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PRIMERA PARTE Direito do Estado e Teoria do Direito DIREITO CONSTITUCIONAL, DIREITO ÜRD!NÁRIO, DIREITO JUDICIÁRIO Cezar Saldanha Souza Junior 1. O ORDENAMENTO JURÍDICO 7 O direito posto ern u1n Estado assu1ne a forma de ordenamento jurídico. Co1no escreveu BOBBIO, "as nonnas jurídicas não existem isoladan1ente, mas em u1n contexto de normas, co1n relações peculiares entre si".1 l::;'.sse caráter do direito positivo é tão marcante que entre os sentidos co1nunicados pelo termo direito está, en1 prin1eiro lugar, o de ordenan1ento jurídico, cotno nas expressões direito brasileiro ou direito argentino. 2 Sob esse fu16"1.Üo, direito e ordenamento jurídico são sinônimos. Ainda segundo BC)BBIO, o conceito de ordenamento jurídico denota algun1as notas características. O ordenamento jurídico é: (a) unit{trio (forma um conjunto, uma unidade); (b) escalonado (as nonnas que o fonnam vCm dispostas em u1na hierarquia, ein planos de poderes e de deveres); (e) coerente (as norn1as jurídicas reqncre1n harmonia, daí os critérios itnaginados para resolver aparentes antinomias); e (d) co1npleto (por dispor de rneios para suprir eventuais lacunas).3 :t~1n razão desse feixe de atributos, a doutrina construiu, de longa data, a noção de sistema jurídico. 1 BOBBlü, Norberto, A Teoria do Ordena1nento Jurídico, Brasília, UnB, 6". Ed., p. 19. 2 Id., ib. Conferir op. cit., passitn. 8 2. A INTUIÇÃO DE GEORG JELLINEK Foi no seio da cultura alen1à que a ciência do direito elaborou a 111ais consistente teoria do ordenamento jurídico . .r\ intuição básica ven1 de GEORC~ JELLINEJ(, quando distinguiu duas funções jurídicas do Estado. Ou o Estado estabelece regras abstratas que, como tais, não regularn de n1odo Ílnediato a realidade (mas exige u1na atividade própria, motivada por essas regras abstratas, para realizar os fatos objetivos correspondentes). Ou o Estado atua de u1n modo Ílnediato e direto quanto aos probletnas que a ele cotnpeten1 (claro está, em confonnidade co1n as norn1as abstratas e dentro dos lirnitcs que elas lhe impõern). Daí segue gue, segundo JELLlNEI< (J'eoria Geral do Estado, Capítulo 18), o ordcna1nento jurídico apresenta dois degraus: (a) o das normas abstratas; e (b) o das normas individualizadas 4• En.tretanto, no Capítulo 8º,JELLINEI(deixara entrever a existência de un1a terceira instância, "reguladora da atividade política do Estado", superior àquelas duas, e por ele adjetivada de "últitna", ou dos "fins supremos", envolvendo urn "juízo de valor teleológico". Tais "fins supre1uos" ( ... )"não afinnatu o que haverá de suceder, n1as aquilo que não há de ser feito". Ctm1pre1u wna "força reguladora negativa". Acrescenta gue "essa influência negativa tem sido historica1nente de urn grande valor e continuará sendo politicamente no futuro". E rernata: "toda nossa cultura n1oderna descansa sobre a afinnaçào de gue os poderes do Estado tê1n u1n limite e de que nós não estamos subtnetidos, co1no escravos, ao poder ilitnitado do Estado:5 3. HANS KELSEN E A ESTRUTURA PIRAMIDAL DO ORDENAMENTO JURÍDICO Coube, porém, a KELSEN ~co1no universahnente reconhecido~ dar contornos rigorosos à teoria do escalonamento piramidal do ordenamento jurídico.6 IZEI.SP,N, porén1, afastou co1nplctan1ente o caminho teleológico (que JI~LLIN EI<: tentara abrir com sua visão dos fins do Estado). \Toltou-se, exclusivan1entc, a utn caminho lógico. Ou seja: o ordena1nento jurídico ern I<:ELSE,'.N é un1a estrutura estritan1ente lógica, con1posta de três níveis hierárquicos7: (a) u1n grau superior ou fundamental do ordena1ncnto jurídico, correspondendo às nonnas do topo da pirâtnide, criadas pelo poder constituinte e que formam a Constituição do Estado; JELLINEK, Georg. Teoria General del Estado. Buenos Aires, Albatroz, 1971, Cap. XVIII, p. 462. Id., ib., Cap. VIII, p. 177 e 178. 