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13 P o d e fa la r so b re g ên er o n a es co la ? A le x a n d re B o rt o li n i Alexandre Bortolini Pode falar sobre gênero na escola? SE VOCÊ TRABALHA COM EDUCAÇÃO NO BRASIL, certamente já ouviu uma palavra que tem ganhado os holofotes em muitas polêmicas nos últimos anos: GÊNERO. Talvez você tenha conhecido o termo em alguma aula, palestra ou livro que leu. Talvez o tenha visto ou ouvido pela primeira vez em um vídeo ou uma postagem nas redes sociais. Talvez essa palavra tenha chegado até você pelas mãos de um especialista ou embalada em fakenews e teorias da conspiração disseminadas na internet. Diante de tanta (des)informação, fica difícil construir um entendimento. O que significa, afinal, “gênero”? Qual a utilidade desse conceito para a educação escolar? E por que tantas pessoas têm medo de que essa palavra seja usada na escola? A proposta deste texto é responder a essas perguntas de forma simples. Ao longo dos parágrafos, além de uma explicação geral, você terá também acesso a informações mais detalhadas sobre cada argumento trazido aqui, podendo assim se aprofundar um pouco mais no tema. Vamos lá? Gênero é um conceito construído pelas ciências humanas no último século. Exato. Não é uma ideologia, nem um movimento, nem um partido político, mas um conceito científico. Existem muitas formas de contar a história desse conceito. Uma das suas origens está na Antropologia, especialmente em estudos feitos a partir do início do século XX. Até aquele momento, tudo o que se sabia sobre as relações entre homens e mulheres vinha da biologia 15 P o d e fa la r so b re g ên er o n a es co la ? A le x a n d re B o rt o li n i ou da religião. As explicações que vinham de um campo ou de outro atribuíam as distinções de comportamento, corpo e função social de homens e mulheres a uma “diferença sexual” inata. Produzida por genes ou pela criação divina, essa diferença já estaria marcada nos corpos e seria compartilhada por todos os seres humanos, independentemente do tempo ou da sociedade em que existissem1. Essa explicação, no entanto, começaria a ser questionada a partir de pesquisas etnográficas produzidas por estudiosos da cultura em sociedades de diferentes partes do 1 Sob o impacto da teoria da evolução de Charles Darwin, cientistas ocidentais desenvolveram, a partir da segunda metade do século XIX, teses que apontavam supostas diferenças biológicas como causa do comportamento humano. A ideia de que estava na fisiologia a explicação do comportamento e das diferenças serviu para justificar a dominação colonial, a escravidão e a segregação racial. Essas teses deram origem ao que hoje chamamos de “racismo científico”, um dos fundamentos ideológicos das políticas eugenistas que se espalharam por todo o mundo até meados do século XX, inclusive no Brasil, e que tem no Nazismo a sua expressão mais conhecida. Assim como a “raça”, essas teorias também explicavam as desigualdades entre homens e mulheres a partir de supostas diferenças biológicas. Era também na fisiologia que buscavam a “causa” de comportamentos sexuais à época considerados “desviantes”. É assim que a palavra “homossexualismo” é criada, por exemplo, para descrever o que estes teóricos entendiam como uma “deformação” fisiológica que produziria um “desvio de caráter”. Hoje não é difícil perceber o quanto essas “teorias” estavam bastante influenciadas pela cultura (racista e machista) das sociedades que as produziram. Se a existência de raças biológicas já foi definitivamente negada pela ciência, ainda persiste a ideia de que está no corpo (genes, neurônios, hormônios) a explicação principal para diferenças de comportamento, expressão e função social de mulheres e homens. 16 P o d e fa la r so b re g ên er o n a es co la ? A le x a n d re B o rt o li n i globo que mostravam como diferentes sociedades atribuíam significados muito diversos ao masculino e ao feminino. O que esses pesquisadores perceberam? Que o que definia uma “mulher” ou um “homem” não era uma constante em todas as culturas, pelo contrário, era possível identificar uma grande variação cultural dos sentidos de masculinidade e feminilidade nos mais diferentes povos que habitavam esse planeta. Variações que contrastavam, às vezes de maneira bastante radical, com o que esses pesquisadores tinham como referência em seus países de origem2. Em algumas culturas não era necessariamente o corpo, ou só o corpo, que determinava se uma pessoa era um homem ou uma mulher. Em outras, era possível para alguns indivíduos transitar por essas posições, sem que isso fosse um problema. Algumas sociedades inclusive valorizavam pessoas que 2 A antropóloga estadunidense Margaret Mead é uma das pioneiras em estudos desse tipo. Suas investigações sobre três sociedades da Nova Guiné, registradas no livro Sexo e Temperamento, de 1935, identificaram variações muito grandes nos sentidos e funções que cada cultura atribuía a homens e mulheres. Se entre os Arapesh, Mead encontrou um “temperamento pacífico” em ambos os sexos, entre os Mundugumor a realidade era exatamente o contrário e tanto homens quanto mulheres tinham um “temperamento bélico”. Já entre os Tchambuli, os homens gastavam tempo se enfeitando enquanto as mulheres trabalhavam e tinham um “temperamento prático”, em contraste com a cultura norte-americana em que Mead tinha sido criada. A conclusão da pesquisadora é que, se é possível encontrar formas tão diferentes de entender o feminino e o masculino nas diversas sociedades, então os temperamentos que atribuímos a homens e mulheres não são inatos, mas definidos nas relações sociais (MEAD, 1979). 