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COMO (NÃO) EDITAR UMA SÚMULA: O DESAFIO DO TRABALHO COM
SÚMULAS NA SISTEMÁTICA DE PRECEDENTES NO NOVO CPC E O CASO
DA SÚMULA 77 DO TRT4
How (not) to edit a summary of judicial precedent: the challenge of working with
precedents in the New CPC’s systematic and the TRT4 Summary of Judicial Precedent 77
case
Revista de Processo | vol. 265/2017 | p. 393 - 418 | Mar / 2017
DTR\2017\427
Gustavo Martins Baini
Mestre em Direito pela UFRGS. Especialista em Direito Público. Analista do Ministério
Público da União. Assessor de Procurador do Trabalho. gmbaini@yahoo.com.br
Área do Direito: Processual; Trabalho
Resumo: A inauguração de um novo ordenamento processual não ocorre com a mera
promulgação de um código, mas com a adesão de seus atores às suas aspirações. O
Novo Código de Processo Civil tem, dentre suas maiores pretensões de inovação, o
objetivo de implantar no judiciário brasileiro uma cultura de trabalho com precedentes
que privilegie, a uma, a racionalidade e, a duas, a segurança jurídica. Para alcançar esse
fim, contudo, além de operar com honestidade os dispositivos legais, é necessário
aprender um novo método de trabalho. Este artigo apresenta algumas características do
trabalho com súmulas de jurisprudência que têm sido ignoradas pelos seus operadores –
com prejuízo tanto à racionalidade como à segurança – utilizando como exemplo um
caso envolvendo a aplicação da Súmula 77 do Tribunal Regional do Trabalho da 4.ª
Região.
Palavras-chave: Teoria dos precedentes - Súmula - Métodos de trabalho - Técnicas de
enunciação - Novo CPC.
Abstract: The opening of a new procedural system doesn’t come with the mere
promulgation of a statute, but with the accession of its actors to its aspirations. The New
Código de Processo Civil has, among its greatests purpose of innovation, the aim of
implanting a culture of working with precedents in Brazilian Judiciary that promotes, at
once, both rationality and legal security. To achieve this objective, although, beyond
working honestly with the statutes, one needs to learn a new work method. This article
presents a few summary of judicial precedents characteristics working that has been
ignored by its actors – damaging both rationality and legal security – using, as an
example, one case involving the enforcement of the Tribunal Regional do Trabalho da 4.ª
Região Summary of Judicial Precedent 77.
Keywords: Precedents theory - Summary of Judicial Precedent - Working methods -
Enunciation techniques - New CPC.
Sumário:
1 Introdução - 2 Do precedente à jurisprudência e da jurisprudência à súmula:
elaborando o enunciado linguístico que exprime a ratio decidendi - 3 Como uma súmula
pode acender um conflito que pretendia apaziguar: o caso das “Lojas Cabral”, o
fracionamento das férias e a Súmula 77 do TRT4 - 4 Conclusão - 5 Bibliografia
1 Introdução
Lidar com o direito jurisprudencial (direito sumular, política judiciária, teoria do
precedente, teoria da decisão judicial etc.) envolve tantas variáveis (jurídicas e
extrajurídicas) que tornam a tarefa tão difícil de aprender mediante o conhecimento de
teorias quanto seria aprender a andar de bicicleta através de livros.1
Entretanto, se a jurisdição se pretende solidamente fundamentada, e se a doutrina
Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho
com súmulas na sistemática de precedentes no novo
CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4
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intenciona servir de alguma coisa, é preciso conjugá-las na máxima medida.
Jurisdição e doutrina devem informar-se mutuamente, reconstruindo uma à outra. Com
efeito, para Castanheira Neves somente se poderá chamar “jurisprudência” esse
contínuo devir de construção e reconstrução do discurso do direito, que não é bipartido,
mas uno, onde um não é caudatário do outro, mas entre si são complementares e
globalizantes. “Mais do que de dois modos constituintes, a jurisdição e a doutrina,
deverá falar-se de um modo constituinte global, a jurisprudência – ou então de
Juristenrecht ou de ‘direito jurisprudencial’.” 2 Pelo ideal interativo entre doutrina e
jurisdição, atuando como em um círculo virtuoso em que a cada volta há progresso em
relação a ambos, o sistema jurídico pode ser chamado de um sistema de “reconstrução
dialética”.3
Com a entrada em vigor do Novo CPC, o domínio das técnicas relacionadas aos
precedentes judiciais passou a ser habilidade fundamental ao operador do Direito. Para
tanto, não obstante existam nuances que só se apreendam na praxis (como andar de
bicicleta), é imprescindível submeter-se o que já se tem construído ao crivo crítico da
ciência, de modo a aprimorar o processo, qualificar seus atores e, se possível,
reconstruí-lo melhor.
O presente ensaio visa a analisar um caso concreto – o da Súmula 77 do TRT-4.ª Reg. –
à luz da Teoria dos Precedentes e diante de uma controvérsia jurídica específica
enfrentada pela Procuradoria Regional do Trabalho da 4.ª Região.
Na primeira parte, estudar-se-ão alguns elementos da Teoria dos Precedentes para
tentar compreender como o Novo CPC pretende aplicá-la como ferramenta de Unidade
do Direito e de efetividade do processo, especificamente quanto à edição e
operacionalização com súmulas de jurisprudência predominante.
Na segunda parte será exposto o caso concreto: a problemática em que se insere a
Súmula 77 do TRT4, a controvérsia jurídica suscitada e o modo com que ela contribuiu
para o seu agravamento, expondo-se alguns problemas no método utilizado para
editá-la.
Através da sua análise a partir do caso concreto apresentado, procurar-se-á demonstrar
que a aludida Súmula é um bom exemplo do mau uso dessa ferramenta judiciária, por
não ter sido observadas técnicas fundamentais de redação e de filtragem de precedentes
e por ter sido descurado o telos das súmulas de jurisprudência predominante.
Não se pretende menosprezar a zelosa e bem-intencionada atuação do Tribunal Regional
do Trabalho da 4.ª Região4 nem esgotar o tema quanto ao Direito Sumular. A intenção é
fomentar o debate sobre a questão geral da operação com súmulas de jurisprudência e
chamar atenção para o cuidado que se deve ter, tanto ao editá-las quanto ao aplicá-las,
especialmente em tempos em que o Novo CPC traz consigo o afã de ver-se totalmente
implementado nos corredores forenses, pressionando os operadores a realizá-lo, muita
vez, com desaconselhável precipitação.
2 Do precedente à jurisprudência e da jurisprudência à súmula: elaborando o enunciado
linguístico que exprime a ratio decidendi
Com a entrada em vigor do Novo CPC, um tema que vinha sendo crescentemente
debatido em sede doutrinária e jurisprudencial ganha foros legislativos. A vantagem de
se discutir sobre precedentes agora é que temos algo mais concreto, um ponto comum
de referência a nos reportar e a partir do qual construir. A desvantagem são os
incontáveis problemas conceituais e sistemáticos legados pelo legislador à doutrina para
solucionar.
Por exemplo, o art. 926 do Novo CPC5 adere inadvertidamente a uma específica
concepção de Direito ao conclamá-lo à “integridade”, não obstante não tenha sido
precedido por debate algum sobre um dos mais espinhosos temas em Teoria do Direito.6
Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho
com súmulas na sistemática de precedentes no novo
CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4
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O dispositivo também impõe deveres aos “tribunais”, indistintamente, sem atentar para
a diferença de função entre os tribunais ordinários e extraordinários.7 Além do mais, o
dispositivo trata quase indiscriminadamente os conceitos de “súmula”, “jurisprudência” e
“precedente”.
Súmula, jurisprudência e precedente são palavras que já circulavam entre os operadores
do Direito antes da entrada em vigor do Novo CPC. A lei não estabeleceu os significados
dessas expressões. Cabe, pois, buscar compreendê-las.
2.1 O que é um precedente?
Embora o precedente decorra de decisão judicial, esses conceitos não se confundem.
