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PARA UMA PSICOPEDAGOGIA CONSTRUTIVISTA Lino de Macedo* * Universidade de São Paulo.presente texto está subdividido em cinco seções: 1) para uma visão construtivista da Psicopedagogia; 2) para um uso psicopedagógico de jogos; 3) o "fazer" (réussir) e o compreender no jogar; 4) jogar e a questão do erro e 5) considerações finais. fio que as une é a pretensão do autor de que a vasta e complexa obra de Piaget pode ser aplicada ao contexto psicopedagógico: do ponto de vista teórico, possibilitando-nos compreender os processos e estruturas psicológicas graças às quais o ser humano produz conhecimento; do ponto de vista prático, possibilitando-nos analisar critica- mente as situações que são mais favoráveis para isso. A hipótese aqui defendida é a de que jogos de regras e de construção são essencialmente férteis no sentido de criarem um contexto de observação e de diálogo dentro dos limites da criança sobre processos de pensar e construir conhecimento. Trata-se de um texto exploratório, pois introduz idéias que deverão necessariamente ser aprofundadas pela via da pesquisa, da elaboração clínica e da discussão teórica. 1. Para uma visão construtivista da psicopedagogia Psicopedagogia. Aplicação da Psicologia Experimental à Pedagogia. (Ferreira, 1986, 1412) Nosso propósito na presente seção é tecer algumas considerações sobre a Psicopedagogia e sobre uma de suas possibilidades aquela que deriva da Epistemologia Construtivista de Piaget. 121No Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (Ferreira, 1986, definem apenas estratégias de trabalho (orientação de estudo, domínio dos p. 1412), a definição do termo Psicopedagogia é clara: trata-se da aplicação conteúdos escolares ou de jogos) ou características das crianças atendidas da Psicologia Experimental à Pedagogia. termo aplicação implica a (com problemas de aprendizagem escolar "normais" e orgânica ou mental- possibilidade de se empregar na Pedagogia resultados de pesquisas que se mente comprometidas). Nota-se ainda que outras estratégias também são fazem em Psicologia; ou seja, pode-se recorrer a dados da Psicologia, utilizadas: faz-se o atendimento psicopedagógico recorrendo a propostas quando se dedica à tarefa de educar ou ensinar alguma coisa a alguém. corporais, artísticas e outras, por exemplo, derivadas da Psicanálise, do Henri Piéron (1966/1951), no seu Dicionário de Psicologia, especifica um Psicodrama e assim por diante. Além disso, e cada vez mais, recorre-se pouco mais quando afirma que Psicopedagogia é uma "pedagogia baseada ao computador (Linguagem LOGO, jogos, processamento de textos etc.). cientificamente na psicologia da criança" (p. 354). Igualmente não há por que deixar de atender psicopedagogicamente crianças Em nosso meio, até onde pude constatar, os profissionais que se dizem que têm um bom aproveitamento escolar. De qualquer forma, trata-se sempre psicopedagogos dedicam-se a uma destas quatro atividades: 1) orientação de um trabalho complementar ao da escola, ainda que não necessariamente de estudos; 2) trabalho sobre conteúdos escolares; 3) desenvolvimento de comprometido com que ela faz. A Psicopedagogia, por isso, visa à raciocínio e 4) atendimento de crianças deficientes ou comprometidas. reeducação ou ao aprofundamento das condições psicológicas para a produção Por orientação de estudos, refiro-me ao trabalho do psicopedagogo ou construção de conhecimentos. Conhecimentos em extensão, ou seja, em voltado para a tarefa de organizar a vida escolar da criança que não sabe sua perspectiva informativa, quantitativa ou de conteúdos, bem como fazê-lo espontaneamente. Nesses termos, a ênfase do trabalho é sobre a nhecimentos em compreensão, ou seja, em sua perspectiva estrutural, pro- melhor utilização do tempo a ser dedicado em cada matéria, do espaço cessual, qualitativa ou formal. (sala, iluminação etc.) para o estudo, elaboração de agenda e tudo o mais Meu ponto de vista não é o de que a Psicopedagogia só é necessária exigível ao "como como ler um texto, como escrever, como quando a Escola não cumpre suas funções de transmitir o saber, ainda que estudar para a prova etc. esta seja a causa mais freqüente de encaminhamento para o profissional Por trabalho sobre conteúdos escolares, refiro-me à ênfase no domínio desta área. Ou seja, a criança não está tendo um bom aproveitamento das matérias escolares (Língua Portuguesa, Matemática), a respeito das quais escolar, suas notas são baixas, está desatenta, desorganizada, por isso é a criança não vem tendo um bom aproveitamento escolar. Ainda que, indicada ao psicopedagogo. Isto se for da classe média ou alta; se for da obviamente, os aspectos enumerados na tarefa de orientação de estudo sejam classe baixa (no sentido sócio-econômico) seu destino, como se sabe, será de algum modo considerados, a ênfase é sobre o domínio dos conteúdos a classe especial, a repetência, a exclusão. A Psicopedagogia é necessária (conceitos, exercícios). sempre que se puder, se quiser e se precisar considerar características Por desenvolvimento de raciocínio, refiro-me à ênfase nos processos psicológicas do sujeito que aprende, além de outras especificamente peda- gógicas ou educacionais. de pensamento necessários ao ato de aprender. Geralmente, este trabalho é feito por intermédio de jogos em que o psicopedagogo intervém no sentido Dentre as características psicológicas incluem-se aquelas relativas ao de possibilitar à criança construir procedimentos adequados à solução dos aspecto afetivo. A criança que é encaminhada ao consultório psicopedagógico problemas que se colocam no contexto do jogo. Ainda que situações-problema freqüentemente tem problemas emocionais ligados à tarefa escolar: suas retiradas da vida escolar possam servir de material, jogos são os instrumentos atitudes são de medo, pouca resistência à frustração, ansiedade, pouco privilegiados. envolvimento etc. Deve-se mesmo afirmar que este modo de se relacionar Por atendimento de crianças deficientes ou comprometidas, refiro-me