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UNIDADE 4 – POPULAÇÕES INDÍGENAS NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: SOCIODIVERSIDADE, POLÍTICAS, RESISTÊNCIA, IDENTIDADES, TERRITORIALIDADES 4.1 Sociodiversidade brasileira contemporânea A diversidade humana é palpável, tanto do ponto de vista empírico quanto nas manifestações imateriais de sua pluralidade. É muito importante compreender noções como a de cultura e a de etnocentrismo para superarmos qualquer viés discrepante ao observarmos outras culturas em contraste com a civilização da qual fazemos parte, o que chamamos também de “Ocidente cultural” (THOMAZ, 1995). Ao recuarmos no tempo e analisarmos as fontes fósseis e arqueológicas do passado, observamos que os povos ancestrais não só concebiam sua existência por meio de grandes empreendimentos arquitetônicos ou gravuras em cavernas, como deixavam registros a respeito de si mesmos, seus valores e o mundo em que viviam nas pedras e em artefatos. Todas as transformações dizem respeito a mudanças culturais que escancaram uma de nossas maiores características: somos seres de cultura e, a partir dos valores culturais, orientamos nossas ações no tempo e no espaço; a “[...] cultura é como uma lente através do qual o homem vê o mundo” (BENEDICT, 1972 apud LARAIA, 2001, p. 67). Para Thomaz (1995, p. 413), cultura é “[...] fenômeno unicamente humano, se refere a capacidade que os seres humanos têm de dar significado às suas ações e ao mundo que os rodeia. A cultura é compartilhada pelos indivíduos de um determinado grupo, não se referindo a um fenômeno individual”. O homem, ser social e cultural, é lócus privilegiado de investigação e reflexão das ciências humanas, especialmente da antropologia, que busca compreender os fenômenos culturais como “código simbólico”, com coerência interna e dinamismo, compartilhado pelos membros de um grupo ou até de um coletivo completamente distinto de nosso arcabouço genético ou herança biológica, como se verifica na discussão proposta por Clifford Geertz (1926-2006). De acordo com o autor, sem a cultura, não haveria a possibilidade de verificarmos nem aquilo que nos distingue enquanto humanidade: [...] Não dirigido por padrões culturais – sistemas organizados de símbolos significantes – o comportamento do homem seria virtualmente ingovernável, um simples caos de atos sem sentido e de explosões emocionais, e sua experiência não teria praticamente qualquer forma. A cultura, a totalidade acumulada de tais padrões, não é apenas um ornamento da experiência humana, mas uma condição essencial para ela – a principal base de sua especificidade. (GEERTZ, 1978, p. 58 apud THOMAZ, 1995, p. 428) Assim, mesmo havendo movimentos históricos por uma certa homogeneização de elementos culturais – seja na língua, nas técnicas e até nas formas de produzir cultura – há forças contrárias que mantêm sua resistência, de forma a reafirmar diferenças cruciais. A diversidade cultural reside naquilo que possibilita e torna possível a humanidade. Os mecanismos de diferenciação são parte integrante da forma como nós nos estruturamos e organizamos, seja em sociedades sem classes sociais, como nas indígenas ou mesmo na nossa, parte de um complexo civilizacional baseado em profunda modificação e exploração da natureza e do homem pelo homem (THOMAZ, 1995; LARAIA, 2001). Figura 1 - Pataxós se reúnem em Porto Seguro, Bahia, para fazer reinvindicações contra a violência e pela garantia dos territórios indígenas (13 de abril de 2006)Fonte: Joa Souza, Shutterstock, 2021. O fato de sermos diversos não é ponto pacífico nas relações entre os diferentes grupos humanos, porque as contínuas diferenciações causam situações discriminatórias e preconceituosas, o que chamamos de etnocentrismo (THOMAZ, 1995; LARAIA, 2001). O etnocentrismo é a base dos processos contínuos de estranhamento entre variadas culturas, que entendem que o seu modo de vida e de agir sobre o mundo é o único possível, enquanto os dos demais seriam enganosos. O etnocentrismo ainda aparece em nossa capacidade de “julgar” o “certo” e o “errado” no comportamento do outro. No limite, “[...] etnocentrismo pode constituir numa desqualificação de práticas alienígenas, mas também na própria negação da humanidade do outro” (THOMAZ, 1995, p. 431). Esse processo é tão vigoroso que termina por organizar nosso olhar em relação à alteridade, conformando nossa forma estereotipada em relação às populações indígenas a partir de uma lógica eurocêntrica a respeito dessas populações e dos limites de sua historicidade (LIMA, 1995; TASSINARI, 1995). Para escaparmos dessas “encruzilhadas epistemológicas” que reduzem as populações indígenas a seres sem história, precisamos tratar da diversidade cultural enquanto valor para compreendermos essas coletividades em sua resistência frente ao avanço de nossa civilização. Suas lutas se dão contra as heranças do genocídio e do etnocídio, que ainda assombram a construção da civilização brasileira, e pelo reconhecimento de sua plena humanidade (CLASTRES, 2000; TODOROV, 2009; RICARDO, 1995). No Brasil, há mais de 200 nações indígenas, cada uma com sua “[...] maneira particular de ver o mundo, organizar o espaço, construir a casa e marcar os momentos significativos da vida de uma pessoa” (THOMAZ, 1995, p. 412). Assim, teríamos uma miríade de relações entre as diferentes culturas indígenas e setores da sociedade brasileira, também heterogênea, na forma de se conceber a realidade. Para aprofundar sua percepção acerca de dois importantes conceitos das ciências humanas e sociais, sugerimos a leitura de materiais imprescindíveis: o livro Cultura, um conceito antropológico, de Roque de Barros Laraia, e o material O que é etnocentrismo, de Everardo P. G. Rocha. Ambos são interessantes para fixarmos conceitos e utilizarmos em aulas, de modo a ampliar nosso leque de conhecimentos e as discussões de nossos estudantes. Vale a pena se aprofundar nesse