17 P o d e fa la r so b re g ên er o n a es co la ? A le x a n d re B o rt o li n i reuniam ao mesmo tempo em si atributos masculinos e femininos. Outras cultuavam divindades que transitavam ou misturavam essas posições. Mesmo em culturas onde havia um limite muito demarcado entre masculino e feminino, o significado, as características, as práticas e lugares sociais atribuídos a homens e mulheres podiam ser muito diferentes daquelas encontradas nas sociedades europeias3. Se a Antropologia ajudava a identificar a variação entre culturas, através da História era também possível perceber como os sentidos atribuídos a homens e mulheres mudavam ao longo do tempo. Em uma mesma sociedade o significado de feminino e masculino se transformava com o passar das décadas e dos séculos. O lugar e a função social delegada a mulheres e homens, também. De tal forma que, se já era 3 Em The Sacred Hoop: Recovering the Feminine in American Indian Traditions, Paula Gunn Allen (1992) afirma que muitas sociedades nativas norte- americanas eram matriarcais, reconheciam mais de duas possibilidades de identificação sexual que não estavam primariamente definidas pela anatomia e percebiam práticas “homossexuais” de forma positiva. Em The Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender Discourses, a pesquisadora nigeriana Oyèrónké Oyèwùmí (1997) defende que o processo de colonização introduziu novos significados sobre ser mulher e homem que não existiam previamente na sociedade Iorubá. Segundo a pesquisadora Rita Segato (2012), entre povos indígenas, como os Warao da Venezuela, Cuna do Panamá, Guayaquís do Paraguai, Trio do Suriname, Javaés do Brasil e o mundo inca pré-colombiano, assim como em vários povos originários dos Estados Unidos e do Canadá é possível encontrar práticas de transição entre o masculino e feminino, assim como uniões entre pessoas que o ocidente entenderia como do mesmo sexo. 18 P o d e fa la r so b re g ên er o n a es co la ? A le x a n d re B o rt o li n i evidente que não era possível dizer que existia uma única definição de masculino e feminino compartilhada por todas as culturas, também ficava evidente que a definição que se tinha no presentenão esteve sempre aí, ao contrário, se modificava com o passar do tempo4. Essas pesquisas foram se acumulando e começaram a colocar em xeque a ideia de uma “diferença sexual” inata, fixa e universal como causa e explicação da função social e das relações entre homens e mulheres. Afinal, se os significados de masculino e feminino variavam tanto no espaço quanto no tempo, então esses significados não podiam ser atribuídos a qualquer “natureza” biológica, mas eram produzidos pelas culturas e se transformavam ao longo da história. A palavra “sexo” já não era mais suficiente para explicar essa enorme variação cultural. Era preciso então um novo termo para falar especificamente sobre a dimensão cultural das relações entre homem e mulher. E é aí que a palavra “gênero” começa a ser usada por pesquisadores: para se referir ao caráter social e histórico das relações entre homens e mulheres e dos sentidos 4 Se observarmos a história das mulheres no Brasil, não é difícil perceber como seu lugar na sociedade se transformou ao longo dos séculos. De diversas formas de submissão, que iam do casamento forçado à escravidão, as mulheres conquistaram a liberdade, o direito de votar e chegaram até a Presidência da República. Se é certo que ainda existem muitas desigualdades em relação aos homens, também são inegáveis as transformações do papel das mulheres na sociedade brasileira. (BIROLI, MIGUEL, 2015) 19 P o d e fa la r so b re g ên er o n a es co la ? A le x a n d re B o rt o li n i atribuídos ao masculino e ao feminino. Gênero se tornou então o conceito científico para compreender como uma série de práticas, relações e significados, antes pensados como naturais, fixos e universais, eram, em verdade, produzidos pela cultura5. Esse conceito deu muita força a movimentos que lutavam por uma mudança do lugar da mulher na sociedade que lhes garantisse direitos iguais aos dos homens. Servia para desmontar o argumento de que os “papéis” atribuídos a homens e mulheres eram “naturais”. Se as relações entre homens e mulheres nem “sempre foram assim”, nem eram 5 Simone de Beauvoir, escritora e ativista francesa, lançou, no seu livro O Segundo Sexo (1949), a ideia de que não se nasce mulher, torna-se mulher. Essa afirmação já chamava atenção para a dimensão social da experiência feminina e remetia a uma distinção entre como nascemos e quem nos tornamos a partir da vivência na nossa cultura. Mas foi o psicólogo John Money, neozelandes radicado nos Estados Unidos, o primeiro a usar a palavra “gênero” para se referir à dimensão social da distinção entre homens e mulheres. Money trabalhava com crianças intersexo, ou seja, cuja formação corporal trazia características que tornavam difícil enquadrá-las binariamente no modelo de dois sexos. No seu trabalho, ele percebeu que as pessoas se identificavam e se comportavam de acordo com como foram criadas, mais do que com o sexo ao qual efetivamente pertenceriam. Essa distinção entre a anatomia e o comportamento foi traduzida conceitualmente como uma diferença entre sexo (dimensão física) e gênero (dimensão social). O termo gênero foi rapidamente apropriado por várias teóricas que estudavam a experiência das mulheres e as desigualdades entre entre os sexos. Gênero passou a ser - e segue sendo - um termo recorrente no pensamento científico, usado de formas variadas, mas sempre para se referir à dimensão social, cultural e histórica da distinção masculino/feminino. 