1 ' KELSEN, Hans. Teoria General del Derecho y del Estado. Ivféxico, UNi\l'vf, 1969, pp. 147-161. Ver o depoin1ento de BOBBJO, op. cit., p. 49. I(ELSEN, 1-lans. Teoria Pura do Direito, Coinibr?., Annênio Am-ado, 5ª ed., í979, pp. 309-327. 9 (b) um grau primário ou legislativo, das nonnas gerais, criadas pelos órgãos autorizados pela Constituição a elaborar as leis, e que na Constituição têtn seu fundamento de validade, condicionando, por sua vez, nesse nível intern1ediário, as nor1nas da base do ordenamento; e (e) o grau secundário, composto das nonnas individuais criadas em nível concreto, via processo judicial (decisões judiciais) e via procedimentos adn1inistrativos (resoluções adrninistrativas), co1n seu funda1nento nas norn1as de nível pritnário. A classificação tradicional das funçôes jurídicas do Estado, desenvolvida desde o século XVIII, centra-se na contraposição dos conceitos de legíslação (função de criação de direito ou função legislativa) e de execução (função executiva e função judiciária), como se essas pudesse111 ser separadas entre si e sobre u1n plano horizontal de paridade. l(ELSEN revolucionou os tcrn1os de tal equação, n1initnizando a itnportância da separação entre legislação (criação de nonnas) e execução (em sentido lato). Essa distinção apenas indicaria a posição gue as normas 'gerais' (leis) e as nonnas 'individuais' (sentenças e atos adtninistrativos) ocupam na dinâmica do ordena111ento. Assim, para I<ELSBN, todas as nonnas de u111 ordcnan1ento são, ao rnesmo tempo, nonnas de criação e nonnas de execução do direito. Un1 ato criador de direito novo (tuna lei, por exe1nplo) está, ao n1esn10 tempo, sen1pre e necessarian1ente, executando a norma hierarquica111ente superior, na qual se fundamenta seu poder de criação. Exclue111-se dessa conjugação entre criação e execução somente dois casos linlites: (a) no topo mais elevado da pírârnide, a norma criadora da pri111eil:a Constituição, que é apenas norma ele criação de direito, pois ela não se fundainenta em ncnbun1a nonna jurídica anterior (mas apenas no pressuposto racional hipotético e funda111ental de que a ordem deve ser obedecida); e (b) na base, a execução de uma norn1a-sanção, ein um caso concreto, é apenas um ato de execução, pois se traduz c1n sünples obediência ao direito, scni. criar nc11hun1a nonna jurídica gue lhe seja inferior.~ I~~ssa visão de I<I::':LSEN veio a se tornar clássica no mundo cultural romano-gern1ânico. Essa doutrina fundou, nas prüneiras décadas do século X,'( (com a constituição de \\/eimar), o direito constitucional efetiva1ncnte jurídico, ou seja, u1n verdadeiro direito --- na verdade o direito fundatnental - hierarquica1nente superior ao restante das nonnas jurídicas do ordena1nento. Não csqueça111os que até o prüneiro pós-guerra, co1n a exceção dos Estados Unidos e dos países seguidores, o direito da Constituição era um direito político, ou seja, se1n natureza ou eficácia jurídica próprias. O próprio I(ELSEN cornplctaria essa revolução, erigindo un1a teor.ia e un1a técnica de controle de constitucionalidade adequadas à cultura ron1ano-germân.ica. ~ KELSEN, Hans, Teoria General del Derecho y dei Estado, pp. 146-155. 10 4. O ORDENAMENTO JURÍDICO SOB UM OUIAR TELEOLÓGICO Nunca seráden1ais realçar a importância do pensatnento e d~s construções institucionais de IZELSEN para o direito constitucional contemporâneo. Ele está para o Estado Social conten1porâneo con10 MONTI~SQUII-~U para o E~stado Liberal Clássico. Isso, porém, não nos impede de apontar os lin1ites de sua concepção. O principal deles foi o de reduzir o ordenan1ento jurídico a uma estrutura exclusivan1ente lógica, vedando gualquer abertura ao plano teleológico ou finalístico. Ensinavam os clássicos que o direito está, como a ética e a política, no domínio da razão prática. Os seres