Prévia do material em texto
COMO (NÃO) EDITAR UMA SÚMULA: O DESAFIO DO TRABALHO COM SÚMULAS NA SISTEMÁTICA DE PRECEDENTES NO NOVO CPC E O CASO DA SÚMULA 77 DO TRT4 How (not) to edit a summary of judicial precedent: the challenge of working with precedents in the New CPC’s systematic and the TRT4 Summary of Judicial Precedent 77 case Revista de Processo | vol. 265/2017 | p. 393 - 418 | Mar / 2017 DTR\2017\427 Gustavo Martins Baini Mestre em Direito pela UFRGS. Especialista em Direito Público. Analista do Ministério Público da União. Assessor de Procurador do Trabalho. gmbaini@yahoo.com.br Área do Direito: Processual; Trabalho Resumo: A inauguração de um novo ordenamento processual não ocorre com a mera promulgação de um código, mas com a adesão de seus atores às suas aspirações. O Novo Código de Processo Civil tem, dentre suas maiores pretensões de inovação, o objetivo de implantar no judiciário brasileiro uma cultura de trabalho com precedentes que privilegie, a uma, a racionalidade e, a duas, a segurança jurídica. Para alcançar esse fim, contudo, além de operar com honestidade os dispositivos legais, é necessário aprender um novo método de trabalho. Este artigo apresenta algumas características do trabalho com súmulas de jurisprudência que têm sido ignoradas pelos seus operadores – com prejuízo tanto à racionalidade como à segurança – utilizando como exemplo um caso envolvendo a aplicação da Súmula 77 do Tribunal Regional do Trabalho da 4.ª Região. Palavras-chave: Teoria dos precedentes - Súmula - Métodos de trabalho - Técnicas de enunciação - Novo CPC. Abstract: The opening of a new procedural system doesn’t come with the mere promulgation of a statute, but with the accession of its actors to its aspirations. The New Código de Processo Civil has, among its greatests purpose of innovation, the aim of implanting a culture of working with precedents in Brazilian Judiciary that promotes, at once, both rationality and legal security. To achieve this objective, although, beyond working honestly with the statutes, one needs to learn a new work method. This article presents a few summary of judicial precedents characteristics working that has been ignored by its actors – damaging both rationality and legal security – using, as an example, one case involving the enforcement of the Tribunal Regional do Trabalho da 4.ª Região Summary of Judicial Precedent 77. Keywords: Precedents theory - Summary of Judicial Precedent - Working methods - Enunciation techniques - New CPC. Sumário: 1 Introdução - 2 Do precedente à jurisprudência e da jurisprudência à súmula: elaborando o enunciado linguístico que exprime a ratio decidendi - 3 Como uma súmula pode acender um conflito que pretendia apaziguar: o caso das “Lojas Cabral”, o fracionamento das férias e a Súmula 77 do TRT4 - 4 Conclusão - 5 Bibliografia 1 Introdução Lidar com o direito jurisprudencial (direito sumular, política judiciária, teoria do precedente, teoria da decisão judicial etc.) envolve tantas variáveis (jurídicas e extrajurídicas) que tornam a tarefa tão difícil de aprender mediante o conhecimento de teorias quanto seria aprender a andar de bicicleta através de livros.1 Entretanto, se a jurisdição se pretende solidamente fundamentada, e se a doutrina Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho com súmulas na sistemática de precedentes no novo CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4 Página 1 intenciona servir de alguma coisa, é preciso conjugá-las na máxima medida. Jurisdição e doutrina devem informar-se mutuamente, reconstruindo uma à outra. Com efeito, para Castanheira Neves somente se poderá chamar “jurisprudência” esse contínuo devir de construção e reconstrução do discurso do direito, que não é bipartido, mas uno, onde um não é caudatário do outro, mas entre si são complementares e globalizantes. “Mais do que de dois modos constituintes, a jurisdição e a doutrina, deverá falar-se de um modo constituinte global, a jurisprudência – ou então de Juristenrecht ou de ‘direito jurisprudencial’.” 2 Pelo ideal interativo entre doutrina e jurisdição, atuando como em um círculo virtuoso em que a cada volta há progresso em relação a ambos, o sistema jurídico pode ser chamado de um sistema de “reconstrução dialética”.3 Com a entrada em vigor do Novo CPC, o domínio das técnicas relacionadas aos precedentes judiciais passou a ser habilidade fundamental ao operador do Direito. Para tanto, não obstante existam nuances que só se apreendam na praxis (como andar de bicicleta), é imprescindível submeter-se o que já se tem construído ao crivo crítico da ciência, de modo a aprimorar o processo, qualificar seus atores e, se possível, reconstruí-lo melhor. O presente ensaio visa a analisar um caso concreto – o da Súmula 77 do TRT-4.ª Reg. – à luz da Teoria dos Precedentes e diante de uma controvérsia jurídica específica enfrentada pela Procuradoria Regional do Trabalho da 4.ª Região. Na primeira parte, estudar-se-ão alguns elementos da Teoria dos Precedentes para tentar compreender como o Novo CPC pretende aplicá-la como ferramenta de Unidade do Direito e de efetividade do processo, especificamente quanto à edição e operacionalização com súmulas de jurisprudência predominante. Na segunda parte será exposto o caso concreto: a problemática em que se insere a Súmula 77 do TRT4, a controvérsia jurídica suscitada e o modo com que ela contribuiu para o seu agravamento, expondo-se alguns problemas no método utilizado para editá-la. Através da sua análise a partir do caso concreto apresentado, procurar-se-á demonstrar que a aludida Súmula é um bom exemplo do mau uso dessa ferramenta judiciária, por não ter sido observadas técnicas fundamentais de redação e de filtragem de precedentes e por ter sido descurado o telos das súmulas de jurisprudência predominante. Não se pretende menosprezar a zelosa e bem-intencionada atuação do Tribunal Regional do Trabalho da 4.ª Região4 nem esgotar o tema quanto ao Direito Sumular. A intenção é fomentar o debate sobre a questão geral da operação com súmulas de jurisprudência e chamar atenção para o cuidado que se deve ter, tanto ao editá-las quanto ao aplicá-las, especialmente em tempos em que o Novo CPC traz consigo o afã de ver-se totalmente implementado nos corredores forenses, pressionando os operadores a realizá-lo, muita vez, com desaconselhável precipitação. 2 Do precedente à jurisprudência e da jurisprudência à súmula: elaborando o enunciado linguístico que exprime a ratio decidendi Com a entrada em vigor do Novo CPC, um tema que vinha sendo crescentemente debatido em sede doutrinária e jurisprudencial ganha foros legislativos. A vantagem de se discutir sobre precedentes agora é que temos algo mais concreto, um ponto comum de referência a nos reportar e a partir do qual construir. A desvantagem são os incontáveis problemas conceituais e sistemáticos legados pelo legislador à doutrina para solucionar. Por exemplo, o art. 926 do Novo CPC5 adere inadvertidamente a uma específica concepção de Direito ao conclamá-lo à “integridade”, não obstante não tenha sido precedido por debate algum sobre um dos mais espinhosos temas em Teoria do Direito.6 Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho com súmulas na sistemática de precedentes no novo CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4 Página 2 O dispositivo também impõe deveres aos “tribunais”, indistintamente, sem atentar para a diferença de função entre os tribunais ordinários e extraordinários.7 Além do mais, o dispositivo trata quase indiscriminadamente os conceitos de “súmula”, “jurisprudência” e “precedente”. Súmula, jurisprudência e precedente são palavras que já circulavam entre os operadores do Direito antes da entrada em vigor do Novo CPC. A lei não estabeleceu os significados dessas expressões. Cabe, pois, buscar compreendê-las. 2.1 O que é um precedente? Embora o precedente decorra de decisão judicial, esses conceitos não se confundem. Para que uma decisão judicial se torne um precedente, ela deve ser construída com determinadas características que a dotem de “potencialidade dese firmar como paradigma para a orientação dos jurisdicionados e dos magistrados”.8 Nesse sentido, precedente é a decisão judicial que “enfrente todos os principais argumentos relacionados à questão de direito posta na moldura do caso concreto”.9 Neil McCormick demonstra como uma decisão judicial pode tornar-se um precedente e como aplicá-lo a casos futuros, expondo o tipo de raciocínio e argumentação jurídica de que o julgador deve se valer.10 Para tanto, McCormick parte do conceito de justiça formal, de Rawls, segundo o qual se deve