20 P o d e fa la r so b re g ên er o n a es co la ? A le x a n d re B o rt o li n i assim “em todos os lugares”, isso significa que elas não estavam pré-determinadas e podiam ser transformadas aqui e agora. O casamento como destino natural, a maternidade como missão, a submissão da esposa ao marido, todas essas noções vão ser fortemente abaladas quando passa a ser a cultura, e não a natureza, quem determina a função social de mulheres e homens.6 A sexualidade é um dos aspectos da vida que foram fortemente impactados a partir do surgimento de uma perspectiva de gênero. A ideia de uma diferença sexual inata está na base de uma compreensão das nossas práticas sexuais e afetivas que naturaliza a heterossexualidade, que a estabelece como “natural”, a partir da qual todas as outras 6 Feminismo é o nome que geralmente atribuímos a um conjunto muito diverso de movimentos que vem, há décadas, lutando pelos direitos das mulheres. Esses movimentos ganham expressão importante na virada do século XIX para o XX, quando em diferentes partes do globo mulheres lutaram e conquistaram o direito ao voto. Após a Segunda Guerra Mundial, com a entrada massiva de mulheres no trabalho assalariado e o desenvolvimento da pílula anticoncepcional, esses movimentos ganham um novo impulso. A partir principalmente dos anos 80, muitos desses movimentos começaram a incorporar uma perspectiva de gênero para questionar de forma profunda a forma como a própria noção de “mulher” era construída socialmente. Apesar de parecer recente, essa é uma luta secular. Seja resistindo à escravidão, lutando contra a colonização e destruição de seus povos ou confrontando a Inquisição, mulheres em diferentes partes do mundo vem, há muito tempo, batalhando por direitos iguais e liberdade. (BIROLI, MIGUEL, 2015) 21 P o d e fa la r so b re g ên er o n a es co la ? A le x a n d re B o rt o li n i serão percebidas como desvio ou doença7. Também nesse campo foi possível demonstrar, através de pesquisas, como o exercício da sexualidade humana foi e segue sendo bem mais diverso e variável do que qualquer modelo supostamente fixo e universal. Como práticas sexuais hoje condenadas já foram socialmente valorizadas. Como a definição de família é bastante variável e pode tomar formas muito distintas em diferentes culturas8. 7 Entre o conjunto de coisas que definem socialmente o que é ser mulher/ homem está também a dimensão sexual e afetiva. Há uma série de ideias e discursos que circulam na nossa cultura que dizem sobre como homens e mulheres sentem (ou deveriam sentir) prazer, como lidam (ou deveriam lidar) com seus sentimentos e como e com quem se relacionam (ou deveriam se relacionar). Se aquele bebê foi colocado na caixa dos homens, ele vai aprender que homens devem reprimir suas emoções, que homens podem e devem dar vazão à sua libido e que o objeto de desejo do homem é a mulher. Se a caixa foi a das meninas, ela vai aprender cedo que mulheres são mais sentimentais, destinadas à maternidade e que fazer-se bonita é fundamental para conquistar seu objeto de desejo afetivo-sexual: os homens. É sobre este ordenamento de gênero que vamos vivenciar a experiência da sexualidade, tendo a heterossexualidade como modelo e norma. 8 O termo orientação sexual e afetiva é usado para falar da atração, o desejo sexual e afetivo que uma pessoa sente por outras. Homo, hetero, bi, pan ou assexual são formas de “categorizar” esse desejo. Essas categorias, assim como todas as classificações, não dão conta da enorme diversidade humana. Podemos então pensar de fato que existem múltiplas expressões da sexualidade e do afeto. Além disso, que essas práticas e desejos sexuais e afetivos não são algo sólido e monolítico que, uma vez construído, se mantém rígido por toda a vida. Nossa sexualidade, nosso modo de amar e de nos relacionarmos é algo em permanente construção e transformação. 22 P o d e fa la r so b re g ên er o n a es co la ? A le x a n d re B o rt o li n i Se a sexualidade foi um campo radicalmente afetado pelo conceito de gênero, ela não foi o único. Uma perspectiva de gênero passou a ser fundamental para compreender múltiplas dimensões da experiência humana: a formação das nossas subjetividades, a construção da nossa identidade, nossas relações de trabalho e a distribuição dos recursos materiais que ele gera, a nossa linguagem, os nossos sistemas políticos. Da economia à educação,da ciência política à psicologia, existe hoje um vasto campo interdisciplinar de pesquisa científica organizado em torno desse conceito a que chamamos: estudos de gênero. Um dos grandes desafios hoje desse campo de estudo é não só perceber como as relações de gênero variam, mas como elas foram e seguem sendo produzidas, reproduzidas e transformadas. E é aí que a educação ganha um papel central. Pesquisas vem se dedicando a entender não só como as famílias, mas também como as escolas ensinam modos de ser homem e mulher. Se é certo que muitas crianças já chegam à escola com noções de gênero que aprenderam em casa, também a escola desempenha um papel importante no reforço (ou na transformação) dessas noções. Vale lembrar que na primeira metade do século passado a educação de meninos e meninas (daqueles que tinham acesso à escola no Brasil) ainda era separada. Mesmo quando quase todas as escolas se tornaram mistas, ainda assim é possível encontrar distinções na educação dada a meninos e meninas. E agora nós contamos com um conceito e todo um campo científico capaz de nos ajudar a perceber como essas diferenças são construídas. 