assunto! Carlos Alberto Ricardo, antropólogo do Instituto Socioambiental (ISA), aponta como a mera constatação da diversidade cultural e suas discussões científicas não se transformam em ações concretas, com projetos políticos e econômicos que impactariam os coletivos indígenas brasileiros. Nosso país, assim como parte das nações americanas que surgiram a partir do colonialismo, ignora aquilo que Ricardo (1995) chama de “sociodiversidade”: a existência de centenas de sociedades, com múltiplas línguas e olhares. Cada uma dessas coletividades tem uma bagagem política, cósmico-religiosa, sociológica e econômica única, individual (RICARDO, 1995). Os empecilhos à compreensão da sociodiversidade são inúmeros. Primeiramente, encontramos, entre a maioria dos falantes de línguas indígenas, a dificuldade de dominar o português. Sem o entendimento exato de seu repertório linguístico, manifestação de sua cultura, “[...] seus pontos de vista são tomados fora dos contextos onde vivem, mediados por interpretes frequentemente precários e, registrados, finalmente, como fragmentos e em português” (RICARDO, 1995, p. 29). Ainda há poucas publicações que abrem espaço para a escrita em língua materna indígena, com a literatura ou vídeos produzidos pelos diversos autores índios (LUCIANO, 2006). Outra questão inquietante é nosso parco conhecimento a respeito das diferentes populações indígenas. No momento inicial da conquista portuguesa, estimativas dão conta de mais de 1.000 etnias, hoje reduzidas a pouco mais de 200 diferentes coletividades, metade delas estudadas por antropólogos, linguistas e outros investigadores cujas publicações são acessíveis a um público muito restrito, do universo de pesquisadores ou de membros de organizações da sociedade civil que atuam em prol da temática indígena (RICARDO, 1995). Desse modo, conforme Ricardo (1995), o público leigo fica à mercê de matérias pontuais na mídia e tem contato com a perpetuação de estereótipos generalizantes, discriminatórios e preconceituosos. Contudo, há importantíssimas exceções, tais como o Museu Magiita dos Tikuna, a Federação das Organizações Indígenas do Rio de Janeiro, vários escritos em línguas nativas, o Centrode Trabalho Indigenista, com seu projeto “Vídeo nas aldeias”, além do Museu de Arqueologia e Etnologia Indígena (MAE-USP) e de outras instituições representativas de diferentes coletivos indígenas, tais como a Associação Hutukara dos Yanomami (RICARDO, 1995). Os jornais e outras mídias muitas vezes trabalham sem a devida profundidade as diferentes populações indígenas, trazendo à tona aquilo que Ricardo (1995) chama de “índio de plantão”: informações erradas ou igualmente generalizantes a respeito dos coletivos indígenas. citados pela Fundação Nacional do Índio (Funai): caxinaua, cashinaua, kaxinawa e kaxinaua (RICARDO, 1995). Há uma significativa convenção de nomes de coletivos indígenas, que misturam autoclassificações e classificações trabalhadas por linguistas ou antropólogos (RICARDO, 1995). Os órgãos oficiais também têm dificuldades para lidar com os coletivos e as suas autorrepresentações, presentes na Convenção para a grafia de nomes tribais, estabelecida pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Um exemplo dessa confusão semântica se dá entre os famosos araweté, com a autodenominação bidé (CASTRO, 1986 apud RICARDO, 1995). Há vários outros casos de arbitrariedade por parte das políticas públicas em seus “primeiros contatos” com os coletivos indígenas. Essas e outras práticas, chamadas oficialmente de “atração e pacificação”, impõem nomes e líderes, costumes que datam do período colonial que ainda persistem (RICARDO, 1995). Todavia, desde a redemocratização, órgãos da sociedade civil, como o antigo Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi) e o Instituto Socioambiental, têm trabalhado na catalogação, defesa e consultoria jurídica com a ampliação do conhecimento acerca das populações indígenas para pesquisadores, ativistas e o público em geral. Outra questão importante é o acesso à educação escolar indígena, que atenuaria parte do “abismo sociocultural” entre as comunidades indígenas e a sociedade brasileira mais ampla (RICARDO, 1995), além de inserir os índios em novas cadeias reivindicativas e de lutas por direitos consagrados. Figura 2 - Índios em dança típica (9 de agosto de 2015)Fonte: Alekk Pires, Shutterstock, 2021. Assim, não podemos desmerecer a capacidade organizativa e a força de luta dos movimentos sociais indígenas, que, longe de emularem suas contrapartes do mundo dos “não índios”, atuam com autonomia, liberdade e conscientização próprias diante da sociedade brasileira mais abrangente:Hoje, quando vejo os povos indígenas cada vez mais presentes em todos os aspectos da vida nacional – cultura, agenda de governo, mídia nos seus diversos segmentos, pesquisa, vida universitária, esportes, política parlamentar e partidária – começo a acreditar que a questão indígena pode ter não somente maior visibilidade e relevância na vida nacional mas, sobretudo, um espaço próprio de autonomia e de liberdade para que se decida como viver nesse mundo atual com todas as suas vantagens e desvantagens. (LUCIANO, 2006, p. 21) A seguir, estudaremos a etnicidade e as cosmogonias e cosmologias indígenas. Acompanhe! 4.2 Etnicidade, cosmogonias e cosmologias indígenas As populações ou coletivos ameríndios sobrevivem diante das arbitrariedades cotidianas que setores de nossa sociedade e do Estado brasileiro perpetuam sobre eles. Porém, tais populações resistem, engajando-se em lutas em prol de seu modo de vida, de seus territórios e dos direitos a elas consagrados.