com a tarefa escolar comparece nas quatro subdivisões que enumeramos ao trabalho que o psicopedagogo realiza com crianças autistas, deficientes acima e, além disso, cria um círculo vicioso: a criança com baixo investimento, mentais ou com comprometimentos orgânicos mais graves. Às vezes, este por isso mesmo, dedica-se pouco ao trabalho, o que gera uma defasagem profissional chega a substituir o trabalho da escola. a respeito dele. Instalado o círculo, não se sabe mais se a criança não "quer" trabalhar naquele conteúdo (limitação afetiva) ou se não "pode" As quatro subdivisões do trabalho psicopedagógico enumeradas acima, (limitação cognitiva). Nosso ponto de vista é que, salvo casos mais graves, e quaisquer outras que venham a ser acrescentadas, não são excludentes; pode-se romper círculo por uma ou outra via. De qualquer forma, até 122 123onde sabemos, os psicopedagogos em geral tentam considerar os dois planos (afetivo e cognitivo), ainda que, na prática, pode-se caracterizar o trabalho instituições e do próprio sistema político e econômico de nossa sociedade. deles como recaindo predominantemente mais sobre um aspecto do que Não se pode pretender, com atendimentos individuais ou em pequenos grupos, oferecidos principalmente a um certo segmento social, resolver esta sobre outro. Nossa suposição é a de que no plano funcional esta opção questão. Mas, mesmo aí, podemos defender alguma presença para esta área. por um plano mais cognitivo ou afetivo é necessária, ou seja, não há como tecnicamente considerar os dois aspectos ao mesmo tempo; contudo, do fracasso escolar produz fracassados. Uma vez fracassado, mesmo que se combatam as causas desse fracasso, o indivíduo dele vitimado tem ponto de vista estrutural, tem-se uma estreita solidariedade entre eles, um (o cognitivo) fornecendo os meios, e o outro (o afetivo), as razões. problemas que passam a ser pessoais. Medidas de caráter geral dificilmente resolverão para esse sujeito. Só um trabalho localizado e específico poderia A ênfase usual no atendimento individual ou em pequenos grupos do romper um círculo vicioso então criado. Queremos lembrar que o fracassado trabalho psicopedagógico bem como sua ênfase no atendimento de crianças escolar também pode pertencer a escolas de classe média e alta. São crianças que têm recursos materiais para fazê-lo geram críticas, veladas ou explícitas, e adolescentes que, tendo boas condições para aprender, não se interessam de que é um trabalho elitista e ideologicamente comprometido. Não diremos por isso ou não sabem como fazê-lo. É pena que só esse segmento de que isto, como em tantos outros domínios, não possa ocorrer. Mas nosso fracassados tenha acesso ao atendimento psicopedagógico, e que a pesquisa objetivo neste parágrafo é destacar um propósito mais digno para esta área, nesta área seja ainda tão pouco desenvolvida. a saber: Tecidas algumas considerações sobre Psicopedagogia, resta-nos apro- 1. A pesquisa ou o atendimento psicopedagógico pode contribuir para fundar o exame de uma de suas possibilidades aquela que deriva da a construção e uma melhor exploração de materiais ou instrumentos Epistemologia Construtivista de Piaget. de ensino. A obra de Piaget (ver Piaget, 1970/1971) é, no mínimo, consagrada 2. trabalho individual ou com um pequeno grupo de crianças a dois propósitos: possibilita uma melhor consideração de seus modos de pensar e 1. descrever estruturas psicológicas que nos possibilitam o conhecimento agir, podendo-se transferir estas observações para grupos maiores. (no sentido científico) e 3. Sabe-se quanto os sujeitos "normais" devem a seus irmãos 2. descrever processos que nos direcionam para estruturas cada vez "doentes" ou com dificuldades: estes, que por seus limites, possi- mais elaboradas quanto a essa tarefa de "conhecer". bilitam sem muita volta uma compreensão em câmara lenta, e realçada nos seus detalhes, daquilo que dificilmente se poderia Essas estruturas e processos não são herdadas, ou seja, não estão apreciar naqueles. Por isso, os sujeitos "normais" são os maiores pré-formadas, nem são recebidas de fora do sujeito, ou seja, de uma fonte beneficiários de tudo isso. exógena, mas são construídas por ele, interagindo com objetos e pessoas, 4. A pesquisa psicopedagógica pode constituir uma ponte necessária tornando-se "possíveis" e "necessárias" em função dessa troca (Piaget, 1967). para a passagem da pesquisa psicológica para a propriamente Esse conhecimento, produto de nossa ação sobre objetos e pessoas, pode pedagógica. ser subdividido em, pelo menos, três aspectos: conteúdos, procedimentos e operações (estruturas). 5. Sabe-se da defasagem, cada vez maior, entre os recursos de apren- dizagem das crianças pobres e as das classes média ou rica. A Construir conteúdos o que são os objetos, de que partes se compõem, pesquisa psicopedagógica pode contribuir, neste campo, oferecendo suas propriedades, seu nome etc. constitui-se naquilo que Piaget (1976) alternativas que visam a esta recuperação. designa por "esquemas Referem-se a modos organizados de assimilar objetos e pessoas quanto àquilo que eles são, na perspectiva do que se disse anteriormente não significa que a Psicopedagogia tenha sujeito. Conceitos, noções, imagens, características dos objetos e pessoas, a ilusão de poder lutar contra ou resolver o problema do fracasso escolar. independentemente do contexto em que estão, "pertencem" a estes objetos Trata-se de um problema mais complexo de natureza política, social, e pessoas, e constituem os esquemas presentativos. econômica e institucional. A produção do fracasso escolar, como sabemos, advém de comprometimentos na estrutura da família e da escola enquanto Conhecer procedimentos como produzir um resultado sobre objetos e pessoas constitui-se naquilo que Piaget (1976) designa por "esquemas 124 125procedimentais". Referem-se a modos organizados de produzir resultados arranjo possível, podendo ser e negada no todo ou em parte; sobre objetos e pessoas. Se a criança quando nasce, já sabe mamar (em enfim, que não