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DEMANDA EPISTEMOLÓGICA NO ENSINO DE FÍSICA Miguel Arcanjo Filho Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ensino de Ciências e Matemática, Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Mestre em Ensino de Ciências e Matemática. Orientador: Marco Antonio Barbosa Braga, D.Sc. Rio de Janeiro Agosto de 2011 DEMANDA EPISTEMOLÓGICA NO ENSINO DE FÍSICA Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ensino de Ciências e Matemática do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Mestre em Ensino de Ciências e Matemática. Miguel Arcanjo Filho Aprovada por: ____________________________________________________ Presidente, Prof. Marco Antonio Barbosa Braga, D.Sc. (orientador) ____________________________________________________ Profª. Andreia Guerra de Moraes, D.Sc. ____________________________________________________ Prof. José Cláudio de Oliveira Reis, D.Sc. (UERJ) ____________________________________________________ Prof. Waldmir Nascimento de Araujo Neto, D.Sc. (UFRJ) Rio de Janeiro Agosto de 2011 Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do CEFET/RJ A668 Arcanjo Filho, Miguel Demanda epistemológica no ensino de física / Miguel Arcanjo Filho .—2011. viii, 68f. + 19f. de Apêndices : il.color. , grafs. ; enc. Dissertação (Mestrado) Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca ,2011. Bibliografia : f. 68 Orientador : Marco Antonio Barbosa Braga. 1.Física 2.Teoria do conhecimento 3.Abordagem interdisciplinar do conhecimento na educação I.Braga, Marco Antonio Barbosa (orient.) II.Título. CDD 530 À minha mãe, Paulicea de Oliveira Arcanjo (in memorian) , primeira e eterna professora que, com seu amor e carinho, sempre iluminou meus caminhos em busca de um mundo melhor. À Neide ,Daniela e Fernanda, mulheres que estão sempre ao meu lado, que com seu amor e paciência tornaram possível a realização desse trabalho. Ao professor Marco Braga agradeço a orientação, a amizade e a compreensão sempre demonstradas nos melhores e piores momentos desse trabalho. À professora Andreia Guerra pela amizade, apoio e sugestivas e seguras opiniões ao longo de todo o curso. Ao professor Barroco, “amigo de fé e irmão camarada”, pelo incentivo e principalmente pelos “puxões de orelha filosóficos” sempre eficazes. Ao professor Hugo Pinheiro pela erudição e excelência profissional inspiradoras e principalmente por ter me mostrado que ensinar Física é muito mais do que ensinar conceitos de ciência. À professora Penha Maria Cardozo Dias por te me iniciado na seara da História e Filosofia da Ciência. À professora Neide Gonçalves por ser a responsável por eu ter me transformado em um profissional sempre em busca de conhecer melhor seu ofício. À professora Sandra Regina Pinto dos Santos pelo apoio que sempre oferece a todos do ISERJ que se atrevem voltar a esquentar bancos escolares. Aos colegas Gustavo e Karla, companheiros de jornada, pelo incentivo e pelos ombros amigos. Ao Bráulio Tito dos Santos e Abraão Ferreira, funcionários do CEFET, extremamente competentes e sempre dispostos a ajudar. Também agradeço o pequeno, mas sempre bem vindo, apoio financeiro da CAPEs. RESUMO DEMANDA EPISTEMOLÓGICA NO ENSINO DE FÍSICA Miguel Arcanjo Filho Orientador: Marco Antonio Barbosa Braga, D.Sc. Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação de Ensino em Ciências e Matemática do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Mestre em Ensino de Ciências e Matemática O presente trabalho analisa o quanto os alunos podem influenciar seus professores a apresentar os conteúdos das disciplinas científicas, que são tradicionalmente ensinados nas escolas de Ensino Médio, de forma mais conceitual do que geralmente acontece nesse segmento. Investiga as imagens de ciência e de natureza que esses alunos trazem quando chegam a esse nível de ensino para criar um conjunto de situações, definidas como uma demanda epistemológica, que incentive esses mesmos professores a buscar subsídios na História e Filosofia da Ciência para a transição de uma prática docente essencialmente quantitativa para outra que se concentre nos conceitos que se pretende ensinar. Examina relatos de professores que foram expostos a essa demanda epistemológica potencializada por discussões que tiveram origem, por sua vez, nas aulas de Física de uma turma da primeira série do Ensino Médio. Palavras-chave: Epistemologia; Ensino de Física; Educação. Rio de Janeiro Agosto de 2011 ABSTRACT Advisor: Marco Antonio Barbosa Braga, D.Sc. Abstract of dissertation submitted to Programa de Pós-graduação em Ensino de Ciências e Matemática -Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, as partial fulfillment of the requirements for the degree of Master. The present study analyzes how much the students themselves can influence their professors to introduce the content of scientific disciplines, wich are traditionally implanted on high school institutions, in a more conceptual form than it is usually done on this particular segment. It investigates the idea of science and nature that is carried by this students on the moment they achieve this education level, in order to establish a set of circumstances, defined as an epistemological demand, that stimulates these same teachers to seek for subsides on other disciplines such as History or Philosophy of Science, in order to enable the transition of a essentially quantitative docent practice to another that focus on the concepts themselves. It examines reports of professors that were exposed to this epistemological demand increased by discussions originated, on other hand, at physics classes of a first grade high school group. Keywords: Epistemology; Physics Teach; Education.Rio de Janeiro August, 2011 Sumário Introdução 01 I. Pressupostos Teóricos 05 I.1 O ensino de ciências e a história e filosofia da ciência 05 I.2 O ensino de física e a história e filosofia da ciência 08 I.3 A contribuição da epistemologia 18 II Pesquisa Exploratória 20 II.1 A primeira pesquisa exploratória 20 II.1.1 As perguntas da primeira pesquisa 21 II.1.2 As conclusões após a primeira pesquisa 28 II.2 A segunda pesquisa exploratória 29 II.2.1 As perguntas da segunda pesquisa 31 II.2.2 As conclusões após a segunda pesquisa 44 III Desenvolvimento das Atividades em Sala 48 III.1 Eixos norteadores do trabalho em sala 48 III.2 As aulas e a dinâmica em sala 49 III.2.1 Os primeiros encontros 50 III.2.2 Os encontros seguintes 52 III.3 Considerações sobre os textos 53 IV Relatos de Professores 56 IV.1 Relatos de professores e a demanda epistemológica 56 IV.2 Análises de alguns relatos de professores 60 Conclusões e Perspectivas Futuras 63 Referências Bibliográficas 65 Apêndice A.I INTRODUÇÃO Ao longo dos últimos anos assistimos, com prazer, os esforços de aproximação entre os conceitos científicos que os cursos de ciência apresentam e as histórias de como esses conceitos foram se desenvolvendo. Isso é reflexo do namoro, cada vez mais intenso, entre pesquisadores das áreas de História e Filosofia das Ciências com seus colegas do Ensino de Ciências. Não apenas a história do Ensino de Ciências tem sido colocada na ribalta acadêmica, mas principalmente e especificamente, a história dos conteúdos científicos que são ensinados e sua interseção com o que poderíamos chamar de manifesta vontade de se fazer mais significativa a aprendizagem desses conteúdos. Diversos autores tem se empenhado intensamente nessa linha, acreditando que a incorporação da dimensão histórica e filosófica dos conceitos científicos é relevante para o ensino. Nosso objetivo, na presente dissertação, é mostrar que existem formas de se estimular a discussão dos conceitos filosóficos e históricos pertinentes à Física no Ensino Médio e que quanto mais cedo esses conceitos são apresentados mais interessantes e significativos eles se apresentam como forma de se discutir o papel das ciências no cotidiano das pessoas. Pretende-se mostrar que a efetiva apresentação dos ingredientes epistemológicos dos conceitos científicos, que se ensina, somente passará a ser uma preocupação real por parte dos professores quando os