[...] as comunidades, os povos e as nações indígenas são aqueles que, contando com uma continuidade histórica das sociedades anteriores à invasão e à colonização que foi desenvolvida em seus territórios, consideram a si mesmos distintos de outros setores da sociedade, e estão decididos a conservar, a desenvolver e a transmitir às gerações futuras seus territórios ancestrais e sua identidade étnica, como base de sua existência continuada como povos, em conformidade com seus próprios padrões culturais, as instituições sociais e os sistemas jurídicos. (ONU, 1986 apud LUCIANO, 2006, p. 27) Para além das classificações alienígenas, tais como a de “índio”, as próprias coletividades lançam mão de critérios identitários para reforçar suas lutas: diante do mundo dos brancos, são “índios”, “parentes”, “povos das florestas”, mas, para seu próprio universo, mantêm suas identidades tradicionais, isto é, são mbyá, krahô, krenak, urubu etc. O critério autoidentitário (ou de etnicidade) não tem conotações biológicas, sendo concebido como uma construção cultural (MELATTI, 2014). termo parente não significa que todos os índios sejam iguais e nem semelhantes. Significa apenas que compartilham de alguns interesses comuns, como os direitos coletivos, a história de colonização e a luta pela autonomia sociocultural de seus povos diante da sociedade global. Cada povo indígena constitui-se como uma sociedade única, na medida em que se organiza a partir de uma cosmologia particular própria que baseia e fundamenta toda a vida social, cultural, econômica e religiosa do grupo. Deste modo, a principal marca do mundo indígena é a diversidade de povos, culturas, civilizações, religiões, economias, enfim, uma multiplicidade de formas de vida coletiva e individual. (LUCIANO, 2006, p. 31) É no plano das construções identitárias que podemos compreender cada coletivo indígena em sua relação com outros coletivos e com a sociedade brasileira mais envolvente. Cada grupo estabelece as fronteiras de sua identidade coletiva e aquilo que refuta como seu ser coletivo:[...] a pertença étnica não pode ser determinada senão em relação a uma linha de demarcação entre membros e não membros. Para que a noção de grupo étnico tenha um sentido, é preciso que atores possam se dar conta das fronteiras que marcam o sistema social ao qual acham que pertencem para além dos quais identificam outros atores implicados em um outro sistema social [...] O que permite que se dê conta da existência dos grupos étnicos e de sua persistência no tempo é, então, a existência dessas fronteiras étnicas independentemente das mudanças que afetam os marcadores aos quais elas se colam. [...] a manutenção das fronteiras étnicas necessita da organização das trocas entre os grupos e da ativação de uma série de proscrições e de prescrições regendo suas interações. (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998, p. 152-153) Desse modo, a etnicidade é experenciada no plano vivido, material e imaterialmente, de modo a descrever aquele que compõe o “nós” em oposição ou complementação a um “outro”. As características não são biológicas; envolvem a construção de “fronteiras étnicas” dinâmicas e fluidas, mas que incorporam um certo “núcleo duro” identitário, incluindo certo domínio da língua, dos valores e rituais coletivos e a crença de uma origem e destinos compartilhados (BARTH, 1998). Figura 3 - Homens kamayurá, do Parque Nacional do Xingu, preparam-se para tocar suas flautas sagradas (18 de maio de 2008)Fonte: Frontpage, Shutterstock, 2021. Para compreendermos melhor os processos de diferenciação e de produção identitária coletiva, precisamos entender algumas narrativas míticas, parte importante da construção das cosmogonias dos índios. Os mitos trazem à tona narrativas tradicionais a respeito da origem dos homens e da cultura, daquilo que nos diferencia de outros seres vivos; marcam a origem do Universo, dos seres que o compõem, das instituições da sociedade, dos conflitos, valores e práticas rituais (MIDLIN, 2002). Midlin (2002) assinala que os mitos também devem ser vistos como: explicações para a ordem social (MALINOWSKI apud MIDLIN, 2002); fenômeno religioso, tentativa de religar-se ao ato original da criação (ELIADE apud MIDLIN, 2002); estrutura que revela processos mentais universais.São símbolos que compõem e constrangem nossos comportamentos e representações sobre o conjunto da vida (LÉVI-STRAUSS apud MIDLIN, 2002), aspectos centrais para compreendermos o mundo humano e as relações que nós estabelecemos com o passado, o presente e o futuro (MIDLIN, 2002). Os mitos, para as populações indígenas, não têm caráterficcional ou apenas alegórico. Transmitidos oralmente de geração para geração, eles são a verdadeira história do mundo e reforçam aspectos identitários e o entendimento da própria humanização – indígena e a de outros humanos com os quais se relacionam, incluindo aqui outros seres naturais e sobrenaturais (MIDLIN, 2002): [...] Nos Suruí de Rondônia, autodenominados Paiter (plural Paiterei), Gente Verdadeira, Nós Mesmos, com os quais convivi, ao todo, cerca de um ano e meio, o caráter histórico que conferiam à mitologia saltava aos olhos. Quando conversávamos sobre a teoria da evolução, de Darwin, por exemplo, afirmavam que sua teoria era semelhante, mas exatamente contrária: na sua história, diziam, os bichos, antigamente, no início do mundo, eram gente, e foram se transformando em animais segundo as narrativas que contam. (MIDLIN, 2002, p. 150) Os mitos das populações indígenas, elegantes construções simbólicas que elevam esses povos em sua visão sobre si mesmos e o mundo “dos brancos”, são paradigmas das possibilidades que o pensamento humano encerra. Eles não são “menores” ou “inferiores” que o pensamento filosófico, tampouco as construções científicas, uma vez que os mitos, em sua estrutura, consistem em uma própria e singular ordem mental pensada para clarificar a realidade da natureza e do cosmos para qualquer humano: [...] O mito do roubo do fogo nos Kaiapó, [...] por exemplo, contém partes que se referem ao ciúme, ao predador do ninho de passarinhos, e que se ligam ao incesto entre mãe e filho de outro mito Bororo, motivos que aparecem transformados em outras culturas e em outros