23 P o d e fa la r so b re g ên er o n a es co la ? A le x a n d re B o rt o li n i É para isso que serve falar sobre gênero na escola. Para nos ajudar a perceber como nas nossas aulas, livros, brincadeiras e mais todo tipo de discurso e prática escolar nós (re)produzimos noções sobre masculino e feminino. E como esses discursos e práticas afetam a construção da subjetividade das pessoas que habitam a comunidade escolar. Nos ajuda a sair do automático e entender os efeitos de certas práticas pedagógicas que muitas vezes simplesmente repetimos acriticamente. Gênero é uma forma de refletir sobre nosso trabalho, sobre nossas relações e sobre nós mesmos. Uma reflexão que nos ajuda a perceber os efeitos, em nós e nos outros, das nossas práticas. E que, a partir daí, nos permite decidir de forma mais consciente que tipo de educação nós queremos e quais as consequências dessas escolhas. É claro que falar sobre gênero tem efeitos políticos. Estamos falando justamente sobre nós, nossas práticas, nossas relações. Fazer uma reflexão crítica sobre isso pode nos provocar desconforto, tirar algumas certezas do lugar, fazer ver o que antes estava naturalizado. Mas é também o que permite a mudança. Nos ajuda a ver e assim poder melhor confrontar desigualdades e injustiças. E construir de forma mais autônoma nossas relações e nossa própria identidade. Mas ainda que o conceito de gênero tenha efeitos políticos, isso não o reduz a uma “ideologia”, uma invenção, uma abstração. Ele é fruto de décadas de trabalho científico. Se chegamos à conclusão que ser homem ou ser mulher é algo que vai além do sexo biológico, foi a partir de muita pesquisa e muito 24 P o d e fa la r so b re g ên er o n a es co la ? A le x a n d re B o rt o li n i estudo. Falar sobre gênero na escola também não tem nada a ver com doutrinação. Ao contrário, é um convite à reflexão, ao pensamento crítico, que nos faz questionar aquilo que parece óbvio e construir uma perspectiva autônoma para além das “ideologias” que nos foram ensinadas desde a infância. Certamente fazer essa reflexão crítica incomoda muita gente. Especialmente quem está muito confortável com a forma como as coisas estão organizadas hoje em dia. Para quem é beneficiado por esse sistema, a crítica pode ser uma ameaça. O prenúncio de uma mudança cultural que mexa com seus privilégios. Um incômodo vivido não só por indivíduos, mas também por instituições - como forças militares, partidos políticos ou organizações religiosas - que tem em certas normas de gênero a base da sua organização. Algumas dessas instituições são historicamente dominadas por homens, tem a masculinidade como referência e, mais que isso, são espaços de reprodução de normas de gênero. Não por acaso é dessas instituições que vem boa parte da reação contra o conceito de gênero, leia-se, reação à possibilidade de uma crítica a certas dinâmicas sociais que são fundantes dessas organizações. É interessante perceber que as pessoas que acusam a existência de uma “ideologia de gênero” que estaria sendo disseminada nas escolas não se dão conta de que o que o conceito de gênero faz é justamente lançar luz sobre uma série de “ideologias” que hoje regulam nossos modos de ser e de pensar o corpo, a identidade, a sexualidade e mais tantas outras dimensões da vida a partir de ideias cristalizadas sobre 25 P o d e fa la r so b re g ên er o n a es co la ? A le x a n d re B o rt o li n i masculinidade e feminilidade. A verdade é que se existe uma “ideologia de gênero” dentro das nossas escolas, ela não foi inventada, mas vem sendo justamente revelada pelos estudos de gênero. É uma “ideologia de gênero” que está lá há muito tempo, desde quando nem existia a palavra gênero, mas a escola já ensinava jeitos de ser homem e de ser mulher. Uma “ideologia de gênero” que mesmo hoje, quando todas as escolas são mistas, ainda separa meninos e meninas - nas filas, nos quadros de chamada, nas aulas de educação física, nas brincadeiras, nos banheiros. Uma “ideologia” sexista, que define - e ensina - possibilidades distintas e limitadas a depender do sexo. Em que meninas e meninos são enxergados e tratados de formas diferentes. Em que se espera deles e delas comportamentos distintos. E que torna qualquer pessoa que descumpra essas expectativas (binárias) de gênero alvo de atenção e intervenção. Essa “ideologia” sexista que ainda hoje se espalha pelas nossas escolas prejudica a formação emocional das crianças e adolescentes. Ensina meninos a não expressarem seus sentimentos, a não exporem as suas fragilidades, sob pena de terem a sua “masculinidade” questionada. A agressividade se torna então a única forma possível de extravasar suas ansiedades, suas frustrações, suas inseguranças. Por vezes essa agressividade se torna o padrão que guia a expectativa de muitos educadores sobre seus alunos. A “indisciplina” é percebida como uma característica “natural” dos meninos e a agressividade entre eles encarada como algo relativamente 26 P o d e fa la r so b re g ên er o n a es co la ? A le x a n d re B o rt o li n i normal, não raro incentivada em jogos e dinâmicas cotidianas. Ao mesmo tempo, um menino “delicado” ou “sensível” passa a ser detectado como um “problema” que demanda “intervenção”. Essa lógica sexista alimenta a construção de masculinidades tóxicas, ou seja, um modo de se construir “homem” que tem na violência um elemento central, na agressividade um modo de se afirmar, e na invasão do corpo do outro uma prática cotidiana. O assédio de meninos - quando não de professores - sobre meninas é naturalizado. Além de nocivo para os outros, essa forma de construção da masculinidade traz prejuízos também para os próprios meninos e homens e está entre as causas de problemas como baixo rendimento, evasão, envolvimento com atos infracionais, depressão e até mesmo suicídio. Essa “ideologia” sexista subestima a capacidade intelectual das mulheres e as relega apenas às funções de cuidado. Às meninas, ensina que seus corpos são um objeto sexual e que por isso devem estar sob permanente vigilância. Que serão elas mesmas as culpadas pelos assédios e violências que venham a sofrer se não “se derem ao respeito”. Demanda das meninas que sigam um preciso controle do corpo, das expressões, dos gestos, das roupas que lhes coloquem no lugar de “mulheres decentes”. As que descumprem essa “régua moral” serão chamadas de “vadias”. Sua autonomia será lida como indisciplina e apontada como razão a justificar desde seu baixo rendimento até as violências sexuais de que forem vítimas. 