alunos também mostrarem efetivo interesse em conhecer as origens dos conceitos apresentados. Portanto, a pergunta que pretendemos responder ao longo desta dissertação é: de que forma o interesse, por parte dos alunos, de que sejam esclarecidas as origens dos conceitos científicos, pode influenciar seus professores a procurar subsídios na História e Filosofia das Ciências para suas aulas? Acreditamos que sem uma cobrança dessas origens por parte dos alunos, isto é, sem a existência de uma demanda epistemológica da parte deles, a apresentação de fundamentos históricos e filosóficos continuará a ser apenas uma guirlanda do ensino, com seus típicos odores que se espalham ao vento, sem que exista uma verdadeira convicção de que a discussão de como a ciência é criada e se desenvolve é um instrumento valioso na transmissão dos conceitos científicos, portanto, um apelo legítimo à curiosidade inerente aos seres humanos e que pode ser explorada de forma fecunda no ensino de ciências, trazendo desdobramentos práticos na forma de se ver o papel da ciência na nossa vida, e como nossa vida - nossa condição humana - também interfere no fazer ciência. Nosso trabalho, portanto, está entre aqueles que defendem que ensinar ciência de forma descontextualizada, sem mostrar as suas origens e de como ela se relaciona com o mundo real à nossa volta, possui um valor meramente propedêutico que leva a sociedade - as pessoas como um todo - a questionar a necessidade de se ensinar conceitos de ciência, muitas vezes esses conceitos se mostrando extremamente sofisticados e sem uma conexão evidente com as necessidades que as pessoas possuem na sua vida normal, levando-as a achar que a escola deveria ensinar outras coisas ou, quando muito, relegar o papel do ensino de ciências a um status secundário, obviamente sem a necessidade de obrigatoriedade no seu aprendizado. Uma prova disso é que constantemente encontramos pessoas questionando os conteúdos ensinados pelos professores de ciências com as famosas perguntas: para que eu tenho que aprender isso? Que utilidade terá para minha vida esse conhecimento? Também não é incomum encontrar pessoas afirmando que o que estudaram em Física, Química e Biologia no Ensino Médio foi pura perda de tempo e multiplica-se esse lugar comum que o ensino de ciências não possui utilidade efetiva na vida. Mais grave ainda são algumas falas de colegas professores onde questionam a forma com que as ciências nas escolas são ensinadas, como um sinal claro de que esses colegas não concebem ou não conhecem formas mais pertinentes de inserção, no mundo acadêmico, de um ensino de ciências com maior significado para quem aprende e também para aqueles que ensinam ciências. Estamos convencidos de que o ensino de ciência é um instrumento valioso não apenas para instruir, mas para, além disso, criar e ou fomentar reflexões profundas e genuínas sobre nosso papel nesse mundo e de como nos relacionamos com ele. Fazer essa conexão entre conteúdos de ciência com a necessidade, que existe em cada um de nós, de entender o universo em que vivemos é, portanto, urgente e somente acontecerá quando compreendermos as origens dos instrumentos que utilizamos para saciar essa necessidade. Acreditamos que não existe uma forma única de estimular o interesse em aprender ciências e nem uma técnica infalível que consiga realizar essa proeza pedagógica, mas também acreditamos que para alcançar, mesmo que parcialmente, um objetivo tão grande e tão complexo não se pode abrir mão do que consideramos ser uma ferramenta poderosa nesse sentido, qual seja, a apresentação dos conteúdos sedimentando-os com as suas origens históricas e filosóficas, em suma, apresentando esses conteúdos epistemologicamente. No primeiro capítulo vamos procurar dialogar com alguns autores que tem produzido vasta obra sobre as implicações - no ensino de ciências e em particular no de Física - das apresentações possíveis de conteúdos ligados à História e Filosofia das Ciências no ensino, procurando nesse diálogo encontrar caminhos que levem a uma eficaz relação entre ensino de ciência e história da ciência, do ponto de vista de sua aprendizagem, numa teia de inter- relações que possam confirmar nossa convicção de que sem estudar os alicerces históricos de cada conteúdo, esses se mostram e se manifestam de forma maniqueísta, isto é, são bem vindos para aqueles que já muito precocemente se decidem pelo estudo das ciências, mas que para outros tantos (e esses outros tantos, o maior tanto) os conceitos científicos da escola não possuem quase nenhum significado, sendo assim melhor afastá-los o quanto mais rápido e o mais longe possível. Vamos procurar mostrar que uma demanda epistemológica, no sentido que a descrevemos anteriormente, por parte dos alunos, é uma forma eficaz de promover posturas nos docentes que estimulem e valorizem a inserção da História e da Filosofia da Ciência nas suas práticas profissionais. No segundo capítulo são apresentadas duas pesquisas exploratórias que foram realizadas com a intençãode mapear as imagens de ciência que os alunos do Ensino Médio (EM) possuem. O objetivo dessas pesquisas exploratórias foi buscar, nas imagens de ciência que os alunos trazem, conceitos científicos que podem ser trabalhados conjuntamente com suas origens epistêmicas, provocando assim uma série de questionamentos que poderiam ser a base para se criar uma demanda de dúvidas e reflexões sobre a origem e validade de tais conceitos, em suma, uma demanda epistemológica. Ainda no segundo capítulo mostramos como os resultados das pesquisas exploratórias anteriores nos auxiliaram na produção de pequenos textos para serem trabalhados em sala. Esses textos foram planejados com a finalidade de apresentar - da forma mais tênue possível, considerando o nível acadêmico dos alunos - os conceitos científicos em conexão com os desdobramentos epistêmicos que eles carregam. Concentramos nossa segunda pesquisa em turmas da primeira e segunda série porque estamos convictos de que quanto mais cedo o enfoque epistemológico é evidenciado, os conceitos de ciência parecerão menos estranhos para os alunos do EM, assim esses alunos se sentiriam mais à vontade em discutir esses mesmos conceitos com seus professores, provocando uma interlocução mais qualitativa sobre o significado do que se está estudando, o que por sua vez deveria promover uma reflexão, da parte de seus mestres, de como este conteúdo apresentado evoluiu epistemicamente e se estabeleceu como um legítimo conceito científico. No terceiro capítulo apresentaremos nossa experiência em uma turma da primeira série do Ensino Médio em uma escola pública do Rio de Janeiro, onde aplicamos o material didático elaborado anteriormente. Também no terceiro capítulo discutiremos os eixos condutores para a confecção desse material que foi feito com a intenção explícita de fomentar, nos alunos, a necessidade de se conhecer as origens históricas dos conceitos que estão sendo apresentados nas aulas de Física, como também tem a intenção de se saber como essa necessidade, por parte dos alunos, se traduz em alguma reação nos outros professores de ciência. Discorreremos também sobre as características desse material que pretende incluir discussões epistemológicas durante as aulas sem alterar significativamente os conteúdos tradicionalmente apresentados pelos professores, isto é, apresentar uma discussão um pouco mais elaborada do que a usual, no que se refere à História e Filosofia das Ciências, mas sempre com o cuidado de preservar o que já é tradicionalmente feito, portanto, sem criar uma imagem de que algo muito diferente está sendo realizado, cuidando para não inviabilizar os planejamentos que são normalmente cumpridos nas escolas. O capítulo quatro é dedicado a algumas análises baseadas em um pós-teste onde observamos se houve reflexos efetivos da nossa intervenção com ingredientes históricos e filosóficos nas concepções de ciência que os alunos possuem e como esses reflexos influenciaram o discurso dos professores de ciências desses alunos. Transcrevemos alguns relatos dos colegas que estiveram envolvidos direta ou indiretamente com nosso