mitos. Compreender o porquê, ou melhor, a forma ampla dessas semelhanças e diferenças, dessas relações, é o verdadeiro enigma [...] Quanto ao mito do fogo, tão relevante no nosso caso, adquire uma importância fundamental na obra de Lévi-Strauss [...] por ser o marco da distinção entre natureza e cultura, coleta e cozinha, alimentação animal ou cultural, está ligada aos símbolos e à sociedade. (MIDLIN, 2002, p. 152) Em muitos mitos ameríndios, os homens são auxiliados por animais para roubar o fogo do jaguar, que, depois de perdê-lo para o ser humano, foi condenado a comer carne crua. Aqui, temos uma importante definição do que separa a humanidade da animalidade: o cozer/assar do alimento enquanto símbolo de cultura em oposição à natureza ou animalidade (MIDLIN, 2002). É importante compreendermos que nós, seres humanos, somos, a um só tempo, seres biológicos e culturais. Não há uma “passagem” propriamente dita entre natureza e cultura, mas o estabelecimento de um universo de regras e sentidos que não é natural, mas obra da mente humana; portanto, cultura (LÉVI-STRAUSS, 2009). Entre os maxakali, o mundo onde vivemos e aquele ao redor é habitado por vários espíritos, os yãmiy, fruto da transformação dos parentes mortos e de outros seres, que têm sua substância koxuk (ou alma) metamorfoseada (VIEIRA, 2009). Para os maxakali, humanos e espíritos se diferenciam pela posse de bens culturais, atribuídos pelo demiurgo Topa, que, após um grande dilúvio que atingiu todos os seres vivos, salvou um único homem. Esse sobrevivente foi alimentado por Topa com bananas, amendoins e ganhou a dádiva do fogo. Após ser restaurado, o demiurgo lhe indicou um caminho por onde encontraria seu par, uma mulher, com a qual repovoou o mundo – inicialmente, de animais; depois, de humanos (VIEIRA, 2009). A antropóloga Alcida Rita Ramos, da Universidade de Brasília, estudou os yanomami e destacou o seu trabalho artesanal de manejo dos recursos ambientais. Ela acentuou que as trilhas de caça e de pesca criadas por essas populações nas terras amazônicas – juntamente com suas roças, ao redor de suas casas, as shabonos ou xabonos –, são mais do que suficientes para a manutenção de seu modo de vida, em permanente equilíbrio com a natureza e seus espíritos xapori (RAMOS, 2008). Davi Kopenawa, yanomami, e o antropólogo Bruce Albert (2015) demonstram esse impacto por meio de sua crítica xamanística, igualmente política e ambientalista. Kopenawa e Albert relatam o furor da lógica predatória de nossa economia, variável local do capitalismo internacional por meio das cosmogonias e cosmologias yanomami para traçar uma profunda crítica à inércia do Estado brasileiro diante da morte de seu povo. Sua reflexão também é atravessada pelo olhar aguçado das consequências da violência das doenças e do garimpo instalado em suas terras, relembrando os efeitos do massacre de Haximu, verdadeiro genocídio brasileiro para sua gente e a de “parentes”, outros coletivos atingidos de forma semelhante (ROCHA, 2007). Guiados por seus espíritos xapori, os autores (KOPENAWA; ALBERT, 2015) revelam um olhar acertado do “nós”, os “brancos”, da sociedade brasileira mais abrangente e de nossa ânsia em trazer à tona, “das entranhas da terra, as feias fumaças de doença”, que culminam em nossa busca incessante de atormentar o equilíbrio entre o céu e a Terra. E como era o mundo dos brancos antes de sua chegada e contato com as populações indígenas? Nosso mundo foi dominado pela mercadoria e pelo dinheiro, o que culminou em sua destruição:[...] ficaram muito satisfeitos consigo mesmos. [...] E assim as palavras das mercadorias e do dinheiro se espalharam por toda a terra de seus ancestrais [...] Por quererem possuir todas as mercadorias, foram tomados por um desejo desmedido. Seu pensamento se esfumaçou e foi invadido pela noite. Fechou-se para todas as outras coisas. Foi com essas palavras de mercadoria que os brancos se puseram a cortar todas as árvores, a maltratar a terra e sujar os rios. Começaram onde moravam seus antepassados. Hoje já não resta quase nada de floresta em sua terra doente e não podem mais beber a água de seus rios. Agora querem fazer a mesma coisa com a nossa terra. (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 407-408) Nossa agressão é tão grande que nos tornamos napëpë – inimigos, cria do demiurgo primordial, Yoasi, rival do criador da vida, Omama. Yoasi, ser ardiloso, desejava brincar com a criação de Omama, a Hutukara (Terra/oceanos/rios, o primeiro céu). A atual Hutukara, o nosso “tempo presente”, tornara-se a maior vítima dos filhos de Yoasi, “os brancos” napëpë, que, como “formigas”, “comem” os alicerces da vida (KOPENAWA; ALBERT, 2015). É significativo que na visão xamanística de Davi Kopenawa, esse descompasso entre o modo de vida de seu povo e o nosso seja tão marcante. Na visão cosmológica desse xamã, somos verdadeiros “espectros canibais” ao cavarmos fundo, no seio da terra, em busca de nossos minérios. Libertamos a xawara, doença que destrói os yanomami e seus outros “parentes” vizinhos. O ouro que buscamos em suas terras e nos territórios de outras coletividades indígenas, nossa medida de riqueza, é também, assim como a nossa relação com a natureza, canibal, mas de toda a vida, da Hutukara e, em especial, a de nós mesmos (ALBERT, 1995). Os mitos indígenas são grandes metáforas para entendermos a condição humana, sua diferenciação em relação a outros seres vivos e não vivos. Enfim, ajudam a compreender o funcionamento da própria vida, fazendo eco naqueles que os escutam, ensinando-lhes e aguçando sua percepção de si mesmos e da infinita relação dos homens com os espíritos e a natureza ao seu redor. Há, desse modo, uma profunda interdependência entre as cosmogonias e as etnicidades, que colocam, no centro do debate, a história vivida por esses sujeitos. 