humanos, vivendo em sociedade, são capazes de contemplar os fins últimos da convivência (o telas), a partir do ponto de inserção social emque cada utn se encontra. Dessa contemplação, cada qual vê o telas de sua perspectiva, como lhe parece (o bem aparente). Essas visões diferenciadas articulam-se en1 formas diferentes de interpretação (arche), a serern confrontadas umas com as outras no denon1inado processo deliberativo, que deve ser o mais aberto e plural possível, via instituições adequadas. O pano de fundo das interpretações e do processo deliberativo há de ser a realidade concreta. J\_ deliberação emerge do diálogo entre o telas, suas diversas interpretações, bem assiln a realidade dos fatos. Da delíberação resultatn as decisões, traduzidas, afinal, ein ações concretas.9 A razão prática opera, assin1, por tHn silogismo prático em que a pre1nissa '1na.ior' é o bem ou o fiin contcrnplado, sujeito às interpretações do bem aparente; a premissa 'tnenor' está nas situações de fato; a conclusão vem a ser a decisão e a ação. 10 () ordenamento jurídico pode e deve ser olhado teleologicamente. E1n nível 1nais elev;:i_do e abstrato estão os valores jurídicos, o verdadeiro telas do direito, o direito enquanto valores fundan1entais do convívio sócio-político. E1n nível intermediário dá-se o processo deliberativo: a sociedade, 1nediante instituições políticas, inspirada nos valores jurídicos fundatnentais, interpretados segundo linhas ideológicas historicamente situadas, extrai, dialogalinente, frente às situações concretas da viela, decisões que fixam nonnas gerais que haverão de regular o convívio na polis. Ein nível concreto, os operadores do direito, 1norn1ente a ad1ninistração e o judiciário, agc1n concretamente na sociedade, prestando serviços e resolvendo conflitos. 1\ evolução político-jurídica do Ocidente chega ao século XXI reconhecendo uma estrutura funcional de ordenamento jurídico etn que podernos divisar três níveis de direito positivo: 1 º) o nível funda1nental que, além de estabelecer o quadro da organização política básica do Estado, contetnpla os valores jurídicos superiores, boa parte deles forn1ulados cotno direitos ditos fundainentais, o nível do direito constitucional; 2°) o nível intem1ediário ~ Un1a boa descrição de corno opera a razão prática em ARISTÓTELES está em /\lasdair ]VfJ\CINT'lRE, Justiça de quenlf Qual Racionalidade? São Paulo, Loyola, 1991, Cap. VII, pp. 139-160. 10 Jvf!\CINT\'RE, op. cit., p. 155. 11 onde está o direito ordinário, seja ele público ou privado, vale dizer, o conjunto de todas as nonnas gerais que, frente à realidade, procura1n operacionalizar os valores e os direitos fundamentais essenciais ao convívio interpessoal; e 3°) o nível concreto, o direito realizado, nos fatos da vida, pelos ad1ninistradores e pelos juízes, cujo segmento mais iinportante poderíamos deno1ninar de direito judiciário. 5.ENTREALÓGICAEA TELEOLOGIA O olhar lógico e o olhar teleológico do ordena1nento jurídico não se contrapõem; antes, co1nplementam~se .. Ambos confluem nagueles três planos sucessivos, que, em correntes ascendente e descendente, sobem e desce1n do geral e mais abstrato, ao particular e 1nais concreto. Diferenciam-se ein que, na perspectiva lógica, o ordena111ento sugere a rigidez e o peso do método dedutivo. Ou seja, o ordena1ncnto seria u111a cadeia de comando, dotada de força ünperativa, a descer de cüna para baixo, enquadrando e confonnando os níveis que son1os tentados a considerar "inferiores" do ordena111ento. A tentação aí estaria nutna certa "idolatria" ao direito constitucional. Já na perspectiva teleológica prevalece a idéia de plasticidade do ordenatnento. É da reatidade, da essência mais profunda da vida social, gue brotam os grandes valores jurídicos. A 1nedíação entre a rcabdadc e os valores ~feita no plano das ideologias, da