Para que uma decisão judicial se torne um precedente, ela deve ser construída com
determinadas características que a dotem de “potencialidade dese firmar como
paradigma para a orientação dos jurisdicionados e dos magistrados”.8 Nesse sentido,
precedente é a decisão judicial que “enfrente todos os principais argumentos
relacionados à questão de direito posta na moldura do caso concreto”.9
Neil McCormick demonstra como uma decisão judicial pode tornar-se um precedente e
como aplicá-lo a casos futuros, expondo o tipo de raciocínio e argumentação jurídica de
que o julgador deve se valer.10
Para tanto, McCormick parte do conceito de justiça formal, de Rawls, segundo o qual se
deve tratar casos semelhantes de modo semelhante, e casos diferentes de modo
diferente, dando a cada um o que lhe é particularmente devido.11
A partir desses pressupostos, McCormick afirma que “[o] tribunal que hoje decide um
caso específico entre indivíduos deveria levar em conta seu dever, pelo menos seu dever
inicial, de decidir o caso em termos compatíveis com decisões anteriores sobre as
mesmas questões ou questões semelhantes. No mínimo, a justiça formal exige que,
exceto por fortes razões, ele não decida o caso atual de uma forma diferente da adotada
em suas decisões anteriores em casos semelhantes. Ao decidir esse caso, o tribunal não
terá então o dever – de igual importância – de levar em conta o precedente que estará
estabelecendo para casos ainda por surgir? O dever que tenho de tratar casos
semelhantes de modo semelhante implica que devo decidir o caso de hoje com
fundamentos que eu esteja disposto a adotar para a decisão de casos semelhantes no
futuro, exatamente tanto quanto implica que hoje eu devo levar em consideração
minhas decisões anteriores em casos semelhantes do passado”.12
E daí conclui que, para que casos diferentes possam ser comparados entre si, eles
precisam ser tratados a partir de premissas universalizáveis. Isto é, para além de
ponderar as situações particulares das partes e da controvérsia que as une, o juiz deve
raciocinar a partir das categorias universais que representam. E assim o fundamento (
ratio decidendi) do julgamento ultrapassa as peculiaridades do caso concreto, sendo
passível de aplicação a outros casos. Não apenas “João”, mas “empregados em contrato
de experiência”. Não apenas “Armazém X”, mas “pequenas mercearias”. Não apenas
“aquele chocolate furtado”, mas “pequenos crimes contra o patrimônio”. Assim, o juiz
poderá julgar sobre a validade da despedida por justa causa de João decorrente do furto
de chocolate no Armazém X, com a força de uma decisão cujos fundamentos valham
para decidir sobre crimes de bagatela praticados por empregados em contrato de
experiência contra pequenas mercearias. Ao universalizar as premissas, o juiz depara
com argumentos que extrapolam os limites do caso concreto e se vê obrigado a
enfrentá-los, um a um, tornando a decisão passível de aplicação para o futuro, em casos
essencialmente semelhantes, ainda que com distinções acidentais.
Se dessa decisão for possível extrair uma razão necessária e suficiente para resolver
uma questão jurídica relevante para a solução de outro caso, ter-se-á, então, a ratio
decidendi (ou holding, como preferem os anglo-saxões). E, se a decisão contiver uma
ratio decindendi, ter-se-á um precedente.13
Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho
com súmulas na sistemática de precedentes no novo
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As razões pelas quais os precedentes devem ou não ser seguidos e os limites entre a
aptidão persuasiva e a vinculativa dos precedentes não serão esmiuçados aqui.14
2.2 Dos precedentes à jurisprudência
Pode-se afirmar com certa segurança que, na tradição brasileira, uma decisão isolada,
por mais apta que esteja para valer sobre casos futuros, raramente constrange os juízes
a segui-la, exceto, talvez, e cada vez mais, as decisões do Supremo Tribunal Federal.15
“Valor maior é atribuído ao precedente reiteradamente reproduzido em decisões dadas
em casos futuros e que constitui, pois, jurisprudência.”16 Com efeito, em nossa cultura,
para que um precedente seja relevante, espera-se a sua reiteração constante, repetição
homogênea e quantitativa. E, quando isso ocorre, passamos a denominá-lo de
“jurisprudência”.
Jurisprudência é, assim, um conjunto de precedentes que sinaliza o entendimento de um
tribunal a respeito de um determinado tema. E se a jurisprudência estiver firme e
constante o suficiente – e especialmente se houver dúvida ou divergência a seu respeito
na instância inferior e entre os demais operadores do Direito – o tribunal pode
expressá-la através de uma fórmula textual linguística a que denominamos “súmula”.
Com efeito, a súmula “supõe sedimentação de decisões, repetição, uniformidade de
entendimento”.17
2.3 Da jurisprudência à súmula (mas antes: os prejulgados)
A súmula é, pois, “o enunciado normativo (texto) da ratio decidendi (norma geral) de
uma jurisprudência dominante, que é a reiteração de um precedente”.18 Ou, dito de
outro modo (e há muito mais tempo), “o enunciado da súmula representa o compêndio
de uma linha de precedentes”.19
Assim, embora constituam fenômenos distintos, percebe-se uma ligação muito forte e
evolutiva entre esses três conceitos, partindo-se do precedente, passando pela
jurisprudência e chegando-se à súmula. Não é à toa que a palavra súmula deriva do
vocábulo latino “ summa, que significa auge, cume, o ponto mais alto, o grau mais
elevado, supremo. Tem também o sentido de soma, formada de reunião ou adição das
partes, o conjunto”.20
Antecessores das súmulas de jurisprudência foram os velhos assentos da Casa de
Suplicação, regulados pelas Ordenações Filipinas (Livro I, Tomo V, § 5.º) e sucedidos
pelos prejulgados (art. 861 do CPC de 1939). Aliás, com regulação específica e mais
avançada sobre esse instrumento, o Judiciário Trabalhista foi profícuo na sua utilização,
sendo notória a sua tradição em trabalhar com o direito sumular. O art. 902 da CLT
(LGL\1943\5), revogado em 1982 (mas causador de polêmica desde muito antes disso),
fixava a competência do TST para estabelecer prejulgados, os quais vinculavam os
Tribunais Regionais do Trabalho e Juízes do Trabalho.
Os prejulgados trabalhistas decorriam de incidente processual suscitado por Ministro do
TST que, diante de uma tese jurídica (com ou sem caso concreto), vislumbrava uma
possível divergência interpretativa por parte dos Tribunais Regionais, submetendo-a ao
Tribunal Pleno, o qual fixava a interpretação a ser adotada vinculando todo o Judiciário
Trabalhista.21 Os prejulgados não consistiam em extrações dos precedentes, porque não
dependiam de casos julgados. Tinham função eminentemente interpretativa e
preventiva, com vocação para conduzir a jurisprudência nos casos futuros. Nisso os
prejulgados se distinguem das súmulas, pois, embora estas também se voltem para o
futuro, nascem com base na reiteração de julgamentos passados. Não para formar
jurisprudência, mas como resultado dela.22 As súmulas são o resultado de julgamentos
de casos concretos. Os prejulgados eram o próprio julgamento, não de casos, mas de
teses jurídicas em abstrato, antecipando-se aos casos concretos (daí o nomen iuris).
Com efeito, ao contrário dos prejulgados, as súmulas de jurisprudência predominante
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com súmulas na sistemática de precedentes no novo
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nasceram menos com a função de fonte do direito e mais como “método de trabalho”,
visando precipuamente a “ordenar e facilitar a tarefa judicante”.23 Seus destinatários
eram, inicialmente, os próprios juízes.
Com o tempo, porém, as súmulas passaram a ser vistas “de fora”, isto é, pelos outros
atores jurídicos – inicialmente, ainda no nível contencioso e, posteriormente, já no nível
consultivo, formando-se uma cultura de crescente confiança na estabilidade da
jurisprudência sumulada, não apenas resolvendo lides, mas prevenindo-as.
Sob esse aspecto, o Novo CPC inova consideravelmente “ao reconhecer as súmulas como
guias para interpretação do direito para o sistema de administraç��o da Justiça Civil como
um todoe para a sociedade civil em geral”,24 tornando-a vinculativa (ou, no mínimo,
autorizativa) em muitos casos25 e aumentando muito o constrangimento à sua
observância.26
E, devido a essa ampliação, o Código previu o dever dos Tribunais de, ao editar
enunciado de súmula, “ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram
a sua criação” (art. 926, § 2.º). Significa dizer que as súmulas não resultam do debate
sobre a opinião dos juízes a respeito de uma tese jurídica. Elas resultam do debate sobre
o modo como exprimir linguisticamente a ratio decidendi de um conjunto de decisões já
tomadas pelos juízes.