4.3 Política indigenista oficial do Estado brasileiro O indigenismo oficial do Estado brasileiro contemporâneo surgiu em 1910, a partir da fundação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), substituído em 1967 pela atual Fundação Nacional do Índio (Funai). A principal corrente filosófica que influenciou a organização e implementação das ações do SPI foi o positivismo (OLIVEIRA, 1995; OLIVEIRA, 2004). O positivismo idealizou o indígena e o seu lugar no “seio da pátria”. A ação pensada pelo Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon (1868-1958), primeiro dirigente do órgão, foi classificada de “proteção fraternal”, imortalizada nafrase de Rondon “matar nunca, morrer se preciso for”, ressignificando o “índio bravo” como “dócil e colaborativo” (OLIVEIRA, 1995; OLIVEIRA, 2004). Na prática, a intervenção do SPI substitui o trabalho missionário por um regime de tutela, que vê os coletivos indígenas como incapazes de gerir a si próprios e os seus destinos (OLIVEIRA, 2004). Um dos aspectos dessa visão romântico-positivista de Rondon e do SPI em seus primeiros anos foi a crítica ao amplo e irrestrito extermínio de populações indígenas e de sua exploração, assim como sua posição frente à assimilação desses coletivos pelas missões religiosas. Era importante incutir nos autóctones a possibilidade de se libertar de “princípios fetichistas” para o “pensamento científico”, de acordo com o qual os “primeiros brasileiros” seriam os “guardiães das fronteiras brasileiras” e, por isso, tutelados pelo Estado nacional (OLIVEIRA, 1995). Hoje, a política indigenista oficial do Estado brasileiro é realizada por meio da Fundação Nacional do Índio (Funai), criada em dezembro de 1967. Vinculada ao Ministério da Justiça, é a principal coordenadora e executora da política indigenista do governo federal. Sua missão oficial é proteger e promover os direitos dos povos indígenas no Brasil, tentando fugir do espírito de tutela que ainda persiste na visão com relação ao órgão (OLIVEIRA, 1995; OLIVEIRA, 2004; LUCIANO, 2006). Figura 4 - Dados demográficos da população indígena no BrasilFonte: Adaptada de Funai, [2013?]. #PraCegoVer: na figura, há uma tabela à esquerda e um gráfico à direita. A tabela apresenta como título “Dados demográficos da população indígena no Brasil” e tem cinco colunas: ano; população indígena no litoral; população indígena no interior; total; percentual de população total. Ela tem 11 linhas, com dados dos seguintes anos, de cima para baixo: 1500, 1570, 1650, 1825, 1940, 1950, 1957, 1980, 1995, 2000 e 2010. Embaixo do gráfico, aparece a fonte dos dados: uma obra de Marta Maria Azevedo de 2013. Do lado direito, os dados são projetados em um gráfico que apresenta a população indígena do litoral em uma linha azul e a população indígena do interior em uma linha vermelha. A imagem mostra a queda vertiginosa das populações indígenas, que, se em 1500 eram 100% da população do país, em 2010 correspondiam a somente 0,26% do total populacional. Se historicamente os índios ocupavam todo o território que hoje é o Brasil, onde eles estão hoje? De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em 2010, a distribuição da população indígena brasileira, segundo dados oficiais, era a seguinte, por ordem decrescente: Norte:342.836 Nordeste:232.739 Centro-Oeste:143.432 Sudeste:99.137 Sul:78.773 Mas como pensa parte significativa da população brasileira em relação à temática indígena? O tema ainda é tratado como algo histórico, distante das preocupações das pessoas comuns, entre as quais imperam estereótipos extremamente negativos contra as populações indígenas (OLIVEIRA, 1995). Outrossim, ainda há uma parcela da opinião pública que entende haver “muita terra para pouco índio”, questão que termina por inviabilizar parte do debate em torno da importância dos territórios indígenas, dada a força da estereotipia e do senso comum, que constrói uma autorrepresentação acerca do brasileiro de “forma ufanista, otimista e simpática”, um homem cordial, ou ainda a força da ideia da miscigenação e da ausência do racismo em nosso país (OLIVEIRA, 1995). As demandas por territórios ancestrais são uma problemática no país. Enquanto alguns coletivos teriam “terras demais”, outros são conhecidos como “falsos indígenas” por resultados pessoais com o acesso às políticas públicas de auxílio aos índios. Segundo Oliveira (1995), já está sedimentado o solo para que jornalistas, comunicadores – e, mais recentemente, blogueiros – venham enraizar novos preconceitos, escamoteando a questão indígena. Dialogando com Darcy Ribeiro (1922-1997), João Pacheco de Oliveira coloca a temática indígena sob os seguintes termos: O problema indígena não pode ser compreendido fora dos quadros da sociedade brasileira, mesmo porque só existe onde e quando índio e não-índio entram em contacto (sic). É, pois, um problema de interação entre etnias tribais e a sociedade nacional [...] (RIBEIRO, 1970, p. 193 apud OLIVEIRA, 1995, p. 64) Assim, o “problema indígena” é parte das contradições da sociedade brasileira mais ampla e de sua dificuldade de impor políticas públicas mais incisivas. Entre elas, talvez a mais importante seja o amplo e irrestrito reconhecimento das territorialidades indígenas, de maneira a afastar quaisquer interesses da sociedade mais abrangente em dilapidar o patrimônio ambiental, seus recursos e territórios (OLIVEIRA, 1995; OLIVEIRA; COHN, 2014). Figura 5 - Enterro de liderança indígena pataxó no sul da Bahia assassinada em conflito por terras (23 de fevereiro de 2012)Fonte: Joa Souza, Shutterstock, 2021. Hoje, os interesses dominantes do agronegócio, ligado ao extrativismo ilegal de madeira, e o de pedras preciosas, com grandes obras capitaneadas por empreiteiras, “atropelam” os interesses indígenas, seja em nome do “desenvolvimento” ou com o discurso da “integração como gente como a gente”. Assim, é precipitado falarmos em Estado interventor em nome de interesses das populações indígenas quando são setores do próprio Estado ou de poderes locais a ele associados que