deliberação, do diálogo- revela então toda a sua Ín1portância. A tentação passa, então, a ser a "idolatria" do en1pírico, do ideológico, do direito judiciário. Uma visão equilibrada e real.ista do ordena111ento jurídico há de procurar conciliar, numa unidade, as duas perspectivas, atenta ao contínuo evolver do espírito, empurrado pelo incessante fluir da realidade. Dessa confluência de perspectivas, 111uitas questões difíceis cotn as quais boje se confrontatn os juristas pode1n vir a ser resolvidas, especiahnente aquela das relaçôes entre o direito constitucional, o direito ordinário e o diteito judiciário. 6.0DEBATEATUAL:OAVANÇODEUMEQÜÍVOCOESUACRÍTICA As relações entre direito constitucional, direito ordinário e direito judiciário vên1 ganhando, assim, importância capitaL A questão co1ncçou a ser ventilada, no estádio atual da teoria do direito, na Alen1anha, com muito equilíbrio. Em 1984, veio à Ju:;-; ensaio pioneiro de C.-W. CANAHJS, focado sobre os direitos funda1nentais.' 1 O tema, co1n un1 escopo mais geral, foi enfrentado por I<. HESS E em 1988. 12 11 O ensaio tem o título de Direitos Fundarnentais e Direito Privado (publicado em A rchiv JUr ci-uilistische Práxis, n. 184, 1984, pp. 202 e ss.). O tem8, 8tualizado e 8mplíado por C1\NARlS, está trnduzido para o português, em obra do mesmo título, editado cm Coimbra, pela Almcdina, cm 2003. 12 HESSE, Konrad. Derecho Constitucional y Derecho Privado. Madrid, Ed. Civitas, 1995, 88 pp .. 12 No Brasil dois fatores vão acender e à.lünentar a discussão: 1 º)A Constitt1ição de 1988 estendeu sua matéria nor1nativa, inclusive sobre o direito privado, co1no o atesta o capítL1lo sobre a fan1íJia, a criança, o adolescente e o idoso; e 2º) () novo Código Civil abriu ainda tnais o sistetna jurídico brasileiro a cláusulas gerais e a conceitos indetenninados.13 E~ssas preocupações não tên1 escapado dos juristas argentinos. 1'1 Nesse debate, do pluralis1no saudável dos posicionamentos, vem se articulando utna corrente a nosso ver equivocada e ~co1no veremos a seguir-desbordante do Estado democrático de Direito. Referiino-nos à opinião que propaga, sen1 devidas cautelas e necessárias ressalvas, a "consritucionalização (direta e in1edíata) do direito ordinário", inclusive, do direito privado. Nessa visão, entre direito constitucional e direito ordinário não haveria distinções de funções, ne111, pois, de â111bitos de legíti111a autonomia. Para esse "novo constitucionalismo" não caberia1n limites à intervenção das normas constantes do texto constitucional (máxime as que conte1nplain princípios) relativamente aos den1ais subsistemas de normas existentes no ordcnan1ento. Essa corrente parte da distinçilo topográfica entre as normas inseridas no texto constitucional e as demais nonnas esparratnadas nos textos legislativos ordinários. E, firmada essa distinção, determina u111a subn1issão con1pleta, direta e imediata, do direito ordinário àquilo que os seus propagadores entende1n dever ser considerado direito constitucional. Essa corrente bem poderia ser denominada de totalitarismo jurídico, ou de colonialismo do direito constitucional sobre os demais ra111os do direito. Falta totalmente a essa corrente un1a visão integrada do ordenamento jurídico, capaz de conten1plar a unídade superior que conjuga pelo rncnos três instâncías (direito constitucional, direito ordinário e direito judiciário), co1n funções lógicas e teleológicas distintas e co1nplementares, dignas do devido respeito, nu1n tecido de relações recíprocas ascendentes e descendentes. Falta totaltnente a essa corrente a compreensão de que o fundamento do direito (a dignidade da pessoa hu1nana, co1n todos os seus valores) não foi pendurado por u1na vontade política constituinte no ápice da pirâ1nide jurídica, para de lá ditar seus co1nandos. O fundamento do direito está, isso sim, nos