se deixa enganar tanto pelo aparente ou ilusório. Já a uma perspectiva biológica), deverá, no entanto, construir procedimentos inteligência sensório-motora só conta com relações diretas, espaço-tempo- específicos para mamar aqueles objetos que lhe são disponíveis. proce- ralmente determinadas e circunscritas ao percebido. No primeiro caso dimento é algo de ordem espaço-temporal e depende de um conjunto de (estruturas operatório-formais), as relações entre o possível, necessário e circunstâncias específicas, de uma dada situação. Sua transferência é por o real tendem a uma integração máxima; no segundo (estruturas sensório- isso limitada. motoras), principiam por um máximo de indiferenciação. Construir operações por que agir ou pensar deste modo e não de Não se trata de uma luta de estruturas, a superior e mais forte outro sobre objetos ou pessoas específicas constitui-se naquilo que Piaget impondo-se sobre a inferior e mais fraca. processo de desenvolvimento (1976) designa por "esquemas Referem-se a modos organizados não deve, pois, ser comparado à luta de classes no processo capitalista. As de estabelecer relações, correspondências, morfismos, entre ações ou objetos estruturas que possibilitam o conhecimento tornam-se progressivamente tais que definam um sentido ou lei de composição que os estruturam como necessárias, as mais fracas e inferiores (sensório-motora e pré-operatória) algo inteiramente necessário. Por isso, os esquemas operatórios sintetizam tornando-se parte de um todo, cada vez mais complexo no nosso desenrolar os esquemas de procedimentos (enquanto estruturas) e os presentativos histórico. Não se trata, pois, de uma oposição entre estruturas, mas de um (enquanto conceitos ou noções). encaixamento entre elas, em que a mais primitiva e única no início da A perspectiva construtivista de Piaget (1970/1971) refere-se ao como vida transforma-se em parte da seguinte e assim sucessivamente. Nestes e ao por quê uma criança constrói ações espontâneas, por intermédio das termos, pode-se formular que a meta de uma Psicopedagogia Construtivista quais age sobre objetos e pessoas, tal como faz. termo espontâneo é criar condições para que ser humano possa e queira (na dupla perspectiva refere-se àquele momento do desenvolvimento a partir do qual o ser humano funcional e estrutural) estabelecer suas relações com o mundo em um nível pode efetuar trocas em um sistema aberto, utilizando esquemas (de proce- operatório formal. Óbvio, onde isto for pertinente, como por exemplo, no dimentos, presentativos ou operatórios) articulados em grau suficiente para muito daquilo que determina nossas relações sociais (regras, valores e o sujeito utilizá-los por si mesmo, já que ninguém poderá fazer isso por símbolos) e de trabalho. ele. Em outras palavras, se a criança desde muito cedo pode reagir à fala de sua mãe, por exemplo, é só por volta dos dois anos que poderá agir pela fala, por já tê-la minimamente articulado para suscitar interações com 2. Para um uso psicopedagógico de jogos os outros. Ação espontânea significa, pois, ação autônoma, ainda que construída em um contexto de reciprocidade e solidariedade sujeito-objeto Jogo. 1. Atividade física ou mental organizada por um sistema de regras ou com outras pessoas. que definem perda ou ganho: jogo de damas; jogo de futebol. A construção de esquemas que possibilitem conhecimento é uma 2. Brinquedo, passatempo, divertimento: jogo de armar; jogo de salão. (...)19. resposta exigida pelo processo de interação. Adaptar-se ao meio (objetos, Psicol. (1 e 2) Jogo empregado como meio de investigação ou tratamento psicológico. pessoas), na perspectiva de Piaget (1976/1977), significa construir instru- mentos cada vez melhores (daí o processo ser designado por equilibração (Ferreira, 1986, 990) majorante), mais fortes e complexos, de efetuar trocas com ele, trocas essas que asseguram uma sobrevivência cada vez mais plena do sujeito e da Para nós, o jogo é muito importante em um contexto psicopedagógico espécie. Estrutura mais "forte" significa mais potente, que considera mais por uma série de razões. No presente trabalho, interessa destacar algumas profundamente os aspectos requeridos na interação. Nesse sentido, pode-se delas. Um jogo de regras, tal como tantos que são oferecidos às crianças afirmar que a estrutura operatório-formal (Inhelder e Piaget, 1955/1976) é e adultos em lojas de brinquedos, propõe uma situação-problema (objetivo mais forte que a da inteligência sensório-motora (Piaget, 1936/1970). Aquela do jogo) que sujeito resolve ou não (resultado do jogo). objetivo do interpreta os dados, faz deduções a partir de hipóteses, considera os muitos jogo e seu resultado, de um modo geral e como condição, devem ser aspectos do problema a ser resolvido, admite que a realidade é apenas um sempre claros para quem joga. Não importa se se trata de um jogo individual, 126 127em que o objetivo é, por exemplo, montar um "quebra-cabeças", sob certas estar atento para os muitos modos de combinar entre si os elementos do condições, ou eliminar peças de um tabuleiro restando apenas uma; ou, se jogo, e no segundo, escolher aqueles que se configuram como os melhores. o jogo é para dois ou mais indivíduos, em que objetivo é resolver certas Compreender ou dominar um jogo supõe poder considerar ao mesmo situações (classificar ou seriar cartas de um baralho de um certo modo, tempo e melhor possível esses dois requisitos. por exemplo, antes do adversário). Basta-nos aqui realçar três pontos sempre presentes em qualquer jogo: É por isso que depositamos, nos jogos e situações-problema em que os objetivos e resultados são claros para o sujeito, a confiança de servirem 1. um objetivo ou situação-problema, de instrumento de desenvolvimento. 