obliteram os propósitos dos índios (OLIVEIRA; COHN, 2014; MANTOVANELLI, 2016): Durante algum tempo, muitos de nós embalou sonhos de parar Belo Monte, deixar a água fluir pela Volta Grande do Xingu e pelo Rio Bacajá, manter fauna, flora, cheias, vazantes, ribeirinhos, indígenas e o povo do Xingu em geral livres desse pesadelo, mas esta e a maior obra do Processo de Aceleração do Crescimento – PAC e, portanto, muito difícil de combater. E uma pena que ela esteja sendo realizada afrontando, violando e revogando todos os direitos indígenas que este país se orgulha de ter conquistado no processo de redemocratização. (OLIVEIRA; COHN, 2014, p. 31). Outra questão que choca pela ausência de efetivas políticas públicas é a presença, cada vez mais significativa, dos chamados “índios urbanos”. Fora das aldeias e terras indígenas minimamente reconhecidas, esses indivíduos e suas famílias estão alheios a qualquer ação por parte do órgão indigenista oficial. Assim, muitos coletivos indígenas são desconsiderados (OLIVEIRA, 2016). Figura 6 - Kayapós reunidos em manifestação no Rio de Janeiro em defesa da Floresta Amazônica. Destaque para o líder Raoni Metuktire (16 de junho de 2012)Fonte: Wallace Teixeira, Shutterstock, 2021. Depois da ditadura militar, com a redemocratização do país, houve avanços significativos para os movimentos indígenas e o declínio das práticas de tutela por parte do Estado brasileiro. Desde 1988, aconteceram importantes demarcações, além do reconhecimento constitucional de que os povos indígenas têm o direito originário e o usufruto sobre terras que tradicionalmente ocupadas. Foi previsto o estabelecimento de reservas indígenas em áreas destinadas à posse e à ocupação, em qualquer parte do território nacional, nas quais os coletivos poderiam buscar sua subsistência para a garantia das condições necessárias à sua continuidade física e cultural. Os maiores exemplos de áreas indígenas criadas, com ampla repercussão nacional e internacional, foram as Terras Indígenas Yanomami, nos anos 1990 e, mais recentemente, as Terras Indígenas de Raposa Serra do Sol, homologadas em 2009. No entanto, nos últimos anos, houve um enorme recuo na garantia dos direitos indígenas, dado o avanço do conservadorismo e de setores contrários às demandas identitárias dessas e de outras populações vulneráveis de nosso país. O maior exemplo desse retrocesso nas lutas indígenas e nas políticas indigenistas é a tese do marco legal (CUNHA; BARBOSA, 2018). No ano de 2014, o Supremo Tribunal Federal (STF) proferiu um pronunciamento após a polêmica da demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, declarando que “apenasas terras ocupadas no momento da promulgação da Constituição de 1988 seriam demarcáveis” (CUPSINSKI et al., 2017). 4.4 Alguns exemplos de pesquisas etnológicas e lutas indigenistas contemporâneas Há inúmeras pesquisas que trabalham a temática das populações indígenas na contemporaneidade. Em vários departamentos de graduação e de pós-graduação, os índios são atores sociais que figuram como agentes privilegiados de análise. Investigam-se sua sociodiversidade, seus conhecimentos tradicionais e as lutas ambientais e por seus direitos às territorialidades ancestrais. Nesta última unidade, daremos destaque às pesquisas a respeito das populações indígenas em contexto urbano: os pankararu, em São Paulo; os coletivos guarani mbyá e ñandeva, do litoral paulista; e os kaiowa do Mato Grosso do Sul. A maior parte desse contingente populacional vive na região metropolitana de São Paulo, área de grande atração populacional. No passado recente, houve um intenso fluxo migratório nordestino para a maior metrópole do país. Acompanhando esse movimento, chegaram a São Paulo inúmeros indivíduos de origem indígena, que deixaram suas aldeias ou terras ainda não demarcadas para atuarem como mão de obra. Boa parte desses indivíduos retornou para suas aldeias, em estados nordestinos, e trouxe consigo suas famílias, o que causou a migração de outros parentes. Nas grandes cidades, eles não têm espaço para a manifestação de suas práticas culturais específicas, tampouco acesso a políticas públicas que se atentem a esse fenômeno migratório e suas consequências para as famílias e coletivos indígenas (GOMES, 2001). As populações indígenas com substancial presença na região metropolitana de São Paulo são: os pankararu, pankararé, fulni-ô, terena, kaiagang, kariri-xocó, atikum e potiguara (GOMES, 2001). Parte significativa das famílias indígenas moram nas periferias de São Paulo ou em favelas, como os pankararu do Real Parque, Zona Sul de São Paulo (MATTA, 2005). Muitos deles vivem em condições precárias, sem moradia digna e em habitações sem esgoto, água encanada ou acesso a serviços de educação e de saúde. O número de indígenas vivendo em São Paulo e outras metrópoles brasileiras aumenta devido ao agravamento dos conflitos em seus territórios tradicionais. O Nordeste, por exemplo, é uma região de muitos embates fundiários, que envolvem não apenas coletivos indígenas, mas um sem-número de atores sociais (OLIVEIRA, 2004). De acordo com Gomes (2001), na região que vai de Minas Gerais ao Ceará, 42 povos indígenas ocupam cerca de 70 terras tradicionais. O número reforça a importância de olhar essas populações que não estão aldeadas, longe de seus territórios e distantes dos serviços públicos destinados às populações indígenas (LUCIANO, 2006). Outrossim, é primordial considerar que as políticas públicas para “índios urbanos” é extremamente importante, dada a sua especificidade em um cenário de extrema competitividade, como demonstra Gersem dos Santos Luciano, do coletivo Baniwa: O simples fato de os índios urbanizados viverem em condições que não dependem de território para sobreviverem já é suficiente para se ter certeza de que não podem ser tratados de forma homogênea, o que não significa exclusão. Os índios aldeados vivem dos recursos oferecidos pela natureza, enquanto