2.4 Como se elabora o enunciado de uma súmula?
Essa contenção da criatividade dos tribunais não é à toa. A função precípua do Judiciário
é aplicar o Direito aos casos da vida real levados ao seu exame. Mesmo os tribunais
extraordinários, cujo fim primeiro é a promoção da Unidade do Direito (seja através do
controle, seja através da interpretação),27 fazem-no com vistas a um incremento
qualitativo de justiça nos julgamentos dos casos concretos.
Desse modo, embora a formação de um precedente se dê pela universalização das
premissas concretas de um caso a ser julgado, a tarefa judicial consiste em dissolver a
controvérsia jurídica para resolver o caso concreto. Mesmo quando abstrai o caso para
formar a opinio iuris, o juiz volta aos fatos para julgar o caso. E somente nesse retorno
aos fatos, medindo a justiça de seu julgamento, é que o juiz pode confirmar se a tese
jurídica formada no movimento anterior é adequada. Isso significa que a universalização
das premissas do caso julgado, feita com vistas a permitir a formação de um precedente
e voltar-se para os casos futuros, deve ser limitada.
O “aspecto prospectivo do precedente” 28 nunca pode suplantar a justiça do caso
concreto em que ele se forma. É que, diferentemente do legislador (ou do Pleno do TST,
ao editar os antigos prejulgados), “o juiz constrói o direito de baixo para cima (
bottom-up) e o legislador, ao contrário, de cima para baixo (top-down)”.29 As
Instituições Judiciárias que respeitam a divisão de funções no Estado Democrático
devem reconhecer que a contribuição judicial para a construção do sistema jurídico não
decorre dos debates em abstrato sobre o que é justo e o que não é, mas, sim, dos casos
da vida cotidiana judicializados. E, para que tal contribuição não resulte na atomização
do Direito em partículas irreconciliáveis, a atuação judicial deve atentar para a
necessidade de coerência e coesão dos julgamentos.
É natural ao ser humano esperar que os atos praticados no passado sejam repetidos
quando as mesmas circunstâncias se apresentarem. Como disse Frederick Schauer,
“confiar em um precedente é parte da vida de um modo geral”.30 Essa expectativa, no
entanto, precisa ser treinada e, no caso da confiança na jurisprudência, pode ser
facilitada ou dificultada, dependendo de como atuarem os juízes.
Imagine-se o exemplo de um pai que deixa a filha ficar acordada até às 22 horas a partir
dos seus 9 anos, e dessa decisão extraia-se o enunciado “Somente é permitido ficar
acordado até as 22 h a partir dos 9 anos de idade”. Esse enunciado poderia ser usado
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com súmulas na sistemática de precedentes no novo
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com muita propriedade pelo filho mais novo com o pai, quando alcançar essa idade.
Outra situação seria o pai permitir à filha usar salto alto a partir dos 13 anos e enunciar
que “O salto alto é permitido a partir dos 13 anos”. Neste caso, talvez o filho tivesse
mais dificuldade para fazer valer o precedente.31
Se as circunstâncias fáticas que motivaram a decisão do pai estivessem expressas nos
enunciados acima, as dificuldades sobre a sua aplicabilidade cairiam consideravelmente.
Se os enunciados deixassem mais claros os precedentes, o filho saberia com que contar
ao atingir determinada idade (previsibilidade e confiança), bem como saberia o modo de
argumentação necessário para ver aplicado o enunciado de que pretenda se valer.
Então, que cuidados os tribunais devem ter ao enunciar em súmulas os seus
precedentes?
Como visto, as súmulas são “um texto conciso criado pelo tribunal que resume o
entendimento de suas próprias decisões”.32 Elas não são resultado da interpretação do
ordenamento normativo ou de questões jurídicas. Elas são resultado da interpretação do
tribunal sobre suas próprias decisões. As súmulas são o retrato como o próprio tribunal
considera a sua jurisprudência. Sem entrar no mérito quanto ao conteúdo do que se está
retratando, é possível fotografar bons e maus retratos, dependendo do enquadramento,
iluminação, foco etc.
A contenção dos tribunais às circunstâncias fáticas dos precedentes (art. 962, § 2.º, do
Novo CPC) serve de guia tanto para a aplicação das súmulas como, consequentemente,
para a sua criação.
É que, se as súmulas resumem a jurisprudência, e se a jurisprudência resulta dos
precedentes, então a essência destes deve estar retratada nas súmulas. A essência do
precedente, como dito, é a sua ratio decidendi, a razão necessária (aquela “sem a qual
não”) e suficiente (aquela que, estando presente, basta) para fundamentar a decisão.
Mas a razão jurídica decisória só existe vinculada aos fatos sobre os quais ela se produz.
“A ratio decidendi envolve a análise da dimensão fático-jurídica das questões que devem
ser resolvidas pelo juiz.”33
É por isso que a dimensão fática que compõe a ratio decidendi deve estar minimamente
identificada no enunciado da súmula que a irá resumir. Embora isso contrarie a maciça
maioria das súmulas produzidas no Brasil, é um erro ignorar o aspecto fático e enunciar
apenas o aspecto jurídico, porque isso dificulta a sua aplicação.
Outro componente da técnica de redação de súmulas, além da clareza e da concisão, é a
concretude do enunciado, a necessidade de evitar termos imprecisos ou genéricos.
“A vagueza na proposição normativa jurisprudencial é um contrassenso: nascida a partir
da necessidade de dar concretude aos termos vagos, abertos, gerais e abstratos do
direito legislado, o enunciado da ratio decidendi, tal como se vem dizendo, deve ser
formulado com termos de acepção precisa, tanto quanto possível, para que não crie
dúvidas quanto à sua aplicação em casos futuros.”
2.5 Conclusão parcial
Com efeito, conclui-se que as súmulas são enunciados linguísticos que exprimem a ratio
decidendi de um conjunto de precedentes que formam a jurisprudência de um tribunal. A
finalidade é deixar explícita essa jurisprudência, facilitando o trabalho dos juízes e das
partes e prevenindo litígios pela adequação extrajudicial das pessoas a essa orientação.
Sua expressão deve conter minimamente os elementos fáticos que identifiquem o seu
fundamento e seu âmbito de aplicação, sendo elaborados com o máximo de concretude
possível e evitando-se, tanto quanto puder, termos genéricos e imprecisos.
3 Como uma súmula pode acender um conflito que pretendia apaziguar: o caso das
“Lojas Cabral”, o fracionamento das férias e a Súmula 77 do TRT4
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com súmulas na sistemática de precedentes no novo
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A Procuradoria Regional do Trabalho da 4.ª Região recebeu, no fim de 2015, uma
denúncia de que determinada empresa (doravante tratada pelo pseudônimo “Lojas
Cabral”) vedava a concessão de 30 dias ininterruptos de férias a seus empregados,
impondo-lhes o fracionamento do período.
Instaurado o inquérito civil, as Lojas Cabral apresentaram regulamento interno da
empresa relativo à concessão de férias, vigente desde 2013, no qual consta que os
“gestores em geral (gerentes, supervisores, líderes, coordenadores, especialista, trainee,
instrutor de treinamento e multiplicador) e compradores” têm duas opções para usufruir
suas férias: a primeira, 20 dias de férias e 10 dias de abono pecuniário; a segunda, 2
períodos (15 dias + 15 dias).
Requisitada, a empresa também apresentou avisos de férias de todos os seus“gestores
em geral” do período de 2012 a fevereiro de 2016. Analisados mais de 500 recibos de
férias, constatou-se que até 2013, quando o regulamento da empresa passou a viger,
vários gestores usufruíram 30 dias ininterruptos de férias e não mais a partir de então.
Constatada a incompatibilidade do regulamento das Lojas Cabral com a lei, foi proposto
o ajustamento da conduta, tendo a empresa declinado a oportunidade.
Ao tentar entender os motivos pelos quais as Lojas Cabral se negaram a assinar o TAC
quando sua conduta era tão evidentemente irregular, chegou-se, em pesquisa
jurisprudencial sobre o tema, à recente Súmula 77 do TRT4, a qual poderia, juntamente
com outros fatores, levar a empresa a acreditar que sua conduta não era, assim, “tão
irregular”.
3.1 Sobre o direito a férias e o fracionamento do período de gozo
Não é objeto do presente ensaio discorrer sobre o direito material ou sobre o direito ao
gozo de férias. Tampouco se pretende questionar, pelo menos não com a profundidade
necessária, o conteúdo da Súmula 77 do TRT4, que trata sobre o assunto. Entretanto, é
necessária uma breve exposição para compreender minimamente a controvérsia
decorrente do seu enunciado.
