-
(10) lbid., p. 48, 
142 
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mento por não serem directamente observáveis como tais, Sahlins 
deveria pôr em acção um método que desse conta, ao mesmo tempo 
e pela acção dos mesmos princípios, das semelhanças e das diferenças 
entre estes sistemas económicos e sociais, portanto um método que 
não anulasse as diferenças ou que não as visse para além das seme-
lhanças, como um resíduo embaraçoso. Ora, é a semelhante movi-
mento pendular entre semelhanças e diferenças que assistimos em 
Sahlins. 
O primeiro traço comum a todas as sociedades «tribais» que 
ele isola é o facto de as unidades sociais elementares que as com-
põem serem «grupos multifamiliares que exploram colectivamente 
uma área comum de recursos e formam uma unidade residencial 
todo o ano ou na sua maior parte». Chama a estas unidades elemen-
tares «segmentos primários», donde o sentido dos termos «socieda-
des segmentares», empregues indiferentemente em lugar de «socie-
dades tribais». Sahlins procede «abstraindo» voluntariamente dos 
caracteres internos destes segmentos sociais, quer dizer da natureza 
exacta das relações de parentesco que organizam estes grupos multi-
familiares e fazem com que estes segmentos sejam, quer segmentos 
de linhagem patrilinear (Tiv) ou matrilinear (Iroqueses), quer seg-
mentos cognáticos (os Iban do Borneo, os Lapões), etc. O que é 
isolado neste empreendimento é, portanto, um traço que pertence 
mais à <<forma geral» de um grande número de sociedades primitivas 
do que ao seu conteúdo especifico. 
O segundo elemento comum a ser por ele posto em relevo é o 
carácter multifuncional das relações de parentesco que organizam 
estes segmentos primários. Assim, visa o facto de estas relações de 
parentesco, abstraindo dos seus caracteres patri, matri, bilineares ou 
não lineares, funcionarem ao mesmo tempo como relações económicas, 
relações políticas, relações ideológicas, etc., em resumo, terem a 
propriedade de ser, segundo a célebre expressão de Evans-Pritchard, 
«funcionalmente generalizados». O reconhecimento do carácter poli-
funcional das relações de parentesco tem grande alcance critico no 
plano teórico, pois impede de ver «o parentesco apenas um elemento 
da superestrutura social, distinto e separado da infraestrutura econó-
mica, do modo de produção. Daqui Sahlins conclui que os diversos 
sistemas económicos das sociedades «tribais» são outras tantas varie-
dades de um modo de produção fundamental, o «modo familiar de 
produção». Esta expressão não é sinónima do modo de produção 
familiar, uma vez que a produção no seio das sociedades tribais 
implica muitas vezes a cooperação de várias familias ou a adopção, 
para além das forças produtivas familiares, da cooperação de grupos 
sociais não familiares (classes de idades, etc.). Ela significa apenas 
que a produção e o consumo são em última análise regulados, estimQi 
lados e limitados pelas necessidades e pelos meios de grupos fami-
liares ( 11 ). 
(11) Ibid., pp. 74-n. 
143 
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Portanto, até aqui, a expressão «sociedades tribais» designa 
todas as sociedades primitivas que têm em comum estes dois tra-
ços visíveis do seu funcionamento: existência de unidades sociais 
elementares, de segmentos primários que têm a forma de grupos 
locais multifamiliares e plurifuncionalidade das relações de paren-
tesco que organizam estes grupos familiares. Mas desde que se ultra-
passe este denominador comum, são as diferenças entre as sociedades 
tribais que passam para primeiro plano e que é preciso inventariar e 
explicar. Ora, se umas conduzem simplesmente a distinguir sub-clas-
ses no interior da classe das sociedades tribais, outras são tais que 
contestam a própria unidadedesta classe, e é aqui que surgem e se 
concentram todas as dificuldades teóricas próprias a um empreendi-
mento comparativo empírico. Basta, para tirar a prova disso, analisar 
os embaraços e as contradições de Sahlins quando tenta incluir na defi-
nição das sociedades tribais um terceiro elemento: a propriedade «de 
equivalência estrutural» dos segmentos primários que os compõem. 
Ora, tocamos aqui em problemas fundamentais da antropologia. 
Por «equivalência estrutural» de segmentos primários, designa-
-se o facto de estes serem funcionalmente equivalentes, quer dizer, 
económica, politica, cultural e ideológicamente idênticos e iguais. 
Cada segmento, cada comunidade local é o que são as outras, faz 
por si própria o que fazem as outras. A ilustração mais perfeita 
deste principio de equivalência estrutural dos segmentos é, para 
Sahlins, a sociedade Tiv da Nigéria. Todas as comunidades locais 
Tiv são segmentos de linhagens que pretendem descender de um 
antepassado comum e ocupam territórios contíguos. 
UNHAGENS 
Amepassado fundador 
 
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Segundo Paul Bohannan, «The Migration and Expansion of the Tiv», 
A/rica II, 1954, 3. 
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Segundo Marshall Sahlins, Tribermen (p. 25). Ligeiramente modificado por 
M.G.) 
Os niveis de organização social superiores a estas comunidades 
locais não existem senão temporariamente, quando um conflito os 
oponha. Se a comunidade a ataca a comunidade b, então toda a linha-
gem I afirma a sua solidariedade e se mobiliza para defrontar a 
linhagem II. Se o segmento da linhagem d ataca a comunidade local 
vizinha e, todos os descendentes do antepassado A se mobilizam con-
tra a linhagem máxima B. Os niveis de parentesco e de organização 
social superiores ao nivel local segmentar só existem, portanto, só 
se tornam complementares «por oposição», de acordo com a fór-
mula de Evans-Pritchard a propósito dos Nuer ( 12). 