27 P o d e fa la r so b re g ên er o n a es co la ? A le x a n d re B o rt o li n i Essa “ideologia” sexista é ao mesmo temporacista. E enquanto repete que “somos todos iguais”, trata meninos e meninas de formas muito diferentes a depender da sua cor. Esse racismo pode se apresentar de formas sutis ou bastante explícitas. Está nas baixas expectativas que muitos professores têm sobre estudantes negros. Está mesmo no olhar condescendente que justifica na desigualdade social sua descrença nas capacidades dessas alunas e alunos. Está nas falas explicitamente racistas, mas nada incomuns nas escolas brasileiras, em que meninos negros são enxergados como “futuros bandidos” e meninas negras como “vadias” que “logo estarão grávidas” desses mesmos “bandidos”. A criminalização da juventude negra acontece também nas nossas escolas. Falas racistas não ficam restritas à sala dos professores, mas são muitas vezes lançadas diretamente sobre os estudantes. Aqui racismo e sexismo se misturam, para lançar uma imagem hipersexualizada e brutalizada sobre mulheres e homens negros. Esses são estigmas a perseguir crianças e jovens negros e negras, com quem eles e elas invariavelmente terão de lidar na construção da sua subjetividade em uma sociedade racista. Estigmas que afetam de forma significativa a sua auto- imagem, sua autoestima, suas expectativas e possibilidades de futuro. Estigmas que destroem perspectivas de vida, que reiteram um lugar de marginalidade, que criminalizam a cultura negra e periférica, que reforçam a “presunção de culpa” em que pessoas negras são percebidas de como potencialmente criminosas, seja nas manchetes de jornal, seja 28 P o d e fa la r so b re g ên er o n a es co la ? A le x a n d re B o rt o li n i nos conselhos de classe. Presunção de culpa que não poupa nem mesmo estudantes uniformizados ou crianças vítimas de abuso sexual que, pela sua cor e condição social, não tem direito à inocência, nem mesmo ao luto. Essa “ideologia” sexista é transfóbica, porque condena qualquer possibilidade de trânsito entre posições definidas já antes mesmo de uma pessoa nascer e obriga os indivíduos a assumirem uma identidade de gênero pré-determinada9. É uma educação cisnormativa, porque pressupõe que a uma determinada condição física - nascer com um 9 Segundo o parecer da Resolução no 12 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação de pessoas LGBT (BRASIL, 2015): Identidade de gênero é a dimensão da identidade de um sujeito que diz respeito a como essa pessoa se relaciona com as representações de masculinidade e feminilidade presentes em cada cultura e momento histórico, e como isso se traduz em sua prática social. A construção desta dimensão da identidade é um processo permanente, complexo e dinâmico realizado por todos os sujeitos mesmo que não seja evidente o que significa que todas as pessoas têm uma identidade de gênero. A identidade de gênero não necessariamente guarda relação com o sexo atribuído no nascimento e não tem nenhuma relação com orientação sexual. Esta identidade pode ou não corresponder à expectativa da maioria das pessoas e instituições com quem um sujeito tem de se relacionar na vida em sociedade, o que, aliado a processos de históricos de hierarquização nas relações sociais de gênero, faz com que a identidade de gênero de algumas pessoas seja reconhecida, enquanto a de outras, não. Esse não reconhecimento se materializa inclusive em processos de normalização violentos. O conceito de identidade de gênero permite que se possa reconhecer o direito de cada pessoa à livre construção da sua personalidade na relação com as concepções de masculinidade e feminilidade disponíveis na cultura. Reitera também o direito ao próprio corpo. E se constitui conceito fundamental para compreender a experiência de pessoas travestis e transexuais embora não se restrinja a elas. 29 P o d e fa la r so b re g ên er o n a es co la ? A le x a n d re B o rt o li n i pênis ou com uma vagina - corresponderiam certos tipos distintos de personalidade, expressão e identidade. Uma correspondência cisgênera que é dita “natural”, mas que funciona na verdade como uma norma. Norma que será insistentemente ensinada, reforçada, reafirmada a todo momento: do chá revelação à loja de brinquedos, do brinco que fura orelha de bebês até as violências “corretivas” para ensinar “meninos a se comportarem como meninos” e “meninas a se comportarem como meninas”. Essa é uma “ideologia” transfóbica, que violenta qualquer pessoa que ouse transgredir essa norma e não “corresponder” às expectativas de corpo, comportamento, expressão ou identificação que essa mesma norma estabelece. Essa “ideologia” produz uma escola transfóbica, que não só negligência a proteção de crianças e adolescentes, como é ela mesma vetor de violência, discriminação e exclusão. Produz forte impacto nas possibilidades de vida de pessoas trans, ao lhes negar o direito à educação que é base para a construção de outros direitos e da própria cidadania. Cria obstáculos para que completem sua escolarização, não raro produzindo sua expulsão ainda no início da adolescência ou mesmo impedindo a sua matrícula quando adultas10. Ao 10 Pesquisas realizadas pelo Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos identificaram um nível de escolarização mais baixo entre travestis e transexuais, mesmo se comparado com a escolaridade de gays e lésbicas cisgêneros (CARRARA, RAMOS, CAETANO, 2003; CARRARA et al. 2006; CARRARA, RAMOS, CAETANO, 2005; CARRARA et al., 2007). 