Não é preciso discorrer muitas laudas para afirmar que o direito ao gozo de férias é uma
conquista histórica dos trabalhadores e está diretamente relacionado à saúde física e
mental que o descanso de uma rotina de trabalho pode proporcionar. O convívio familiar
e social, a prática de outras atividades, produtivas ou não, o ócio, o tempo disponível
para amigos, família, lazer, cultura, esporte, viagens, tudo isso promove o
desenvolvimento da personalidade humana em vários aspectos.
Da mesma forma, o direito ao trabalho, à produção, à participação ativa na
transformação do ambiente, à contribuição para uma sociedade melhor também
contribui para desenvolver atributos da personalidade humana.
Desse modo, e tendo em vista também considerações de índole econômica, é preciso
encontrar um equilíbrio entre o direito ao trabalho e o ao descanso.34
No ordenamento jurídico brasileiro, esse equilíbrio está estabelecido nos arts. 129 e ss.
da CLT (LGL\1943\5), os quais instituem ao trabalhador o direito de usufruir 30 dias de
férias a cada período de 12 meses.
A controvérsia suscitada pelo regulamento das Lojas Cabral diz respeito ao modo como
esses 30 dias devem ser usufruídos: se “corridos” ou fracionados.
O art. 134 da CLT (LGL\1943\5) estabelece que as férias serão concedidas, em regra,
“em um só período”, admitindo o fracionamento, em seu § 1.º, “somente em casos
excepcionais”, no máximo em dois períodos, sendo que um deles terá no mínimo 10 dias
ininterruptos.
Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho
com súmulas na sistemática de precedentes no novo
CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4
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Nesse ponto, cabe destacar que a Convenção 132 da OIT, sobre férias anuais
remuneradas, foi internalizada em nosso ordenamento jurídico em 05 de outubro de
1999. Trata-se, portanto, de norma jurídica de mesma hierarquia, regulando a mesma
matéria, promulgada posteriormente – ou seja, lex revocatoria, tecnicamente
prevalecendo ao dispositivo celetista.35
Segundo o art. 8, item 2, da Convenção 132 da OIT, o fracionamento das férias pode ser
autorizado pela autoridade competente ou órgão apropriado de cada país, mas cada
período fracionado “deverá corresponder pelo menos a duas semanas de trabalho
ininterruptos”.
Tem-se, assim, o seguinte regramento relativo ao fracionamento das férias: (a) em
regra, as férias serão usufruídas em 30 dias ininterruptos; (b) excepcionalmente, é
autorizado o fracionamento em no máximo dois períodos; (c) a fração mínima de cada
um desses períodos é de duas semanas, segundo Convenção 132 da OIT, ou 10 dias,
segundo art. 134 da CLT (LGL\1943\5).36
3.2 Excepcionalidade do fracionamento e adaptação (ou flexibilização) das normas
trabalhistas ao tempo contemporâneo
Como todo regramento jurídico, a regulamentação do trabalho não está imune às
transformações históricas que, nas sociedades contemporâneas, são observadas em
grande aceleração. No caso trabalhista, especificamente, as questões econômicas
(muitas vezes rapidamente passageiras) imprimem grande pressão ao ordenamento
jurídico.
Há muitos anos o Brasil vem debatendo sobre a flexibilização das garantias trabalhistas.
37 Atualmente, certas flexibilizações pontuais vêm sendo percebidas pelos trabalhadores
como algo positivo. Algumas delas vêm até mesmo sendo contempladas em negociações
coletivas, a despeito de sua duvidosa legalidade, como a redução do intervalo
intrajornada para o trabalhador poder encerrar o expediente mais cedo, a realização de
horas extras durante a semana para não precisar trabalhar no sábado e até mesmo o
fracionamento das férias em mais do que dois períodos.38
Se isso é, efetivamente, positivo ou não para a sociedade como um todo, trata-se de
problema bastante mais complexo que não se pretende esmiuçar. Relembre-se apenas
que, como se disse, as questões econômicas são muitas vezes bastante efêmeras, e
talvez não seja ideal fazer ajustes definitivos com base nelas.39 Além disso, o elo interno
que liga a maioria das flexibilizações comumente aceitas pelo trabalhador é,
nitidamente, uma concepção de ética individualista segundo a qual cada um deve ter
âmbitos de autonomia estanques e alargados para conduzir sua própria vida (“cada um
no seu quadrado”), sendo controverso se isso é positivo ou não, do ponto de vista
macrossocial, devido aos efeitos bastante profundos que tais regramentos pontuais
produzem, quando levados à escala maior, na construção da moralidade da comunidade,
do compartilhamento de valores e do senso de pertencimento.40
De qualquer modo, seja por que motivo for, enquanto muitos trabalhadores preferem
afastar-se do trabalho apenas uma vez por ano, mas por um longo período de tempo,
muitos outros têm preferido fazer pausas mais curtas, mas mais frequentes. Isso implica
em que muitos empregados, segundo a experiência tem demonstrado, pedem aos
empregadores para fracionar o período de férias, apenas por preferências pessoais. Sem
a “excepcionalidade” exigida pelo art. 132, § 1.º, da CLT (LGL\1943\5), tal
fracionamento pode ser considerado irregular, em tese. Eventualmente desligados do
emprego, alguns postulavam a anulação do fracionamento e o pagamento da “dobra das
férias”, dada a falta de demonstração da excepcionalidade. Trata-se, como se vê, de
manobra ardilosa que constitui abuso de direito por parte dos empregados.
3.3 A Súmula 77 do TRT4
Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho
com súmulas na sistemática de precedentes no novo
CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4
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Aplicando-se essa reflexão ao tema da presente controvérsia, vem à luz o disposto na
recente Súmula 77 do TRT-4.ª Reg.: “O fracionamento das férias, em períodos não
inferiores a 10 (dez) dias, é válido, ainda que não demonstrada a excepcionalidade a que
alude o artigo 134, § 1.º, da CLT (LGL\1943\5)”.
Em suma, o enunciado indica que dos dois requisitos legais para o fracionamento das
férias – excepcionalidade e fração mínima de 10 dias –, apenas a inobservância do
segundo pode invalidar o fracionamento.
Trata-se de um belo exemplo das “flexibilizações” acima tratadas. É claro que muitos
trabalhadores preferem distribuir em mais ocorrências o gozo de suas férias, usufruindo
de pausas mais frequentes, ainda que isso lhes imponha a fruição de termos mais
curtos. É sabido, como dito, que em muitos casos o próprio trabalhador pede para
fracionar as férias, ainda que não haja nenhuma excepcionalidade – reconheça-se que a
legislação, nesse ponto, quando impede o fracionamento por simples vontade do
trabalhador, beira o limite entre o protecionismo jurídico e o paternalismo moral,
combatido pela ideologia libertária acima referida.
Tendo isso em conta, o TRT4, habituado à vanguarda em seus posicionamentos, atualiza
as regulações das relações de trabalho para permitir o fracionamento das férias mesmo
quando não demonstradaa excepcionalidade exigida por lei.
Apenas para registro, é preciso lembrar que a manifestação de vontade do trabalhador,
dentro da relação de emprego, nem sempre se dá com liberdade de consentimento. É
certo que muitos empregadores obrigarão seus empregados a fracionar as férias mesmo
contra a sua vontade, obtendo facilmente uma declaração de próprio punho de que o
fracionamento se deu a pedido do obreiro. Mas essa ressalva fica apenas a título de
reflexão.
3.4 Distinguishing: o (grande) esforço argumentativo decorrente da má-técnica de
redação da Súmula
A cultura dos operadores do Direito no Brasil ao trabalhar com súmulas é, de uma
maneira geral, baseada no silogismo e raciocínio dedutivo.
Se analisarmos a norma interna das Lojas Cabral à luz da Súmula 77 do TRT4,
concluiríamos, à apressada vista, que se trata de postura protegida pela jurisprudência:
se não é necessário demonstrar a excepcionalidade que justifique o fracionamento,
bastando que o período fracionado não seja inferior a 10 dias, então a norma interna é
conforme ao entendimento do TRT4.