(12) Tbe Nmr, Clarendon Press, Oxford, 1940, p. 144. 
145 
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Comparemos este esquema com o modelo reduzido de chefatura 
polinésia, «integrada» sob a forma de um vasto «clã cónico» (d. Kirs-
choff) e que Sahlins comenta notavelmente. 
Verificamos imediatamente que desapareceu, no caso da che-
fatura polinésia, o princípio da equivalência estrutural dos segmen-
tos primários que existe entre os Tiv e os Nuer e que deveria carac-
terizar, segundo Sahlins, todas as sociedades tribais. Todos os seg-
mentos e todos os indivíduos que compõem a chefatura são dora-
vante agrupados numa ordem de hierarquia descendente a partir do 
chefe (a) o mais velho dos descendentes do filho mais velho do fun-
dador do clã. (Entre os Kachin da Birmânia, a autoridade pertence, 
pelo contrário, ao último filho dos descendentes do filho mais novo 
do antepassado fundador (Cf. Leach). Estamos em presença de uma 
sociedade segmentar, é certo, mas hierarquizada em estratos e em 
estatutos sociais desiguais, cujo peso se agrava à medida que se 
chega, seguindo as linhas genealógicas, aos filhos mais novos dos 
ramos mais novos da descendência do fundador. Sahlins sublinha 
que semelhante chefatura não é uma sociedade de classes: «É uma 
estrutura de graus de interesse, mais do que de conflitos de interes-
ses, de prioridades familiares graduadas no controlo da riqueza e 
da força, nos direitos de exigir serviços dos outros, no acesso ao 
poder divino, nos aspectos materiais dos estilos de vida, de tal 
modo que, se todos os indivíduos são parentes uns dos outros e 
membros da sociedade, alguns, no entanto, são mais membros que 
outros ( 13)». Daqui em diante e pelas mesmas razões que fazem com 
que os segmentos primários da sociedade já não sejam fundamen-
talmente equivalentes, os níveis de organização de linhagem supe-
riores aos segmentos locais - que só têm uma existência episó-
dica e uma importância social muito limitada na reprodução das 
sociedades acéfalas - existem sob a forma de instituições permanentes, 
dotadas de funções diferentes e complementares para a reprodução de 
toda a sociedade e controlam, portanto, de maneira diversa mas efi-
caz, o funcionamento interno e a reprodução das comunidades locais. 
Estas já não têm a ampla antonomia política, económica e ideológica 
que lhes pertence no interior das «tribos acéfalas». E é esta hierar-
quia de funções que faz do chefe supremo e do grupo de paren-
tesco do qual este saiu o centro e o topo de toda a sociedade, uma 
vez que personifica e controla o conjunto das relações de depen-
dência recíprocas de todos os grupos e de todos os indivíduos que 
compõem a sociedade. 
Assim, mesmo que exista uma semelhança formal entre a orga-
nização de linhagem de certas tribos acéfalas e a organização de 
linhagens de certas chefaturas (enquanto, segundo a própria opinião 
de Marshall Sahlins, o clã polinésia é mais um grupo de descendência 
cognático, portanto não linear de facto, embora «de ideologia» patri-
linear), o essencial é que estas linhagens funcionam de maneira com-
(13) Tribesmen, op. cit., p. 24. 
146 
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rii segmentares e mult1funcionals nos dois casos, mas estas semelhan-
,,. ças de «forma» parecem ser de urna importância limitada tendo em 
vista as consequências que as diferenças das suas funções e da sua 
estrutura interna acarretam sobre todos os aspectos, económico, 
político e ideológico, do funcionamento e da reprodução destas 
sociedades. Estes efeitos estruturais estão entre si numa relação 
necessária que o próprio Sahlins definiu e demonstrou muito bem. 
Escolhendo os seus exemplos na Melanésia, mostrou que nas socie-
dades segmentares «propriamente ditas» (esta restrição é, por si, 
significativa de uma certa indecisão teórica), sendo dada a autonomia 
política, muito grande, de cada comunidade local, a competição, 
muito intensa, que as opõe umas às outras e a sua capacidade económica 
de produzir excedentes regulares e trocar parte deles para acumular 
bens preciosos que elas próprias não produzem como conchas, apa-
recem alguns indivíduos que dominam temporariamente a vida polí-
tica da sua comunidade local e de algumas comunidades vizinhas e 
asseguram à sua própria comunidade um prestígio e uma superiori-
dade políticas igualmente temporárias sobre as comunidades vizi-
nhas, quer estas sejam de parentes ou aliados, de amigos ou de ini-
migos. Para se tornar um tal «big-mam> é preciso demonstrar compe-
tências económicas e políticas excepcionais, estabelecer em maior 
número alianças matrimoniais, alargar a produção de bens de subsis-
tência e de porcos, estabelecer uma vasta rede de parceiros comer-
ciais com os quais se trocarão alguns destes porcos em troca de con-
chas, plumas, etc., e finalmente contribuir mais que qualquer outro 
membro da comunidade para os dons e contra-dons de bens que 
acompanham os casamentos, a guerra, a paz, etc. O «big-man» torna-
-se, assim, o símbolo «glorioso e glorificado» (Malinovski) da riqueza 
e do prestígio do seu grupo, o agente mais activo da sua superiori-
dade política, a personificação dos seus interesses comuns. Mas esta 
promoção social continua a ser precária pelas próprias razões que a 
tornam possível. O «big-man» não serve apenas a sua comunidade, 
masserve-se dela, suscitando invejas, oposições, fracções que amea-
çam a sua autoridade no interior, enquanto nas comunidades vizi-
nhas há rivais que continuam também, pelo seu lado, a acumular 
bens, e se preparam para lhe fazer «perder a face», acabrunhando-o 
com uma dádiva que ele já não possa retribuir. A longo prazo, 
como mostrou Strathern ( 14), estes mecanismos económicos e polí-
ticos de dádivas e contra-dádivas equilibram as desigualdades entre 
os grupos locais e recriam, reproduzem a sua «equivalência estrutu-
ral». No plano das trocas económicas, o carácter multicentrado da 
acumulação das riquezas materiais e do poder político arrasta e favo-
rece trocas intensas entre as comunidades locais e suscita a exis-
tência e a circulação de múltiplas formas de «dinheiro primitivo». 