alicerces do ordenan1ento, ou seja, na realidade ontológica da pessoa, da família e da vida social ordinária. Daí vai subindo, em instâncias críticas e de diálogo, pela via do direito legislado, até a cúpula do ordenamento, de onde, enriquecida e descortinando o todo,pode realin1entar o diálogo circular hermenêutico, que reco1neça nas bases do ordena1ncnto. D Destaco.mos, exempliflcalivamentc, Ingo \\'. SARLET (Org.), A Constituição Concretizada, P. Alegre, Livraria do Advogado, 2002; Gustavo TEPEDINO (Org.), Problemas de Direito Civil Constitucional, RJ, Renovar, 2000, 577 pp.;Judith 1íARTINS~COST A,A Reconstrução do Direito Privado -Reflexo dos princípios, diret?izes e direitos fundamenta.is constitucionais no Direito Privado, SP, RT, 2000. 14 Cf. Carlos A. J\1'AYÓ'.'.l,Bases Constituâonales de! Derecho Civil, La Piam, Ed. Lex, 2001, 352 pp .. 13 7. FATORINS11TUCIONAL DO EQÜÍVOCO l)entro de um quadro causal plural e con1plexo, há, a nosso ver, um fator institucional que rnuito favorece, no Brasil, o avanço do totalitaris1no constituciona.l. No nível político, a fusão dos três níveis das funçôes políticas (Estado, c;overno e Ad1ninistração), no órgão unipessoaJ do denon1inado poder executivo. E, no ân1bito do direito -o objeto deste estudo ~a fusão, no rnesmo órgão (o poder judiciário), da jurisdição ordinária e da jurisdição constitucional (rnonisn10 jurisdicional).15 O 1nonis1no jurisdicional, co1nbinado com a 1nentalidade constitucional totalitária, tende a produzir uma concentração de poderes no poder judiciário ordinário, já bastante estudada em direito con1parado. 1G Passaren1os a aprofundar três pontos gue inostram a essencialidade, para o Estado democrático de direito, de uma adequada relação entre os três planos do ordenan1ento jurídico. 8. ESTADO DE DIREITO, VALORESEIDEOLOGIAS O Estado de Direito emerge do set,rt1ndo pós-guerra sobre um quadro mínin10 e básico de valores, decorrentes todos da dignidade única e preen1inente da natureza hu1nana. I:.<:i-los: a liberdade ú)riineíro deles), que se ajusta à igualdade pela justiça, perdura no te1npo com a segurança e in1plica um equilíbrio entre ordem e progresso. L,en1bremos, desde logo, que os valores nascen1 da realidade fática profunda da dignidade humana e, descobertos e trab;ilbados pela razão, assu111em uma dimensão 1netafísica (geral, abstrata e unjversal). Para sere111 te-concretizados nos fatos, pelo direito, tê1n de passar, necessariatnente, por un1 processo de mediação. Ao cruzarem a fronteira entre os planos, os valores deixam de ser valores (gerais, abstratos e universais) e inevitavelniente contaminatn-se dos interesses e das ideologias que envolvc1n a vida humana concreta. Ou seja: os valores enquanto valores só existe111 no plano fundamental do ordenamento jurídico. Toda concretização, seja no plano intermediário da lei, ou no plano concreto dos fatos, 1 ' Con10 mostramos e1n outro lugar (A Supren1acia do direito, P. Alegre, 2002), somente no co1nnzon law podem ser fundidas sen1 problcn1as as duas jurisdições (a ordinária e a constitucional), pois nagucla cultura há uma separação histórico-sociológica entre direito ou jurisdictio (a cargo dos juízes) e poülica ou gubernaculum (a cargo do Congresso e do Parlamento). (Sobre a distinção cntrejurisdictio e gubernaculum Charles 1JCIL\X'AIN, ConstitutionalismAncient andModerns, London, Cornell UP, 1940). Em cultura ro111ano-gennànica, a primeira fonte do dirtito é a lei (cabe ao poder legislalivo a co1npeténcia juríJica de nível primário), de modo que a atribuição ao Judiciário, além da jurisdição legislativa ordinária, a da jurisdição constitucional, imbrica no sistema jurídico unia contradição, um conflito invencível. 16 Ver Karl LOE\Xi'ENSTEIN, Teoria de la Constituci6n, Barcelona, Ariel, 1970. pp. 310 e ss .. 