O ponto do MPT ao propor o ajustamento da conduta das Lojas Cabral não era discutir
se, para fracionar férias, é preciso ou não demonstrar a excepcionalidade – e a rigor, é
isso que está resolvido pela Súmula 77. O ponto era a obrigatoriedade do fracionamento
das férias imposto pelas Lojas Cabral. Ao contrário de simplesmente facultar ao
trabalhador que fracione suas férias mesmo sem excepcionalidade, o que estaria de
acordo com a Súmula 77, o regulamento das Lojas Cabral obriga os trabalhadores a
fracionar suas férias, concedendo-lhe, como única alternativa, a transformação de parte
delas em abono pecuniário.
Ou seja, em nenhuma hipótese, ainda que seja de interesse do trabalhador, será
permitida a fruição de 30 dias consecutivos de férias, não obstante se trate de direito
subjetivo do empregado, disposto no caput do art. 134 da CLT (LGL\1943\5).
O ajustamento de conduta proposto pelo Ministério Público do Trabalho às Lojas Cabral
não pretendia abolir a possibilidade de fracionamento das férias, ainda que sem
excepcionalidades (como preconiza a Súmula). Pretendia, isso sim, abolir a proibição da
fruição de 30 dias contínuos dos gestores em geral estabelecida pelo regulamento da
empresa. Ou, dito de maneira inversa, viabilizar que os gestores em geral usufruam,
caso queiram, de 30 dias ininterruptos de férias, como lhes garante o art. 134 da CLT
Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho
com súmulas na sistemática de precedentes no novo
CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4
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(LGL\1943\5).
Observe-se o esforço argumentativo necessário para distinguir o regulamento das Lojas
Cabral da incidência da Súmula 77 do TRT4. Talvez a disposição das circunstâncias
fáticas que motivaram a edição da Súmula diminuísse o ônus argumentativo e facilitasse
sua compreensão e aplicação.
3.5 Cinco problemas com o método de trabalho que resultou na Súmula 77 do TRT4
Como dito na primeira parte deste trabalho, o art. 926, § 2.º, do Novo CPC restringe a
criatividade dos tribunais ao dispor que, “ao editar enunciados de súmula, os tribunais
deverão ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação”
(art. 926, § 2.º).
A Resolução Administrativa 34/2015 do TRT4, que aprovou a Súmula 7, aponta quatro
julgados como precedentes.
No RO 0000127-36.2013.5.04.0004, a situação fática é de que a trabalhadora
comprovadamente gozava de férias em períodos fracionados de 10 dias,
considerando-se “infração meramente administrativa” a falta de demonstração da
excepcionalidade, sem força para invalidar a concessão fracionada. Não há nenhuma
menção relevante ao plano fático neste julgado.
No RO 0001093-63.2012.5.04.0382, as férias fracionadas se deram em razão de
alegadas peculiaridades e sazonalidade do mercado calçadista, havendo previsão em
normas coletivas para tal fracionamento (este processo está sobrestado aguardando
julgamento de recurso de revista representativo da controvérsia ao tempo do
encerramento deste artigo, justamente discutindo a validade de fracionamento das férias
sem demonstração da excepcionalidade).
No RO 0001176-19.2011.5.04.0381 verificou-se que em 3 anos houve o fracionamento
das férias do trabalhador, sempre em períodos de mais de 10 dias. Considerou-se “mera
infração administrativa” o fracionamento sem demonstração da excepcionalidade,
consignando-se que “em determinados setores econômicos, como é o caso da indústria
calçadista, em que existe grande variação na demanda, é razoável admitir o
fracionamento das férias, presumindo-se a situação de excepcionalidade”.
Por fim, no RO 0000079-70.2014.5.04.0383 foi prolatada curtíssima decisão, sem
referência às circunstâncias fáticas, limitando-se a expor o entendimento de que o
fracionamento não é ilegal desde que respeitado o limite mínimo de 10 dias a cada
fração. Chama atenção o fato de que esse caso também envolveu relação de trabalho do
setor calçadista.
Analisando-se os precedentes que fundamentam a edição da Súmula 77 do TRT4
chega-se a cinco problemas.
Primeiro, dois dos assim denominados “precedentes” não delineiam as circunstâncias
fáticas com precisão, mas apenas expõem o entendimento jurídico sobre a necessidade
ou não de demonstrar a excepcionalidade do fracionamento. A falta de exposição mínima
do substrato fático sobre o qual o Tribunal decidiu que o fracionamento das férias era
válido impede a comparação desse julgado com casos futuros, sendo de se questionar se
essas duas decisões podem mesmo ser consideradas “precedentes”, nos termos da
definição exposta no capítulo 2.1 acima.
Segundo, três dos quatro “precedentes” advêm de relação do trabalho dada no setor
calçadista (na verdade, nos três o réu era a mesma empresa desse segmento), sendo
que em dois deles há referência à grande variabilidade da demanda de trabalho, o que
autorizaria o fracionamento das férias. Um deles chegou a referir que essa sazonalidade
criaria uma presunção de excepcionalidade. Além disso, em um desses precedentes
aponta-se a autorização do fracionamento das férias em norma coletiva da categoria do
Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho
com súmulas na sistemática de precedentes no novo
CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4
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setor calçadista. Se três quartos dos precedentes que motivaram a edição da Súmula 77
referem-se a um segmento econômico específico, não seria o caso de limitar o alcance
da Súmula a esse segmento, seguindo as “circunstâncias fáticas dos precedentes que
motivaram sua criação”? Ou ainda, o fundamento (ratio decidendi) para a admissão do
fracionamento das férias sem demonstração da excepcionalidade, nesses casos, não
seria a grande variabilidade da demanda, a sazonalidade econômica? E o fato de haver
previsão em normas coletivas, legitimamente estatuídas pelos sindicatos que
representam as categorias profissional e econômica, não seria fundamento necessário
das decisões que admitiram o fracionamento das férias sem excepcionalidade? Nada
disso constou no enunciado da Súmula.
Terceiro, um dos “precedentes” ainda não transitou em julgado, estando pendente de
julgamento de recurso de revista exatamente a questão sobre a validade do
fracionamento das férias quando não demonstrada a excepcionalidade. Existe um risco
real de o TST reverter o julgamento e considerar inválido o fracionamento das férias pela
falta de excepcionalidade, resultando em que um dos “precedentes” da Súmula transite
em julgado com decisão que a contraria. Um processo cuja decisão final contradiga o
teor da Súmula 77 poderia servir de precedente para a sua edição?
Isso leva ao quarto problema. A jurisprudência do TST é bastante firme em exigir a
demonstração da excepcionalidade do fracionamento das férias para considerá-lo válido.
41 Ou seja, a Súmula 77 do TRT4 está em dissonância com o entendimento amplamente
majoritário do TST. Se a finalidade da edição de uma súmula é, em síntese, aumentar a
segurança jurídica dos sujeitos de direito e a igualdade entreos jurisdicionados, são
atingidos esses objetivos quando a súmula editada contraria a jurisprudência do tribunal
superior, sujeitando todas as decisões proferidas com base nessa súmula ao posterior
controle pela instância extraordinária? A propósito, a jurisprudência do TST oscila entre a
validade e a invalidade do fracionamento quando a relação de trabalho se dá no setor
calçadista do Rio Grande do Sul, em que a sazonalidade da demanda poderia autorizar o
fracionamento,42 não estando firme, ainda, a sua posição, nem mesmo quanto ao que
poderia ser a verdadeira ratio decidendi dos precedentes que motivaram a Súmula 77 do
TRT4.
Aliás, se a definição de súmula é, como se tem dito, a exposição resumida da
jurisprudência do tribunal, então existe um quinto problema. É que, até a edição da
Súmula 77, a jurisprudência do TRT4 oscilava, inclinando-se levemente no sentido de
invalidar as férias fracionadas sem justificativa excepcional. A partir de então, o
acolhimento do entendimento sumulado é praticamente unânime. A Súmula 77 não
retratou, na realidade, a jurisprudência do TRT4 sobre o tema. Ela a inaugurou,
prescrevendo um novo entendimento que, uma vez sumulado, passou a ser adotado.43
Diante dessas considerações, pergunta-se: será adequado a um tribunal editar uma
súmula contrária ao entendimento majoritário do tribunal superior, expondo as partes à
loteria do acesso à instância extraordinária? Se sim, será adequado a esse tribunal editar
uma súmula que não enuncia sua própria jurisprudência predominante? Se sim, o TRT4
se ateve às circunstâncias fáticas dos precedentes que ensejaram a Súmula 77 ao
enunciar os seus termos – ela não deveria ter sido formulada com outra redação,
expondo alguns dos importantes elementos da ratio decidendi de seus precedentes ou,
no mínimo, o substrato fático que autoriza sua aplicação?