No plano ideológico, e sobretudo no das representações religiosas, 
(14) A. Strathem, The Rope of the Moka, Cambddge University Press, 1971. 
147 
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os cultos locais são os mais intensos e dirigem-se aos antepassados e 
às potências sobrenaturais que continuam muito próximas dos 
homens (para seu bem ou para seu mal), enquanto que as divindades 
supremas, os grandes deuses responsáveis pela ordem última do 
Universo, parecem, senão indiferentes, pelo menos pouco preocupa-
dos pela vida quotidiana dos homens ( cf. Meggitt a propósito da 
religião dos Mae Enga, Evans-Pritchard a propósito dos Nuer, etc.). 
Apesar do interesse em procurar uma correspondência estrutural 
entre a fraca importância económica e política dos níveis de orga-
nização de linhagem superiores aos segmentos locais e a pouca 
importância cultural das divindades superiores de certos panteões 
indígenas, as sugestões são aqui demasiado rápidas e carecem de uma 
análise teórica mais ampla que explicaria também, por exemplo, por-
que é que o culto da Floresta entre os caçadores-recolectores Mbuti 
do Congo ou o culto do Sol e da Lua, divindades supremas entre os 
agricultores Baruya da Nova-Guiné, desempenham um papel essen-
cial nos planos político e ideológico, enquanto que as suas organi-
zações sociais são ainda muito mais segmentares que as dos Nuer ou 
dos Mae-Enga. 
Apesar destas insuficiências teóricas que Sahlins não ignora e 
que atribui com humor ao seu método de «comparação incontro-
lada» ( 15), o essencial é que as próprias análises de Sahlins demons-
tram a existência de uma diferença estrutural radical entre estas 
sociedades acéfalas e uma chefatura «ideal» da Polinésia pre-colo-
nial. No seio desta, uma pirâmide de funções públicas de títulos e 
de estatutos sociais existe independentemente das capacidades e dos 
méritos pessoais dos indivíduos que vão preencher uns e beneficiar 
dos outros por direito de nascimento, uma vez que funções, títulos 
e estatutos estão ligados a categorias e que a categoria de um indi-
víduo depende da sua distância genealógica em relação ao antepas-
sado fundador da sua chefatura. A «forma geral» das relações sociais 
é, portanto, sempre a das relações de parentesco, e as relações de 
parentesco funcionam sempre simultaneamente como relações polí-
ticas, relações económicas e esquemas ideológicos, mas o conteúdo 
destas relações políticas, económicas e ideológicas é totalmente 
diferente. 
No plano económico, diferentemente dos «big-men>> melané-
sios, os chefes, pelo menos os das grandes chefaturas de Hawai, 
Tonga, Samoa, Taiti, não participam directamente no processo mate-
rial de produção. No entanto, orientam-no e dirigem-no contro-
lando o trabalho, a utilização dos recursos naturais e os produtos das 
comunidades locais por intermédio dos chefes locais e de uma espé-
cie de «administração» composta de parentes mais ou menos próxi-
mos dos grandes chefes e de seguidores. 
(15) M. Sahlins, «Poor Man, Rich Man, Big-Man, Chief: Politica/ 1'ype; 
in Me/anesia and Polynesia», op. cit. 
148 
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Uma parte importante dos produtos das comunidades locais é 
regularmente levantada e encaminhada para o chefe supremo e forne-
ce-lhe os meios materiais de subsistir, de manter a sua posição e de 
sustentar parentes, amigos, séquito, etc. Graças à quantidade dos 
produtos acumulados nas suas mãos e à sua capacidade de mobilizar 
em massa a força de trabalho das pessoas comuns, o chefe é também 
o único a reunir as condições necessárias para efectuar vastos traba-
lhos comunitárias de interesse colectivo, guerras, cerimónias reli-
giosas, trabalhos públicos de construção de templos, ou até, como 
em Hawai, para uma rede de irrigação, empreendimentos que ultra-
passam as possibilidades de cada comunidade local tomada separada-
mente. As quantidades de trabalho mobilizadas e as quantidades de 
produtos redistribuídos nestas ocasiões não têm medida comum com 
aquilo a que poderia aspirar o mais rico dos «big-men» melanésios. 