tratar casos semelhantes de modo semelhante, e casos diferentes de modo diferente, dando a cada um o que lhe é particularmente devido.11 A partir desses pressupostos, McCormick afirma que “[o] tribunal que hoje decide um caso específico entre indivíduos deveria levar em conta seu dever, pelo menos seu dever inicial, de decidir o caso em termos compatíveis com decisões anteriores sobre as mesmas questões ou questões semelhantes. No mínimo, a justiça formal exige que, exceto por fortes razões, ele não decida o caso atual de uma forma diferente da adotada em suas decisões anteriores em casos semelhantes. Ao decidir esse caso, o tribunal não terá então o dever – de igual importância – de levar em conta o precedente que estará estabelecendo para casos ainda por surgir? O dever que tenho de tratar casos semelhantes de modo semelhante implica que devo decidir o caso de hoje com fundamentos que eu esteja disposto a adotar para a decisão de casos semelhantes no futuro, exatamente tanto quanto implica que hoje eu devo levar em consideração minhas decisões anteriores em casos semelhantes do passado”.12 E daí conclui que, para que casos diferentes possam ser comparados entre si, eles precisam ser tratados a partir de premissas universalizáveis. Isto é, para além de ponderar as situações particulares das partes e da controvérsia que as une, o juiz deve raciocinar a partir das categorias universais que representam. E assim o fundamento ( ratio decidendi) do julgamento ultrapassa as peculiaridades do caso concreto, sendo passível de aplicação a outros casos. Não apenas “João”, mas “empregados em contrato de experiência”. Não apenas “Armazém X”, mas “pequenas mercearias”. Não apenas “aquele chocolate furtado”, mas “pequenos crimes contra o patrimônio”. Assim, o juiz poderá julgar sobre a validade da despedida por justa causa de João decorrente do furto de chocolate no Armazém X, com a força de uma decisão cujos fundamentos valham para decidir sobre crimes de bagatela praticados por empregados em contrato de experiência contra pequenas mercearias. Ao universalizar as premissas, o juiz depara com argumentos que extrapolam os limites do caso concreto e se vê obrigado a enfrentá-los, um a um, tornando a decisão passível de aplicação para o futuro, em casos essencialmente semelhantes, ainda que com distinções acidentais. Se dessa decisão for possível extrair uma razão necessária e suficiente para resolver uma questão jurídica relevante para a solução de outro caso, ter-se-á, então, a ratio decidendi (ou holding, como preferem os anglo-saxões). E, se a decisão contiver uma ratio decindendi, ter-se-á um precedente.13 Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho com súmulas na sistemática de precedentes no novo CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4 Página 3 As razões pelas quais os precedentes devem ou não ser seguidos e os limites entre a aptidão persuasiva e a vinculativa dos precedentes não serão esmiuçados aqui.14 2.2 Dos precedentes à jurisprudência Pode-se afirmar com certa segurança que, na tradição brasileira, uma decisão isolada, por mais apta que esteja para valer sobre casos futuros, raramente constrange os juízes a segui-la, exceto, talvez, e cada vez mais, as decisões do Supremo Tribunal Federal.15 “Valor maior é atribuído ao precedente reiteradamente reproduzido em decisões dadas em casos futuros e que constitui, pois, jurisprudência.”16 Com efeito, em nossa cultura, para que um precedente seja relevante, espera-se a sua reiteração constante, repetição homogênea e quantitativa. E, quando isso ocorre, passamos a denominá-lo de “jurisprudência”. Jurisprudência é, assim, um conjunto de precedentes que sinaliza o entendimento de um tribunal a respeito de um determinado tema. E se a jurisprudência estiver firme e constante o suficiente – e especialmente se houver dúvida ou divergência a seu respeito na instância inferior e entre os demais operadores do Direito – o tribunal pode expressá-la através de uma fórmula textual linguística a que denominamos “súmula”. Com efeito, a súmula “supõe sedimentação de decisões, repetição, uniformidade de entendimento”.17 2.3 Da jurisprudência à súmula (mas antes: os prejulgados) A súmula é, pois, “o enunciado normativo (texto) da ratio decidendi (norma geral) de uma jurisprudência dominante, que é a reiteração de um precedente”.18 Ou, dito de outro modo (e há muito mais tempo), “o enunciado da súmula representa o compêndio de uma linha de precedentes”.19 Assim, embora constituam fenômenos distintos, percebe-se uma ligação muito forte e evolutiva entre esses três conceitos, partindo-se do precedente, passando pela jurisprudência e chegando-se à súmula. Não é à toa que a palavra súmula deriva do vocábulo latino “ summa, que significa auge, cume, o ponto mais alto, o grau mais elevado, supremo. Tem também o sentido de soma, formada de reunião ou adição das partes, o conjunto”.20 Antecessores das súmulas de jurisprudência foram os velhos assentos da Casa de Suplicação, regulados pelas Ordenações Filipinas (Livro I, Tomo V, § 5.º) e sucedidos pelos prejulgados (art. 861 do CPC de 1939). Aliás, com regulação específica e mais avançada sobre esse instrumento, o Judiciário Trabalhista foi profícuo na sua utilização, sendo notória a sua tradição em trabalhar com o direito sumular. O art. 902 da CLT (LGL\1943\5), revogado em 1982 (mas causador de polêmica desde muito antes disso), fixava a competência do TST para estabelecer prejulgados, os quais vinculavam os Tribunais Regionais do Trabalho e Juízes do Trabalho. Os prejulgados trabalhistas decorriam de incidente processual suscitado por Ministro do TST que, diante de uma tese jurídica (com ou sem caso concreto), vislumbrava uma possível divergência interpretativa por parte dos Tribunais Regionais, submetendo-a ao Tribunal Pleno, o qual fixava a interpretação a ser adotada vinculando todo o Judiciário Trabalhista.21 Os prejulgados não consistiam em extrações dos precedentes, porque não dependiam de casos julgados. Tinham função eminentemente interpretativa e preventiva, com vocação para conduzir a jurisprudência nos casos futuros. Nisso os prejulgados se distinguem das súmulas, pois, embora estas também se voltem para o futuro, nascem com base na reiteração de julgamentos passados. Não para formar jurisprudência, mas como resultado dela.22 As súmulas são o resultado de julgamentos de casos concretos. Os prejulgados eram o próprio julgamento, não de casos, mas de teses jurídicas em abstrato, antecipando-se aos casos concretos (daí o nomen iuris). Com efeito, ao contrário dos prejulgados, as súmulas de jurisprudência predominante Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho com súmulas na sistemática de precedentes no novo CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4 Página 4 nasceram menos com a função de fonte do direito e mais como “método de trabalho”, visando precipuamente a “ordenar e facilitar a tarefa judicante”.23 Seus destinatários eram, inicialmente, os próprios juízes. Com o tempo, porém, as súmulas passaram a ser vistas “de fora”, isto é, pelos outros atores jurídicos – inicialmente, ainda no nível contencioso e, posteriormente, já no nível consultivo, formando-se uma cultura de crescente confiança na estabilidade da jurisprudência sumulada, não apenas resolvendo lides, mas prevenindo-as. Sob esse aspecto, o Novo CPC inova consideravelmente “ao reconhecer as súmulas como guias para interpretação do direito para o sistema de administraç��o da Justiça Civil como um todoe para a sociedade civil em geral”,24 tornando-a vinculativa (ou, no mínimo, autorizativa) em muitos casos25 e aumentando muito o constrangimento à sua observância.26 E, devido a essa ampliação, o Código previu o dever dos Tribunais de, ao editar enunciado de súmula, “ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram a sua criação” (art. 926, § 2.º). Significa dizer que as súmulas não resultam do debate sobre a opinião dos juízes a respeito de uma tese jurídica. Elas resultam do debate sobre o modo como exprimir linguisticamente a ratio decidendi de um conjunto de decisões já tomadas pelos juízes. 