Enfim, todas essas circunstâncias apontam que o modo de trabalho que gerou a Súmula
77 mais se assemelha ao trabalho com prejulgados do que com súmulas. Seu enunciado
linguístico expõe apenas um entendimento jurídico a respeito de tese controvertida, sem
explicitar o substrato fático sobre o qual tem aplicabilidade e sem retratar a ratio
decidendi dos precedentes que a motivaram ou a jurisprudência do Tribunal. Entretanto,
os prejulgados há muito não integram o ordenamento jurídico brasileiro, sendo
necessário atuar conforme preconiza o Novo CPC para organizar o trabalho com
precedentes.
Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho
com súmulas na sistemática de precedentes no novo
CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4
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4 Conclusão
Com efeito, o trabalho com súmulas demanda observar os parâmetros legais para o seu
método.
Ao contrário dos antigos prejulgados, as súmulas não podem corresponder a uma
“jurisprudência programática”, a ser implantada no futuro, como se o enunciado servisse
para conduzir o tribunal à aplicação do Direito conforme sua prescrição. Tampouco
podem servir à uniformização da jurisprudência com divergência interna ao tribunal,44
como o moderno Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Seu enunciado deve
corresponder a uma jurisprudência predominante, conforme dispõe o § 1.º do art. 926
do CPC (LGL\2015\1656). Isso significa que a súmula é um “retrato da realidade do
direito jurisprudencial de determinado momento histórico”.45 Também significa que, se a
jurisprudência do tribunal é dividida, a súmula não é a ferramenta adequada para
pacificá-la. Esse é o espaço para o debate argumentativo para construção da unidade do
Direito.
Do mesmo modo, as súmulas não podem corresponder a teses jurídicas desconectadas
do substrato fático ao qual correspondem. Ao contrário, seu enunciado deve descrever
claramente a sua hipótese de incidência, pois “ao editar enunciados de súmula, os
tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua
criação”, conforme dispõe o § 2.º do art. 926 do CPC (LGL\2015\1656). Isso é assim
porque, “se a súmula [for] compreendida como um enunciado geral e abstrato, a sua
leitura pode aproximá-la ou afastá-la, sem qualquer critério racionalmente adequado, do
caso sob julgamento”.46
Ressalte-se, uma vez mais, que não se está, aqui, questionando o acerto ou equívoco do
entendimento sumulado. Na verdade, sequer se está criticando o TRT4, pontualmente. A
Súmula 77 é apenas um caso dentre muitos, utilizado aqui como ilustração para
demonstrar o quanto é incipiente e irrefletido o trabalho com jurisprudência, súmulas e
precedentes nos tribunais brasileiros. Tanto magistrados como advogados têm
dificuldades no seu manuseio, ignorando muitos dos fundamentos da Teoria dos
Precedentes, do Direito Sumular, da Teoria da Decisão Judicial etc. Cabe, agora, com a
promulgação do Novo CPC, refletir sobre o tema, qualificar os seus operadores e evitar
uma aplicação apressada e, consequentemente, equivocada. O êxito da proposta do
Novo CPC depende disso. O caso da Súmula 77 do TRT4 é, como dito, um exemplo claro
sobre o modo como nossos tribunais têm trabalhado com súmulas, a saber, fora dos
parâmetros legais.
Na verdade, o caso da Súmula 77 ilustra que quem tenta operar a maioria das súmulas
no Brasil não consegue se socorrer sequer dos precedentes indicados pelo tribunal para
motivar sua criação, pois “ainda que se possa, em tese, procurar nos julgados que
deram origem à súmula algo que os particularize, é incontestável que, no Brasil, não há
método nem cultura para tanto”.47 Se observado o § 2.º acima referido, a operação com
súmulas há de ganhar eficiência, pois permitirá ao operador demonstrar mais facilmente
se o caso que tem diante de si se enquadra ou não (distinguishing) ao enunciado. Em
vez disso, a falta de observância desses critérios torna irracional o trabalho com súmulas
no Brasil, permitindo a sua aplicação sem critérios e transformando-as em um “guia de
interpretação estático e sem qualquer compromisso com o desenvolvimento do direito e
com a realização da justiça nos casos concretos”.48
É contra essas duras críticas que se propõe, no presente estudo, a observância dos
critérios legais para o trabalho com súmulas. Vale lembrar que as súmulas não se
submetem ao controle de legalidade ou constitucionalidade (embora os precedentes que
motivaram sua criação, sim), sendo necessário contar com o preparo e o bom-senso dos
tribunais ao editá-las.
Com efeito, se os tribunais quiserem evitar novos casos como o das Lojas Cabral,
contribuindo não apenas para a coerência e unidade do Direito, igualdade na prestação
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jurisdicional, segurança jurídica (proteção da confiança) e racionalização da atividade
judiciária, mas também para a solução justa dos casos concretos que diante de si têm
para julgar, deverão se debruçar sobre a Teoria dos Precedentes antes de prosseguirem
pedalando.
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1 A ilustração é de Edward Allan Fransworth (Introdução ao sistema jurídico dos Estados
Unidos), apud DIDIER JR., Fredie, et alli. Curso de direito processual civil. v. 2. 9.
Salvador: JusPodivm, 2014, p. 403.
2 NEVES, António Castanheira. Fontes do direito – contributo para uma revisão de seu
problema. Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, número especial: “Estudos em
homenagem aos professores doutores M. Paulo Merêa e G. Braga da Cruz”. Coimbra:
Universidade de Coimbra, 1982, p. 278-80, passim.
3 NEVES, António Castanheira. A unidade do sistema jurídico: o seu problema e o seu
sentido (diálogo com Kelsen). Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, número
especial: “Estudos em homenagem ao professor doutor J. J. Teixeira Ribeiro”. Coimbra:
Universidade de Coimbra, 1979, p. 171.
4 O autor foi, com orgulho, servidor desse Tribunal, e pode testemunhar “de dentro” o
empenho dos magistrados em desempenhar a função jurisdicional com relevância social.
A Súmula 77 somente está sendo usada como ilustração para a crítica. Na verdade, é
preciso considerar que o sistema processual trabalhista tem uma peculiaridade em
relação ao tema: a Lei 13.015/2014 (portanto: anterior ao Novo CPC) alterou
significativamente a sistemática do recurso de revista, passando o art. 896, §§ 3.º e 4.º,
da CLT (LGL\1943\5), a impor a instauração do antigo incidente de uniformização de
jurisprudência (art. 476 e ss. do CPC de 1973) quando constatada divergência
jurisprudencial interna em um Tribunal Regional do Trabalho, forçando-o a editar súmula
para dissipá-la. Trata-se de programa que não se coaduna com a sistemática de súmulas
do Novo CPC, como adiante se verá. Essa incompatibilidade não será analisada no
presente artigo e reforça a ideia de que a Súmula 77 do TRT4 serve apenas como
exemplo da crítica que se aplica a diversas outras súmulas de diversos outros Tribunais.
Fica o registro, contudo, de que a incongruência entre o art. 896 da CLT (LGL\1943\5)
com redação dada pela Lei 13.015/2014 e o Novo CPC constitui desafio a ser superado
pela comunidade científica.
5 Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável,
íntegra e coerente. § 1.º Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no
regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua
jurisprudência dominante. § 2º Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem
ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.
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com súmulas na sistemática de precedentes no novo
CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4
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6 Está-se falando do conceito de Direito como “integridade” (law as integrity), de Ronald
Dworkin (cf. O império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 271 e ss.), o qual
pressupõe a adoção da tese da resposta certa, e que nem de longe é consenso entre os
operadores do Direito, sendo inclusive desaconselhável o legislador tomar posição a
respeito. Quem aponta essa circunstância é MITIDIERO, Daniel. Precedentes,
jurisprudência e súmulas no Novo Código de Processo Civil Brasileiro. Revista de
Processo. v. 245. ano 40. São Paulo: Ed. RT, jul. 2015, p. 341-342.