trabalho procurando, a partir desses relatos, identificar sinais da nossa demanda epistemológica e o quanto ela se fez sentir por parte desses outros colegas professores. Finalizando, apresentamos as conclusões e perspectivas deste trabalho, a bibliografia consultada e, na forma de apêndices, encontramos o material didático produzido, no formato de pequenos textos, que foi utilizado durante a pesquisa. CAPÍTULO I - PRESSUPOSTOS TEÓRICOS Neste capítulo traçaremos um panorama das diversas influências teóricas que nortearam inicialmente esta dissertação. Importante, desde já, lembrar que nossa investigação tem características de “trabalho de campo”, uma vez que se baseia em observações da realidade vivenciada em sala de aula. Entretanto, mesmo se caracterizando por uma pesquisa empírica, não pode abrir mão de uma base ou referência teórica que a conduza. Dentre as inúmeras possibilidades de recorte teórico vamos considerar alguns trabalhos que descrevem o que se tem constatado na prática docente quando ingredientes de História e Filosofia da Ciência (HFC) são adicionados na diversidade acadêmica que hoje temos no ensino de ciências. Se por um lado diversas pesquisas (GIL PÉREZ, 1993; VANNUCCHI, 1996; GUERRA,1998; PEDUZZI, 2001; MARTINS, 2006; MOREIRA, 2007) mostraram ser eficazes, para o aprendizado de ciências, maiores e mais profundas inserções de conceitos epistemológicos como auxílio para o entendimento - por parte de alunos e principalmente de professores - dos conceitos científicos, por outro lado temos ainda uma realidade em sala de aula que está distante dessas inserções. Diversos pesquisadores, dentre os quais os acima citados, tem se empenhado na discussão das múltiplas possibilidades de se incluir, de forma efetiva na práxis docente, a HFC como instrumento capaz de aperfeiçoar as relações entre o que se pretende ensinar com o que é efetivamente compreendido pelos aprendizes. As pesquisas de Michael Matthews são exemplares nesse sentido e constituem um conjunto de referências que em nenhum aspecto pode ser colocado em segundo plano. Matthews (1995) constata que a História, a Filosofia e a Sociologia das Ciências ficaram descoladas das mudanças e desenvolvimentos vivenciados pelo ensino de ciências ao longo dos últimos anos. Constata também que existem sinais de uma promissora aproximação entre esses saberes (MATHEWS, 1995). Matthews afirma que a História, a Filosofia e a Sociologia das Ciências tornam as aulas de ciência mais reflexivas e significativas para os alunos e seus professores e que se constituem num salutar desafio para ambos, uma vez que descortina uma variedade muito grande de atuações e de inter-relações para a prática docente. I.1 O ENSINO DE CIÊNCIAS E A HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA Conforme adiantamos, o trabalho de Michael Matthews é considerado relevante, comparativamente com tantos outros, pela profundidade e extensão com as quais investiga o papel da História da Ciência no ensino. Alguns aspectos relevantes podem ser destacados (MATTHEWS, 1994, p.50): - A História facilita a compreensão dos conceitos e métodos da ciência; - A História interliga conjecturas individuais às idéias de cunho científico; - A História das Ciências é internamente vantajosa. Situações fundamentais da história, da cultura e da ciência deveriam ser conhecidas por todos os estudantes; - A História é importante para o entendimento de como a ciência foi construída; - A História quando investiga a vida de cientistas humaniza a ciência e a torna mais atraente para aqueles que a estão estudando; - A História estabelece conexões com tópicos e disciplinas científicas em geral, assim como com outras diversas disciplinas. Acentua a natureza especulativa e mutuamente dependente da pesquisa humana. Chamando a atenção para o distanciamento que existe entre aqueles que trabalham com a filosofia das ciências e os que ensinam ciência, Matthews (1995) proclama a importância das pesquisas que de alguma forma possam minimizar esse distanciamento, porque o ensino de ciências não pode ser destacado do ensino da filosofia. Considera que a concepção de ciência que o professor carrega é passada conscientemente ou inconscientemente para seus alunos. Sempre que se ensina ciência, também se ensina filosofia da ciência. Assim uma imagem de ciência é processada pelos alunos, imagem essa que se alimenta, direta ou indiretamente, da própria epistemologia do professor, mesmo que este não tenha a consciência de que esta epistemologia esteja ali presente. Assim, o distanciamentoda educação científica da filosofia da ciência tem como conseqüência uma educação pobre nos seus fundamentos, carente das bases teóricas que ela expõe e vulnerável a perpetuar idéias que podem se transformar em mitos, se tornando, pouco a pouco, em simulacro de ciência. A filosofia está presente toda vez que termos como: hipótese, teoria, conceito, modelo, verdade, etc. aparecem na discussão travada em sala. Se o professor entende que esses termos devem ser discutidos de forma mais aprofundada, tanto melhor, se ele não tem esse entendimento, e toma esses termos como “simples palavras” nem por isso o conteúdo filosófico da discussão deixa de existir. Ele apenas é empurrado para debaixo do tapete. Um importante desdobramento das posições filosóficas tácitas que um professor de ciências pode dispor é, por exemplo, o uso dos chamados experimentos de pensamento (gedankenexperimente) que é uma explícita utilização da lógica e da racionalidade científica. Matthews (1994, p.99) lembra que esses experimentos de pensamento permitem ao professor avaliar o quanto e em que nível os estudantes compreendem os conceitos que foram discutidos. Considerar como legítimas estratégias pedagógicas que somente podem ser assentadas sobre bases filosóficas é assegurar que filosofia e ensino de ciências não podem ficar muito distantes uma da outra por muito tempo, muito menos todo o tempo. É claro que sempre existiram argumentos que tentaram desqualificar a importância da História e da Filosofia no ensino das disciplinas científicas (KLEIN, 1972; KUHN, 1977; ABRANTES, 1998). Alguns chegaram até a afirmar que aquelas são nocivas para o bom entendimento destas. De uma forma bem geral esses argumentos podem ser divididos em dois grupos principais: - História e Ciência são atividades acadêmicas muito diferentes entre si. A História busca a complexidade dos fatos e suas relações externas com outros fatos, o universo da História é, portanto, aberto. A Ciência, por outro lado, procura a simplicidade entre relações de causa e efeito, separando essas relações das influências externas, criando assim um sistema fechado. - A história apresentada nos cursos de ciência, isto é, a própria história da ciência é uma pseudo-história. Ela não deve incorporar no seu discurso elementos que estão alheios aos acontecimentos científicos ao custo de se transformar numa empreitada intelectual gigantesca que não pode ser considerada história e nem ciência. Segundo Thomas S. Kuhn (1977) a História por não se incomodar com resultados divergentes nas suas especulações e pesquisas parece fomentar uma visão imprecisa e dispersa dos elementos que são estudados por ela. Essa postura pode ser considerada temerária e subversiva para os propósitos das pesquisas científicas que, pelo contrário, buscam a convergência e as respostas certas e objetivas para dados problemas. Assim a HFC seriam perda de tempo, pois haveria a possibilidade de os aprendizes, ao lerem os clássicos históricos da ciência, encontrar outras formas de se abordar os problemas tradicionalmente estudados durante sua formação, o que dispersaria esses mesmos estudantes (KUHN, 1977, p.279). Alegando que os estudantes de ciência devem se sentir como que pertencentes a uma “tradição de pesquisa bem sucedida”, Kuhn alega que a HFC enfraquece a confiança dos estudantes na instituição chamada ciência. É interessante observar os comentários de Matthews a respeito das considerações de Kuhn. Matthews observa que durante muito tempo Kuhn trabalhou ensinando História da Ciência para professores de ciência e que durante esse tempo não