14 envolve, ainda que em grau mínin10, u1na .ideoJogização.17 Por isso JELLINE1'C18 ensinava que os valores da Constituição não nos servem para dizer o que fazer: essa tarefa direta e imediata é ideologizante e, pois, requer necessariamente órgãos políticos de legiferação; a função dos valores é de controle (ou seja, indireta e mediata), supondo a preexistência de uma legislação a ser examinada, a ser corrigida, a ser "julgada". Essa, a primeira e grande razão para a preservação da autonomia Oegítima, equilibrada e moderada) entre as funções de direito constitucional e as de direito ordinário. Sem o respeito àquelas exigências da razão prática e da realidade, o direito constitucional deixaria de ser um direito de valores para ser u1n direito de ideologias e de ideologias da pior espécie: daguelas que se disfarçam sob a pele de valores. Para garantir a transcendência do plano constitucional dos valores, todos os países de tradição romano-gennânica na Europa, setn exceção, instituíram uma jurisdição constitucional distinta da jurisdição ordinária. Não foi, pois, por acaso que o constitucionalis1no de valores do segundo pós-guerra trouxe com ele o denonlinado Tribunal Constitucional como poder autônon10 do Estado. 19 1\. separação das duas Justiças passou a ser um dos arranjos essenciais do Estado detnocrático de Direito. 9.ESTADODEDIREITOEAINSTÂNCIADESOBREDIREITO A descoberta do direito em concreto e o aprimora1nento constante das instituições requeren1 un1 permanente diálogo entre realidade, direito legislado e direito enquanto expressão dos valores hu1nanos n1ais elevados. No Ocidente, da baixa Idade l'vfédia até o surgiinento do constitucionalis1no contetnporâneo, o cultivo do direito justinianeu pelos professores da Universidade, operava como esse verdadeiro sobredireito. Tal função crítica dialógica do direito codificado era cu1nprida fonnalmente dentro do próprio direito civil. A autonomia dos comentadores e dos professores foí sen1pre apreciada e estitnulada como essencial ao progresso do direito na direção da realização de un1a justiça 1nelhor, n1ais próx.itna do ideal. O direito constítucional, surgindo no Séc. XVIII, passou a atrair, para sua esfera, progressivainente, a função de sob redirei to, num primeiro n1omcnto sob colar de "irradiação" da liberdade no plano do direito ordinário (inclusive no direito privado). Depois, no segundo pós-guerra, a Constituição, ao abraçar, além da liberdade, wna constelação de vatores, franqueou um ca1npo riquíssi1110 ao sobredireito, o qual só é sobredireito na medida c1n que respeita e preserva o direito legislado. l~ nele gue o sobredireito encontra o interlocutor válido para cu1nprir sua função e para realizar, de forina n1ais elaborada, a Justiça. A absorção do direito ordinário pelo direito constitucional, cotn efeito, supri111iria o sobredireito, afetando a própria essência do 1:;,stado democrático de Direito. 17 l\ o que nos ensinam os clássicos da razão prática (v. Alas<lair I\1ACINTYRE citado). rn Op. cit., pp. cit .. 19 Cf: do Autor O Tribunal Constitucional como Poder (S.Paulo, I\1cmória Jurídica, 2002). 15 10. ESTADO DE DIREITO E A SUBSIDIARIEDADE DE NÍVEIS DO ORDENAMENTO Nas sociedades políticas n1ais antigas, de extensão territorial reduzida, o chefe único, que acumulava poderes "jurídicos" e cuidava da orde1n social, exercia, antes de tudo, a composição e o julgamento dos conflitos. Esforçava-se por progressivamente substituir as práticas desasrregadoras da vingança privada. Assim, a priineira função juspolítica dominante a se organizar em torno do poder parece ter sido a judicial. w Com a evolução e a co111plexificação crescentes da vida social, os juízes sozinhos não podiam n1ais atender adequada111ente a necessidade generalizada de orientação das condutas na con1unidade. Só então aparece a aspiração social e política por pautas objetivas