7 Sem adentrar na ainda incipiente discussão a respeito da divisão de trabalho entre as
cortes ordinárias e as extraordinárias, vale a pena conferir, entre outros, MITIDIERO,
Daniel. Cortes superiores e cortes supremas – do controle à interpretação, da
jurisprudência ao precedente. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2013. Segundo Mitidiero (em
outro texto), nas cortes ordinárias, a interpretação do direito é um meio para o fim de
realizar a justiça do caso concreto; nas extraordinárias, o caso concreto é um meio para
o fim interpretação do direito. Cf. MITIDIERO, Daniel. Precedentes, jurisprudência e
súmulas... cit. p. 337. Nessa concepção, a justiça do caso concreto é o fim imediato dos
tribunais ordinários. A unidade do direito é um fim apenas mediato. Já nos tribunais
extraordinários, a justiça do caso concreto (fim mediato) será resultado da promoção da
unidade do direito (fim imediato), ainda que possivelmente de acordo com outra
concepção de justiça (a de que justo é tratar casos iguais de modo igual). Sobre o tema
vale a pena conferir, ainda, MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Repercussão
geral no recurso extraordinário. 3. ed. São Paulo: Ed. RT, 2013, p. 11-23.
8 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2011,
p. 215.
9 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... cit. p. 216.
10 McCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. São Paulo: Martins
Fontes, 2006. Ver, também, McCORMICK, Neil. Retórica e estado de direito – Uma teoria
da argumentação jurídica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.
11 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2005, passim. Outra
fonte para essa máxima, na Teoria dos Precedentes, costuma-se atribuir a Henry de
Bracton: treat like cases alike. Cf. CROSS, Rupert; HARRIS, J. W. Precedent in English
Law. 4. ed. Clarendon Law Series. Oxford: Oxford University Press, 1991, p. 3.
12 McCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 96. Raciocínio bastante semelhante é desenvolvido por Frederick
Schauer, inclusive referindo-se explicitamente ao pensamento de McCormick: “O
argumento vindo de um precedente parece, a princípio, orientado para a retrospectiva. A
perspectiva tradicional sobre os precedentes, dentro e fora do Direito, tem, desta
maneira, focado no uso dos precedentes do passado nasdecisões atuais. Entretanto, de
uma maneira igualmente se não mais importante, uma argumentação por precedente se
projeta também para o futuro, pedindo-nos para olhar as decisões de hoje como um
precedente para os julgadores do amanhã. Hoje não é apenas o futuro do passado; é, do
mesmo modo, o ontem do amanhã. Um sistema de precedentes, assim, envolve a
responsabilidade especial que acompanha o poder de comprometer o futuro antes de
chegarmos lá”. SCHAUER, Frederick. Precedente. In: DIDIER Jr., Fredie; et alli (coord.).
Precedentes. Coleção Grandes Temas do Novo CPC. v. 3. Salvador: JusPodivm, 2015, p.
50-51.
13 Sobre ratio decidendi, ver, entre outros, MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes
obrigatórios... cit., p 221-327.
14 Cf. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... cit., p. 120-213.
MITIDIERO, Daniel. Precedentes – da persuasão à vinculação. São Paulo: Ed. RT, 2016,
Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho
com súmulas na sistemática de precedentes no novo
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passim. SCHAUER, Frederick. Op. cit., p. 76-83.
15 Sobre as razões para as decisões do STF valerem como precedentes, cf. MITIDIERO,
Daniel. Precedentes – da persuasão à vinculação. São Paulo: RT, 2016 e MITIDIERO,
Daniel. Cortes superiores e cortes supremas – do controle à interpretação, da
jurisprudência ao precedente. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2013.
16 DIDIER JR., Fredie, et alli. Curso de direito processual civil. v. 2. 9. Salvador:
JusPodivm, 2014, p. 404.
17 RIBEIRO DE VILHENA, Paulo Emílio. Os prejulgados, as súmulas e o TST. Revista de
Informação Legislativa. ano 14. n. 55. Brasília, jul.-set. 1977, p. 96.
18 DIDIER JR., Fredie, et alli. Curso de direito processual civil. v. 2. 9. Salvador:
JusPodivm, 2014, p. 403.
19 RIBEIRO DE VILHENA, Paulo Emílio. Op. cit., p. 98.
20 ABDALA, Vantuil. Direito sumular do trabalho. In: BOUCINHAS FILHO, Jorge
Cavalcanti, et alli (org.). O direito material e processual do trabalho dos novos tempos –
Estudos em homenagem ao professor Estêvão Mallet. São Paulo: LTr, p. 575.
21 Sobre o tema, vale a pena conferir, entre outros, RIBEIRO DE VILHENA, Paulo Emílio.
Os prejulgados, as súmulas e o TST. Revista de Informação Legislativa. n. 55. ano 14.
Brasília, jul.-set. 1977, p. 83-100.
22 FARAH, Gustavo Pereira. As súmulas inconstitucionais do TST. São Paulo: LTr, 2007,
p. 26-34.
23 NUNES LEAL, Victor. Passado e futuro da Súmula do STF. Revista da AJURIS. n. 25.
jul. 1982, p. 46-50.
24 MITIDIERO, Daniel. Precedentes, jurisprudência e súmulas... ci., p. 339. Curioso que,
já nas Ordenações Filipinas, Lei de 18.08.1769, lia-se, a respeito dos assentos, que as
interpretações das leis dadas pela Casa de Suplicação constituiriam “leis inalteráveis
para sempre se observarem como tais debaixo das penas estabelecidas” (§ 4.º) e, na
exposição de motivos do CPC de 1973, que o anteprojeto daquele Código estabelecia os
assentos “com força de lei” (art. 519, e p. 29 da Exposição de Motivos).
25 Cf., do Novo CPC: art. 311, III; art. 332, I e IV; art. 489, V e VI; art. 498, § 4.º, I;
art. 521, IV; art. 927, II e IV; art. 932, IV, a e V, a; art. 955, I; art. 965, § 5.º; art.
988, III; art. 1.035, § 3.º.
26 Na verdade, os adeptos mais fervorosos da teoria dos precedentes como ferramenta
em prol da Unidade do Direito, em homenagem à segurança jurídica e à igualdade,
sustentam que esse constrangimento decorre não das normas do Novo CPC, mas da
própria lógica racional que institui o sistema de precedentes judiciais. A vinculação aos
precedentes seria uma consequência racional do sistema judiciário de solução de
controvérsias e da interpretação do ordenamento jurídico feita pelos tribunais. Cf, sobre
todos, MITIDIERO, Daniel. Precedentes – da persuasão à vinculação. São Paulo: Ed. RT,
2016.
27 Para compreensão do modo como os tribunais extraordinários promovem a Unidade
do Direito, uns através do controle, outros da interpretação, cf. MITIDIERO, Daniel.
Cortes superiores e cortes supremas – do controle à interpretação, da jurisprudência ao
precedente. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2013.
28 SCHAUER, Frederick. Op. cit., p. 50-53.
Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho
com súmulas na sistemática de precedentes no novo
CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4
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29 LAMY, Eduardo de Avelar; LUIZ, Fernando Vieira. Contra o aspecto prospectivo do
precedente: uma crítica hermenêutica a Frederick Schauer. Revista de Processo. v. 250.
ano 40. São Paulo: Ed. RT, dez. 2015. p. 383-402.
30 SCHAUER, Frederick. Op. cit., p. 56.
31 Os exemplos são de Frederick Schauer, em SCHAUER, Frederick. Op. cit., p. 56.
32 DIDIER JR., Fredie, et alli. Curso de direito processual civil...cit., p. 404.
33 MITIDIERO, Daniel. Precedentes, jurisprudência e súmulas no Novo Código de
Processo Civil Brasileiro. Revista de Processo. v. 245. ano 40. São Paulo: Ed. RT, jul.
2015, p. 344.
34 Sobre esse interessante tema, embora mais especificamente sobre a duração da
jornada de trabalho, cf. obra de dois juízes do trabalho do TRT4: ALMEIDA, Almiro
Eduardo de; SEVERO, Valdete Souto. Direito à desconexão nas relações sociais de
trabalho. São Paulo: LTr, 2014. E também: LUNARDI, Alexandre. Função social do direito
ao lazer nas relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2010.
35 Na verdade, o início da vigência da Convenção 132 da OIT e a sua hierarquia
normativa são objeto de polêmica em âmbito doutrinário. Apenas para não desviar o
foco, o presente estudo assume as hipóteses de vigência mais tardia e de menor status
normativo. Para aprofundamento, cf. GUIMARÃES, Roberto Padilha. Vigência e aplicação
da convenção n. 132 da OIT nas relações de trabalho no Brasil. São Paulo: Memória
Jurídica, 2006, especialmente p. 149-153.