relatou nenhuma situação que comprovasse que a HFC pudesse ser nociva à credibilidade que os estudantes de ciência têm na própria ciência (ARAUJO NETO, 2003). Matthews lembra também que o ensino de ciências não pode ser confundido com pesquisa histórica. É perfeitamente razoável supor que as implicações históricas na ciência devem ser analisadas pelos estudantes de ciência em um plano diferente e até certo ponto, simplificado, daquele que os estudantes de história devem utilizar para suas pesquisas. Entretanto, não existe qualquer demérito nessas simplificações que, para fins de estudo das ciências, devem ser levadas adiante observando o nível acadêmico dos estudantes de ciência e até mesmo sua faixa etária, considerando nesse caso, as exigências e potencialidades intelectuais dos indivíduos. Mesmo sendo um crítico da utilização da HFC no ensino de ciência, Kuhn (1996) nos oferece um excelente exemplo de como o estudo dos antecedentes históricos de uma dada situação científica pode ser estimulante no sentido de se perceber como a ciência é estruturada. Sobre relatos de como os raios X foram inicialmente apresentados à comunidade científica, ele descreve: “Contudo, os raios X foram recebidos não só com surpresa, mas também com choque. A princípio Lorde Kelvin considerou-os um embuste muito bem elaborado. Outros, embora não pudessem duvidar das provas apresentadas, sentiram-se confundidos por elas.” (KUHN, 1996, p.85) Portanto, se fugirmos de uma caricatura irresponsável de história e de uma simplificação demasiadamente infantil, poderemos utilizar os conteúdos apresentados num curso de HFC como ingredientes que, longe de afastar os iniciados nos estudos científicos, pelo contrário, estarão afeitos a se aproximarem ainda mais das questões científicas potencializadas por esses ingredientes tipicamente humanos. Matthews (1994) também considera que o sucesso de uma inserção histórica e significativa dentro dos currículos escolares das disciplinas científicas passa fundamentalmente pela postura que o professor de ciências tem perante a História e a Filosofia das Ciências. Um professor preocupado e interessado em adquirir mais conhecimentos históricos para sua formação científica pode ser um elo muito seguro entre o ensino de ciência e a história de seus conteúdos. Ao contrário, se o professor de ciência considera inexpressivo o papel das origens históricas dos conteúdos que ensina, mesmo que existir formalmente no currículo a obrigatoriedade de uma inserção histórica nos conteúdos científicos, essa inserção não terá efeito. Matthews considera o professor a chave do sucesso para essa inserção quando afirma: “Bons professores podem salvar o pior dos currículos e maus professores podem matar o melhor currículo possível. (MATTHEWS, 1994, p.82)” A afirmação acima, de Mathews, pode ser considerada definitiva para os propósitos desta dissertação que busca examinar uma das possíveis formas - a demanda epistemológica - que possam levar um professor de ciências a passar de um professor apenas observador das potencialidades educacionais que a HFC possui para ser um professor “ativista” dessas potencialidades. I.2 O ENSINO DE FÍSICA E A HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA Parcela significativa dos professores de Física, tanto do Ensino Superior quanto do Ensino Médio acredita que parte das dificuldades inerentes ao ensino tem suas raízes na excessiva matematização dos conteúdos com prejuízos para o aprofundamento dos conceitos físicos (DIAS, 2001; PEDUZZI, 2001; MACHADO e OSTERMANN, 2005; MACÊDO, 2007). Portanto, se os conceitos devem ser enfatizados, as relações entre esses próprios conceitos e suas origens epistemológicas podem ajudar na apropriação dos seus significados. Dificuldades conceituais na apresentação dos conteúdos poderiam ser atenuadas se pudéssemos disponibilizar uma parcela do tempo de aula para a discussão qualitativa dos conceitos físicos associados às imagens de natureza e ciência - no sentido que Abrantes (1998) dá ao termo - que eles carregam. Partindo da premissa, defendida por diversosautores, de que a História e a Filosofia da Física são relevantes para o seu ensino (GIL-PEREZ, 1993; MATTHEWS, 1995; BARRA, 1998; BARROS e CARVALHO, 1998; DIAS, 2001; ARAUJO NETO, 2003; MARTINS, 2006), procuraremos dialogar com pesquisadores que constataram que a epistemologia pode se tornar uma parceira importante para uma nova forma de se ensinar e aprender os conceitos de Física. Sandoval e Cudmani (1993) defendem que existe uma barreira entre o que é estudado do ponto de vista puramente formal, isto é, entre os modelos abstratos e matematizados com os quais os estudantes geralmente se deparam na sua formação e o que se pode chamar de comportamento real dos fenômenos físicos. Consideram que apenas a epistemologia, com suas hipóteses a cerca de como se constrói o conhecimento físico, pode romper essa barreira. Ao afirmarem que existe um consenso sobre o fato de que um professor de Física deve conhecer o mais amplamente possível a disciplina que ensina, fica implícito que sua formação acadêmica não pode dispensar uma bagagem considerável de estudos em epistemologia. “As idéias defendidas por epistemólogos como Popper, Bunge, Kuhn, Lakatos, Feyerabend, Bachelar, Piaget, Laudan, Hempel, ..., para citar apenas alguns, podem ser de particular importância para um professor que pretende favorecer aprendizagens significativas na Física, pois podem ajudar-lhe a compreender os modos pelos quais a comunidade científica tem acesso aos conhecimentos das ciências naturais e a sua estruturação em saberes legitimados.” (SANDOVAL e CUDMANI, 1993). Outra forma de se constatar que o ensino de Física carece de uma maior inserção dentro da HFC, e vice-versa, é a constatação de que tradicionalmente os conceitos de Física são equivocadamente apresentados aos alunos do Ensino Médio, como também aos alunos universitários, como resultado de processos indutivistas que inexoravelmente dão conta de todas as demandas da pesquisa. O Prof. M. Antônio Moreira (MOREIRA, 2007) explicitamente, comenta a respeito: “Muitas vezes se pensa que as teorias físicas são elaboradas para explicar observações. Parece lógico: observa-se, fazem-se registros (medições, por exemplo) que geram dados e destes induz-se alguma teoria, alguma lei. Pode parecer lógico, mas não é assim. Há uma interdependência, uma relação dialética, entre teoria e experimentação. Uma alimenta a outra, uma dirige a outra.” (MOREIRA, 2007) A propósito dessa constatação de que a experimentação-indução tem status de “método de pesquisa” quase que absoluto no imaginário de grande número de professores de Física, deixando de lado diversas influências subjetivas mais ou menos mensuráveis e sem uma visão de que o experimento quase sempre carrega na sua realização uma antevisão do que se pretende constatar ou provar, Moreira afirma que esta forma superada de se entender o que realmente é a pesquisa científica favorece práticas docentes que não são pertinentes: “Tradicionalmente os cursos de física e os livros didáticos privilegiam uma formação acadêmica com enfoque altamente empirista-indutivista, isto é, um enfoque no qual o conhecimento advém da generalização indutiva a partir da observação, sem qualquer influência teórica ou subjetiva, e dessa forma capaz de assegurar a verdade absoluta às afirmações científicas. Nosso pressuposto básico, e frequentemente defendido na literatura, é que essas visões superadas (empiristas-indutivistas) da natureza da ciência sustentadas por futuros professores de física acabam resultando em práticas docentes inadequadas.” (MOREIRA, 2007) Esta relação visceral entre teoria e experimentação nunca é explorada adequadamente. Diversos trabalhos têm mostrado (SILVEIRA e OSTERMANN, 2002) que mesmo após sua formação acadêmica, os professores de ciência possuem uma crença, quase religiosa, no processo indutivista. Acreditam que existe um “método” científico que deve ser seguido com rigor para que as pesquisas tenham êxito. Os autores verificaram que essa crença no método empirista-indutivista permanece inabalável principalmente quando