30 P o d e fa la r so b re g ên er o n a es co la ? A le x a n d re B o rt o li n i vulnerabilizar sua existência e alimentar a transfobia, essa “ideologia” está entre as causas da menor expectativa de vida de pessoas trans. Isso mesmo: uma escola transfóbica contribui para a morte11. Essa “ideologia” sexista é também heterossexista, ou seja, opera como se a heterossexualidade fosse a única e natural forma de exercício de prazer, afeto e relacionamento. Reforça essa noção nas imagens dos livros didáticos, na contação de histórias, nas aulas de biologia. Essa “ideologia” é homofóbica, bifóbica, lesbofóbica, panfóbica, porque Diversos estudos qualitativos evidenciam experiências de discriminação, agressões físicas e verbais, isolamento, negligência, assédio e outras formas de violência e exclusão vividas por pessoas trans na escola que estão entre as principais causas da interrupção dos seus estudos. (BENTO, 2011; JUNQUEIRA, 2009; BRUNETTO, 2009; SEFFNER, 2009; PERES, TOLEDO, 2011; SALA, 2014). Em pesquisa realizada pelo Programa Transcidadania da Prefeitura de São Paulo, 71% das pessoas trans afirmaram ter parado de estudar com mais de 15 anos de idade, 24% entre 11 e 14 anos e 5% deixaram os estudos entre 7 e 11 anos. Destas, 55% pararam de estudar entre o quinto e nono ano do Ensino Fundamental, 23% entre o primeiro e quarto ano do Ensino Fundamental e 22% no Ensino Médio. A transfobia foi o motivo apontado pela evasão dos estudos por 45% das pessoas. (PREFEITURA DE SÃO PAULO, 2017) Em conjunto, esses estudos evidenciam uma clara situação de vulnerabilidade de pessoas trans quanto à garantia do direito à educação. 11 De acordo com o relatório Trans Murder Monitoring, a maior incidência de assassinatos de pessoas trans entre os anos de 2008 e 2017 concentram- se na América Latina. Dentre as 2.609 mortes registradas nesse período, 1.100 ocorreram no Brasil, o que nos coloca no lugar de país que mais mata pessoas trans no mundo (TRANSGENDER EUROPE, 2017). 31 P o d e fa la r so b re g ên er o n a es co la ? A le x a n d re B o rt o li n i invisibiliza e condena qualquer orientação sexual e afetiva que não seja a heterossexualidade. Nas escolas onde ela impera, o preconceito e a discriminação são parte do cotidiano, afetando de forma marcante a experiência das pessoas que vitimam12. Mesmo quando se diz “tolerante”, essa “ideologia” heterossexista não admite reconhecer e valorizar, em pé deigualdade, a vivência de lésbicas, gays, bi ou pansexuais. Suas histórias serão mantidas “no armário” e falar sobre qualquer coisa fora do padrão heterossexual será descrito como algo danoso, um “perigo” para as crianças e adolescentes. Ao mesmo tempo que “condena” a violência, essa “ideologia” heterossexista alimenta os estigmas que “amolam as facas” dessa mesma violência que ela ajuda a produzir. 12 Estudo realizado pela UNESCO mostra que, na escola, preconceitos e atos de discriminação contra homossexuais muitas vezes são naturalizados e banalizados. Nesse estudo, um quarto dos alunos entrevistados afirmaram que não gostariam de ter colegas homossexuais. O percentual fica maior ainda quando se trata apenas dos meninos. Entre professores, casos de discriminação nem sempre são considerados relevantes. Muitas vezes os professores não só silenciam, mas colaboram ativamente na reprodução dessas violências. (UNESCO, 2004) Uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais sobre a situação de pessoas LGBT na escola retrata “níveis elevados e alarmantes de agressões verbais e físicas, além de violência física; ao mesmo tempo expõe níveis baixos de respostas nas famílias e nas instituições educacionais que fazem com que tais ambientes deixem de ser seguros para muitos estudantes LGBT, resultando em baixo desempenho, faltas e desistências, além de depressão e o sentimento de não pertencer a estas instituições por vezes hostis” (2016, p.13). 32 P o d e fa la r so b re g ên er o n a es co la ? A le x a n d re B o rt o li n i Essa “ideologia” sexista, heterossexista, transfóbica e racista define um único arranjo familiar - pai, mãe e filhos (cisgêneros) como “a” família, invisibilizando e desqualificando todas as outras formas que uma família pode ter. Além de heterossexista e cisnormativo, esse “modelo” de família é machista, porque imagina um homem como “chefe” e “provedor” da casa. É também um modelo classista (quando não descaradamente racista), que pressupõe certas condições (financeiras, de moradia, escolarização etc.) que grande parte das famílias brasileiras não alcançam. É em relação a esse “ideal”, que todas as famílias serão medidas. E aquelas que não se encaixem em algum aspecto desse modelo serão consideradas “desestruturadas” e percebidas como incapazes de criar adequadamente suas crianças. Famílias expandidas, em que várias gerações e relações de parentesco convivem na mesma casa, famílias chefiadas por mulheres sem a presença de um homem como “chefe”, com netos criados pelos avós, com dois pais ou duas mães, todas serão consideradas incompletas, imperfeitas, na comparação com o tal modelo “ideal”. E apesar de hoje já representarem a maior parte dos domicílios brasileiros, essa diversidade familiar será sumariamente apagada dos livros didáticos em favor de um modelo único13. 13 A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) revelou que, desde 2005, o perfil composto unicamente por pai, mãe e filhos já não corresponde mais à maioria dos domicílios brasileiros. Na pesquisa de 2015, o arranjo tradicional encolheu um pouco mais, ocupando apenas 42,3% dos lares pesquisados. (IBGE, 2017). 