36 Sobre as férias trabalhistas depois da incorporação da Convenção 132 da OIT, cf.
MARQUES, Fabíola. Férias – Novo regime da convenção n. 132 da OIT. São Paulo: LTr,
2007.
37 Talvez esse seja o tema que acenda as controvérsias mais acirradas na doutrina
trabalhista, devido às matrizes ideológicas econômicas subjacentes aos polos a partir
dos quais é analisado. Apenas a título de ilustração, cf. MARTINS, Sérgio Pinto.
Flexibilização das condições de trabalho. São Paulo: Atlas, 2000, p. 42: “O Direito do
Trabalho, de modo geral, é extremamente rígido, de forma a estabelecer uma proteção à
parte mais fraca da relação trabalhista, que é o empregado, o hipossuficiente. Em razão
dessa rigidez, acaba criando um efeito inverso. Em vez de proteger, acaba
desprotegendo, porque o trabalhador é colocado à margem do sistema legal”.
38 Em pesquisa realizada pelo Ibope em parceria com a Confederação Nacional das
Indústrias, a maioria dos brasileiros se mostra favorável a mudanças que flexibilizem
algumas regras trabalhistas: 71% gostaria de ter flexibilidade de horário de trabalho;
73% gostariam de poder trabalhar de casa quando precisassem; 53% gostariam de
poder dividir as férias em mais de dois períodos; 58% gostariam de poder entrar em
acordo com o chefe para reduzir o horário de almoço e sair mais cedo; 63% gostariam
de poder entrar em acordo com o chefe para trabalhar mais horas por dia em troca de
mais folgas na semana e 62% gostariam de poder receber o vale-transporte diretamente
em dinheiro. Disponível em:
[www.portaldaindustria.com.br/cni/publicacoes-e-estatisticas/estatisticas/2016/03/1,84849/rsb-29-flexibilidade.html].
Acesso em: 19 abr. 2016.
39 Sobre as implicações morais das escolhas que fazemos com base no mercado, cf.
SANDEL, Michael. O que o dinheiro não compra – os limites morais do mercado. 7. ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
40 Trata-se de uma ética libertária, em que ser autônomo se aproxima muito do ser
Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho
com súmulas na sistemática de precedentes no novo
CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4
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individual, comumente vista para justificar os interesses dos empresários e,
paradoxalmente, justificando, desta vez, os interesses dos empregados. Sobre as
diferentesconcepções éticas predominantes no ocidente, cf. SANDEL, Michael. Justiça –
o que é fazer a coisa certa. 13. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
Especificamente sobre a ideologia libertária, p.77-94; sobre a comunitarista, p. 231-297.
41 Para ilustrar essa afirmação, colhem-se julgamentos de todas as Turmas do TST,
todos (exceto o primeiro) prolatados há menos de um ano: RR –
134200-23.2004.5.04.0371, rel. Min. Walmir Oliveira da Costa, j. 13.03.2013, 1.ª T.,
DEJT 15.03.2013; RR – 155700-39.2009.5.04.0382, rel. Min. José Roberto Freire
Pimenta, j. 09.03.2016, 2.ª T., DEJT 18.03.2016; RR – 20598-10.2013.5.04.0122, rel.
Min. Mauricio Godinho Delgado, j. 16.03.2016, 3.ª T., DEJT 22.03.2016; RR –
729-60.2013.5.04.0381, rel. Min. Maria de Assis Calsing, j. 09.03.2016, 4.ª T., DEJT
11.03.2016; RR – 1995-10.2012.5.04.0384, rel. Min. Antonio José de Barros
Levenhagen, j. 16.03.2016, 5.ª T., DEJT 18.03.2016; RR – 161400-93.2009.5.04.0382,
rel. Des. Convocado: Américo Bedê Freire, j. 24.06.2015, 6.ª T., DEJT 26.06.2001;
ED-RR – 1275-41.2010.5.15.0082, rel. Min. Douglas Alencar Rodrigues, j. 08.04.2015,
7.ª T., DEJT 17.04.2015; RR – 784-02.2013.5.04.0384, rel. Min. Dora Maria da Costa, j.
06.04.2016, 8.ª T., DEJT 08.04.2016.
42 Negando a validade do fracionamento das férias de empregado do setor calçadista,
inclusive com expressa referência à previsão da norma coletiva: RR –
784-02.2013.5.04.0384, rel. Min. Dora Maria da Costa, j. 06.04.2016, 8.ª T., DEJT
08.04.2016. Permitindo o fracionamento por causa da previsão em norma coletiva, com
intervalo de menos de um ano da decisão anteriormente referida, e dentro da mesma
Turma Julgadora: ARR – 200-06.2011.5.04.0383, rel. Min. Maria Cristina Irigoyen
Peduzzi, j. 03.06.2015, 8.ª T., DEJT 08.06.2015.
43 Apenas a título ilustrativo, antes da edição da Súmula 77:
0000381-06.2013.5.04.0102 (RO), 14.05.2015, 2.ª T., Redator: Alexandre Corrêa da
Cruz; 0000604-83.2013.5.04.0384 (RO), 23.07.2015, 10.ª T., Redator: Luis Carlos Pinto
Gastal; 0001530-44.2011.5.04.0381 (RO), 18.02.2014, 9.ª T., Redator: Marçal Henri
dos Santos Figueiredo (admitindo o fracionamento por haver previsão em norma
coletiva, empresa do setor calçadista); 0001055-39.2013.5.04.0019 (RO), 30.04.2015,
4.ª T., Redator: André Reverbel Fernandes (admitindo o fracionamento por ter o
empregado confessado que se deu a seu pedido); 0001310-03.2012.5.04.0384 (RO),
26.02.2014, 1.ª T., Redator: Marçal Henri dos Santos Figueiredo (admitindo o
fracionamento por haver previsão em norma coletiva, empresa do setor calçadista);
Acórdão – Processo 0020187-85.2013.5.04.0018 (RO), 03.07.2015, 6.ª T., Redator:
Jose Cesario Figueiredo Teixeira (admitindo o fracionamento por haver previsão em
norma coletiva); 0001425-87.2013.5.04.0384 (RO), 16.07.2015, 5.ª T., Redator:
Brígida Joaquina Charão Barcelos Toschi (inclusive contrariando disposição de norma
coletiva autorizando o fracionamento). A partir da Súmula 77:
0010398-45.2013.5.04.0541 (RO), 17.09.2015, 11.ª T., Redator: Flávia Lorena
Pacheco; 0020134-48.2014.5.04.0381 (RO), 8.ª T., Relator: Juraci Galvão Junior;
0020186-35.2014.5.04.0384 (RO), 1,ª T., Relator: Iris Lima de Moraes;
0020553-23.2015.5.04.0029 (RO), 3.ª T., Relator: Gilberto Souza dos Santos (decisão
fundamentada na previsão de fracionamento das férias em normas coletivas);
0021226-95.2014.5.04.0014 (RO), 1.ª T., Relator: Jose Cesario Figueiredo Teixeira;
0000630-81.2013.5.04.0384 (RO), 10.12.2015, 8.ª T., Redator: João Paulo Lucena (com
ressalva de entendimento pessoal do Exmo. Relator e expressa submissão à Súmula 77).
44 Vale reiterar, aqui, que o sistema processual trabalhista tem uma peculiaridade
(problematizada pelo Novo Código), conforme apontou-se na nota de rodapé n. 4, na
introdução deste trabalho. Os §§ 3.º e 4.º do art. 896 da CLT (LGL\1943\5) (com
redação dada pela Lei 13.015/2014) impõem aos Tribunais Regionais de Trabalho a
editar súmulas para dissipar divergência jurisprudencial, mediante a instauração do
antigo incidente de uniformização de jurisprudência – sem equivalente no Novo CPC. O
Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho
com súmulas na sistemática de precedentes no novo
CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4
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fato de o processo do trabalho apresentar essa peculiaridade reforça a noção de que a
Súmula 77 do TRT4 é tomada aqui apenas como exemplo que serve para inúmeras
outras súmulas de tribunais brasileiros.
45 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... cit., p. 484.
46 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... cit., p. 484.
47 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... cit., p. 218.
48 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... cit., p. 485.
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