2. um resultado, em função deste objetivo e Apenas para constatar o que os jogos possibilitam ao trabalho psico- 3. um conjunto de regras determinando os limites dentro dos quais pedagógico, consideremos as provas operatórias de Piaget (Piaget e os aspectos (1) e (2) serão considerados. desafio ao jogador é 1941/1971, por exemplo). Estas são um excelente instrumento de avaliação encontrar ou produzir os meios que, dentro desses limites, levarão do nível de desenvolvimento das crianças. Não são, contudo, por si mesmas à vitória, ou seja, a um resultado favorável. Esse contexto de "luta" promotoras deste desenvolvimento. Quando colocamos um mesmo tanto de contra alguém ou alguma coisa, com suas táticas e estratégias, é água em dois copos iguais (A = B) e despejamos toda a água de um deles o que encanta ou atemoriza àquele que joga. em um copo mais estreito e alto (C), perguntando à criança se nos copos De nossa parte, e dado o fato de que em um jogo de regras os A e C continua havendo a mesma quantidade de água, a sua resposta é objetivos e os resultados são claros, interessa a análise dos meios, ou seja, informativa para nós, mas não para ela mesma. Suas respostas permitem-nos dos procedimentos que jogador utiliza ou constrói. A análise dos meios verificar se ela já possui ou não a noção de conservação, isto é, a é algo a ser privilegiado em um contexto psicopedagógico porque possibi- compreensão de que a quantidade de água de um recipiente só se altera lita-nos uma aproximação ainda que indireta ao mundo mental do por operações de pôr ou tirar líquido dele, mas não pela mudança em si sujeito, que determina suas ações ou jogadas. Conversar sobre elas com do recipiente. Como sabemos, por intermédio da obra de Piaget, essa sujeito, analisá-las junto a ele, propor-lhe comparar as jogadas entre si, conservação da identidade das relações quantitativas, espaciais, ou quaisquer pedir justificativas para suas ações e tudo o mais em torno disso constitui, outras, é fundamental para que a criança possa compreender ou operar a nosso ver, o objetivo e a razão de ser do trabalho psicopedagógico. transformações classificar, seriar, medir, calcular etc. Mas a resposta pressuposto é que a análise das ações do sujeito, dentro de tais condições, "certa" ou "errada" não tem efeito imediato sobre a criança. Para ela dizer possibilita-lhe pouco a pouco enriquecer suas estruturas mentais e romper que há mais água em um copo do que em outro (resposta "errada") ou (no plano da ação ou compreensão) com o sistema cognitivo que determina dizer que há o mesmo tanto (resposta "certa") dá no mesmo, uma vez que, a utilização de meios inadequados ou insuficientes para a produção de neste caso, não tem condições de auto-corrigir o que pensa ou o que fala. certos resultados em função de certos objetivos. Outro pressuposto é o de Mesmo que o adulto fizesse isso por ela, o resultado seria o mesmo pois que esta situação "artificial" do consultório ou laboratório psicopedagógico faltaria à criança sentido dessa informação. Supomos que se deve a isso poderá servir de modelo ou de quadro referencial ao sujeito, já que o abandono da pesquisa americana, principalmente em "ensinar" as provas jogos da vida" são outros e seus objetivos e resultados nem sempre são de Piaget às crianças. No caso de jogos de regras a situação é diferente: claros. Ele poderá, pouco a pouco, transferir lá "para fora" aquilo que ele a má jogada pode ser inferida, pela criança, pelos resultados que produz, pôde verdadeiramente construir ou compreender "aqui dentro". Só a pesquisa e psicopedagogo pode aproveitar essa excelente oportunidade para analisar nos dirá se estas pressuposições são válidas ou não. melhores. com ela as razões disso e como fazer para inventar ou descobrir jogadas Se de nossa parte o objetivo é a análise dos meios que sujeito utiliza ao jogar, da parte dele a condição é construir ou utilizar meios que A análise dos meios que a criança utiliza ao jogar pode ser feita de produzem os resultados que ele deseja obter. Nesta construção dois desafios muitos modos. Aqui destacaremos apenas dois: a análise dos "erros" e das estão sempre presentes, mesmo que ignorados pelo sujeito: a) considerar estratégias das crianças. Chamamos de "erros" as ações da criança que as em cada jogada diferentes possibilidades e b) eliminar aquelas que prejudicam afastam ou prejudicam no resultado desejado (ganhar, fazer o maior número os objetivos do jogo. São desafios diferentes: no primeiro sujeito deve de pontos, colocar todas as peças no tabuleiro etc.). São erros observáveis 128 129pela criança de algum modo. Daí seu caráter construtivo propor um ações orientadas em uma direção daí seu caráter implicativo sem desafio ou um problema para ela. que nada acontece. estatuto especial das ações refere-se ao seu aspecto Chamamos "estratégias" modo, claro ou não para a criança, como de simultaneidade e solidariedade, ou seja, à relação sincrônica e recíproca ela "arma" as jogadas nas circunstâncias em que jogo está se dando, das ações daí seu caráter reversível sem que, também, nada visando o objetivo final, que é de ganhar a partida ou resolver problema acontece. Fazer, no sentido de ter êxito, implica, pois, construir procedimentos proposto. A análise dos erros e das estratégias nossa hipótese é esta (ações orientadas para um fim), considerando um contexto dado. Como este constitui uma excelente oportunidade de a criança considerar os meios varia sempre, aqueles igualmente devem fazê-lo, o que nos remete ao caráter que utiliza ao jogar. E, como quer Piaget (1974/1978), compreender os espaço-temporal das ações. meios é descobrir as razões que tornaram um resultado positivo ou negativo com referência a um objetivo. Voltemos à definição de jogo que retiramos do dicionário: "atividade física ou mental organizada por um sistema de regras que definem perda Por último, jogos oferecem um excelente pretexto para a criança ou ganho" (Ferreira, 1986, 990), para decifrá-la segundo as considerações produzir (no sentido de réussir) e compreender situações. E isto é que teóricas anteriores. Seja, por exemplo, uma jogada de damas. Ganhar é o pretendemos desenvolver na próxima seção. objetivo dos dois adversários, ainda que apenas um venha a consegui-lo. Isso dependerá dos procedimentos de ambos, ou seja, de como as ações forem compreendidas na prática e no contexto das diferentes jogadas. 