Aliás, pelo facto de uma grande parte dos produtos locais, e os mais 
preciosos deles, circularem entre as comunidades por intermédio dos 
chefes que os concentram e os redistribuem, as trocas directas entre 
comunidades locais são muito mais raras do que nas sociedades 
segmentares acéfalas. 
No plano político e ideológico, o poder do chefe e dos grandes 
dignatários é justificado pelo facto de serem descendentes directos 
do antepassado fundador da chefatura, que descendia ele próprio 
directamente das divindades supremas. De essência divina, a pes-
soa dos chefes é sagrada e deve ser protegida por múltiplas proi-
bições e tabus. As divindades supremas são objecto de um culto 
intenso e de cerimónias que mobilizam todas as comunidades locais 
e as integram numa única comunidade ideológica dominada pelos 
grandes sacerdotes e pelo chefe, que são os únicos a ter acesso às 
potências sobrenaturais que asseguram a prosperidade material, a 
vitória sobre os inimigos, etc. Finalmente, para punir aqueles que 
infringem as suas decisões ou que o ofendem, o chefe supremo dis-
põe de uma força de coacção e as punições que inflige variam com o 
estatuto do culpado. 
Este resumo demonstra claramente que, embora a forma geral 
das relações sociais seja ainda aqui a das relações de parentesco 
multifuncionais, estamos de facto em presença, com as sociedades 
segmentares acéfalas e as grandes chefaturas polinésias, de dois mo-
dos de produção diferentes e clfia diferença não é a de duas variedades 
de uma mesma espécie: «o modo familiar de produção», de Sahlins. 
Porque o que caracteriza e determina antes de tudo o mais as rela-
ções de produção no caso destas chefaturas polinésias são as relações 
existentes entre uma aristocracia que não trabalha e goza do monopólio 
do poder político, do poder ideológico e religioso e dispõe do tra-
balho, dos produtos e dos recursos materiais dos produtores direc-
tos, e a massa das pessoas comuns que vivem em comunidades locais. 
É claro que é importante e deve ser explicado o facto de os aris-
tocratas e as pessoas do comum serem ou se considerarem parentes 
afastados e se tratarem como tal, e é igualmente importante, mas de 
menor alcance, que a forma das suas relas:ões de parentesco seja 
149 
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patrilinear; mas o que é decisivo é o facto de o modo de produção 
e de as estruturas políticas e ideológicas que lhe estão ligadas serem 
de uma espécie completamente diferente da que se encontra entre 
as sociedades de linhagem como os Nuer ou os Tiv. A critica não 
visa apenas Sahlins, mas certos antropólogos como P. P. Rey, 
C. Dupré, etc., que se reclamam do marxismo e propuseram «a noção 
de modo de produção de linhagem» para designar «O» modo de pro-
dução da maioria das sociedades primitivas sem chefatura ou de che-
fatura. Não é o facto de ligar o conceito de Marx de «modo de pro-
dução»ao conceito de «linhagem>> que pode criar um «novo» conceito 
marxista. E na medida em que estes autores consideram que a oposi-
ção dos mais velhos e dos mais novos é já, de facto, uma oposição de 
«classes», encontramo-nos com algumas dificuldades a mais além das 
herdadas do empirismo funcionalista. Porque o aparecimento de 
verdadeiras classes sociais supõe precisamente o desaparecimento, 
não das relações de parentesco, mas da sua capacidade de ser a forma 
geral das relações sociais, e é preciso existirem condições completa-
mente específicas para que as relações políticas, ideológicas e as 
relações de produção entre uma aristocracia e as pessoas comuns 
se desenvolvam fora das relações de parentesco. Sahlins, decerto, 
não ignorou este problema fundamental do aparecimento das clas-
ses, mas evocou-o sem o tratar. 
III. Tentativa de balanço. Crise de um conceito ou crise dos 
fundamentos empíricos da antropologia? 
Assim, no termo do mais perseverante esforço desenvolvido 
desde há muito em antropologia para redifinir e utilizar eficazmente 
o conceito de «tribo», chega-se a um resultado largamente negativo. 