33 P o d e fa la r so b re g ên er o n a es co la ? A le x a n d re B o rt o li n i Essa “ideologia” carregada de sexismo, lgbtfobia e racismo produz impactos extremamente negativos no desenvolvimento das crianças, adolescentes e jovens. Ao contrário do que professa, ela não protege, mas aumenta a vulnerabilidade. Ao negar informação e estigmatizar o sexo, ela impede que adolescentes e jovens conheçam o próprio corpo e consigam construir formas saudáveis e positivas de relacionamento. Contribui para que esses jovens se envolvam em relações abusivas, sem que muitas vezes sejam nem mesmo capazes de reconhecer as violências que sofrem ou, pior, faz com que se entendam culpados por aquilo que lhes vitima. Ao interpretar qualquer discussão sobre sexualidade como “promoção” de sexo “precoce”, deixa adolescentes iniciarem sua vida sexual sem qualquer informação sobre métodos contraceptivos e infeções sexualmente transmissíveis, contribuindo para aumentar os índices de gravidez na adolescência, a propagação de ISTs e o recurso ao aborto. Ao negar falar sobre sexualidade na infância, impede ações pedagógicas voltadas à prevenção do abuso sexual, que permitiriam crianças reconhecer e denunciar violências. Essa “ideologia” sexista prejudica o aprendizado dos nossos estudantes. Não só daqueles que estigmatiza como “bandidos” ou “vadias”. Não só daqueles a quem dirige homofobia ou transfobia. Um ambiente escolar discriminatório afeta o rendimento de todos os 34 P o d e fa la r so b re g ên er o n a es co la ? A le x a n d re B o rt o li n i estudantes. Isso mesmo: até as notas caem. E não só a de um grupo específico, mas de toda a escola14. Essa “ideologia” sexista desrespeita princípios fundamentais da nossa Constituição e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Mesmo sem a palavra gênero, o Plano Nacional de Educação segue tendo como diretriz o enfrentamento de toda e qualquer forma de discriminação15. 14 Uma pesquisa nacional sobre discriminação no ambiente escolar desenvolvida entre 2006 e 2009 pelo Ministério da Educação e pela Universidade de São Paulo mediu o distanciamento social de diretores, professores, funcionários, estudantes e responsáveis em relação a determinados grupos socialmente estigmatizados. Entre “pobres, negros, índios, ciganos, moradores de periferia/favela, moradores de áreas rurais (...) e pessoas com necessidades especiais, físicas e mentais”, foi em relação a pessoas homossexuais que se verificaram os maiores percentuais de distância. A pesquisa evidenciou também uma relação entre preconceito e discriminação no ambiente escolar e o rendimento acadêmico de estudantes. No quadro comparativo produzido pelo estudo, escolas em que os escores que medem o preconceito e o conhecimento de práticas discriminatórias eram mais elevados tendiam a apresentar médias menores para as avaliações na Prova Brasil. (MAZZON, 2009). 15 O Plano Nacional de Educação define entre suas diretrizes a “superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação” e a “promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental.” Nas metas que propõem a universalização do ensino fundamental para toda a população de 6 (seis) a 14 (quatorze) anos e do atendimento escolar para toda a população de 15 (quinze) a 17 (dezessete) anos, encontram-se, dentre as estratégias, a necessidade de fortalecer o acompanhamento e o monitoramento do acesso, da permanência e do aproveitamento escolar em situações de discriminação, 35 P o d e fa la r so b re g ên er o n a es co la ? A le x a n d re B o rt o li n i E isso inclui discriminar famílias ou pessoas porque não seguem o modelo cis-heteronormativo. E não, tirar a menção explícita a orientação sexual ou racismo ou identidade de gênero não significa que a escola está desobrigada a enfrentar a lgbtfobia nem a discriminação racial. Homofobia é crime no Brasil. A Constituição Federal fala na superação de quaisquer formas de discriminação, portanto, estão incluídas aí a homofobia, a lesbofobia, a transfobia e a misoginia, formas de discriminação já descritas e fundamentadas em diferentes estudos e pesquisas. E como promover o princípio da igualdade de condições para o acesso e permanência na escola previsto na Lei de Diretrizes e Bases sem enfrentar diretamente as representações e práticas que estigmatizam, excluem e discriminam mulheres, homossexuais e pessoas trans? A Constituição afirma também a igualdade entre homens e mulheres. Como esta igualdade poderia ser construída no espaço escolar semdiscutir questões ligadas ao conceito de gênero? Na mesma lógica, se a educação escolar, como aponta a LDB, deve estar vinculada às práticas sociais, como a escola poderia ignorar as diversas transformações sociais vividas nas últimas décadas no que diz respeito às relações de gênero, às práticas sexuais e afetivas e aos arranjos familiares? preconceitos e violências na escola e o desenvolvimento de políticas de prevenção à evasão motivada por preconceito ou quaisquer formas de discriminação, criando rede de proteção contra formas associadas de exclusão. 36 P o d e fa la r so b re g ên er o n a es co la ? A le x a n d re B o rt o li n i Os principais marcos legais que regem a educação brasileira são enfáticos quanto à necessidade da superação de desigualdades, discriminações e violências não só na escola, mas a partir da escola, o que traz implicações diretas ao currículo. Ignorar estes temas, ou pior, propositalmente restringir sua abordagem na escola constitui não apenas negligência, mas franco desrespeito aos princípios que regem a educação brasileira, fundamentados na Constituição e em leis específicas16. Se a base legal impõe o enfrentamento destes temas na escola, o conjunto das diretrizes educacionais brasileiras aponta a necessidade de trabalhar questões ligadas a gênero e sexualidade desde a educação infantil17 até o ensino médio18. Indicam para tanto uma abordagem focada não 16 O Estatuto da Criança e do Adolescente se soma a este conjunto ao afirmar o direito de toda criança e adolescente à liberdade, incluída aí a liberdade de opinião, expressão e de crença. 17 As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil afirmam, dentre seus princípios, a necessidade de “construir novas formas de sociabilidade e de subjetividade comprometidas com a democracia e com o rompimento de diferentes formas de dominação etária, socioeconômica, étnico-racial, de gênero, regional, linguística e religiosa.” Isto significa que, desde a educação infantil, é não só possível, como recomendável, trabalhar temas ligados a gênero e sexualidade, didaticamente adaptados a esta faixa etária específica. 