os índios que moram em centros urbanos vivem geralmente de prestações de serviços e como mão-de-obra (sic) do mercado de trabalho. Disso resulta que a perspectiva dos índios aldeados estará mais focada para a valorização dos seus conhecimentos tradicionais de produção, consumo e distribuição de bens, enquanto os índios de centros urbanos estarão propensos a apostar na qualificação profissional e na capacidade de inserção no mercado local e global. O fato demonstra, por exemplo, a necessidade de se pensarem projetos de escolas e de formação diferenciada para as duas realidades indígenas distintas. (LUCIANO, 2006, p. 24) Outro fenômeno significativo que ocorre em diversas populações indígenas no Nordeste e acentua os conflitos fundiários é a noção de “etnogênese”: após séculos de opressão, os índios têm retomado suas identidades tradicionais como “índios ressurgidos” e “resistentes”, com rituais e marcadores identitários renovados diante de outros “parentes” e do mundo dos brancos (OLIVEIRA, 2004; LUCIANO, 2006). Gomes (2001) retoma vários relatos dos motivos que levaram ao abandono, mesmo que parcial, das terras ancestrais. Há quem relate conflitos com posseiros; outros falam da infertilidade das terras. Muitos tentam conviver com o homem branco em busca de uma vida melhor. Para vários povos “ressurgidos”, a tentativa de ter sua origem reconhecida se torna uma luta diária. Filhos e netos de indígenas não aldeados que migraram ou que pertençam a uma segunda geração de “índios urbanos” buscam o reconhecimento de sua etnicidade, que deveria ser acompanhada por políticas públicas e educacionais afirmativas (GOMES, 2001; LUCIANO, 2006). Priscila Matta (2005) analisa as relações entre a aldeia Pankararu, em Brejo dos Padres, Pernambuco, e os pankararu de São Paulo, onde retomam seu calendário ritual por meio da Corrida do Imbu e da Penitência, que representa a urgência, a “força” do Imbu, isto é, o período de sua frutificação. Os pankararus começaram a migrar para São Paulo no fim dos anos 1950; hoje, cerca de 150 famílias vivem em um único bairro da capital paulista, o Real Parque, onde retomam parte de seu universo cosmológico e mantêm contato permanente com seus parentes pernambucanos (MATTA, 2005). Entre os guaranis do litoral paulistas, a situação é bem diversa. Seu histórico de lutas pelo reconhecimento de seus territórios ancestrais data dos anos 1970, quando diversos empreendimentos civis e de infraestrutura intensificaram a especulação imobiliária no litoral de São Paulo, especialmente na rodovia Rio-Santos (BR-101). Além dessas pressões, ocorreram diversos conflitos com as autoridades indigenistas. Até então, só eram conhecidos os guaranis da região de Trindade e Paraty, no Rio de Janeiro, e comunidades esparsas no Espírito Santo (LADEIRA, 2000). Os guaranis (kaiwoa, mbyá, ñandeva) possuem inúmeras tekoa ou terras indígenas espalhadas por diferentes estados brasileiros (Mato Grosso do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul), além de estarem presentes em países vizinhos, como a Argentina, a Bolívia e o Paraguai (LADEIRA, 2000). Durante muito tempo, supôs-se que fossem nômades devido à sua errância pelos espaços sul-americanos. Sensíveis diante das pequenas terras ancestrais reconhecidas no Brasil, essas populações têm um amplo repertório cosmológico e compartilham entre si a ideia de que “[...] o conceito de território supera os limites físicos das aldeias e trilhas e está associado a uma noção de mundo que envolve a redefinição constante das relações multiétnicas, o compartilhar e o dividir espaços” (LADEIRA, 2000, p. 785). A procura de Yvy marãey, a Terra sem Males, traz implicações ecológicas e territoriais que se refletem nas migrações guarani, principalmente em suas buscas no litoral brasileiro, com impactos naquilo que pensam acerca de suas condições de vida, seus relacionamentos sociais e com o alhures, o sobrenatural (LADEIRA, 1999). Desse modo, a territorialidade guarani, completamente diversa das nossas noções geográficas, é um “espaço ético” que deve ser revelado, no qual a Mata Atlântica e a Serra do Mar desempenham papel cosmológico crucial (LADEIRA, 2008). Os guaranis, além de suas migrações, também são famosos por suas festas Nhenmongarai, nas quais o pajé, o Xeramoi, batiza as crianças na opy (ou casa de rezas) utilizando-se da “fala sagrada”, a ayvu porã (MOTTA, 2007; LADEIRA, 2008). Para os guaranis, a nhandereko (modo de vida e de pensar a vida) é a base da relação do homem entrelaçada à natureza e aos espíritos, diferentemente dos juruá (brancos), afastados de Nhanderu tenonde gua (Nosso Pai, o primeiro), a divindade. Assim, os juruá destroem os espaços sagrados, além de impedirem os guaranisde usufrui-los junto aos ancestrais (LADEIRA, 2008). Outro elemento importante é a sacralidade da fala guarani, um marcador temporal ao mesmo tempo que relata o esforço de criação da vida: [...] O ato de dizer as mensagens/ensinamentos recebidos é associado ao ato de ensinar (nhemongueta). Assim, as “verdadeiras palavras”, ayvu porã etei, e a autenticidade que as torna eternas, quando transmitidas (ayvu monhendu) e atualizadas através das gerações, e nos diversos lugares vividos, vão compondo o sistema da tradição (transmissão oral de conhecimentos e valores) Guarani. Desse modo, a não interrupção da sequência nhemboe (aprender, estudar, refletir) e nhemongueta (ensinar, aconselhar) é fundamental para a manutenção desse sistema. Embora o ayvu porã seja uma forma particular de falar e faça menção a conceitos especiais contidos nas mensagens divinas reveladas, às quais nem todos têm acesso, ela é interpretada na linguagem corrente (ayvu) para que todos possam compreendê-la. (LADEIRA, 2008, p. 33) As relações de aliança e de parentesco entre os guaranis suplantam divisas e fronteiras; trata-se de um elo que une populações que, mesmo espalhadas entre quatro diferentes países e sete estados brasileiros, mantêm-se