A classe das sociedades tribais encontra-se fendida em duas e de 
cada lado de uma linha de partilha, cuja natureza e origem conti-
nuam a ser obscuras; reagrupam-se por um lado as sociedades seg-
mentares acéfalas e por outro as sociedades de chefaturas. As dife-
renças estruturais entre estas sociedades sobrepõem-se às semelhan-
ças, em número e em importância e, neste sentido, a tentativa de 
Sahlins, em 1968, de reagrupar sob uma só categoria estes dois 
grupos de sociedades que distinguia e opunha em 1961, é um 
falhanço. Este falhanço confirma, aliás, os resultados das compara-
ções estatísticas de Cohen e Schlegel que, utilizando os métodos 
matemáticos de Fisher de análise regressiva da convariância de 
variáveis múltiplas, concluíam em 1967 que «não havia suporte 
sólido para a ideia da existência de um estádio social unificado entre os 
bandos de caçadores-recolectores e as sociedades de Estado». Cohen 
e Schlegel sublinhavam também que no interior de cada um destes 
grupos existia uma vastíssima diversidade de estrutura sociais e que 
esta diversidade era maior entre as sociedades sedentárias agrícolas 
e acéfalas; o que deixa supor que a agricultura acarretou muito mais 
diferenciações estruturais do que a criação de gado e as outras téc-
150 
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r nicas de produção (colheita, caça, pesca, etc.). É provável que uma 
análise estrutural minuciosa dos sistemas económicos de todas estas 
sociedades levasse a descobrir a existência de mais de dois modos de 
produção no seio destas duas categorias de sociedades e subvertesse, 
por sua vez, esta classificação demasiado sumária. Isto não quer 
dizer que se descubram tantos modos de produção quantas as 
formas de divisão técnica de trabalho social, como o fazem Terray 
e outros «marxistas», que inventam um modo de produção de cada 
vez que descobrem uma forma distinta de divisão técnica do traba-
lho - trabalho individual, trabalho cooperativo -, que implica a 
colaboração de 2, de 10, de n indivíduos. Com efeito, relações de 
produção semelhantes podem articular-se sob formas diferentes de 
divisão técnica do trabalho. Trata-se de matéria para pesquisas edis-
cussões posteriores, mas, desde já, pode-se conjecturar a existência 
de vários modos de produção diferentes entre as diversas sociedades 
ditas de chefatura, uma vez que sob este conceito se reagrupam 
criadores nómadas turcos ou mongóis da Ásia Central, certos agri-
cultores que utilizam a queimada do Sudeste asiático, os Índios 
caçadores-pescadores da costa noroeste da América, agricultores da 
África Ocidental ou Central e, eventualmente, os antigos clãs chi-
neses e escoceses, as «tribos» israelitas, etc. Talvez o que conte para 
a formação de chefaturas seja menos a natureza destas técnicas de 
produção do que a importância do «excedente» que permitem pro-
duzir. Sahlins contenta-se em afirmar que o aparecimento das chefa-
turas e da sua forma económica típica, ligada à prática de concentra-
ção das riquezas materiais nas mãos dos chefes e à sua redistribuição 
posterior, é um «exemplo clássico de progresso evolutivo - a capa-
cidade de organizar uma maior diversidade ecológica e económica no 
seio de um único esquema cultural, quer dizer, de um grupo polí-
tico» ( 16). Reconhecemos aqui uma tentativa clássica do evolucio-
nismo funcionalista que toma o efeito pela causa e a causa por um 
fim funcional. 
Fendida ao meio, a classe das sociedades «tribais», em contra-
partida, dificilmente se distingue, nas suas margens, das outras duas 
categorias de sociedades a que a opõem: os «bandos» de caçadores-
-recolectores por um lado, as sociedades «de Estado» por outro, 
Herbert Lewis e Morton Fried mostraram com razão que os crité-
rios fixados por Sahlins e Service para definir as sociedades tribais 
segmentares não as diferenciam das chamadas sociedades de «bandos», 
às quais estes últimos as opõem. Segmentação, plurifuncionalidade 
do parentesco, alternância e complementaridade das actividades inde-
pendentes e de formas de dependência reciproca para a reprodução 
das suas relações de parentesco, da sua unidade ideológica e política, 
caracterizam perfeitamente os bandos de caçadores-recolectores: 
Pigmeus Mbuti do Congo (Turnbull), Bushmen do Kalahan 
(Marshall), aborígenes australianos (Elkin, Berndt), sem esquecer os 
(16) Tribesmen, op. út., p. 26. 
151 
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famosos Shoshones da Grande Bacia da América do Norte que 
Steward renunciou, no fim da sua vida, a considerar exemplos 
típicos do nível mais simples de integração social, o nível familiar ( 1 7). 
Basta considerar a complexidade interna do sistema de parentesco 
por «sub-secções» de Murgin da Austrália, a existência de linhagens 
paternas entre os Ona da Terra do Fogo ou os Puelche e os Charrua 
da Patagónia, para nos reencontrarmos perante o drama habitual 
das classificações empíricas, onde as excepções são tão numerosas 
como a regra e não a confirmam. Seria, aliás, demasiado fastidioso 
enumerar os casos em que a composição interna das tribos segmen-
tares e os seus limites são tão instáveis como os que se notam nos 
bandos de caçadores-recolectores. A fronteira é igualmente fluida, 
embora talvez um pouco menos, entre sociedades tribais «de chefa-
tura» e Estado. São múltiplos os exemplos de sociedades estatais da 
Africa ou da América pré-coloniais que eram compostas por uma 
multitude de «tribos» locais submetidas a uma tribo dominante 
cujos chefes constituem simultaneamente o Estado e a classe domi-
nante ( 18). Longe de ser radical e universalmente incompatível com 
a existência de sociedades tribais, frequentemente o Estado só 
existe consolidando as chefaturas e as tribos que domina e, por 
vezes, criando-as inteiramente, sem que seja necessário, como acon-
teceu a Fried ou Colson, concluir destes processos, verificados ainda 
ontem pela prática das potências coloniais europeias, que tribos e 
chefaturas são exclusivamente formações sociais secundárias, sub-pro-
dutos de processos de formação das sociedades de Estado. 
Decididamente, parece que o conceito de «sociedade tribal» 
designa um pequeno grupo de traços visíveis do funcionamento de 
numerosas sociedades «primitivas», a saber, o carácter «segmentar» 
das unidades socio-económicas elementares que as constituem, o 
carácter real ou aparente de «grupos de parentesco» destas unidades 
socio-económicas e o carácter «multifuncional» destas relações de 
parentesco. O vago destes critérios é tal que podemos aplicar este 
conceito a um imenso númerode sociedades primitivas que se 
justapõem em vastas congéneres de limites imprecisos. Aliás, o que 
chama a atenção na história deste conceito é que o facto de ter variado 
pouco no seu fundo desde Lewis H. Morgan (1877), enquanto que 
as múltiplas descobertas feitas depois no terreno, agravavam e 
acusavam cada vez mais a sua imprecisão e as suas dificuldades, sem 
que isso leve a uma crítica radical e menos ainda à sua expulsão do 
campo dos conceitos teóricos da antropologia. Do seu conteúdo 
desapareceu, por uma espécie de desmoronamento interno o que 
estava directamente ligado às concepções especulativas de Morgan, 
por exemplo a ideia de uma ordem necessária de sucessão dos siste-
(17) Steward, in Y. Cohen, Man in Adaptation, Aldine Publishing Com-
pany, 1968, 1, p. 81. 
