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CONSIDERAÇÕES SOBRE A LINGUÍSTICA NO RENASCIMENTO E SÉCULOS SUBSEQUENTES Lícia Maria Bahia Heine (Universidade Federal da Bahia) 1 RENASCIMENTO: marco inaugural do mundo e da história modernos, ocorrido entre o século XVI e o XVII. Na linguística: trata-se de um movimento constituído de duas faces: (a) uma voltada para o passado, para o pleno redescobrimento e revalorização do mundo greco-latino, que, em verdade, representa uma ruptura radical com a tradição escolástica, comumente denominada de Baixa Idade Média; (b) outra, olhando para a frente, para o futuro excitante (ROBINS, 1979, p. 74), que representa, segundo Kristeva (1983, p. 168), a orientação definitiva para o estudo das línguas modernas. (a) Alguns aspectos do olhar para o passado: - Petrarca, um dos principais renascentistas, e os seus discípulos, menosprezaram o latim usado pelos escolásticos pelo seu estilo bárbaro, voltando-se para a revalorização da obra do mundo clássico greco- latino, tomando Cícero (séc. I a. C.) como estilo latino e o seu ideal de humanidade, termo este que passou a sinônimo de “civilização” (LYONS, 1979, p. 16-17); - a literatura da Antiguidade Clássica não era mais vista sob a jaça do paganismo, mas como um período de exaltado humanismo, ao qual o pensador renascentista, por sua preocupação com o valor e dignidade do homem em si mesmo, se sentia moral e intelectualmente ligado. (b) Alguns aspectos do olhar para o futuro: - o descobrimento do Novo Mundo por Colombo, em 1492; fato que deu início ao movimento de expansão da Europa por todo o globo terrestre, determinando o estudo sistemático das línguas vivas. Esse momento se diferencia sobremaneira do período precedente - a Idade Média - considerado obscuro e 2 inculto, visto que o ocaso se instaurou em todas as áreas do saber, exceto aquelas referentes ao campo teológico; - as obras de gramáticos não europeus começaram a ser divulgadas, causando grande impacto na tradição européia, o que fez surgir novas linhas de pensamento linguístico, aceitas, a partir de então, como parte integrante da ciência da linguagem. O estudo greco-latino continuou; porém, não mais representava o curso de toda história da linguística; - a criação da imprensa pelo alemão Gutemberg (1398-1468): marco renascentista para o estudo das línguas estrangeiras e o das línguas clássicas, tendo em vista a multiplicidade e disponibilidade de textos impressos, de gramáticas e de dicionários (Robins, 1979, p. 87), que a título de ilustração menciona-se o dicionário poliglota maIs antigo, do italiano Ambrosio Calepino (1502). Esse despertar lingüístico é comumente denominado por Firth de o descobrimento de Babel, ou seja, a babelização, uma vez que o homem renascentista transcende o enfoque stricto sensu greco-latino, voltando-se sobretudo para as línguas vernáculas européias e não européias. - estudo do hebraico e do árabe focalizados de forma sistemática, sendo admitidos oficialmente na Universidade de Paris, no século XVI. Segundo Robins (1979, p. 75), o hebraico, desde 345-420 d. C., por ser a língua do Antigo Testamento, já tinha sido objeto de análise feita por São Jerônimo; porém, por conta das questões ligadas à igreja, esses estudos foram clandestinos. - o afrouxamento clerical, provocado principalmente pela Reforma de Martinho Lutero, numerosas gramáticas do hebreu foram escritas na Europa, dentre estas, registra-se: a gramática de Reuchlin De rudimentis hebraicis (1506), que procurou adaptar a sua gramática às regras do esquema greco-latina, tendência quase generalizada entre os estudiosos da época; - o pulular das gramáticas, também corroborou para o afrouxamento dos estudos greco-latinos, mencionam a gramática do italiano (uma das gramáticas mais antigas do italiano é a de Lorenzo) e a do espanhol publicadas no século XV; a primeira gramática do francês, século XVI; gramática do polonês e do eslavônio da igreja Antiga; a gramática do nahualt do México (1547); a gramática do quíchua – Peru (1560), a gramática do guarani – Brasil (1639); a gramática do basco (1587), a gramática do português de Fernão de Oliveira (1536) e a João de Barros (1540); a gramática castelhana de Nebrija, em 1492. A publicação de dicionários monolíngues e bilíngues acompanhou a publicação de gramáticas e manuais; 3 - as novas gramáticas, centradas na arte de falar e escrever corretamente, deram mais atenção à relação entre a grafia e a pronúncia, pondo em foco problemas de ortografia e de reforma de escrita, como por exemplo o uso inadequado de representação gráfica dos fonemas. Apesar disso ainda existia a