analisada dentro do contexto das publicações (livros texto, tanto do Ensino Fundamental quanto do Médio) que enfatizam o “método científico” como caminho exclusivo de se promover ciência. Trata-se, portanto, de tarefa nada trivial argumentar com estudantes e professores “não iniciados” às epistemologias atuais que o empirismo-indutivismo não é como pretendem que seja e como aprenderam que é: uma panacéia que dá conta de toda a ciência. “É possível, portanto, verificar que, em diferentes níveis, a concepção empirista- indutivista de ciência permanece praticamente inabalável. Como isso é possível frente ao acúmulo de argumentos epistemológicos que a contrariam? E os esforços de uma aproximação entre HFC e o ensino de ciências não têm sido eficazes para sua superação? Nossa experiência em formação inicial e continuada de professores de Física e Ciências tem evidenciado que a tarefa de problematizá-la não é trivial, pois esta mostra-se profundamente arraigada e resistente a mudanças. É impossível tentar desacreditá-la em poucas aulas e com argumentos superficiais e pouco convincentes. É preciso construir estratégias didáticas, inspiradas em epistemologias contemporâneas, a fim de promover o entendimento de que o programa empirista-indutivista é regressivo e degenerou - no sentido de Lakatos (1987, 1989) - se comparado a outros enfoques mais modernos.” (SILVEIRA e OSTERMANN, 2002) Só isso já seria motivo para se discutir conceitos epistemológicos com esses professores de ciência, em particular com os professores de Física, Química e Biologia do Ensino Médio, mas não apenas estes, na buscas dessas estratégias didáticas citadas acima. Nossa dissertação aponta no sentido do que consideramos ser uma das possíveis estratégias, qual seja, a que se pudéssemos estimular os alunos a cobrarem de seus professores aprofundamentos epistemológicos, eles, professores, se sentiriam encorajados a procurar meios para satisfazer essas cobranças. Entretanto, ainda não existe essa demanda epistemológica por parte dos alunos. Isto é, o aprendiz não está acostumado a cobrar de seus mestres que estes explicitem as origens dos conceitos apresentados, bem como dos processos que levaram à legitimação, e efetivo uso, de tais conceitos. Além disso, existe um processo de acomodação, por parte dos alunos, que não os inspira a procurar as origens de conceitos científicos que é precisamente aquela visão de que esses mesmos conceitos são resultado apenas da criatividade de alguns poucos gênios (MARTINS, 2006). Visão que muitas vezes é compartilhada pelo professor e, mais ainda, fomentada por ele. Assim, os estudantes chegam até a universidade, e muitas vezes passam por ela, sem efetivamente questionarem quais são as origens do que chamamos conhecimento científico. Um exemplo muito familiar dessa deformação científica (além do dogma do empirismo-indutivismo) e que é repetido, por diversas vezes, por um número muito grande de professores de Física, descreve as origens da teoria da gravitação de Newton que, inspirado por uma queda absolutamente casual de uma maçã, teria encontrado o elo perdido entre a Física dos céus e a da Terra: “A mensagem da anedota da maçã é que todas as pessoas que existiram antes dos “grandes gênios” seriam estúpidas. Milhões de pessoas devem ter visto maçãs caindo antes de Newton, mas ninguém entendeu que as maçãs caíam por causa da gravidade. Teria sido Newton quem descobriu a gravidade e lhe deu esse nome. Uma outra mensagem é a de que a ciência seria produzida por pessoas que, de repente, “têm uma idéia”, e então tudo se esclarece. Não seria necessário esforço, não é necessário desenvolver pesquisas. Bastaria esperarque as idéias surjam – e, quando elas aparecem, o trabalho já estaria completo. Uma conseqüência dessa mensagem é que a ciência seria construída através de uma série de descobertas que podem ser associadas a datas precisas e a autores precisos. A História da Ciência seria, essencialmente, um calendário repleto de descobertas e seus descobridores. Por fim, a anedota identifica a teoria da gravitação de Newton (todos os corpos se atraem com forças proporcionais às suas massas e inversamente proporcionais às distâncias) com a idéia de que as maçãs (e outros objetos) caem porque existe a gravidade.” (MARTINS, 2006) Passemos agora para o trabalho de Nascimento Jr., que resume de forma bastante pertinente, para nossos propósitos nessa dissertação, os aspectos que porventura deveriam ser tratados quando de uma apresentação, para professores de ciência, das novas epistemologias que traduzem de forma mais orgânica as relações entre conhecimento científico e a construção desses saberes. Ele discorre sobre os mecanismos intelectuais que forjaram as antigas epistemologias que consideramos hoje estarem superadas, e que por isso mesmo exigem urgente discussão e revisão dentro da prática docente. Os pressupostos de que com a chegada do positivismo no século XIX, a metafísica estaria excluída como argumentação legítima dos processos de entendimento da natureza e em seu lugar entrariam apenas as relações de sucessão e similaridade (NASCIMENTO JUNIOR, 1998), seriam as bases para uma epistemologia neo-empirista, nascida no início do século XX que se instalou e permanece no “imaginário científico” de tantos professores de ciência e que tem como ambiente propício para sua sobrevivência e reprodução as salas de aula. Esses pressupostos, segundo Nascimento Jr. (1998) seriam: - a idéia da verificabilidade como forma de conferir a veracidade das teorias a partir da indução e das probabilidades; - o crescimento contínuo e acumulativo do conhecimento Científico. Podemos responder a essas afirmações discorrendo sobre os desdobramentos e os avanços epistemológicos considerados hoje mais adequados para se entender os significados de conhecimento científico e de ciência. Desdobramentos e avanços estes que são, precisamente, aqueles defendidos, entre outros, por Popper, Kuhn e Lakatos: “Popper apresenta a impossibilidade de se obter grandes teorias oriundas da indução e sugere a substituição da indução pela dedução e da verificabilidade pela falseabilidade. Kuhn afirma que o conhecimento científico depende de paradigmas convencionais e Lakatos explica que a ciência não é uma sucessão temporal de períodos normais e de revoluções, e sim sua justaposição.” (NASCIMENTO JÚNIOR, 1998) Autores importantes que trabalham com HFC (JAPIASSU, 2007; PATY, 2009), entre outros, consagram capítulos inteiros em suas obras sobre idéias que corroboram a necessidade de se compreender que a pesquisa científica não pode mais ancorar-se nas antigas formas de se pensar e descrever o universo físico. “A teoria quântica parecia então inaugurar um novo tipo de teoria física: ela consistia de um formalismo abstrato acrescido de uma interpretação física de seus elementos, enquanto que, nas teorias físicas anteriores, a forma matemática das grandezas era diretamente convocada pela constituição das relações teóricas que davam o “conteúdo físico”. De qualquer modo, a expressão matemática das grandezas e das relações entre elas (equações) era diretamente ligada à significação física dessas grandezas (ver, por exemplo, em mecânica clássica a posição, representada pelas coordenadas espaciais, ou a quantidade de movimento como produto da massa pela velocidade.” (PATY, 2009) Novas formas de se compreender o mundo, novas “fórmulas” epistemológicas que descrevem a evolução do pensamento científico estão em evolução todo o tempo, tenhamos consciência disso ou não. Portanto, compreender, ou pelo menos aceitar, que essas mudanças não são novidades e que ao longo da história não apenas os conceitos científicos mudam, mas a forma como são interpretadas essas mudanças também mudam, não deveria ser motivo de alarme para quem ensina ciência. Diversos exemplos podem ser dados a esse respeito. Japiassu (2007) apresenta um deles: “Há um ditado escolástico que diz: “Nihil est in intellectu quod non fuerit primum in sensu”. Este adágio aristotélico (“nada há no intelecto que não tenha passado antes pelos sentidos”) declara: tudo o que existe no intelecto provém dos sentidos. Kant