(18) Sobre os Incas, cf. Murra, op. cit.: sobre os .Azt:ecas, cf. J. Soustelle, 
La 1Jie fJHOIÍdienne des Az.teq11es à la 11eille de la conq11ête espagnole, Hachette, 1955. 
152 
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r'_, __ --..,._~"'''-w'.~ .. L_· _ _... _________ _..-.. 
mas matrilineares de parentesco, e depois dos sistemas patrilineares, 
concepções doravante caducas aos olhos de todos, mesmo dos neo-
-evolucionistas que se reclamam de Morgan. 
Isto demonstra a contrário que a querela entre partidários e 
adversários de uma teoria evolucionista das formas de organização 
social se desdobrou num campo teórico largamente dominado pelos 
métodos empiristas e que esta querela nunca pôs realmente em causa 
o fundamento e a dominação destes métodos. Não basta, portanto, 
como Swartz e Turner, fazer silêncio sobre o conceito de tribo e 
deixar de o invocar, apelar à prudência, como Steward, ou criticar 
com veemência a sua escandalosa imprecisão (Neiva), a sua esterili-
dade e a sua mentira teóricas (Fried) e as manipulações ideológicas 
de que é instrumento nas mãos das potências coloniais (Colson, 
Southall Valakazi); é necessário ver que o mal não está num con-
ceito isolado mas que tem as suas raízes numa problemática que 
produzirá necessariamente os mesmos efeitos teóricos enquanto 
organizar o trabalho cientifico. No caso de Sahlins, este método é o 
do empirismo neo-evolucionista contemporâneo, e soma os limites 
de um às fraquezas do outro. Todo o empirismo tem tendência para 
reduzir a análise das sociedades à colocação em evidência dos traços 
visíveis do seu funcionamento e depois a reagrupar estas socieda-
des sob diversos conceitos, de acordo com a presença ou a ausência 
de alguns destes traços escolhidos como pontos de comparação. 
Obtêm-se, assim, conceitos «abstractos» que constituem resumos 
descritivos dos caracteres que foram abstraídos do conjunto a que 
pertenciam. Estes conceitos não são, no entanto, nem vazios nem 
completamente inúteis no sentido, de como dizia Marx a propósito 
dos conceitos de «produção em geral» ou de «consumo em geral», 
evitarem repetições inúteis, mas não constituem conceitos científi-
cos ( 19). São simplesmente a moeda corrente do pensamento racional. 
Não se tornam verdadeiramente negativos senão a outro nível, 
quando investidos de um valor «explicativo», quer dizer, de um valor 
demonstrativo no quadro da análise teórica de um problema preciso, 
por exemplo o da evolução das formas de sociedade. É neste mo-
mento que o neo-evolucionismo acrescenta as suas próprias incapa-
cidades aos limites do empirismo. Com efeito, o neo-evolucionismo 
utiliza os resultados abstractos, os materiais do pensamento produzi-
dos pelas operações empíricas de classificação e de denominação das 
sociedades, para construir um esquema hipotético de evolução da 
sociedade humana. Este esquema não é construído a partir dos resul-
tados de uma análise da evolução real das sociedades que servem para 
a ilustrar, mas é logicamente construído a partir de conclusões tira-
das do estudo da evolução da natureza, e particularmente da evolução 
dos seres vivos. As conclusões tomadas de empréstimo às ciências 
naturais resumem-se a alguns princípios: tendência para o aumento 
(19) K. Marx, Contrib11tion à la critique de /'economie politique, op. cit., 
pp. 150-153. 
153 
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da complexidade interna dos organismos e diferenciação de órgãos ·'f,. floresta tropical americana, os Tukuna, os Cashibo, os Si-
especializados para integrar esta complexidade e reproduzi-Ia, etc., riono, etc. (21). 
e estes princípios são em seguida transferidos do domínio das ciên- Leach, por seu lado, mostrou bem, a propósito do exe~plo dos 
cias naturais, particularmente da Biologia, para o domínio da Antro- Kachin da Birmânia, que uma sociedade ~or estratos, dominada por 
pologia, da Sociologia e da História, no interior das quais servem um chefe que é, ou pretende ser, o mais novo dos descenden~es 
para definir antecipada e abstractamente a tendência geral, a direc- directos do último filho do antepassado fundador ~a sua ald~1a, 
ção e as principais etapas da evolução da sociedade. pode voltar a ser, em certas circunstâncias, uma soc1e~ade de tipo 
Basta, portanto, seleccionar entre os materiais fornecidos pelos «gumlao», sem hierarquia interna e sem che~e, e_ depois outra vez 
antropólogos que na sua esmagadora maioria ao reclamarem-se do uma chefatura «gumsa», etc. Embora as exphcaçoes de Leach para 
fun · 1· ' · d · d I d ' ·1· da h" , · d estas evoluço-es reversíveis na-o sei·am muito convincentes, uma vez c1ona ismo empinco eixam e a o a ana 1se 1stona as . , . . 