3. "fazer" (réussir) e compreender jogar aspecto temporal presente no jogo de damas refere-se à seqüência intercalada dos movimentos dos dois adversários. caráter implicativo "Fazer (réussir) é compreender em ação uma situação dada em grau suficiente desses movimentos traduz-se no compromisso necessário de articulá-los para atingir os fins propostos, e compreender é conseguir dominar em entre si em termos de presente, passado e futuro. presente refere-se ao pensamento as mesmas situações até poder resolver os problemas por elas movimento que um dos adversários deve fazer. Para isso, deve considerar levantados, em relação do como e ao porquê das ligações constatadas e, por a posição atual das peças em função dos movimentos anteriores e das outro lado, utilizadas na ação." transformações geradas (peças capturadas, aproximação e afastamento das (Piaget, 1974/1978, 176) peças brancas entre si e com relação às pretas, por exemplo). passado há de ser articulado com o presente, como parte integrante dele, ainda que este implique uma ultrapassagem daquele. Ultrapassagem porque qualquer No trecho acima, que transcrevemos de Piaget, coloca-se a solidariedade movimento implica uma alteração favorável ou não da situação do jogo. existente entre o fazer (réussir) e o compreender. que significam estes Mas, ultrapassagem com conservação do ultrapassado. futuro refere-se à dois termos e como eles operam quando jogamos? No presente parágrafo antecipação das da jogada que está sendo feita tanto na no ocuparemos dessas duas questões. Talvez, com isso, as considerações perspectiva do jogador quanto na de seu oponente. Trata-se, portanto, da feitas sobre uma Psicopedagogia Construtivista ganhem mais sentido, nos antecipação de um futuro que, por isso mesmo, determina a ação presente termos em que as propusemos. orientada no sentido de projetá-lo. aspecto temporal comparece, assim, A afirmação "fazer (réussir) é compreender em ação uma situação quando jogamos neste eterno esforço de realizar o presente (fazer uma dada em grau suficiente para atingir os fins propostos" (Piaget, 1974/1978, jogada) agora retroagindo ou proagindo sobre as jogadas que foram ou 176) implica seu compromisso com um resultado favorável (sucesso) e serão feitas. É, portanto, um trabalho contínuo na base do "se... então", que isso depende de um compreender em ação. Ou seja, o fazer (réussir) cuja tessitura define procedimentos de abertura, de defesa, de ataque, alguns é produto da coordenação de ações articuladas no espaço e no tempo com clássicos na arte de jogar damas. transformações (relações causais) entre objetos orientados à realização do aspecto espacial presente no jogar damas refere-se à relação de objetivo proposto. estatuto temporal das ações refere-se ao seu aspecto vizinhança, proximidade, afastamento, de direita, esquerda, em cima, embai- de duração e de sucessão, ou seja, à relação entre antes e o depois das entre etc., que tábulas (peças) pretas e brancas guardam entre si. Além 130 131disso, um tabuleiro define um campo de seis quadrados (base 8x8), alter- tempo real, na perspectiva do compreender a implicação traduz-se em uma nadamente pretos e brancos, onde doze tábulas pretas e doze tábulas brancas ordenação de argumentos ou fatos válidos desembocando em uma conclusão movimentam-se seguindo diferentes direções e sentidos, e, ao fazê-lo, que se quer verdadeira e logicamente necessária. Se na perspectiva do fazer, alternam as relações espaciais acima lembradas. aspecto da simultaneidade a reversibilidade traduz-se em uma substituição ou troca das posições refere-se ao fato de que uma mesma tábula está sem sair do lugar à direita, ocupadas pela tábulas e na constituição de um grupo prático dos desloca- à esquerda, acima, abaixo, entre etc. uma outra. Considerar isto é fundamental mentos, na perspectiva do compreender, a reversibilidade traduz-se na no jogo. aspecto sincrônico refere-se ao fato de uma mesma tábula estar, subordinação das posições atuais às das posições virtuais das tábulas e na ao mesmo tempo, à frente, atrás, junto etc., de uma outra tábula. Qualquer construção de uma geometria topológica que dá sentido às suas sucessivas ou sincrônicas colocações e deslocamentos. movimento ao alterar a posição das peças modifica essas relações espaciais e demanda dos jogadores uma contínua revisão da configuração das tábulas. É, portanto, um infinito trabalho de reversibilidade, de aproximar e afastar, 4. jogar e a questão do erro de fazer e desfazer ao mesmo tempo e sem sair do lugar. A afirmação "...compreender é conseguir dominar em pensamento as Com efeito, do ponto de vista da invenção um erro corrigido pode ser mais mesmas situações até poder resolver os problemas por elas levantados, em fecundo que um êxito imediato, porque a comparação da hipótese falsa e relação ao como e ao porquê das ligações constatadas e, por outro lado, suas conseqüências proporciona novos conhecimentos, e a comparação entre utilizadas na ação" (Piaget, 1974/1978, 176) implica extrair as razões erros dá lugar a novas idéias. que conduziram ao fracasso ou ao êxito, ou seja, reconstruir o que (Piaget, 1976/1987, pp. 60-61) significa interpretar as ações no pensamento. Trata-se, então, de tematizar Na presente seção, retomarei alguns aspectos considerados na anterior a significação das ações. Como isto opera quando jogamos damas? para Construtivista. examiná-los à luz da questão do erro no contexto de uma Psicopedagogia Compreender um procedimento de abertura em um jogo de damas, por exemplo, significa poder descrever a seqüência e sentido dos movi- erro e sua conseqüência, o fracasso escolar, são, pode-se dizer, mentos iniciais em uma partida. Fazer esta narrativa e justificá-la implicam algumas das principais razões para o encaminhamento desafios diferentes aos das jogadas. Do ponto de vista espacial implica Outra diz respeito à atitude e aos modos de a criança enfrentar a tarefa construir um diagrama