arremata depois fazendo uma correção: “se todo nosso conhecimento começa COM a experiência, isso não prova que derive todo DA experiência”. (Japiassu, 2007) Com relação ao princípio da indução, tem-se dado atenção especial a tal princípio toda vez que se discute os fundamentos da filosofia da ciência como respeito a se garantir que determinado conceito pode ser considerado válido. A questão da indução está diretamente associada ao conceito de probabilidade (RUSSEL, 2008), e é nesse sentido que se deve considerar a ocorrência, a repetição e a verificabilidade dos objetos científicos. Assim, o princípio da indução ganhou relevância dentro da pesquisa científica, sendo confundido como um princípio que poderia dar conta das grandes teorias ou das grandes sínteses científicas que de tempos em tempos estabelecem novas formas de se entender os conceitos científicos. A discussão sobre o processo de indução - como ferramenta que dá certeza às teorias que são concebidas - é feita no sentido de se estabelecer se os processos indutivos levam a uma maior probabilidade de se confirmar tal evento ou de garantir, com toda a certeza, a ocorrência desse evento. Russel (2008) é enfático com respeito à associação entre indução e probabilidade, no sentido que a segunda dá sentido à primeira na busca de se aproximar de uma certeza nas associações entre eventos e conceitos : “Pode-se chamar ao princípio que estamos a examinar de Princípio da Indução e as suas duas partes podem ser formuladas como se segue: (a) Quando se descobriu que uma coisa de certo gênero A está associada a uma coisa de outro gênero B, e nunca vista dissociada do gênero B, quanto maior for o número de casos em que A e B estão associados, maior a probabilidade de estarem associados num novo caso no qual uma delas se saiba estar presente; (b) Nas mesmas circunstâncias, um número suficiente de casos de associação tornará a probabilidade de uma nova associação quase uma certeza, e fará que se aproxime da certeza sem limite”. (Russel, 2008) O crítico mais contundente da indução é Popper (2010) que adota a falseabilidade como critério para decidir se um sistema teórico pode ser considerado como pertencente à ciência. A falseabilidade estará garantida toda vez que determinada teoria possa ser expressa em enunciados básicos que admitem ser divididos em duas classes, a saber: “primeiro, a classe de todos os enunciados básicos com os quais é incompatível (ou que rejeita ou proíbe): a essa classe chamaremos de falseadores potenciais da teoria; e segundo, a classe de enunciados básicos que ela não contradiz (ou que ela permite)”. Mais resumidamente, poderíamos apresentar o ponto dizendo: uma teoria é falseável se não estiver vazia a classe de seus falseadores potenciais. (Popper, 2010) Para Popper, o mais importante para se caracterizar a essência da atividade científica é a capacidade de se poder colocar à prova a teoria que se está defendendo ou explorando, em outras palavras, a capacidade de que tal teoria possa ser falseável. Como exemplo ele descreve a seguinte situação hipotética: “Assim, para falsear o enunciado “todos os corvos são negros”, bastaria que tal enunciado suscetível de teste de que, no jardim zoológico de Nova Iorque existe umafamília de corvos brancos”. (Popper, 2010) Considerando sempre o experimento falseador como um experimento crucial, Popper adverte a urgência de se substituir a hipótese falseada por outra melhor. Considera que, na maioria dos casos, antes de falsear uma hipótese, geralmente está presente ou se dispõe de outra hipótese que tenha potencial de maior sucesso que a anterior. Outra proposta que tenta discorrer como os desenvolvimentos científicos são efetivados é feita por Kuhn (1996). Ele considera que a evolução dos conceitos e das teorias científica se dá com a ocorrência de fases que, grosso modo, estão associadas a um paradigma (grupo de teorias vigentes num determinado momento histórico) que estabelecem uma ciência normal que uma vez em crise, procura estabelecer novo paradigma que resulta de uma revolução científica. Essa revolução rompe com os pressupostos mais caros à representação científica da concepção anterior. “A transição de um paradigma em crise para um novo, do qual pode surgir uma nova tradição de ciência normal, está longe de ser um processo cumulativo obtido através de uma articulação do velho paradigma. É antes uma reconstrução da área de estudos a partir de novos princípios, reconstrução que altera algumas das generalizações teóricas mais elementares do paradigma”. (Kuhn, 1996) Portanto, pensar nos desenvolvimentos científicos sem considerar as epistemologias contemporâneas que se apresentam como opções para se discutir de forma madura e desapaixonada a prevalência da indução-experimentação no imaginário de muitos professores de ciência é fundamental para que se estabeleçam bases seguras para futuros desdobramentos que considerem a questão da HFC no Ensino de Ciências. Outra preocupação que devemos ter em mente quando estamos lidando com a inserção de conteúdos históricos e filosóficos no âmago das questões educacionais é que tipo de conteúdo e de que forma esses conteúdos devem ser inseridos. Não basta reproduzir anedotas históricas ou situações pitorescas que podem transmitir uma “história da ciência” apenas frugal, sem consistência e principalmente uma história que reafirme concepções ingênuas de ciência e até mesmo inverdades epistemológicas oriundas de referências de uma literatura científica pouco confiável. O professor Roberto de Andrade Martins nos oferece algumas orientações a esse respeito no seu artigo de 2001: Como Não Escrever Sobre a História da Física – Um Manifesto Historiográfico. Ainda na introdução, o trabalho ressalta que a intenção do mesmo é evitar que continuem ocorrendo erros banais que são facilmente encontrados em trabalhos amadores sobre História da Física. A esse respeito é interessante quando afirma - curiosamente na forma de pergunta – que: qualquer um pode escrever sobre a história da física, mas quem deveria realmente poder escrever sobre ela? (MARTINS, 2001). Portanto, dentro dessa nova perspectiva onde as questões históricas e filosóficas devem ser tratadas de forma mais responsável e menos ingênua, o papel do professor, que pretende fomentar as questões conceituais com a devida profundidade, deve ser de atenta vigilância no sentido de não cair na tentação de seguir o caminho mais simples de discorrer sobre a história da ciência como se ela fosse apenas um anexo de segunda classe da ciência e não, como se pretende que ela seja, um elo importante entre o que se pode inferir da ciência e a própria atividade científica. Conforme adverte Martins, não é difícil cair na cilada de se acreditar de forma sincera naquilo que gostaríamos que fosse a verdade (MARTINS, 2001). Portanto, uma das preocupações que devemos ter todo tempo é não tentar simplificar demasiadamente, por comodidade, os argumentos e desdobramentos que uma discussão epistemológica pode exigir. Entretanto, não devemos supor que apenas discussões densas e academicamente profundas sobre a HFC devem ser levadas a cabo na procura de uma inserção dentro da educação dos conceitos epistemológicos. Existe, obviamente, uma altura relativa, numa escala de valores, que mais ou menos delimita o aprofundamento que se pretende alcançar, que vai desde pesquisas epistemológicas de alto nível de complexidade até discussões elementares, mas nem por isso, irrelevantes ou descompromissadas, como por exemplo, as obras de divulgação populares de ciência. Durante uma entrevista (REGNER, 2000) Martins descreve quais foram, inicialmente, os fatores decisivos para aguçar seu interesse na Filosofia e História da Ciência. Revela que a leitura de obras estimulantes deu o pontapé inicial nessa direção. Entre essas leituras estão presentes clássicos da divulgação científica: “Os primeiro livros sobre história da física que encontrei, depois de A Evolução da Física, foram as obras de George Gamow, que eram bem escritas, estimulantes – embora fossem meros trabalhos de divulgação.” (REGNER, 2000) Podemos, portanto, perceber as influências