· ' · · que vê nelas sobretudo um facto 1deolog1co - o efeito de escolhas sociedades que descrevem - e sem pôrem em causa a significação . 
1 
K h" d d d d · d los de 
· · · · · I sucessivas pe os ac 10 e um ou e outro os ois mo e destes materiais - selecc1onar, portanto, sociedades partlcu ares . _ "al . 1: "d 
1 1
· t ma de «valo-
. · , · orgaruzaçao soc1 que senam 01erec1 os pe o seu s s e 
capazes de ilustrar melhor os caracteres soc10Iog1cos de uma etapa, .1. d Ih t plo de evoluço-es reversíveis · · · , · res» -, a ana 1se e seme an es exem s , de um estad10 pelo qual a humanidade teve logicamente que passar , d d 1 -0 e' de uma 1·mportan' ciºa crucial para , . . e ate e processos e evo uça , 
para che_gar ate às grandes sociedades d: Esta~o, a partir das peque- descobrir as leis de transformação das estruturas sociais. Jonathan 
nas sociedades seg~entares pou~o diferenc1ad~s dos caçadores- Friedman pôde, até, demonstrar que as. organizações .s~ciais d~s -recolec~ores paleoht1c?s. As soc1~dades . selecc1onadas tornam-se Naga, dos Wa e de outras populações vizinhas dos Kachini, que sao 
automaticamente paradigmas qu~ vem alojar-se nas «casa~» ~e um muito diferentes da organização dos Kachin, eram outras tantas fo~-
esquema de transformação do simples em complexo, do 1ndiferen- mas «involuidas» do sistema Kachin, sob o efeito de coacções econo-
ciad? ei:n diferenciado e,. assim,. um material «descritivo» torna-se micas específicas (22). Compreende-se que a de~oi:st,r~ção da exis-
exphcat1vo ao tornar-se «ilustrativo». tência de um tal sistema de transformações torna 1rr1sono o facto de 
Lembraremos de memória as críticas que suscitou uma tal pro- classificar simplesmente todas estas sociedades, quer como socieda-
blemática. Ao empirismo, sob todas as suas formas critica-se a sua des tribais segmentares, quer já como sociedades de chefat~r~. 
tendência para reduzir o funcionamento de uma sociedade a um Talvez isso seja petrificar em outras tantas diferenças substanciais 
conjunto de traços manifestos ou latentes e depois, de se fechar, estados distintos de um mesmo sistema em processo de evolução. 
quando compara diversas sociedades, no dilema sem saída da excep- Mas este exemplo mostra-nos outra coisa e mais do que o 
ção e da r~!?ra. A esta~ criticas de ordem g~r.al acrescentam-se_ o~tras facto de que haver evolução seminvolução, de não haver evol~~ão 
que se dmgem partic~Iarmente ao e~pmsmo neo-evol~~~nista. num sentido sem possibilidade de evolução noutr~ ou em_ vanos 
Este nunca analisa senamente os fenomenos de revers1b1hdade, outros sentidos· mostra-nos sobretudo que não ha evoluçao «em 
ainda ~enos os fenómenos de devolução que exist~m na evolução geral» nem verdadeira «evolução geral» da humanidade. A humani-
das sociedades, e encara esta evolução quase exclusivamente como dade não é um sujeito, as sociedades também não o são, nem as suas 
um movimento geral e de sentido único, uma marcha em frente por histórias a História não é a do desenvolvimento de um germe ou de 
estádios gerais (com excepção de Julian Steward e de alguns outros, um orgaclsmo. Para retomarmos uma frase de Marx, «a história uni-
que vêem na evolução um fenómeno multilinear). Ora, numerosas versal nem sempre existiu; a história considerada como história u~-
sociedades de caçadores-recolectores da América do Sul constituem, versal é um resultado (23). Finalmente, é difícil aplicar à históna 
segundo a expressão de ~·. Lévi-Strauss, «falsos-arcai~~os, ~or_q~e, passada ideias que traduzem formas de evolução recez:te de cert~s 
bem longe de serem os ult1mos representantes do estadia pnmiuvo sociedades resultados de linhas particulares de evoluçao. A noçao 
das economias de caça no seio das florestas tropicais, são vestígios de «revolu'ção neolítica>>, à qual o arqueólogo Gordon Childe t~a 
de sociedades agrícolas muito avançadas que foram repelidas por dado tanta importância e propaganda, parece hoje obscurecer mais 
outras sociedades agrícolas das margens dos rios para o hinterland do que iluminar, pelas suas conotações implícitas e modernas suge-
florestal e perderam até a prática da agricultura. P. Clastres fez, de rirem discontinuidades rápidas, profundas e brutais, o processo de 
modo notável, a demonstração da existência de semelhante fenómeno 
entre os índios Guayaki (20), no próprio momento em que Lathrap 
generalizava esta hipótese à maioria das sociedades de caçadores da 
(20) P. Clastres, «Ethnographie des Indiens Guayaki», Journal de la Société 
tks americanittes, Plon, 1968. 
154 
.~~ ..,, 
(21) D. W. Lathrap, 'The Hunting' Economies of the Tropical Forest 
Zone of South America: An Attempt at Historical Perspective», in De Vore e 
Lee, Man, the Hunter, op. cit., pp. 23-29. 