confusão, herança greco-latina, entre letra e som. - o olhar mais acentuado para a segunda articulação da linguagem não impediu que os gramáticos humanistas criticassem o sistema de oito classes de palavras estabelecido por Prisciano/Dionísio da Trácia; isso pode ser observado através do gramático Nebrija, ao escrever a primeira gramática castelhana, em 1492, na qual estabeleceu dez classes; todavia, a colocação dos substantivos e dos adjetivos em classes distintas só ocorrera de fato a partir do século XVII. - Pierre Ramée – Petrus Ramus, considerado o precursor do estruturalismo linguístico. Na sua obra, observa-se, grosso modo, a defesa do ensino das línguas clássicas com base nos textos literários e o registro da distinção entre o latim falado e o latim ensinado nas escolas, preocupação que lhe deu o status de ter escrito um tratado de pronúncia do francês; escreveu gramáticas do grego, latim e francês, pautadas no critério de natureza formal, consoante o termo da linguística saussuriana, já que não se assentam nem na lógica e nem na identificação de palavras através de base nocional. - dentre as línguas não européias, houve algum estudo referente à língua sânscrita, no qual se estabeleceu relações de parentesco linguístico daquela com o italiano, grego e latim. Consoante Kristeva (1983, p. 169), essa concepção histórica, cujo início se deu assistematicamente no final da Idade Média, pode ser constatada por meio do trabalho De Vulgari Eloquentia, de Dante Alighieri (1265-1321), no qual ressaltou o mérito do latim clássico, interessando-se também sobre as relações entre as línguas espanhola, francesa, italiana e as correspondentes formas latinas. Nessa nova visão, as línguas românicas deixam de ser consideradas simples produto de uma versão estrutural greco-latina, cedendo lugar ao alargamento do campo lingüístico. É o caso das obras de G. Postel –Hibraicae linguae et gentis antiquitate, atque variarum commentarius (Paris, 1538) e de G. G. Baliander De ratione communi omnium (Zurique, 1548), em que estudou doze línguas para encontrar uma só origem – o hebreu. Kristeva (op. cit) frisa ainda que surgiram várias teorias fantasiosas que, no fundo, tinham por objetivo valorizar a língua vulgar estudada pelo autor. A título de exemplo, cita-se J. Becanus que defende a tese de que o flamengo seria a língua mãe de todas as línguas. A língua chinesa também foi objeto de análise, na qual se observam as notáveis diferenças entre as línguas da China e as da Europa, pondo o sábio renascentista frente a particularidades linguísticas que lhe 4 são específicas. Dentre essas, mencionam-se: a ausência total de paradigmas morfológicos, próprios do esquema greco-latino, com a presença de meios tonais para distinguir os seus vocábulos. Isso permitiu que estudiosos tomassem conhecimento de umgrupo de línguas cuja organização fonológica, gramatical e lexical diferia acentuadamente das línguas européias. Foi possível também estudar aspectos da língua japonesa, rica morfologicamente, que, ainda assim, incorporou em seu idioma grande número de palavras chinesas. A partir dos séculos XVI, XVII e XVIII, o mundo filosófico estava voltado para o debate dos empiristas x racionalistas. O empirismo surgiu em fins do século XVI e floresceu no século XVIII, como parte das reações contra as idéias dominantes no período escolástico; trata-se de uma contribuição particularmente britânica, tendo Francis Bacon (1561-1626) como seu precursor e Locke (1632-1704), seu fundador, contando com David Hume (1711-1776) entre os seus seguidores. Esses filósofos ressaltaram a importância da observação sobre a indução – tese segundo a qual todo conhecimento deriva das impressões ou vivências sensoriais, entendidas como as percepções reais, a exemplo do fato de alguém ser capaz de perceber a cor de um dado objeto à distância. Hume representa a forma mais extremada do empirismo, ao pôr em dúvida a própria substância espiritual – o eu (LOBATO, 1986, p. 22-23). Desse modo, o empirismo reduziu o conhecimento às percepções e vivências reais do indivíduo. Nessa ótica, a experiência é vista como a única fonte válida do conhecimento e a indução é o único método de caráter científico. O movimento empírico estimulou os estudos fonéticos e a independência gramatical das diversas línguas. O racionalismo teve como um dos seus principais mentores René Descartes (1596-1650), incluindo também filósofos como Malebranche (1638-1715), Spinoza (1632-1677) e Leibniz (1646-1716). Sua tese central, em oposição aos empiristas, era demonstrar que o conhecimento não deriva das impressões dos sentidos, mas das verdades irrefutáveis da