em que a posição das tábulas possam ser representadas escolar e estar na sala de aula na relação com seus colegas e professores; tanto quanto seus movimentos. Trata-se, portanto, de fixar o procedimento se bem que, neste último caso, o encaminhamento seja mais freqüentemente em um texto (escrito ou pensado) de estrutura narrativa, ainda que esquemática psicoterápico. Nestes termos, analisar as respostas da criança no contexto (basta designar a ordem de sucessão dos movimentos das peças e suas escolar e descobrir como e por que ela fracassa, contribuindo para uma conseqüências sobre as do adversário). Mais importante que isso, trata-se superação disso, constituem, talvez, a demanda mais importante que pais e de justificar esse procedimento no contexto de outras possíveis e de professores fazem aos psicopedagogos. demonstrar sua validade. Requer, assim, a construção de uma teoria de que significa errar no plano do fazer? Este, tal como já caracterizado, aberturas, da construção de um modelo válido em princípio para qualquer consiste em não produzir um resultado favorável tendo em vista um objetivo, jogo. Requer a articulação em uma estrutura de significados que encaixe qual implica dominar os meios necessários para isso. Nem sempre os os diferentes procedimentos de abertura entre si ao mesmo tempo que procedimentos utilizados são bons em função do objetivo e exigem correções possibilite a opção por um ou outro procedimento. Além disso, trata-se de (regulações) totais ou parciais. Trata-se de uma tarefa difícil de o sujeito considerar também procedimentos de defesa e ataque, definindo, no conjunto, resolver por si mesmo, porque, se objetivo e resultado de uma ação um sistema ou estilo de jogo. são relativamente conscientes, aquilo que determinou o sucesso ou fracasso Os aspectos considerados anteriormente implicação e reciprocidade dessa ação nem sempre é. Voltando ao jogo de damas: qualquer um tem são agora utilizados em sua plena significação. Expliquemo-nos: se na mais ou menos claro o objetivo do jogo - capturar todas as peças do perspectiva do fazer, a implicação traduz-se em uma seqüência material de adversário e resultado final consiga-se isto ou não; igualmente, são movimentos encadeados entre si e considerados sucessivamente em um claras as regras básicas do jogo: alternância das jogadas, procedimento de 132 133movimentação diagonal, esquerda ou direita das peças, procedimento de deve de algum modo intervir no processo. Ou seja, erro para ser analisado tornar-se um observável para o sujeito. captura etc. Se assim é, por que o sujeito perdeu o jogo? Como fazer para ganhar? Analisar os erros consiste, então, em tomar consciência daquilo Tornar o erro um observável para o sujeito é um problema diffcil e que deve ser corrigido ou mantido; consiste em voltar-se para a análise e importante. Difícil porque é justamente isso que o sujeito não consegue melhoria dos procedimentos. fazer por si mesmo. Importante porque assim ele terá algo "concreto" contra o qual lutar e, se possível, vencer. Mas, antes, creio ser necessário A análise do erro no plano do fazer consiste em a criança ser capaz caracterizarmos o que é um observável para Piaget. Para isso, retomarei de proceder a uma melhor definição operacional dos meios que utiliza ao aqui um trecho onde Piaget (1976/1977, pp. 62-63) nos diz o que é um jogar. Significa poder mesmo que a posteriori corrigir a situação, observável: testar outras estratégias, "esquecer" temporariamente o objetivo e resultado esperados e se dedicar ao aperfeiçoamento dos meios. que há de errado "(...) um observável é o que a experiência permite notar por uma leitura dos próprios fatos dados(...) na seqüência temporal das jogadas? que há de errado na localização e direção espaciais das peças relativamente às do adversário? Por que tal (...) Seria muito insuficiente, portanto, definir o observável apenas pelos seus caracteres perceptivos porque o sujeito muitas vezes crê perceber o que na jogada implicou a captura das peças? Qual a relação entre esta jogada e realidade não percebe(...) a anterior? Quais são as diferentes possibilidades de jogo e suas implicações (...) A começar pelos observáveis, temos que defini-los, portanto, por meio em termos de possíveis reações do adversário? que é necessário fazer daquilo que o sujeito crê notar e não apenas daquilo que pode ser notado. para impedir ou compensar uma jogada desfavorável do adversário? São Isto significa que uma observação nunca é independente dos instrumentos de questões a serem discutidas e resolvidas na prática a medida das possibilidades registro (portanto, duma assimilação) de que o sujeito dispõe e que estes psicológicas da criança. instrumentos não são apenas perceptivos, mas consistem, sim, em esquemas que significa errar no plano do compreender? Em nosso ponto de pré-operatórios ou operatórios aplicados à percepção actual e capazes de modificar os seus dados num sentido quer de precisão suplementar quer de vista significa deparar-se com "contradições" e "conflitos" no sistema adotado deformação(...) de jogadas. Não se trata de ser bem ou mal-sucedido, mas de dominar as (...) Convém notar ainda que distinguiremos os observáveis notados pelo razões que levaram ao sucesso ou ao fracasso. Não se trata de corrigir, sujeito sobre as suas próprias ações e os observáveis registrados sobre mas de pensar sobre elas, de fazer com que atuem simbolicamente, de objeto. Por exemplo, no caso da bolinha de argila transformada em salsicha, antecipá-las, pré-corrigindo o que for necessário. Trata-se de criar uma há pelo menos um observável relativo à ação, que diz respeito à ação de teoria da ação" e não de viver uma "teoria em ação", isto é, construir estirar, e pelo menos um observável relativo ao objeto, isto é, o seu uma explicação. Voltaremos a este parágrafo. alongamento". A teoria de Piaget é uma teoria da regulação. A construção do Do longo trecho transcrito acima podemos reter pelo menos as seguintes conhecimento faz-se no contexto das interações