2.4 Como se elabora o enunciado de uma súmula? Essa contenção da criatividade dos tribunais não é à toa. A função precípua do Judiciário é aplicar o Direito aos casos da vida real levados ao seu exame. Mesmo os tribunais extraordinários, cujo fim primeiro é a promoção da Unidade do Direito (seja através do controle, seja através da interpretação),27 fazem-no com vistas a um incremento qualitativo de justiça nos julgamentos dos casos concretos. Desse modo, embora a formação de um precedente se dê pela universalização das premissas concretas de um caso a ser julgado, a tarefa judicial consiste em dissolver a controvérsia jurídica para resolver o caso concreto. Mesmo quando abstrai o caso para formar a opinio iuris, o juiz volta aos fatos para julgar o caso. E somente nesse retorno aos fatos, medindo a justiça de seu julgamento, é que o juiz pode confirmar se a tese jurídica formada no movimento anterior é adequada. Isso significa que a universalização das premissas do caso julgado, feita com vistas a permitir a formação de um precedente e voltar-se para os casos futuros, deve ser limitada. O “aspecto prospectivo do precedente” 28 nunca pode suplantar a justiça do caso concreto em que ele se forma. É que, diferentemente do legislador (ou do Pleno do TST, ao editar os antigos prejulgados), “o juiz constrói o direito de baixo para cima ( bottom-up) e o legislador, ao contrário, de cima para baixo (top-down)”.29 As Instituições Judiciárias que respeitam a divisão de funções no Estado Democrático devem reconhecer que a contribuição judicial para a construção do sistema jurídico não decorre dos debates em abstrato sobre o que é justo e o que não é, mas, sim, dos casos da vida cotidiana judicializados. E, para que tal contribuição não resulte na atomização do Direito em partículas irreconciliáveis, a atuação judicial deve atentar para a necessidade de coerência e coesão dos julgamentos. É natural ao ser humano esperar que os atos praticados no passado sejam repetidos quando as mesmas circunstâncias se apresentarem. Como disse Frederick Schauer, “confiar em um precedente é parte da vida de um modo geral”.30 Essa expectativa, no entanto, precisa ser treinada e, no caso da confiança na jurisprudência, pode ser facilitada ou dificultada, dependendo de como atuarem os juízes. Imagine-se o exemplo de um pai que deixa a filha ficar acordada até às 22 horas a partir dos seus 9 anos, e dessa decisão extraia-se o enunciado “Somente é permitido ficar acordado até as 22 h a partir dos 9 anos de idade”. Esse enunciado poderia ser usado Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho com súmulas na sistemática de precedentes no novo CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4 Página 5 com muita propriedade pelo filho mais novo com o pai, quando alcançar essa idade. Outra situação seria o pai permitir à filha usar salto alto a partir dos 13 anos e enunciar que “O salto alto é permitido a partir dos 13 anos”. Neste caso, talvez o filho tivesse mais dificuldade para fazer valer o precedente.31 Se as circunstâncias fáticas que motivaram a decisão do pai estivessem expressas nos enunciados acima, as dificuldades sobre a sua aplicabilidade cairiam consideravelmente. Se os enunciados deixassem mais claros os precedentes, o filho saberia com que contar ao atingir determinada idade (previsibilidade e confiança), bem como saberia o modo de argumentação necessário para ver aplicado o enunciado de que pretenda se valer. Então, que cuidados os tribunais devem ter ao enunciar em súmulas os seus precedentes? Como visto, as súmulas são “um texto conciso criado pelo tribunal que resume o entendimento de suas próprias decisões”.32 Elas não são resultado da interpretação do ordenamento normativo ou de questões jurídicas. Elas são resultado da interpretação do tribunal sobre suas próprias decisões. As súmulas são o retrato como o próprio tribunal considera a sua jurisprudência. Sem entrar no mérito quanto ao conteúdo do que se está retratando, é possível fotografar bons e maus retratos, dependendo do enquadramento, iluminação, foco etc. A contenção dos tribunais às circunstâncias fáticas dos precedentes (art. 962, § 2.º, do Novo CPC) serve de guia tanto para a aplicação das súmulas como, consequentemente, para a sua criação. É que, se as súmulas resumem a jurisprudência, e se a jurisprudência resulta dos precedentes, então a essência destes deve estar retratada nas súmulas. A essência do precedente, como dito, é a sua ratio decidendi, a razão necessária (aquela “sem a qual não”) e suficiente (aquela que, estando presente, basta) para fundamentar a decisão. Mas a razão jurídica decisória só existe vinculada aos fatos sobre os quais ela se produz. “A ratio decidendi envolve a análise da dimensão fático-jurídica das questões que devem ser resolvidas pelo juiz.”33 É por isso que a dimensão fática que compõe a ratio decidendi deve estar minimamente identificada no enunciado da súmula que a irá resumir. Embora isso contrarie a maciça maioria das súmulas produzidas no Brasil, é um erro ignorar o aspecto fático e enunciar apenas o aspecto jurídico, porque isso dificulta a sua aplicação. Outro componente da técnica de redação de súmulas, além da clareza e da concisão, é a concretude do enunciado, a necessidade de evitar termos imprecisos ou genéricos. “A vagueza na proposição normativa jurisprudencial é um contrassenso: nascida a partir da necessidade de dar concretude aos termos vagos, abertos, gerais e abstratos do direito legislado, o enunciado da ratio decidendi, tal como se vem dizendo, deve ser formulado com termos de acepção precisa, tanto quanto possível, para que não crie dúvidas quanto à sua aplicação em casos futuros.” 2.5 Conclusão parcial Com efeito, conclui-se que as súmulas são enunciados linguísticos que exprimem a ratio decidendi de um conjunto de precedentes que formam a jurisprudência de um tribunal. A finalidade é deixar explícita essa jurisprudência, facilitando o trabalho dos juízes e das partes e prevenindo litígios pela adequação extrajudicial das pessoas a essa orientação. Sua expressão deve conter minimamente os elementos fáticos que identifiquem o seu fundamento e seu âmbito de aplicação, sendo elaborados com o máximo de concretude possível e evitando-se, tanto quanto puder, termos genéricos e imprecisos. 3 Como uma súmula pode acender um conflito que pretendia apaziguar: o caso das “Lojas Cabral”, o fracionamento das férias e a Súmula 77 do TRT4 Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho com súmulas na sistemática de precedentes no novo CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4 Página 6 A Procuradoria Regional do Trabalho da 4.ª Região recebeu, no fim de 2015, uma denúncia de que determinada empresa (doravante tratada pelo pseudônimo “Lojas Cabral”) vedava a concessão de 30 dias ininterruptos de férias a seus empregados, impondo-lhes o fracionamento do período. Instaurado o inquérito civil, as Lojas Cabral apresentaram regulamento interno da empresa relativo à concessão de férias, vigente desde 2013, no qual consta que os “gestores em geral (gerentes, supervisores, líderes, coordenadores, especialista, trainee, instrutor de treinamento e multiplicador) e compradores” têm duas opções para usufruir suas férias: a primeira, 20 dias de férias e 10 dias de abono pecuniário; a segunda, 2 períodos (15 dias + 15 dias). Requisitada, a empresa também apresentou avisos de férias de todos os seus“gestores em geral” do período de 2012 a fevereiro de 2016. Analisados mais de 500 recibos de férias, constatou-se que até 2013, quando o regulamento da empresa passou a viger, vários gestores usufruíram 30 dias ininterruptos de férias e não mais a partir de então. Constatada a incompatibilidade do regulamento das Lojas Cabral com a lei, foi proposto o ajustamento da conduta, tendo a empresa declinado a oportunidade. Ao tentar entender os motivos pelos quais as Lojas Cabral se negaram a assinar o TAC quando sua conduta era tão evidentemente irregular, chegou-se, em pesquisa jurisprudencial sobre o tema, à recente Súmula 77 do TRT4, a qual poderia, juntamente com outros fatores, levar a empresa a acreditar que sua conduta não era, assim, “tão irregular”. 3.1 Sobre o direito a férias e o fracionamento do período de gozo Não é objeto do presente ensaio discorrer sobre o direito material ou sobre o direito ao gozo de férias. Tampouco se pretende questionar, pelo menos não com a profundidade necessária, o conteúdo da Súmula 77 do TRT4, que trata sobre o assunto. Entretanto, é necessária uma breve exposição para compreender minimamente a controvérsia decorrente do seu enunciado. Não é preciso discorrer muitas laudas para afirmar que o direito ao gozo de férias é uma conquista histórica dos trabalhadores e está diretamente relacionado à saúde física e mental que o descanso de uma rotina de trabalho pode proporcionar. O convívio familiar e social, a prática de outras atividades, produtivas ou não, o ócio, o tempo disponível para amigos, família, lazer, cultura, esporte, viagens, tudo isso promove o desenvolvimento da personalidade humana em vários aspectos. Da mesma forma, o direito ao trabalho, à produção, à participação ativa na transformação do ambiente, à contribuição para uma sociedade melhor também contribui para desenvolver atributos da personalidade humana. Desse modo, e tendo em vista também considerações de índole econômica, é preciso encontrar um equilíbrio entre o direito ao trabalho e o ao descanso.34 No ordenamento jurídico brasileiro, esse equilíbrio está estabelecido nos arts. 129 e ss. da CLT (LGL\1943\5), os quais instituem ao trabalhador o direito de usufruir 30 dias de férias a cada período de 12 meses. A controvérsia suscitada pelo regulamento das Lojas Cabral diz respeito ao modo como esses 30 dias devem ser usufruídos: se “corridos” ou fracionados. O art. 134 da CLT (LGL\1943\5) estabelece que as férias serão concedidas, em regra, “em um só período”, admitindo o fracionamento, em seu § 1.