para dirigir o comportamento social, na direção do be1n comu1n. Surgia assim o legislador, atuando sobre o direito em u1n nível de abstração e de general.idade mais elevados, com as prin1eiras leis escritas. O progresso trouxe não somente a sofisticação dos juizados individuais e coletivos (os tribunais), n1as principahncnte a n1odernização das tarefas e dos instrumentos legiferantes.Prosseguindo a trilha evolutiva, as necessidades de ]Ü11itar os poderes juspolíticos e de garantir a liberdade dos inc111bros da coinunidade, conduziram a sociedade -no início pela via revolucionária- à descoberta do poder constituinte e à adoção de Constituições escritas. A consciência jurídica, então, avançou ainda 111ais, passando a dc111andar a fiscalização da obra do legislador. Criaram-se, então, técnicas de controle de constitucionalidade das leis, culminando, na segunda n1ctade do século XX, na Europa Continental, com a instituição de um novo poder político, o Tribunal Constitucional, fonnado de juízes constitucionais. Dessa linha evolucionária da história institucional das funções jurídicas do I.<;stado podemos extntir dois princípios: (a) o da especial.ização crescente dos órgãos sociais e políticos; e (b) o da subsidiariedade das funções sociais e políticas. Não é aqui o lugar de aprofundar o princípio de letra (a). Já o princípio de letra (b) nos sugere alguns pontos rnuito itnportantes para os objetivos do presente trabalho. Primeiro: a mais importante das funções jurídicas é a de juiz. É, existencialmente, o ponto de partida de toda a atividade jurídica, se1n a qual nenhun1a das de1nais poderia operar. f-:_ a que está 1nais próxima do funda1nento ontológico do direito, ou seja, a pessoa humana, real e viva, cotn sua preeminente dignidade ao 1nesmo tempo ind..ividual e social, livre e solidária, corporal e espiritual, dotada de direitos e deveres fundamentais e vocacionada a um mundo de valores superiores que ao direito cabe garantir e promover. É a que vai servir diretan1ente a pessoa humana necessitada da tutela jurídica, o sujeito prin1eiro e a finalidade 20 As fontes bíblicas nos falam que o governo priinitiYo dos hebreus foi dos juízes. No Ocidentc- Medieval, o conimon law é anterior à recepção da codificação de Justiniano e sua primeira característica é a de ser um judgc made law. 16 últitna de todo o ordena1ncnto jurídico. () ordenan1cnto assegura à função judicial u1n espaço próprio de autonomia, inclusive para cohnatar lacunas, pela via da equidade e dos princípios gerais do direito. E1n seguida, e na ordem, seguem-lhe, ein relevância-pelas inesmas razões~ a função legislativa e a função de controle constitucional, respectiva1nente. Segundo: cada rúvel funcional, enquanto as condições sócio-culturais não cobrava1n especialização, realizava subsidiaria1nentc as tarefas de nível mais abstrato. Assim, no período prin1cvo, o juiz que judicava cwnpria, embrionaria1nente, ta1nbé1n, a tarefa de legislador (pelos precedentes gerava normatividade) e, ainda n1ais, implicitamente, era o controlador dos valores superiores daquele direito rudin1entar. Terceiro: mesn10 nos Estados mais evoluídos, a precedência ontológica (primeiro ponto) e a preferência subsidiária (segundo ponto) subsistem e continuam a valer cm prol dos níveis mais concretos do ordenamento. Assim, não é tanto o juiz, enquanto juiz, que existe para servir os legisladores; antes, as legislações é que existem para ajudarem o juiz a fazer Justiça no caso concreto. Ta1nbé111 não é tanto a legislação que existe para fazer a grandeza ou preservar eficácia das constituições; antes, as constituições é que foram inventadas para defender, proteger e arnparar as boas legislações, aprünorando, corrigindo e suprindo as defeituosas. Enfim, as constituições não dcven1, ne111 podetn, pretender substituir, jugular ou mesmo abafar as legislações, ne1n estas a juízes realmente juízes. Práticas e doutrinas com tal pretensão seriam verdadeiras 1no.nstruosidades totalitárias, a subverter a dignidade humana (o funda1nento de todo o direito), e a distorcer os valores fundamentais do ordenamento jurídico (as autênticas aspirações da dignidade hu111ana, finalidades de todo o direito). 