razão humana, das idéias inatas. Nessa ótica, a razão é vista como a única fonte válida do conhecimento e a dedução, o único método de caráter científico. O movimento racionalista deu alento à produção de gramáticas filosóficas vinculadas às escolas francesas de Port-Royal, instituição religiosa fundada em 1637. Dentre essas, a que obteve maior notoriedade foi a Grammaire Générale et Raisonnée, surgida na França, em 1660, conhecida como gramática de Port-Royal, de autoria dos franceses Lancelot e Arnauld. A tese principal era a de desbloquear o impasse causado pela correspondência entre o esquema de base latina e o das línguas modernas. Pautada nos princípios cartesianos, essa gramática concebeu a língua, não como um conjunto de dados materiais (postura greco-romana), mas como um sistema lógico de signos que refletiam aquilo que se passava no espírito do homem. Dessa forma, os signos serviam para marcar as operações racionais que tinham como suporte a ratio, órgão singular que homogeneíza o homem e o torna distinto dos demais animais. A gramática passou a ser um estudo das unidades superiores, isto é, do juízo e do raciocínio; daí 5 o seu traço universal, alicerçado no pensamento e na razão e não no fato de basear-se numa exclusiva estrutura lingüística. Com a invenção da imprensa, surgiu o problema da padronização da escrita, desembocando na ideia de criação de línguas artificiais. A proposta mais radical da época foi a de invenção de uma nova língua que possibilitasse o progresso das ciências e do comércio, com o objetivo de desbabelizar o enfoque linguístico da época. A meta era inventar um sistema em que o saber, o pensamento e as idéias pudessem ser expressos direta e indiretamente e universalmente através de símbolos criados para es propósito e aos quais esse atribuiria determinada pronúncia (ROBINS, 1979, p. 89). Contudo, Robins registra que esses ideais de se construir línguas artificiais não foram nada práticos e seguiram, em verdade, a linha filosófica racionalista porque buscaram um sistema linguístico universal, embora dela se distingam acentuadamente por serem linguagens eminentemente artificiais. No que se refere às contribuições empiristas, ressaltam-se sobremodo a atenção voltada para o sistema de sons da língua inglesa e o ensino da fala a surdos e a estrangeiros. Tem-se aí um olhar para as questões específicas de uma língua particular – a fonética, que, na época, era tratada sob o título de ortoépia ou ortografia, visto que o termo fonética só fora mencionado pela primeira vez no século XIX (ROBINS, 1979, p. 93). Isso representa uma certa independência dos estudos linguísticos face à estrutura greco-latina, evidenciando a conquista e o prestígio que as línguas vernáculas obtiveram nesse período da civilização humana. Como se pôde observar, através desta sucinta abordagem da linguística no Renascimento e séculos consequentes, os estudos linguísticos dessa época seguiram caminhos distintos, caracterizados por conquistas intelectuais, sociais e políticas que possibilitaram estabelecer a distinção entre a Idade Média e o período moderno. ABSTRACT This paper aims to focus the relationslip between speaking and writing in order to try to avoid dicotomic or evaluating position in relation to the problem. The central idea is to make clear that both specking and writing are two modalities of language usage, and share formal properties of the same linguistic system. The differences live in the condition of production and reception context. 6 2 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BORBA, Francisco da Silva. Introdução aos estudos lingüísticos. 11 ed. Campinas, SP: Pontes, 1991. 331 p. DUBOIS, Jean et. al. Dicionário de lingüísitca, Trad. Franscico Pessoa et al. São Paulo: Cultrix, 1973. GALLISSON, R., COSTE, D. Dicionário de didática das línguas. Coimbra: Almedina, 1983. 763 p. LYONS, John. Introdução à lingüística teórica. Trad. Rosa Virgínia Mattos e Silva e Hélio Pimentel. São Paulo: Editora Nacional, 1979. LOBATO, Lúcia Maria Pinheiro. Sintaxe gerativa do português: da teoria padrão à teoria da regência e ligação. Belo Horizonte: Vigília, 1986. KRISTEVA, Júlia. História da linguagem. Trad. de Maria Margarida Barahona Lisboa: Livraria Martins Fontes São Paulo, 1983. ROBINS, R. H. Pequena história da lingüística. Trad. de Luís Martins Monteiro de Barros. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1979. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. Organizado por Charles Bally e Albert Sechehaye, colaboração de Albert Riedlinger. 7 ed. São Paulo: Cultrix, 1961.
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