º, “somente em casos excepcionais”, no máximo em dois períodos, sendo que um deles terá no mínimo 10 dias ininterruptos. Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho com súmulas na sistemática de precedentes no novo CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4 Página 7 Nesse ponto, cabe destacar que a Convenção 132 da OIT, sobre férias anuais remuneradas, foi internalizada em nosso ordenamento jurídico em 05 de outubro de 1999. Trata-se, portanto, de norma jurídica de mesma hierarquia, regulando a mesma matéria, promulgada posteriormente – ou seja, lex revocatoria, tecnicamente prevalecendo ao dispositivo celetista.35 Segundo o art. 8, item 2, da Convenção 132 da OIT, o fracionamento das férias pode ser autorizado pela autoridade competente ou órgão apropriado de cada país, mas cada período fracionado “deverá corresponder pelo menos a duas semanas de trabalho ininterruptos”. Tem-se, assim, o seguinte regramento relativo ao fracionamento das férias: (a) em regra, as férias serão usufruídas em 30 dias ininterruptos; (b) excepcionalmente, é autorizado o fracionamento em no máximo dois períodos; (c) a fração mínima de cada um desses períodos é de duas semanas, segundo Convenção 132 da OIT, ou 10 dias, segundo art. 134 da CLT (LGL\1943\5).36 3.2 Excepcionalidade do fracionamento e adaptação (ou flexibilização) das normas trabalhistas ao tempo contemporâneo Como todo regramento jurídico, a regulamentação do trabalho não está imune às transformações históricas que, nas sociedades contemporâneas, são observadas em grande aceleração. No caso trabalhista, especificamente, as questões econômicas (muitas vezes rapidamente passageiras) imprimem grande pressão ao ordenamento jurídico. Há muitos anos o Brasil vem debatendo sobre a flexibilização das garantias trabalhistas. 37 Atualmente, certas flexibilizações pontuais vêm sendo percebidas pelos trabalhadores como algo positivo. Algumas delas vêm até mesmo sendo contempladas em negociações coletivas, a despeito de sua duvidosa legalidade, como a redução do intervalo intrajornada para o trabalhador poder encerrar o expediente mais cedo, a realização de horas extras durante a semana para não precisar trabalhar no sábado e até mesmo o fracionamento das férias em mais do que dois períodos.38 Se isso é, efetivamente, positivo ou não para a sociedade como um todo, trata-se de problema bastante mais complexo que não se pretende esmiuçar. Relembre-se apenas que, como se disse, as questões econômicas são muitas vezes bastante efêmeras, e talvez não seja ideal fazer ajustes definitivos com base nelas.39 Além disso, o elo interno que liga a maioria das flexibilizações comumente aceitas pelo trabalhador é, nitidamente, uma concepção de ética individualista segundo a qual cada um deve ter âmbitos de autonomia estanques e alargados para conduzir sua própria vida (“cada um no seu quadrado”), sendo controverso se isso é positivo ou não, do ponto de vista macrossocial, devido aos efeitos bastante profundos que tais regramentos pontuais produzem, quando levados à escala maior, na construção da moralidade da comunidade, do compartilhamento de valores e do senso de pertencimento.40 De qualquer modo, seja por que motivo for, enquanto muitos trabalhadores preferem afastar-se do trabalho apenas uma vez por ano, mas por um longo período de tempo, muitos outros têm preferido fazer pausas mais curtas, mas mais frequentes. Isso implica em que muitos empregados, segundo a experiência tem demonstrado, pedem aos empregadores para fracionar o período de férias, apenas por preferências pessoais. Sem a “excepcionalidade” exigida pelo art. 132, § 1.º, da CLT (LGL\1943\5), tal fracionamento pode ser considerado irregular, em tese. Eventualmente desligados do emprego, alguns postulavam a anulação do fracionamento e o pagamento da “dobra das férias”, dada a falta de demonstração da excepcionalidade. Trata-se, como se vê, de manobra ardilosa que constitui abuso de direito por parte dos empregados. 3.3 A Súmula 77 do TRT4 Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho com súmulas na sistemática de precedentes no novo CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4 Página 8 Aplicando-se essa reflexão ao tema da presente controvérsia, vem à luz o disposto na recente Súmula 77 do TRT-4.ª Reg.: “O fracionamento das férias, em períodos não inferiores a 10 (dez) dias, é válido, ainda que não demonstrada a excepcionalidade a que alude o artigo 134, § 1.º, da CLT (LGL\1943\5)”. Em suma, o enunciado indica que dos dois requisitos legais para o fracionamento das férias – excepcionalidade e fração mínima de 10 dias –, apenas a inobservância do segundo pode invalidar o fracionamento. Trata-se de um belo exemplo das “flexibilizações” acima tratadas. É claro que muitos trabalhadores preferem distribuir em mais ocorrências o gozo de suas férias, usufruindo de pausas mais frequentes, ainda que isso lhes imponha a fruição de termos mais curtos. É sabido, como dito, que em muitos casos o próprio trabalhador pede para fracionar as férias, ainda que não haja nenhuma excepcionalidade – reconheça-se que a legislação, nesse ponto, quando impede o fracionamento por simples vontade do trabalhador, beira o limite entre o protecionismo jurídico e o paternalismo moral, combatido pela ideologia libertária acima referida. Tendo isso em conta, o TRT4, habituado à vanguarda em seus posicionamentos, atualiza as regulações das relações de trabalho para permitir o fracionamento das férias mesmo quando não demonstradaa excepcionalidade exigida por lei. Apenas para registro, é preciso lembrar que a manifestação de vontade do trabalhador, dentro da relação de emprego, nem sempre se dá com liberdade de consentimento. É certo que muitos empregadores obrigarão seus empregados a fracionar as férias mesmo contra a sua vontade, obtendo facilmente uma declaração de próprio punho de que o fracionamento se deu a pedido do obreiro. Mas essa ressalva fica apenas a título de reflexão. 3.4 Distinguishing: o (grande) esforço argumentativo decorrente da má-técnica de redação da Súmula A cultura dos operadores do Direito no Brasil ao trabalhar com súmulas é, de uma maneira geral, baseada no silogismo e raciocínio dedutivo. Se analisarmos a norma interna das Lojas Cabral à luz da Súmula 77 do TRT4, concluiríamos, à apressada vista, que se trata de postura protegida pela jurisprudência: se não é necessário demonstrar a excepcionalidade que justifique o fracionamento, bastando que o período fracionado não seja inferior a 10 dias, então a norma interna é conforme ao entendimento do TRT4. O ponto do MPT ao propor o ajustamento da conduta das Lojas Cabral não era discutir se, para fracionar férias, é preciso ou não demonstrar a excepcionalidade – e a rigor, é isso que está resolvido pela Súmula 77. O ponto era a obrigatoriedade do fracionamento das férias imposto pelas Lojas Cabral. Ao contrário de simplesmente facultar ao trabalhador que fracione suas férias mesmo sem excepcionalidade, o que estaria de acordo com a Súmula 77, o regulamento das Lojas Cabral obriga os trabalhadores a fracionar suas férias, concedendo-lhe, como única alternativa, a transformação de parte delas em abono pecuniário. Ou seja, em nenhuma hipótese, ainda que seja de interesse do trabalhador, será permitida a fruição de 30 dias consecutivos de férias, não obstante se trate de direito subjetivo do empregado, disposto no caput do art. 134 da CLT (LGL\1943\5). O ajustamento de conduta proposto pelo Ministério Público do Trabalho às Lojas Cabral não pretendia abolir a possibilidade de fracionamento das férias, ainda que sem excepcionalidades (como preconiza a Súmula). Pretendia, isso sim, abolir a proibição da fruição de 30 dias contínuos dos gestores em geral estabelecida pelo regulamento da empresa. Ou, dito de maneira inversa, viabilizar que os gestores em geral usufruam, caso queiram, de 30 dias ininterruptos de férias, como lhes garante o art. 134 da CLT Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho com súmulas na sistemática de precedentes no novo CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4 Página 9 (LGL\1943\5). Observe-se o esforço argumentativo necessário para distinguir o regulamento das Lojas Cabral da incidência da Súmula 77 do TRT4. Talvez a disposição das circunstâncias fáticas que motivaram a edição da Súmula diminuísse o ônus argumentativo e facilitasse sua compreensão e aplicação. 