unidas em sua nhandereko. Você sabia?Para conhecer diferentes povos e suas especificidades culturais, sugerimos a leitura do livro Prêmio culturas indígenas: edição Xicão Xukuru. Essa publicação comemorativa dos conhecimentos e saberes tradicionais indígenas traz à tona centenas de contribuições, como seu nome e autodenominação, população, idioma e projetos desenvolvidos nas mais diferentes comunidades. Ela tem o propósito de divulgar, junto a um público mais amplo, leituras que retratem a realidade de vários povos indígenas; a riquíssima sociodiversidade brasileira, para além dos estereótipos. Clique no ícone para acessar o material. Figura 7 - Dia da mobilização nacional dos povos indígenas em São Paulo – membros do coletivo kaiowa celebram ato em frente ao vão livre do Museu de Arte de São Paulo (Masp) (20 de outubro de 2016)Fonte: Nelson Antoine, Shutterstock, 2021. Descendentes de antigos indígenas das missões, os ancestrais dos kaiowa foram algumas das principais etnias dizimadas pelas ações escravagistas dos bandeirantes paulistas em sua expansão belicosa no que é hoje o sul do Brasil. Liderados por padres jesuítas, eles fugiram dos territórios lusitanos sob Tordesilhas rumo ao interior do continente. Buscaram abrigo nos atuais Paraguai e Mato Grosso do Sul, região anteriormente conhecida como “território do Guairá” (FAUSTO, 2000). Ali, eles compuseram parte das famosas missões (ou da República guarani) sob a autoridade jesuítica. A expulsão desses missionários, em fins do século XVIII, desorganizou as populações kaiowa, que mais uma vez se dispersaram; alguns atingiram até a região da atual fronteira entre a Bolívia e o Paraguai (FAUSTO, 2000). Atualmente, os territórios do sudoeste sul-mato-grossense e parte significativa do leste do Paraguai detêm importantes contingentes populacionais kaiowa e ñandeva, recentemente atingidos por novas frentes de expansão do agronegócio, que, em torno da ideia da “legítima defesa da terra”, permite que os proprietários defendam, publicamente, práticas violentas contra os guaranis e kaiowas (MORAIS, 2017; INDRIUNAS, 2018). Ainda sob o antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), vários territórios se tornaram tekoás kaiowas. Essas localidades eram alvos fáceis de posseiros e fazendeiros de seu entorno, que constrangiam os indígenas a trabalhar em condições análogas à escravidão. Além de trabalho forçado, muitos eram espancados, humilhados e expulsos de suas terras, situação que os fazia ir viver com parentes em outras áreas, seja no Brasil ou no Paraguai (FAUSTO, 2000). Muitas dessas populações se tornaram errantes devido à enorme pressão que sofreram; o ponto culminante foi nos anos 1970, durante a ditadura militar (1964-1985), quando foram continuamente expulsos de suas áreas. Esse processo não só contribuiu para o sentimento de suas lutas, mobilizando as lideranças kaiowas, como também possibilitou a sensibilização para sua precária situação diante de seu desatino, o que ocasiona, até hoje, muitos suicídios entre os mais jovens, principalmente do sexo masculino (AZEVEDO, 1981; BARBOSA, 1984; MORAIS, 2017). Muitos kaiowas, em função do lugar de sepultamento de seus parentes, da memória de seus mortos e do espaço que a morte ocupa em sua tradição, retomam sua luta, assimétrica, para reaver seus territórios ancestrais. Lutam contra interesses da sociedade nacional, incluindo aqui a presença e inação do Judiciário, de militares da reserva, policiais, fazendeiros e seus pistoleiros, que se organizaram para a derradeira expulsão de kaiowas e guaranis de seus territórios, não importando o sangue que derramarão para seus intentos (MORAIS, 2017). O secretário-geral da Anistia Internacional Salil Shetty, em visita aos kaiowas, teria dito: “Tive a sensação de estar em um lugar onde os direitos humanos não existem” (BOVO, 2019). De acordo com membros do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), há um genocídio silencioso nas terras em disputa. Representantes dos poderes locais destroem sistematicamente os guaranis e aos kaiowas em nome de seus interesses econômicos. A “retomada” das terras ancestrais pelos obstinados kaiowas e guaranis do Mato Grosso do Sul, mesmo diante da enorme violência da qual são alvos, ocorre por meio do desafio de se lançar à morte e a sua relativa ressignificação. Isso implica dizer que “o morto”, para os kaiowas, consiste na saída das almas que ali habitavam enquanto vivia. Uma dessas almas, a angue, insistiria em permanecer perto do corpo do falecido, forçando uma “convivência” com seus parentes ainda vivos, o que traz enormes riscos a esse contato com o “mundo dos homens” e a ordem natural das coisas. Tradicionalmente, os kaiowas cercam a cova do recém-falecido e abandonam seus pertences e sua casa com o objetivo de se desvencilhar da angue, forçando-a a seguir seu caminho natural, fora do mundo dos vivos, em uma outra tekoá (MORAIS, 2017). Um dos aspectos motivados pela mudança que tamanha mortandade traz aos kaiowas é o surgimento do maluco’i, figura jovem kaiowa que desrespeita as regras dos anciães e das lideranças políticas arriscando-se no mundo dos brancos ao realizar ações repreensíveis. Os maluco’i e guerreiros são descritos como portadores de uma angue distinta, muito mais agressiva e perigosa (MORAIS, 2017). Muitas mortes aconteceram devido àquilo que Morais (2017) chama, propriamente, de “guerra fundiária” contra os kaiowas. Todavia, é um conflito no mínimo estranho, porque somente os indígenas enterram seus parentes e vivem nas beiras das estradas e rodovias sul-mato-grossenses. Não são nômades, mas se tornaram verdadeiros refugiados de suas terras ancestrais, onde os diferentes órgãos de Estado, “empresários” e até religiosos – as elites locais – tomaram para si, sem nenhum pudor, a realização do maior genocídio indígena das últimas décadas. image7.jpeg image1.jpeg image2.jpeg image3.jpeg image4.jpeg image5.jpeg image6.jpeg