que uma publicação voltada para a divulgação científica com conteúdos voltados para a História da Ciência pode exercer. No prefácio do livro de A. Einstein e L. Infeld, A Evolução da Física, já nos deparamos com o seguinte: “Nossa intenção pende mais para um largo esboço das tentativas do espírito humano no aprender as conexões entre o mundo das idéias e o dos fenômenos. Para isso procuraremos ver as forças ativas que compelem a ciência a inventar idéias em correspondência com a realidade do nosso mundo.” (EINSTEIN e INFELD, 1939) Dificilmente algum texto poderia prefaciar uma obra se revestindo com mais esmero epistemológico do que esse que está na obra de Einstein e Infeld. Isso sem considerar que se trata de uma publicação de divulgação científica, o que poderia levar a pensar que as questões legitimamente filosóficas poderiam apenas gravitar em torno das idéias principais do texto, e de preferência numa órbita bem afastada. Na obra de Einstein e Infeld não é isso que acontece. Portanto, mesmo as obras de divulgação científica, pelo fascínio que podem exercer, devem também se resguardar de serem meras vitrines alegóricas onde os objetos de pesquisa são oferecidos indistintamente e sem os compromissos de fidedignidade com os pressupostos epistemológicos que estão ligados a cada conceito. Além disso, devemos sempre lembrar que as tentativas de se fazer uma discussão do valor da ciência, as perguntas que ela pode suscitar e de principalmente entender a atividade científica como fundamental para se enfrentar as angústias do ser humano, não são exclusivas dos epistemólogos ou dos historiadores da ciência. No mesmo livro anteriormente citado encontramos: “Freqüentemente os resultados da investigação científica forçam mudanças na visão filosófica dos problemas que escapam aos domínios estreitos da ciência. Qual o objetivo da ciência? Que pedimos à teoria que tenta descrever a natureza? Estas questões, embora ultrapassem o âmbito da Física, estão-lhe intimamente ligadas, desde que a ciência constitui o material que lhes dá origem.” (EINSTEIN e INFELD, 1939, p.63) Outro aspecto importante que se deve analisar, no contexto do ensino de Física e da HFC, é a inserção de novos conteúdos no já sabidamente extenso currículo do Ensino Médio. Diversos autores (SANTOS, FERRARA e OSTERMANN, 2004; BRÁS JÚNIOR e MARTINS, 2002; RESENDE JÚNIOR, 2001) tomam como certo e advogam serem indiscutíveis as inserções, por exemplo, da Física Moderna no Ensino Médio. Desse modo, seria oportuno lembrar que dadas as características filosóficas que uma discussão sobre conceitos de Física Moderna pode suscitar, dever-se-ia esperar que essa inserção fosse acompanhada, minimamente, de uma discussão de cunho epistemológico uma vez que as pesquisas e desenvolvimentoscientíficos que culminaram na mudança de paradigma da Física Clássica para a Moderna estão repletas de exemplos históricos que revelam a fragilidade de uma visão de ciência puramente empirista, indutivista e determinista. Quando analisamos alguns livros didáticos (BISCUOLA, VILLAS BOAS e DOCA, 2007; SAMPAIO e CALÇADA, 2005; PENTEADO, 2005; RAMALHO JÚNIOR, 2003; CHIQUETO, VALENTIM e PAGLIARI, 1996) que propõem discutir os temas da Física Moderna, não encontramos destaque nos desdobramentos filosóficos e históricos que o conteúdo exige. Trata-se apenas de agregar mais um conteúdo que provavelmente proporcionará ao público consumidor leigo uma imagem mais moderna e atual da obra. Paralelamente, encontramos na academia trabalhos que reafirmam a necessidade da inclusão da Física Moderna no currículo médio, mas, nesse caso, existe todo o cuidado de se tomar as devidas precauções para que uma visão mais atual (e moderna) da Física não venha desacompanhada das implicações epistemológicas que ela necessita. Em recente trabalho acadêmico sobre a inserção da Física Moderna no Ensino Médio encontramos um alerta para que concepções errôneas não sejam reafirmadas: “Ainda, o texto pretende alertar ao professor que a visão empirista pode facilmente ser desencadeada pelo assunto. O exemplo proporcionado pelo modelo atômico de Bohr chama a atenção para os cuidados que se deve ter para que este tipo de concepção não seja repassada acriticamente ao estudante, nem em relação a este tema e nem a outros. Assim, o texto pode também contribuir para instigar uma melhor avaliação epistemológica, pelo professor, da forma como assuntos de Física e de outras áreas são apresentados por materiais didáticos, paradidáticos e de divulgação científica.” (PEDUZZI e BASSO, 2005) Analisando as diferentes dificuldades que são encontradas quando se decide por ensinar ciência dentro da perspectiva da HFC, André P. Martins (MARTINS, 2007) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, faz um inventário listando como diferentes fatores podem criar barreiras para que conceitos epistemológicos possam ser transpostos didaticamente da academia para as salas de aula, com sucesso. Martins (2007) considera que, dentro da aplicabilidade prática que é requerida pela ação em sala de aula, a HFC pode ser pensada tanto como um elenco de conteúdos, quanto como uma estratégia didática facilitadora na compreensão de conceitos, modelos e teorias e que diversos outros autores convergem nessa direção, defendendo a presença da HFC nas salas de aulas em diversos níveis de ensino (MARTINS, 2007). Dentre as razões apresentadas por Martins, destacam-se as dificuldades que os professores têm de incorporar, nas suas práticas, elementos da HFC sem que esses caracterizem visões ingênuas de ciência. Martins também conclui que para serem superadas essas dificuldades não bastam apenas investimentos epistemológicos na formação do professor: “No entanto, a simples consideração de elementos históricos e filosóficos na formação inicial de professores das áreas científicas – ainda que feita com qualidade – não garante a inserção desses conhecimentos nas salas de aula do ensino básico, tampouco uma reflexão mais aprofundada, por parte dos professores, do papel da HFC para o campo da didática das ciências.” (MARTINS, 2007) Aqui encontramos mais evidências que substanciam a presente dissertação, no sentido de que apenas a preocupação com a formação do professor não pode esgotar a questão de como levar para as salas de aula uma discussão que envolva aspectos da HFC, mesmo que o professor esteja academicamente qualificado para tal discussão. Outra importante discussão que não pode ser deixada a reboque é quanto a questão da matematização excessiva dos conceitos de Física que são apresentados no Ensino Médio. Se existe consenso sobre tal matematização (MACHADO e OSTERMANN, 2005; CARVALHO JÚNIOR, 2002) logo podemos inferir que uma prática que tenha a preocupação de complementar ou mesmo substituir parte desse arcabouço matemático por uma discussão mais conceitual, deve estar ancorada em argumentos que possam agregar ao conteúdo de Física que se quer discutir em sala uma imagem de ciência que se preste a conexões mais efetivas no contexto do aprendizado da Física, isto é, não basta diminuir a quantidade de problemas da lista de exercícios oferecida aos alunos sem que o tempo ganho não seja aproveitado para uma discussão menos ingênua e mítica do papel da ciência como um dos fatores estruturantes das realidades que são vivenciadas e até mesmo dos arquétipos que constroem nossa imagem do universo. A harmonia entre matemática e conceito deve ser, portanto, preocupação constante, principalmente quando estamos tratando da inserção de novos conteúdos, sejam eles sobre a HFC, sejam outros conteúdos: “O processo de seleção dos conteúdos de Física Moderna e contemporânea, adequados ao tratamento na física do 2º grau, deve se basear no equilíbrio entre as necessidades que a própria ciência física impõe para que haja consistência na apresentação dos tópicos e para que privilegie leis gerais e conceitos fundamentais. Deve-se refletir também sobre as possibilidades de desenvolvimento desses tópicos com poucas exigências de cálculos matemáticos.” (TERRAZZAN, 1992) Aproximar os alunos das discussões epistemológicas é tornar clara a relação entre contexto