3.5 Cinco problemas com o método de trabalho que resultou na Súmula 77 do TRT4 Como dito na primeira parte deste trabalho, o art. 926, § 2.º, do Novo CPC restringe a criatividade dos tribunais ao dispor que, “ao editar enunciados de súmula, os tribunais deverão ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação” (art. 926, § 2.º). A Resolução Administrativa 34/2015 do TRT4, que aprovou a Súmula 7, aponta quatro julgados como precedentes. No RO 0000127-36.2013.5.04.0004, a situação fática é de que a trabalhadora comprovadamente gozava de férias em períodos fracionados de 10 dias, considerando-se “infração meramente administrativa” a falta de demonstração da excepcionalidade, sem força para invalidar a concessão fracionada. Não há nenhuma menção relevante ao plano fático neste julgado. No RO 0001093-63.2012.5.04.0382, as férias fracionadas se deram em razão de alegadas peculiaridades e sazonalidade do mercado calçadista, havendo previsão em normas coletivas para tal fracionamento (este processo está sobrestado aguardando julgamento de recurso de revista representativo da controvérsia ao tempo do encerramento deste artigo, justamente discutindo a validade de fracionamento das férias sem demonstração da excepcionalidade). No RO 0001176-19.2011.5.04.0381 verificou-se que em 3 anos houve o fracionamento das férias do trabalhador, sempre em períodos de mais de 10 dias. Considerou-se “mera infração administrativa” o fracionamento sem demonstração da excepcionalidade, consignando-se que “em determinados setores econômicos, como é o caso da indústria calçadista, em que existe grande variação na demanda, é razoável admitir o fracionamento das férias, presumindo-se a situação de excepcionalidade”. Por fim, no RO 0000079-70.2014.5.04.0383 foi prolatada curtíssima decisão, sem referência às circunstâncias fáticas, limitando-se a expor o entendimento de que o fracionamento não é ilegal desde que respeitado o limite mínimo de 10 dias a cada fração. Chama atenção o fato de que esse caso também envolveu relação de trabalho do setor calçadista. Analisando-se os precedentes que fundamentam a edição da Súmula 77 do TRT4 chega-se a cinco problemas. Primeiro, dois dos assim denominados “precedentes” não delineiam as circunstâncias fáticas com precisão, mas apenas expõem o entendimento jurídico sobre a necessidade ou não de demonstrar a excepcionalidade do fracionamento. A falta de exposição mínima do substrato fático sobre o qual o Tribunal decidiu que o fracionamento das férias era válido impede a comparação desse julgado com casos futuros, sendo de se questionar se essas duas decisões podem mesmo ser consideradas “precedentes”, nos termos da definição exposta no capítulo 2.1 acima. Segundo, três dos quatro “precedentes” advêm de relação do trabalho dada no setor calçadista (na verdade, nos três o réu era a mesma empresa desse segmento), sendo que em dois deles há referência à grande variabilidade da demanda de trabalho, o que autorizaria o fracionamento das férias. Um deles chegou a referir que essa sazonalidade criaria uma presunção de excepcionalidade. Além disso, em um desses precedentes aponta-se a autorização do fracionamento das férias em norma coletiva da categoria do Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho com súmulas na sistemática de precedentes no novo CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4 Página 10 setor calçadista. Se três quartos dos precedentes que motivaram a edição da Súmula 77 referem-se a um segmento econômico específico, não seria o caso de limitar o alcance da Súmula a esse segmento, seguindo as “circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação”? Ou ainda, o fundamento (ratio decidendi) para a admissão do fracionamento das férias sem demonstração da excepcionalidade, nesses casos, não seria a grande variabilidade da demanda, a sazonalidade econômica? E o fato de haver previsão em normas coletivas, legitimamente estatuídas pelos sindicatos que representam as categorias profissional e econômica, não seria fundamento necessário das decisões que admitiram o fracionamento das férias sem excepcionalidade? Nada disso constou no enunciado da Súmula. Terceiro, um dos “precedentes” ainda não transitou em julgado, estando pendente de julgamento de recurso de revista exatamente a questão sobre a validade do fracionamento das férias quando não demonstrada a excepcionalidade. Existe um risco real de o TST reverter o julgamento e considerar inválido o fracionamento das férias pela falta de excepcionalidade, resultando em que um dos “precedentes” da Súmula transite em julgado com decisão que a contraria. Um processo cuja decisão final contradiga o teor da Súmula 77 poderia servir de precedente para a sua edição? Isso leva ao quarto problema. A jurisprudência do TST é bastante firme em exigir a demonstração da excepcionalidade do fracionamento das férias para considerá-lo válido. 41 Ou seja, a Súmula 77 do TRT4 está em dissonância com o entendimento amplamente majoritário do TST. Se a finalidade da edição de uma súmula é, em síntese, aumentar a segurança jurídica dos sujeitos de direito e a igualdade entreos jurisdicionados, são atingidos esses objetivos quando a súmula editada contraria a jurisprudência do tribunal superior, sujeitando todas as decisões proferidas com base nessa súmula ao posterior controle pela instância extraordinária? A propósito, a jurisprudência do TST oscila entre a validade e a invalidade do fracionamento quando a relação de trabalho se dá no setor calçadista do Rio Grande do Sul, em que a sazonalidade da demanda poderia autorizar o fracionamento,42 não estando firme, ainda, a sua posição, nem mesmo quanto ao que poderia ser a verdadeira ratio decidendi dos precedentes que motivaram a Súmula 77 do TRT4. Aliás, se a definição de súmula é, como se tem dito, a exposição resumida da jurisprudência do tribunal, então existe um quinto problema. É que, até a edição da Súmula 77, a jurisprudência do TRT4 oscilava, inclinando-se levemente no sentido de invalidar as férias fracionadas sem justificativa excepcional. A partir de então, o acolhimento do entendimento sumulado é praticamente unânime. A Súmula 77 não retratou, na realidade, a jurisprudência do TRT4 sobre o tema. Ela a inaugurou, prescrevendo um novo entendimento que, uma vez sumulado, passou a ser adotado.43 Diante dessas considerações, pergunta-se: será adequado a um tribunal editar uma súmula contrária ao entendimento majoritário do tribunal superior, expondo as partes à loteria do acesso à instância extraordinária? Se sim, será adequado a esse tribunal editar uma súmula que não enuncia sua própria jurisprudência predominante? Se sim, o TRT4 se ateve às circunstâncias fáticas dos precedentes que ensejaram a Súmula 77 ao enunciar os seus termos – ela não deveria ter sido formulada com outra redação, expondo alguns dos importantes elementos da ratio decidendi de seus precedentes ou, no mínimo, o substrato fático que autoriza sua aplicação? Enfim, todas essas circunstâncias apontam que o modo de trabalho que gerou a Súmula 77 mais se assemelha ao trabalho com prejulgados do que com súmulas. Seu enunciado linguístico expõe apenas um entendimento jurídico a respeito de tese controvertida, sem explicitar o substrato fático sobre o qual tem aplicabilidade e sem retratar a ratio decidendi dos precedentes que a motivaram ou a jurisprudência do Tribunal. Entretanto, os prejulgados há muito não integram o ordenamento jurídico brasileiro, sendo necessário atuar conforme preconiza o Novo CPC para organizar o trabalho com precedentes. Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho com súmulas na sistemática de precedentes no novo CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4 Página 11 4 Conclusão Com efeito, o trabalho com súmulas demanda observar os parâmetros legais para o seu método. Ao contrário dos antigos prejulgados, as súmulas não podem corresponder a uma “jurisprudência programática”, a ser implantada no futuro, como se o enunciado servisse para conduzir o tribunal à aplicação do Direito conforme sua prescrição. Tampouco podem servir à uniformização da jurisprudência com divergência interna ao tribunal,44 como o moderno Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Seu enunciado deve corresponder a uma jurisprudência predominante, conforme dispõe o § 1.º do art. 926 do CPC (LGL\2015\1656). Isso significa que a súmula é um “retrato da realidade do direito jurisprudencial de determinado momento histórico”.45 Também significa que, se a jurisprudência do tribunal é dividida, a súmula não é a ferramenta adequada para pacificá-la. Esse é o espaço para o debate argumentativo para construção da unidade do Direito. Do mesmo modo, as súmulas não podem corresponder a teses jurídicas desconectadas do substrato fático ao qual correspondem. Ao contrário, seu enunciado deve descrever claramente a sua hipótese de incidência, pois “ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação”, conforme dispõe o § 2.º do art. 926 do CPC (LGL\2015\1656). Isso é assim porque, “se a súmula [for] compreendida como um enunciado geral e abstrato, a sua leitura pode aproximá-la ou afastá-la, sem qualquer critério racionalmente adequado, do caso sob julgamento”.46 Ressalte-se, uma vez mais, que não se está, aqui, questionando o acerto ou equívoco do entendimento sumulado. Na verdade, sequer se está criticando o TRT4, pontualmente. A Súmula 77 é apenas um caso dentre muitos, utilizado aqui como ilustração para demonstrar o quanto é incipiente e irrefletido o trabalho com jurisprudência, súmulas e precedentes nos tribunais brasileiros. Tanto magistrados como advogados têm dificuldades no seu manuseio, ignorando muitos dos fundamentos da Teoria dos Precedentes, do Direito Sumular, da Teoria da Decisão Judicial etc. Cabe, agora, com a promulgação do Novo CPC, refletir sobre o tema, qualificar os seus operadores e evitar uma aplicação apressada e, consequentemente, equivocada. O êxito da proposta do Novo CPC depende disso. O caso da Súmula 77 do TRT4 é, como dito, um exemplo claro sobre o modo como nossos tribunais têm trabalhado com súmulas, a saber, fora dos parâmetros legais. Na verdade, o caso da Súmula 77 ilustra que quem tenta operar a maioria das súmulas no Brasil não consegue se socorrer sequer dos precedentes indicados pelo tribunal para motivar sua criação, pois “ainda que se possa, em tese, procurar nos julgados que deram origem à súmula algo que os particularize, é incontestável que, no Brasil, não há método nem cultura para tanto”.47 Se observado o § 2.º acima referido, a operação com súmulas há de ganhar eficiência, pois permitirá ao operador demonstrar mais facilmente se o caso que tem diante de si se enquadra ou não (distinguishing) ao enunciado. Em vez disso, a falta de observância desses critérios torna irracional o trabalho com súmulas no Brasil, permitindo a sua aplicação sem critérios e transformando-as em um “guia de interpretação estático e sem qualquer compromisso com o desenvolvimento do direito e com a realização da justiça nos casos concretos”.48 É contra essas duras críticas que se propõe, no presente estudo, a observância dos critérios legais para o trabalho com súmulas. Vale lembrar que as súmulas não se submetem ao controle de legalidade ou constitucionalidade (embora os precedentes que motivaram sua criação, sim), sendo necessário contar com o preparo e o bom-senso dos tribunais ao editá-las. Com efeito, se os tribunais quiserem evitar novos casos como o das Lojas Cabral, contribuindo não apenas para a coerência e unidade do Direito, igualdade na prestação Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho com súmulas na sistemática de precedentes no novo CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4 Página 12 jurisdicional, segurança jurídica (proteção da confiança) e racionalização da atividade judiciária, mas também para a solução justa dos casos concretos que diante de si têm para julgar, deverão se debruçar sobre a Teoria dos Precedentes antes de prosseguirem pedalando. 5 Bibliografia ABDALA, Vantuil. Direito sumular do trabalho. In: BOUCINHAS FILHO, Jorge Cavalcanti, et alli (org.). O direito material e processual do trabalho dos novos tempos – Estudos em homenagem ao professor Estêvão Mallet. São Paulo: LTr, 2009. ALMEIDA, Almiro Eduardo de; SEVERO, Valdete Souto. Direito à desconexão nas relações sociais de trabalho. São Paulo: LTr, 2014. CROSS, Rupert; HARRIS, J. W. Precedent in English Law. 4. ed. Clarendon Law Series. Oxford: Oxford University Press, 1991. DIDIER JR., Fredie, et alli. Curso de direito processual civil. v. 2. 9. Salvador: JusPodivm, 2014. DWORKIN, Ronald. O império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007. FARAH, Gustavo Pereira. As súmulas inconstitucionais do TST. São Paulo: LTr, 2007. GUIMARÃES, Roberto Padilha. Vigência e aplicação da convenção n. 132 da OIT nas relações de trabalho no Brasil. São Paulo: Memória Jurídica, 2006. LAMY, Eduardo de Avelar; LUIZ, Fernando Vieira. Contra o aspecto prospectivo do precedente: uma crítica hermenêutica a Frederick Schauer. Revista de Processo. v. 250. ano 40. p. 383-402.São Paulo: Ed. RT, dez. 2015. LUNARDI, Alexandre. Função social do direito ao lazer nas relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2010. McCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ______. Retórica e estado de direito – Uma teoria da argumentação jurídica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2011. ______; MITIDIERO, Daniel. Repercussão geral no recurso extraordinário. 3. ed. São Paulo: Ed. RT, 2013. MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas – do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2013. _______. Precedentes – da persuasão à vinculação. São Paulo: Ed. RT, 2016. _______. Precedentes, jurisprudência e súmulas no Novo Código de Processo Civil Brasileiro. Revista de Processo. v. 245. ano 40. São Paulo: Ed. RT. p. 333-349, jul. 2015. NEVES, António Castanheira. Fontes do direito – contributo para uma revisão de seu problema. Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, número especial: “Estudos em homenagem aos professores doutores M. Paulo Merêa e G. Braga da Cruz”. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1982. _______. A unidade do sistema jurídico: o seu problema e o seu sentido (diálogo com Kelsen). Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, número especial: “Estudos em homenagem ao professor doutor J. J. Teixeira Ribeiro”. Coimbra: Universidade de Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho com súmulas na sistemática de precedentes no novo CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4 Página 13 Coimbra, 1979. NUNES LEAL, Victor. Passado e futuro da Súmula do STF. Revista da AJURIS. n. 25. Porto Alegre. p. 46-67, jul. 1982. RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2005. RIBEIRO DE VILHENA, Paulo Emílio. Os prejulgados, as súmulas e o TST. Revista de Informação Legislativa. n. 55. ano 14. Brasília. p. 83-100, jul.-set. 1977. SANDEL, Michael. Justiça – o que é fazer a coisa certa. 13. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. _______. O que o dinheiro não compra – os limites morais do mercado. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. SCHAUER, Frederick. Precedente. In: DIDIER Jr., Fredie; et alli (coord.). Precedentes. Coleção Grandes Temas do Novo CPC. v. 3. Salvador: JusPodivm, 2015. MARTINS, Sérgio Pinto. Flexibilização das condições de trabalho. São Paulo: Atlas, 2000. 1 A ilustração é de Edward Allan Fransworth (Introdução ao sistema jurídico dos Estados Unidos), apud DIDIER JR., Fredie, et alli. Curso de direito processual civil. v. 2. 9. Salvador: JusPodivm, 2014, p. 403. 2 NEVES, António Castanheira. Fontes do direito – contributo para uma revisão de seu problema. Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, número especial: “Estudos em homenagem aos professores doutores M. Paulo Merêa e G. Braga da Cruz”. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1982, p. 278-80, passim. 3 NEVES, António Castanheira. A unidade do sistema jurídico: o seu problema e o seu sentido (diálogo com Kelsen). Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, número especial: “Estudos em homenagem ao professor doutor J. J. Teixeira Ribeiro”. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1979, p. 171. 