(22) Jonathan Friedman, <<Dynamique et transformations do systeme 
tribal: !'exemple des Kachin>>, L'Homme, Jan.-Março 1975, XV (1), pp. 63-98. 
(23) Contribution à la critique tk l'économie politique, op. cit., p. 173. 
155 
- -
1 
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domesticação das plantas e dos animais que exigiu, no Velho como 
no Novo Mundo, condições completamente especificas para alcan-
çar importância e vários milénios para chegar à diferenciação das 
múltiplas formas de produção agrícolas, pastorais, mistas, que asse-
guram a subsistência da esmagadora maioria das sociedades primiti-
vas ou «tribais». 
Perante estes factos que exigem que se captem simultaneamente 
as continuidades e as rupturas, as semelhanças formais e as diferen-
ças funcionais e estruturais, é necessário um método que evite redu-
zir as realidades sociais e históricas observadas a abstracções cada vez 
mais estreitas e represente, no pensamento, as suas estruturas inter-
nas, para descobrir as suas leis de reprodução e de não reprodução, 
de mudança. As condições de reprodução das estruturas mudam, mas 
estas mudanças fazem-se segundo leis que exprimem as proprieda-
des dos sistemas, que portanto são constantes. É necessário, por-
tanto, um método capaz de revelar estruturas, quer dizer mecanis-
mos e princípios de funcionamento não directamente observáveis. 
É necessário que este método permita descobrir as propriedades de 
transformação destas estruturas, determine os fundamentos, as razões 
destas mudanças. Para isso, é preciso levar a pesquisa até ao ponto 
de determinar a causalidade específica de cada estrutura ou nível 
estrutural. Mas, para levar a bom termo esta tarefa, é preciso em 
primeiro lugar reconhecer a autonomia relativa de cada nível, explo-
rar a articulação e o conteúdo destas estruturas. Nesta perspectiva, 
a demonstração do facto de as relações de parentesco de linhagem 
poderem constituir a forma geral das relações sociais no interior de 
dois (ou vários) tipos de sociedades caracterizadas por modos de 
produção diferentes é de extrema importância, pois manifesta, por 
um lado, a autonomia relativa dos níveis estruturais, e sublinha, por 
outro, as necessidades de ultrapassar a análise estrutural das formas, 
uma morfologia estrutural tal como a pratica C. Lévi-Strauss no 
sentido de uma teoria estrutural das funções e dos modos de arti-
culação das estruturas sociais. Resta, como última questão, deter-
minar a hierarquia destas funções no interior destas sociedades, a 
causalidade diferencial de cada estrutura sobre as outras estruturas 
e sobre a reprodução das suas funções e das suas conexões. 
Ora, se existe uma causalidade diferencial das estruturas, o pro-
blema decisivo de uma teoria comparada das sociedades, das suas 
estruturas como da sua história, está em determinar a causa - deter-
minante em última análise, portanto prioritária na realidade, sem 
que seja única nem exclusiva -, destes arranjos estruturais e das 
suas transformações. De Marx a Morgan, de Morgan a Firth, de 
Firth a Sahlins, apesar das diferenças entre estes autores, esta causa-
lidade diferencial prioritária foi procurada do lado da base mate-
rial das sociedades (revolução neolítica, revolução industrial, etc.), 
do lado da sua organização económica. Praticando tais análises é 
que se poderá determinar rigorosamente a parte científica do con-
ceito de tribo, de «sociedade tribal», na condição, bem entendido, 
de renunciar a praticar estas diligências a partir de sociedades isola-
156 
' 1 
das do seu contexto e de procurar praticá-las a partir de conjuntos 
limitados de sociedades vizinhas, de trabalhar, segundo a expressão 
de Herbert S. Lewis, sobre ftlogenias específicas e limitadas. Pouco a 
pouco reconstruir-se-ão em bases mais seguras, não apenas uma 
teoria de evolução das sociedades, mas também uma teoria do 
parentesco, da religião, da política, nas suas conexões estruturais 
especificas com a lógica de diversos modos de produção. 
Mm/ar os termos do problema 
Já não se trata aqui de definições sob as quais se classificariam 
as coisas, mas de funções determinadas que se exprimem por categorial 
determinadas. 
Karl Marx 
Le Capital, t. 4, p. 208. 
Portanto, ainda será de espantar que, ao tentarmos explicitar o 
conceito de tribo e percorrer brevemente a sua história, tenhamos 
feito surgir do fundo dos discursos e dos trabalhos quotidianos dos 
antropólogos dos mundos da rectaguarda teoricamente contraditó-
rios, hábitos de pensamento silenciosamente reproduzidos e sedi-
mentados e que, para muitos de entre eles, se tornaram caminhos que 
já não levam a parte nenhuma? E contudo, temos que nos haver com 
um conceito profusamente divulgado nos escritos e no pensamento 
dos antropólogos, um conceito que não parece estabelecido, dema-
siado perto da zona dos problemas mais delicados, e até das polémicas 
mais duras da antropologia. De facto, a realidade é um pouco dife-
rente. O conceito continua a ser fluido e o pensamento apreende um 
núcleo bastante estreito de algumas determinações abstractas comuns 
a um grande número de sociedades ditas «primitivas». O seu con-
teúdo não é, portanto, vazio, e por consequência, a sua utilidade 
não é nula, mas as coisas param aí; é um repertório de algumas deter-
minações abstractas subsumidas num mesmo termo, é igualmente o 
sinal de alguma coisa que diz respeito à evolução das sociedades 
reunidas sob este

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