18 As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio também fazem menção explícita a estes temas. Em seu Art. 16, afirmam que “o projeto político-pedagógico das unidades escolares que ofertam o Ensino Médio 37 P o d e fa la r so b re g ên er o n a es co la ? A le x a n d re B o rt o li n i na padronização de comportamentos ou na reprodução de modelos pré-definidos, mas, ao contrário, na reflexão crítica, na autonomia dos sujeitos, na liberdade de acesso à informação e ao conhecimento, no reconhecimento das diferenças, na promoção dos direitos e no enfrentamento a toda forma de discriminação e violência. Tal qual o PNE, a Base Nacional Curricular Comum, embora não cite explicitamente a palavra gênero, dá fundamentação para que estes temas sejam trabalhados em todas as etapas da educação básica, em uma perspectiva que promova a reflexão crítica e os direitos humanos19. deve considerar: (...) XV – valorização e promoção dos direitos humanos mediante temas relativos a gênero, identidade de gênero, raça e etnia, religião, orientação sexual, pessoas com deficiência, entre outros, bem como práticas que contribuam para a igualdade e para o enfrentamento de todas as formas de preconceito, discriminação e violência sob todas as formas.” 19 Em seu texto introdutório a BNCC afirma que a escola “como espaço de aprendizagem e de democracia inclusiva, deve se fortalecer na prática coercitiva de não discriminação, não preconceito e respeito às diferenças e diversidades”. Entre as competências para o ensino fundamental inclui “Analisar informações, argumentos e opiniões manifestados em interações sociais e nos meios de comunicação, posicionando-se ética e criticamente em relação a conteúdos discriminatórios que ferem direitos humanos” (Língua Portuguesa); “Identificar as formas de produção dos preconceitos, compreender seus efeitos e combater posicionamentos discriminatórios em relação às práticas corporais e aos seus participantes” (Educação Física); “atuar socialmente com respeito, responsabilidade, solidariedade, cooperação e repúdio à discriminação” (Ciências); “problematizar 38 P o d e fa la r so b re g ên er o n a es co la ? A le x a n d re B o rt o li n i Especificamente sobre o tema, em 2018 o Conselho Nacional de Educação publicou uma resolução (BRASIL, 2018) que define o uso do nome social de travestis e transexuais nos registros escolares. Pela norma, que tem força sobre todos os sistemas de ensino, alunes podem solicitar o uso do nome social durante a matrícula ou a qualquer momento, por meio de seus representantes legais, no caso de menores de idade, e sem a necessidade de mediação para os maiores de dezoito anos. No primeiro artigo, a resolução é enfática: “Na elaboração e implementação de suas propostas curriculares e projetos pedagógicos, os sistemas de ensino e as escolas de educação básica brasileiras devem assegurar diretrizes e práticas com o objetivo de combater quaisquer formas de discriminação representações sociais preconceituosas sobre o outro, com o intuito de combater a intolerância, a discriminação e a exclusão” (Ensino Religioso). Para o Ensino Médio, indica “• combater estereótipos, discriminações de qualquer natureza e violações de direitos de pessoas ou grupos sociais, favorecendo o convívio com a diferença”. Entre as habilidades a serem desenvolvidas, prevê: “ Investigar e discutir o uso indevido de conhecimentos das Ciências da Natureza na justificativa de processos de discriminação, segregação e privação de direitos individuais e coletivos, em diferentes contextos sociais e históricos, para promover a equidade e o respeito à diversidade (Ciências da Natureza e suas Tecnologias); “Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades individuais” (Ciências Humanas e Sociais Aplicadas) 39 P o d e fa la r so b re g ên er o n a es co la ? A le x a n d re B o rt o li n i em função de orientação sexual e identidade de gênero de estudantes, professores, gestores, funcionários e respectivos familiares”. A despeito deste arcabouço legal, pesquisas educacionais evidenciam que nossos ambientes escolares seguem marcados pela desigualdade, discriminação e violência no que diz respeito a gênero e orientação sexual. Uma realidade que contradiz os princípios fundantes do ensino e que ameaça o direito à educação de grande número de pessoas. E que nos coloca o compromisso de persistir, mesmo em um contexto desfavorável, na garantia da liberdade de aprender e ensinar. Educadores e educadoras que querem trabalhar gênero e orientação sexual na escola: não se intimidem. Toda a legislação educacional está do nosso lado. Todas as diretrizes para a educação básica, da educação infantil ao ensino médio, falam em gênero e sexualidade. A BNCC nos dá sustentação. Nossas leis e normas educacionais nos legitimam para fazer essa discussão com nossas alunas e nossos alunos. Todas as tentativas de aprovar leis proibindo o ensino de questões de gênero ou sexualidade na escola foram fracassadas. Ou seja, você, educador ou educadora, está sim autorizada a falar, debater, ensinar sobre esses temas na escola. Podem tirar a palavra gênero do PNE. Podem vetar kit anti homofobia. Podem cortar o financiamento de todas as políticas educacionais em sexualidade. Enquanto o Brasil for uma democracia, ninguém pode impedir professora ou professor de dar a sua aula. De falar de desigualdade, 40 P o d e fa la r so b re g ên er o n a es co la ? A lex a n d re B o rt o li n i discriminação, preconceito. De fazer pensar, questionar, para que cada criança, adolescente e pessoa adulta tenha autonomia para construir sua própria ideia e lugar no mundo. Referências ALLEN, Paula Gunn. The Sacred hoop: Recovering the feminine in American Indian traditions: With a new preface. Beacon Press, 1992. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LÉSBICAS, GAYS, BISSEXUAIS, TRAVESTIS E TRANSEXUAIS. 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