4 O autor foi, com orgulho, servidor desse Tribunal, e pode testemunhar “de dentro” o empenho dos magistrados em desempenhar a função jurisdicional com relevância social. A Súmula 77 somente está sendo usada como ilustração para a crítica. Na verdade, é preciso considerar que o sistema processual trabalhista tem uma peculiaridade em relação ao tema: a Lei 13.015/2014 (portanto: anterior ao Novo CPC) alterou significativamente a sistemática do recurso de revista, passando o art. 896, §§ 3.º e 4.º, da CLT (LGL\1943\5), a impor a instauração do antigo incidente de uniformização de jurisprudência (art. 476 e ss. do CPC de 1973) quando constatada divergência jurisprudencial interna em um Tribunal Regional do Trabalho, forçando-o a editar súmula para dissipá-la. Trata-se de programa que não se coaduna com a sistemática de súmulas do Novo CPC, como adiante se verá. Essa incompatibilidade não será analisada no presente artigo e reforça a ideia de que a Súmula 77 do TRT4 serve apenas como exemplo da crítica que se aplica a diversas outras súmulas de diversos outros Tribunais. Fica o registro, contudo, de que a incongruência entre o art. 896 da CLT (LGL\1943\5) com redação dada pela Lei 13.015/2014 e o Novo CPC constitui desafio a ser superado pela comunidade científica. 5 Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. § 1.º Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante. § 2º Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação. Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho com súmulas na sistemática de precedentes no novo CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4 Página 14 6 Está-se falando do conceito de Direito como “integridade” (law as integrity), de Ronald Dworkin (cf. O império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 271 e ss.), o qual pressupõe a adoção da tese da resposta certa, e que nem de longe é consenso entre os operadores do Direito, sendo inclusive desaconselhável o legislador tomar posição a respeito. Quem aponta essa circunstância é MITIDIERO, Daniel. Precedentes, jurisprudência e súmulas no Novo Código de Processo Civil Brasileiro. Revista de Processo. v. 245. ano 40. São Paulo: Ed. RT, jul. 2015, p. 341-342. 7 Sem adentrar na ainda incipiente discussão a respeito da divisão de trabalho entre as cortes ordinárias e as extraordinárias, vale a pena conferir, entre outros, MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas – do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2013. Segundo Mitidiero (em outro texto), nas cortes ordinárias, a interpretação do direito é um meio para o fim de realizar a justiça do caso concreto; nas extraordinárias, o caso concreto é um meio para o fim interpretação do direito. Cf. MITIDIERO, Daniel. Precedentes, jurisprudência e súmulas... cit. p. 337. Nessa concepção, a justiça do caso concreto é o fim imediato dos tribunais ordinários. A unidade do direito é um fim apenas mediato. Já nos tribunais extraordinários, a justiça do caso concreto (fim mediato) será resultado da promoção da unidade do direito (fim imediato), ainda que possivelmente de acordo com outra concepção de justiça (a de que justo é tratar casos iguais de modo igual). Sobre o tema vale a pena conferir, ainda, MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Repercussão geral no recurso extraordinário. 3. ed. São Paulo: Ed. RT, 2013, p. 11-23. 8 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2011, p. 215. 9 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... cit. p. 216. 10 McCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Ver, também, McCORMICK, Neil. Retórica e estado de direito – Uma teoria da argumentação jurídica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. 11 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2005, passim. Outra fonte para essa máxima, na Teoria dos Precedentes, costuma-se atribuir a Henry de Bracton: treat like cases alike. Cf. CROSS, Rupert; HARRIS, J. W. Precedent in English Law. 4. ed. Clarendon Law Series. Oxford: Oxford University Press, 1991, p. 3. 12 McCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 96. Raciocínio bastante semelhante é desenvolvido por Frederick Schauer, inclusive referindo-se explicitamente ao pensamento de McCormick: “O argumento vindo de um precedente parece, a princípio, orientado para a retrospectiva. A perspectiva tradicional sobre os precedentes, dentro e fora do Direito, tem, desta maneira, focado no uso dos precedentes do passado nasdecisões atuais. Entretanto, de uma maneira igualmente se não mais importante, uma argumentação por precedente se projeta também para o futuro, pedindo-nos para olhar as decisões de hoje como um precedente para os julgadores do amanhã. Hoje não é apenas o futuro do passado; é, do mesmo modo, o ontem do amanhã. Um sistema de precedentes, assim, envolve a responsabilidade especial que acompanha o poder de comprometer o futuro antes de chegarmos lá”. SCHAUER, Frederick. Precedente. In: DIDIER Jr., Fredie; et alli (coord.). Precedentes. Coleção Grandes Temas do Novo CPC. v. 3. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 50-51. 13 Sobre ratio decidendi, ver, entre outros, MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... cit., p 221-327. 14 Cf. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... cit., p. 120-213. MITIDIERO, Daniel. Precedentes – da persuasão à vinculação. São Paulo: Ed. RT, 2016, Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho com súmulas na sistemática de precedentes no novo CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4 Página 15 passim. SCHAUER, Frederick. Op. cit., p. 76-83. 15 Sobre as razões para as decisões do STF valerem como precedentes, cf. MITIDIERO, Daniel. Precedentes – da persuasão à vinculação. São Paulo: RT, 2016 e MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas – do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2013. 16 DIDIER JR., Fredie, et alli. Curso de direito processual civil. v. 2. 9. Salvador: JusPodivm, 2014, p. 404. 17 RIBEIRO DE VILHENA, Paulo Emílio. Os prejulgados, as súmulas e o TST. Revista de Informação Legislativa. ano 14. n. 55. Brasília, jul.-set. 1977, p. 96. 18 DIDIER JR., Fredie, et alli. Curso de direito processual civil. v. 2. 9. Salvador: JusPodivm, 2014, p. 403. 19 RIBEIRO DE VILHENA, Paulo Emílio. Op. cit., p. 98. 20 ABDALA, Vantuil. Direito sumular do trabalho. In: BOUCINHAS FILHO, Jorge Cavalcanti, et alli (org.). O direito material e processual do trabalho dos novos tempos – Estudos em homenagem ao professor Estêvão Mallet. São Paulo: LTr, p. 575. 21 Sobre o tema, vale a pena conferir, entre outros, RIBEIRO DE VILHENA, Paulo Emílio. Os prejulgados, as súmulas e o TST. Revista de Informação Legislativa. n. 55. ano 14. Brasília, jul.-set. 1977, p. 83-100. 22 FARAH, Gustavo Pereira. As súmulas inconstitucionais do TST. São Paulo: LTr, 2007, p. 26-34. 23 NUNES LEAL, Victor. Passado e futuro da Súmula do STF. Revista da AJURIS. n. 25. jul. 1982, p. 46-50. 24 MITIDIERO, Daniel. Precedentes, jurisprudência e súmulas... ci., p. 339. Curioso que, já nas Ordenações Filipinas, Lei de 18.08.1769, lia-se, a respeito dos assentos, que as interpretações das leis dadas pela Casa de Suplicação constituiriam “leis inalteráveis para sempre se observarem como tais debaixo das penas estabelecidas” (§ 4.º) e, na exposição de motivos do CPC de 1973, que o anteprojeto daquele Código estabelecia os assentos “com força de lei” (art. 519, e p. 29 da Exposição de Motivos). 25 Cf., do Novo CPC: art. 311, III; art. 332, I e IV; art. 489, V e VI; art. 498, § 4.º, I; art. 521, IV; art. 927, II e IV; art. 932, IV, a e V, a; art. 955, I; art. 965, § 5.º; art. 988, III; art. 1.035, § 3.º. 26 Na verdade, os adeptos mais fervorosos da teoria dos precedentes como ferramenta em prol da Unidade do Direito, em homenagem à segurança jurídica e à igualdade, sustentam que esse constrangimento decorre não das normas do Novo CPC, mas da própria lógica racional que institui o sistema de precedentes judiciais. A vinculação aos precedentes seria uma consequência racional do sistema judiciário de solução de controvérsias e da interpretação do ordenamento jurídico feita pelos tribunais. Cf, sobre todos, MITIDIERO, Daniel. Precedentes – da persuasão à vinculação. São Paulo: Ed. RT, 2016. 27 Para compreensão do modo como os tribunais extraordinários promovem a Unidade do Direito, uns através do controle, outros da interpretação, cf. MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas – do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2013. 28 SCHAUER, Frederick. Op. cit., p. 50-53. Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho com súmulas na sistemática de precedentes no novo CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4 Página 16 29 LAMY, Eduardo de Avelar; LUIZ, Fernando Vieira. Contra o aspecto prospectivo do precedente: uma crítica hermenêutica a Frederick Schauer. Revista de Processo. v. 250. ano 40. São Paulo: Ed. RT, dez. 2015. p. 383-402. 