sujeito-objeto, tal que nas idéias: o observável consiste em uma leitura, produto de uma interpretação trocas incessantes entre ambos algo sempre é corrigido (feedback negativo) do sujeito de sua própria ação bem como do objeto sobre a qual se dá. ou mantido (feedback positivo). Isso é inevitável, ao menos no plano do que a experiência nos mostra é que muitas situações não são observáveis fazer, porque as trocas em um sistema aberto como é o caso do sistema para o sujeito. Em algumas delas isso é até positivo, tendo em vista nossas psicológico caracterizam-se pela "não programação" de uma das partes. situações. É caso, por exemplo, das provas clássicas de conservação de Ou seja, há sempre um aspecto incontrolável ou imprevisível ou não Piaget em que, para os sujeitos de nível pré-operatório ou intermediário, determinável completamente na relação. Quando andamos, as características as respostas "erradas" (dizer que tem mais, quando tem mesmo tanto) do terreno, do ar, dos objetos no contexto onde isso acontece guardam não são observáveis para eles; vale dizer, não constituem problema. Digo que isto é positivo porque, neste caso, é interessante que o sujeito não sempre algo de indeterminado. Quando jogamos, é sempre difícil prever tenha controle sobre aquilo que faz ou pensa; caso contrário, a situação aquilo que um adversário fará diante da nossa ação. A regulação refere-se, não teria função diagnóstica. Mas se propósito é de intervenção, trata-se então, ao mecanismo de ajustamento nas trocas sujeito-objeto. erro de tornar o erro um observável para o sujeito, seja no plano de suas ações refere-se àquilo que precisou ser corrigido neste processo. funcionamento (pela análise, por exemplo, de seus procedimentos, de seu jogo), seja no disso é inconsciente. Na situação que estamos analisando a consciência 135 134plano dos objetos sobre os quais ele incide (pela análise, por exemplo, dos procedimentos do adversário, das das jogadas etc.). Mais isso que Piaget chama de recalcamento cognitivo: uma operação graças à uma vez, nossa hipótese é de que o jogo, quando o sujeito nele se envolve, qual uma situação articulada é considerada sincrética ou justapostamente, é uma situação privilegiada para a consciência dos aspectos que demandam tal que assim se evitem os conflitos, os erros entre as afirmações. Ou seja, é como se a criança "esquecesse" que tivera admitido a igualdade de massa correções, o que acarretará, cedo ou tarde, uma superação da fase anterior entre as duas bolas, que nada fora acrescentado ou tirado. Recalcar é não em que a criança se encontrava. Essa superação, segundo Piaget, implica sempre dois aspectos solidários: ampliação do sistema e relativização das ver erro onde ele existe e assim não se defrontar com contradições, para noções. Ampliação do sistema no sentido de que o "todo" transforma-se as quais ainda não se tem condições de ultrapassar. No contexto psicope- dagógico, reações de Nível I são muito freqüentes e são as mais difíceis em "parte" no movimento seguinte, parte aceita ou "rejeitada" (porque de lidar porque o sujeito ainda não é sensível, não observa os muitos errada) e relativização, no sentido de que o que era absoluto no movimento conflitos existentes entre suas respostas. Nesses termos, no Nível I não há anterior deve agora conviver com outras considerações. No contexto de erro, na perspectiva da criança, porque o mesmo é recalcado e assim não jogos insisto esses conflitos (inconscientes) são pouco a pouco constitui um problema para ela. tornados conscientes, enquanto observáveis que flagram contradições diversas, cujas superações são a razão de ser do trabalho psicopedagógico. Nível II caracteriza-se pela solução empírica do problema proposto ou por uma certa problematização das questões em jogo. Solução Para tentar tornar mais clara, talvez, essa evolução da criança em porque agora, por ensaio e erro, a posteriori, a criança consegue corrigir-se direção à superação do erro, ou seja, à sua compreensão, recorrerei à e encontrar a solução certa; porque em certas situações a compreensão é clássica divisão de Piaget do processo de desenvolvimento em três níveis. imediata é caso, por exemplo, da transformação "bola" "salsicha" Toda análise experimental deste autor, mormente de suas publicações a na prova clássica sobre a conservação da quantidade de massa. Problema- partir de 1940, pode ser resumida no classificar as respostas da criança em tização das questões em jogo porque agora o sujeito começa a "duvidar" uma situação específica em um Nível I, onde a criança não resolve a do que diz ou faz; porque se choca com certas perguntas ou respostas; situação, às vezes nem mesmo a entende; em um Nível II, onde ela opera na ambivalência, no acerto por ensaio e erro; e em um Nível III, onde, problema. às vezes, em vão, tenta articular as diferentes partes da situação- dentro dos limites da situação proposta, ela compreende e resolve a questão. Obviamente, o Nível III de um sistema corresponde ao Nível I do sistema Nível III caracteriza-se pela compreensão do problema proposto, não importa se a solução empírica seja satisfatória ou não. Não se trata, que lhe é imediatamente superior, e assim por diante. Nossa questão será pois, de um Nível de onipotência sobre a situação ou jogo, mas de potência. doravante colocar a questão do erro em cada um destes Níveis. Explico-me: um escritor de Nível III tem uma leitura crítica de seu texto Nível I caracteriza-se pela justaposição e pelo sincretismo, em que se tem dúvidas sobre uma palavra, recorre ao dicionário; se julga que o erro é recalcado do ponto de vista cognitivo. Justaposição pela ausência uma frase não comunica bem o conteúdo da mensagem, reescreve-a etc. de vínculo necessário entre duas respostas, uma relacionada com a outra, Na situação de jogos ocorre o mesmo: não é que o jogador de Nível III mas apenas considerada contiguamente pela criança. É o caso, por exemplo, seja imbatível, mas ele tem uma postura de pesquisa e de domínio do do jogo em que uma movimentação de peças é