11.CONCLUSÃO Observados os princípios da precedência ontológica e da preferência subsidiária, as relações entre os níveis ou planos do ordena1nento jurídico pede1n obediência às legítimas autonomias de cada qual e à complementaridade entre eles. É, neste quadro de relações que deven1 ser exa1ninadas as numerosas questões tópicas envolvidas na matéria, como, por exemplo, a tormentosa questão dos efeitos dos direitos fundamentais sobre o direito ordinário ein geral e o direito privado em particular. () presente texto procurou expor, em consonª-ncia co111 as últimas pesquisas do Autor, a doutrina universal, a qual tem procurado guardar fidelidade aos postulados da tradição ocidental do Estado de1nocrático de direito. Essa doutrina, a111pla111ente majoritária na Alemanha, está deduzida no ensinamento abalizado de seus maiores juristas, como E. FORSTHOFI~ K. HESSE e C. W CANARIS. A. Constituição, escrevia o primeiro, não é um super111ercado donde se possam satisfazer todos os desejos, nem deve ser transfonnada ern u1na i11assa de argila nas inãos dos ideólogos. 21 Por sua vez, anotou t-IE,SSE, "a Constituição é a ordem jurídica funda111ental 17 da Con1u.nidade. Entretanto, de fonna algu1na regula tudo, mas somente aspectos singulares ~ gerahnente os particulannente importantes~ da vida estatal e social, abandonando o resto da configuração aos poderes estatais por ela constittúdos, em particular ao legislador dc1nocrático. Por isso, o significado do Direíto C:onstitudonal para o direito privado consiste em singulares funções de garantia, orientação e impulso." 22 Mostra HESSE, não só a in1portância do direito constitucional para o direito ordinário (e o privado em especial), mas o inverso, a importância do direito privado para o direito constitucional. Suas palavras são tão apropriadas, que as escolhe1nos para encerrar este trabalho: ''.Antes de tudo, um Direito Civil que descanse sobre a proteção da personalidade e sobre a autonon1ia privada forma parte das condições fundatnentais da ordem constitucional da Lei Fundamental. A liberdade privada da Pessoa, que o Direito Civil pressupõe e para cuja preservação e desenvolvimento põe nonnas e processos jurídicos, é requisito indispensável para as decisões responsáveis e, mesmo, para a possibilidade dos atos de decisão. Isto tudo fundainenta a enorme transcendência do Direito Privado para o Direito Constitucional. Na autodcter1ninação e na própria responsabilid'lde da Pessoa se n1anifesta, etn parte essencial, a natureza da Pessoa na qual se funda a própria Lei Fundamenta[ e da qual depende a orden1 constitucional."23 / 21 FORSTHC)FF deixa bem claro que "a subordinação do legislador à Constituição é bem diferente da vinculação completa, como se a Constituição fosse a origem do inundo, unia célula jurídica germinal da qual rudo deve proceder, desde o Código Penal a uma lei sobre tennômetros." (El Estado de la Sociedad Industrial, Madrid, IEP, 1975, pp. 241~242). 22 HESSE, I(onrad. Derecho Constitucional y Derecho Privado. lvfadrid, Civiras, 1995, p. 82 e ss,. z-1 Op. cit., p. 86. 18 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOBBIO, Norberto. A Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília, UnB, 1995, 184 pp .. CANAHJS, Claus~Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Coünbra, Almedina, 2003, 167 pp .. FORSTHOFF, Ernst. Estado de la Sociedad Industria!, Madrid, IEP, 1975, 289 pp .. JELLINEK, Georg. 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