30 SCHAUER, Frederick. Op. cit., p. 56. 31 Os exemplos são de Frederick Schauer, em SCHAUER, Frederick. Op. cit., p. 56. 32 DIDIER JR., Fredie, et alli. Curso de direito processual civil...cit., p. 404. 33 MITIDIERO, Daniel. Precedentes, jurisprudência e súmulas no Novo Código de Processo Civil Brasileiro. Revista de Processo. v. 245. ano 40. São Paulo: Ed. RT, jul. 2015, p. 344. 34 Sobre esse interessante tema, embora mais especificamente sobre a duração da jornada de trabalho, cf. obra de dois juízes do trabalho do TRT4: ALMEIDA, Almiro Eduardo de; SEVERO, Valdete Souto. Direito à desconexão nas relações sociais de trabalho. São Paulo: LTr, 2014. E também: LUNARDI, Alexandre. Função social do direito ao lazer nas relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2010. 35 Na verdade, o início da vigência da Convenção 132 da OIT e a sua hierarquia normativa são objeto de polêmica em âmbito doutrinário. Apenas para não desviar o foco, o presente estudo assume as hipóteses de vigência mais tardia e de menor status normativo. Para aprofundamento, cf. GUIMARÃES, Roberto Padilha. Vigência e aplicação da convenção n. 132 da OIT nas relações de trabalho no Brasil. São Paulo: Memória Jurídica, 2006, especialmente p. 149-153. 36 Sobre as férias trabalhistas depois da incorporação da Convenção 132 da OIT, cf. MARQUES, Fabíola. Férias – Novo regime da convenção n. 132 da OIT. São Paulo: LTr, 2007. 37 Talvez esse seja o tema que acenda as controvérsias mais acirradas na doutrina trabalhista, devido às matrizes ideológicas econômicas subjacentes aos polos a partir dos quais é analisado. Apenas a título de ilustração, cf. MARTINS, Sérgio Pinto. Flexibilização das condições de trabalho. São Paulo: Atlas, 2000, p. 42: “O Direito do Trabalho, de modo geral, é extremamente rígido, de forma a estabelecer uma proteção à parte mais fraca da relação trabalhista, que é o empregado, o hipossuficiente. Em razão dessa rigidez, acaba criando um efeito inverso. Em vez de proteger, acaba desprotegendo, porque o trabalhador é colocado à margem do sistema legal”. 38 Em pesquisa realizada pelo Ibope em parceria com a Confederação Nacional das Indústrias, a maioria dos brasileiros se mostra favorável a mudanças que flexibilizem algumas regras trabalhistas: 71% gostaria de ter flexibilidade de horário de trabalho; 73% gostariam de poder trabalhar de casa quando precisassem; 53% gostariam de poder dividir as férias em mais de dois períodos; 58% gostariam de poder entrar em acordo com o chefe para reduzir o horário de almoço e sair mais cedo; 63% gostariam de poder entrar em acordo com o chefe para trabalhar mais horas por dia em troca de mais folgas na semana e 62% gostariam de poder receber o vale-transporte diretamente em dinheiro. Disponível em: [www.portaldaindustria.com.br/cni/publicacoes-e-estatisticas/estatisticas/2016/03/1,84849/rsb-29-flexibilidade.html]. Acesso em: 19 abr. 2016. 39 Sobre as implicações morais das escolhas que fazemos com base no mercado, cf. SANDEL, Michael. O que o dinheiro não compra – os limites morais do mercado. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. 40 Trata-se de uma ética libertária, em que ser autônomo se aproxima muito do ser Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho com súmulas na sistemática de precedentes no novo CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4 Página 17 individual, comumente vista para justificar os interesses dos empresários e, paradoxalmente, justificando, desta vez, os interesses dos empregados. Sobre as diferentesconcepções éticas predominantes no ocidente, cf. SANDEL, Michael. Justiça – o que é fazer a coisa certa. 13. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. Especificamente sobre a ideologia libertária, p.77-94; sobre a comunitarista, p. 231-297. 41 Para ilustrar essa afirmação, colhem-se julgamentos de todas as Turmas do TST, todos (exceto o primeiro) prolatados há menos de um ano: RR – 134200-23.2004.5.04.0371, rel. Min. Walmir Oliveira da Costa, j. 13.03.2013, 1.ª T., DEJT 15.03.2013; RR – 155700-39.2009.5.04.0382, rel. Min. José Roberto Freire Pimenta, j. 09.03.2016, 2.ª T., DEJT 18.03.2016; RR – 20598-10.2013.5.04.0122, rel. Min. Mauricio Godinho Delgado, j. 16.03.2016, 3.ª T., DEJT 22.03.2016; RR – 729-60.2013.5.04.0381, rel. Min. Maria de Assis Calsing, j. 09.03.2016, 4.ª T., DEJT 11.03.2016; RR – 1995-10.2012.5.04.0384, rel. Min. Antonio José de Barros Levenhagen, j. 16.03.2016, 5.ª T., DEJT 18.03.2016; RR – 161400-93.2009.5.04.0382, rel. Des. Convocado: Américo Bedê Freire, j. 24.06.2015, 6.ª T., DEJT 26.06.2001; ED-RR – 1275-41.2010.5.15.0082, rel. Min. Douglas Alencar Rodrigues, j. 08.04.2015, 7.ª T., DEJT 17.04.2015; RR – 784-02.2013.5.04.0384, rel. Min. Dora Maria da Costa, j. 06.04.2016, 8.ª T., DEJT 08.04.2016. 42 Negando a validade do fracionamento das férias de empregado do setor calçadista, inclusive com expressa referência à previsão da norma coletiva: RR – 784-02.2013.5.04.0384, rel. Min. Dora Maria da Costa, j. 06.04.2016, 8.ª T., DEJT 08.04.2016. Permitindo o fracionamento por causa da previsão em norma coletiva, com intervalo de menos de um ano da decisão anteriormente referida, e dentro da mesma Turma Julgadora: ARR – 200-06.2011.5.04.0383, rel. Min. Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, j. 03.06.2015, 8.ª T., DEJT 08.06.2015. 43 Apenas a título ilustrativo, antes da edição da Súmula 77: 0000381-06.2013.5.04.0102 (RO), 14.05.2015, 2.ª T., Redator: Alexandre Corrêa da Cruz; 0000604-83.2013.5.04.0384 (RO), 23.07.2015, 10.ª T., Redator: Luis Carlos Pinto Gastal; 0001530-44.2011.5.04.0381 (RO), 18.02.2014, 9.ª T., Redator: Marçal Henri dos Santos Figueiredo (admitindo o fracionamento por haver previsão em norma coletiva, empresa do setor calçadista); 0001055-39.2013.5.04.0019 (RO), 30.04.2015, 4.ª T., Redator: André Reverbel Fernandes (admitindo o fracionamento por ter o empregado confessado que se deu a seu pedido); 0001310-03.2012.5.04.0384 (RO), 26.02.2014, 1.ª T., Redator: Marçal Henri dos Santos Figueiredo (admitindo o fracionamento por haver previsão em norma coletiva, empresa do setor calçadista); Acórdão – Processo 0020187-85.2013.5.04.0018 (RO), 03.07.2015, 6.ª T., Redator: Jose Cesario Figueiredo Teixeira (admitindo o fracionamento por haver previsão em norma coletiva); 0001425-87.2013.5.04.0384 (RO), 16.07.2015, 5.ª T., Redator: Brígida Joaquina Charão Barcelos Toschi (inclusive contrariando disposição de norma coletiva autorizando o fracionamento). A partir da Súmula 77: 0010398-45.2013.5.04.0541 (RO), 17.09.2015, 11.ª T., Redator: Flávia Lorena Pacheco; 0020134-48.2014.5.04.0381 (RO), 8.ª T., Relator: Juraci Galvão Junior; 0020186-35.2014.5.04.0384 (RO), 1,ª T., Relator: Iris Lima de Moraes; 0020553-23.2015.5.04.0029 (RO), 3.ª T., Relator: Gilberto Souza dos Santos (decisão fundamentada na previsão de fracionamento das férias em normas coletivas); 0021226-95.2014.5.04.0014 (RO), 1.ª T., Relator: Jose Cesario Figueiredo Teixeira; 0000630-81.2013.5.04.0384 (RO), 10.12.2015, 8.ª T., Redator: João Paulo Lucena (com ressalva de entendimento pessoal do Exmo. Relator e expressa submissão à Súmula 77). 44 Vale reiterar, aqui, que o sistema processual trabalhista tem uma peculiaridade (problematizada pelo Novo Código), conforme apontou-se na nota de rodapé n. 4, na introdução deste trabalho. Os §§ 3.º e 4.º do art. 896 da CLT (LGL\1943\5) (com redação dada pela Lei 13.015/2014) impõem aos Tribunais Regionais de Trabalho a editar súmulas para dissipar divergência jurisprudencial, mediante a instauração do antigo incidente de uniformização de jurisprudência – sem equivalente no Novo CPC. O Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho com súmulas na sistemática de precedentes no novo CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4 Página 18 fato de o processo do trabalho apresentar essa peculiaridade reforça a noção de que a Súmula 77 do TRT4 é tomada aqui apenas como exemplo que serve para inúmeras outras súmulas de tribunais brasileiros. 45 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... cit., p. 484. 46 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... cit., p. 484. 47 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... cit., p. 218. 48 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios... cit., p. 485. Como (não) editar uma súmula: o desafio do trabalho com súmulas na sistemática de precedentes no novo CPC e o caso da Súmula 77 do TRT4 Página 19