feita como se nada tivesse sistema. Ou seja, as dúvidas, as contradições, as dificuldades são agora a ver com a seguinte. No caso clássico das provas de conservação, a internas ao sistema, podendo agora, dentro desses limites, ser antecipadas, justaposição refere-se àquela situação em que uma criança, tendo admitido neutralizadas ou anuladas. que duas bolas de massa têm o mesmo peso, diz em seguida que aquela Podemos, em outras palavras, assim resumir a questão do erro nesta transformada em "salsicha" agora é mais pesada, ainda que tenha "observado" perspectiva dos três Níveis: que apenas se modificou a forma, isto é, que não se pôs ou retirou massa de uma das bolas. É como se fossem dois slides independentes e justapostos Nível I. Não há erro em uma perspectiva consciente. erro é recalcado, entre si. Sincretismo, pela tendência oposta, mas complementar, de julgar e as respostas contraditórias não causam conflito ou problema para as crianças. As tentativas exteriores em denunciá-lo são inoperantes. que a mudança de aspecto de um objeto (de sua forma, no caso considerado) acarreta a alteração em outros aspectos (o seu peso, no caso). É justamente Nível II. erro aparece como um problema. Depois de tê-lo cometido, a criança reconhece, apesar de já ser tarde. Além disso, as soluções 136 137ocorrem por ensaio e erro, por tentativas. A interferência exterior, do adulto apenas uma das partes e em que seu comportamento existe em função ou de outra criança, já surte mais efeito no sentido de problematizar a do outro e vice-versa. Essa solidariedade inevitável, essa troca social, esse situação. Mas ainda é uma perturbação exterior ao sistema cognitivo da pensar e agir juntos, essa linguagem e códigos comuns, essas regras que, criança. As iniciativas exteriores problematizam o erro. Ele se instala como em vigorando, submetem nossa conduta a um procedimento único, abrindo-nos uma contradição que exige superação. para todo o universo de divergências, de novas possibilidades, encaminham- Nível III. erro é superado enquanto problema. A criança pode nos para uma forma superior e melhor de relação interindividual. Do ponto antecipá-lo ou anulá-lo, ou seja, já dispõe de meios dentro do seu de vista cognitivo tem-se nos jogos de regras uma necessidade e uma sistema para pesquisá-lo. Os erros anteriores são considerados nas ações possibilidade constantes de construção de novos e melhores procedimentos seguintes. Há pré-correção do erro. Trata-se agora de uma perturbação e estruturas de fazer e compreender o mundo, de descobrir os erros e de interior ao sistema. sujeito adquire uma certa autonomia (Macedo, 1989, construir pouco a pouco meios de superá-los, de tomar consciência, ainda 26). que relativa, daquilo que nos determina. Óbvio, muitas e muitas situações há que nos desafiam e nos enriquecem nos aspectos aqui considerados. Mas nosso propósito foi o de defender uma Psicopedagogia Construtivista 5. Considerações finais que, baseada em Piaget, não precisa recorrer exclusivamente como é tão freqüente às provas e situações por ele estudadas, mas pode Tal como a "psicanálise de crianças" inventou procedimentos de "caixa como um recurso técnico servir-se de jogos para proporcionar à criança, completação de desenhos, manipulação de objetos, jogos de cons- quem sabe, um contexto rico tal que ela possa encontrar-se a si mesma, trução etc., por intermédio dos quais a criança pudesse "projetar" e "falar" superando dentro de seus limites, possibilidades e necessidades a de seu mundo interno (fantasias, medos etc.) ou de suas dificuldades miséria a qual estivera subordinada, não importa se por razões pessoais ou relacionais em uma perspectiva afetiva, supomos que jogos de regras (ou sociais. de construção) podem constituir um recurso psicopedagógico adequado para se analisar, junto com a criança, seus modos de pensar e agir em uma perspectiva cognitiva, derivada da obra de Piaget. Desenvolver alguns pontos dessa nossa hipótese foi o objetivo deste texto. Tratou-se, obviamente, Referências Bibliográficas apenas de um começo. Jogos de regras consistem em uma situação privilegiada tanto afetiva, CASTORINA, J. A. (1988). Psicologia genética: Aspectos metodológicos e social e cognitivamente, aspectos, aliás, indissolúveis como quer Piaget. Do implicações pedagógicas. Trad. José Claudio de Almeida Abreu. Porto ponto de vista afetivo tem-se neles todo um universo relacional: competir Alegre: Artes Médicas. (Edição original: 1984.) com um adversário ou vencer um objetivo; regular ciúme, a inveja, a FERREIRA, de (1986). Novo dicionário da língua portuguesa. frustração; adiar o prazer imediato, já que urge cuidar dos meios que nos ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. conduzem a ele; submeter-se a uma experiência de relação objetal, de natureza complementar, já que o outro faz parte da situação; subordinar-se INHELDER, B.; PIAGET, J. (1976). Da lógica da criança à lógica do a regras, que limitam nossa conduta; enfim, entregar-se a um outro, abrindo-se adolescente: Ensaio sobre a construção das estruturas operatórias para o imprevisível disso, para nosso "terror" ou "êxtase". Do ponto de formais. Trad. Dante Moreira Leite. São Paulo: Pioneira. (Edição original: 1955.) vista social tem-se nos jogos de regras as exigências básicas para uma vida social: a necessidade de uma linguagem, de códigos e, principalmente, da MACEDO, L. de (1989). Implicações de uma visão construtivista para consideração de regras que regulam nosso comportamento interindividual. reexame da pedagogia da alfabetização. São Paulo, Instituto de Psi- Não importa se se trata de jogos transmitidos socialmente, a cujas regras cologia. 27 mimeo. nos submetemos, ou de jogos que os próprios interessados inventam: em PIAGET, J. (1967). Biologie et connaissance: Essai sur les relations entre qualquer caso, há de se co-operar em um contexto onde sujeito é sempre les régulations organiques et les processus cognitifs. Paris: Gallimard. 138 139

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