histórico e desenvolvimento das ciências. Perceber que os conceitos científicos são resultado do trabalho de uma comunidade, numa determinada conjuntura histórica e social sendo, portanto, produto da cultura humana, e que estes conceitos não são imutáveis, muito pelo contrário, estão em permanente e constante desenvolvimento, é de fundamental importância. A História da Ciência, portanto, se torna uma ferramenta indispensável para se concretizar esses objetivos e cada vez mais ela é utilizada para ajudar a entender conceitos e ao mesmo tempo “humanizar” a própria ciência. O grande problema está, justamente, na inserção de informações históricas com pouca credibilidade ou rigor historiográfico. Muitas vezes se apela - na tentativa de se contextualizar, no tempo e espaço, conceitos científicos - para casos ou citações pretensamente verdadeiras, que em algumas situações mascaram ou até mesmo deturpam o que realmente aconteceu do ponto de vista epistemológico, alterando significativamente a estrutura formal de um dado conteúdo científico e a forma com que esse conteúdo foi construído. Sabemos que não existem “verdades historicamente absolutas”, entretanto, podemos acreditar que para cada conceito científico existiu uma série de passos que a História da Ciência tem como objetivo estudar e esclarecer como, quando e porque esses passos foram dados. I.3 A CONTRIBUIÇÃO DA EPISTEMOLOGIA Um dos objetos de pesquisa mais importantes da epistemologia é a forma com que se justificam os critérios de realidade e não realidade dentro da ciência (BUNGE, 1974; BORN,1990; PATY, 1995; OMNÈS, 1996; POPPER, 1999). Essas questões são genuinamente filosóficas e dentro das ciências assumem um papel relevante e se revestem de uma importância muito grande no sentido de fazer a ponte entre objetos que são racionalmente construídos e aqueles que efetivamente interagem com nossos quatro sentidos, ou seja, nosso universo sensível ou “real”. Essa discussão, obviamente, não pode ser levada a cabo, com toda a extensão que merece em turmas do nível médio de ensino. Entretanto, alguns objetos que habitam a interface entre o mundo racional e o empírico são comumente oferecidos para os alunos desse nível como se fossem realidades totalmente compreendidas por toda a comunidade científica e se existe, por parte dos alunos, dificuldadeem entendê-las, isto é um problema dos próprios alunos. Discutir o conceito de carga elétrica, por exemplo, sem expor, minimamente, as dificuldades epistemológicas que esse conceito permeia, é uma temeridade pedagógica. No fragmento de texto abaixo Moreira (2007) tenta levar em consideração as dificuldades acima citadas: “Carga elétrica também é uma propriedade que não se sabe exatamente o que ela é, mas sabe-se que algumas partículas têm carga elétrica, outras não. Mas admitindo que existe tal propriedade, é possível explicar, modelar, prever vários processos físicos. Analogamente, há outras propriedades da matéria que não sabemos exatamente o que são, mas que admitindo sua existência os físicos podem, por exemplo, prever o resultado de certos processos.” (MOREIRA, 2007) Outro exemplo bastante interessante acontece no caso da origem do modelo atômico. Interessante porque é um exemplo de conteúdo multidisciplinar entre Física e Química. Os cursos de Química no Ensino Médio iniciam seus programas apresentando conceitos de atomística que tratam de processos atômicos que somente podem ser explicados pelos conceitos da Física Moderna. É evidente que o átomo do Ensino Médio é um átomo quantizado. Mesmo considerando que os princípios da Mecânica Quântica possuem um arcabouço matemático que ainda não é acessível para os alunos do EM, não existe justificativa para não apresentar os conceitos que deram origem a tal átomo. Poder-se-ia argumentar que, de certa maneira, essa apresentação inicial já é feita quando da discussão do átomo de Rutherford em comparação ao átomo de Thomson. Na verdade isso não acontece, pois a ênfase é tentar amarrar conceitos associados aos processos atômicos e nucleares a uma espécie de senso de realidade característico dos processos da Física Clássica. Portanto, trata-se de, no imaginário de uma parcela muito grande de professores, de um exemplo perfeito, onde o “método científico” deu frutos inquestionáveis no sentido de legitimar esse mesmo método. O mais interessante disso tudo é que os conceitos clássicos também carregam uma dose muito grande de abstração e de complexa matematização que são burladas sem nenhum escrúpulo pelas apresentações tradicionalmente encontradas na nossa prática docente, principalmente por aqueles professores de Física que desconhecem os conceitos epistemológicos associados aos conteúdos que são apresentados. Quando muito, eles imaginam que o que se ensina é um caso particular de uma teoria maior. É comum, por exemplo, afirmar que a Mecânica Newtoniana é apenas um caso particular de uma teoria mais abrangente – a Teoria da Relatividade. Como se tal teoria pudesse ter sido construída sem antes se ter vivenciado os problemas que o “caso particular” forneceu, ou seja, sem antes existir um conteúdo epistêmico associado aos processos que levaram a construção dessa teoria mais ampla. Assim, deforma-se o sentido e o valor da ciência. É muito comum também o professor apresentar a Mecânica Clássica como uma teoria “errada” que será mais tarde corrigida. Outro fato bastante interessante, que de certa forma corrobora essa deformação da construção de conceitos científicos, é o que acontece nos livros didáticos, em particular nos capítulos sobre o desenvolvimento do átomo. A expressão Mecânica Quântica também é apresentada como uma nova descoberta que mostra como as teorias anteriores estavam “erradas”. Com isso, cria-se certa soberbia em torno dessas “novas realidades”, passa-se uma imagem – principalmente no discurso dos professores – que estas teorias são absolutamente ininteligíveis, sendo totalmente herméticas àqueles que não chegarem à academia, e que serão plenamente compreendidas apenas por aqueles poucos eleitos que chegam ao término de um curso universitário da área das “ciências exatas”. Somente uma prática pedagógica atenta às contribuições que a epistemologia pode dar será capaz de apresentar os conteúdos de ciência em sintonia com uma visão desmistificadora e crítica do que é realmente fazer ciência e de seus objetos de estudo, por mais sofisticados que esses objetos sejam. Assim, é de se esperar que esta lacuna, essa desconexão epistêmica, por parte dos livros didáticos e de muitos outros textos, contribua, de certa forma, para uma aura de misticismo que é explorada pelos manipuladores das pseudociências que no raiar do século XXI aparecem sob diversas formas. Seus discursos tomam força e credibilidade entre àqueles que têm uma razoável formação escolar, que por isso mesmo deveriam entender minimamente as questões científicas coladas, e não descoladas, das genuínas questões filosóficas que são parte da ciência e não alheias a ela. CAPÍTULO II - PESQUISAS EXPLORATÓRIAS As pesquisas exploratórias, que são relatadas a seguir, foram realizadas, com a intenção de atingir o seguinte objetivo: mapear as imagens de ciência que os alunos do Ensino Médio têm para que essas imagens pudessem potencializar, na sala de aula, discussões sobre a história dos conceitos científicos que estariam sendo apresentados aos alunos ao longo do ano letivo, fazendo com que essas discussões fossem a “munição” utilizada para fomentar e estimular as discussões que porventura pudessem acontecer entre professores e alunos, criando dessa forma uma crescente demanda de questões e questionamentos que deveriam emergir da carência qualitativa e conceitual que caracteriza as aulas de ciências de uma forma geral. Fica claro, portanto, que as pesquisas têm a finalidade de levantar esboços de concepções, não tendo a intenção de buscar conceitos epistemológicos em aprendizes que não possuem percepções ou mesmo intuições consolidadas pelos conceitos filosóficos que estão associados aos desenvolvimentos científicos. O que existe são algumas idéias não muito estruturadas que podem ser trabalhadas no próprio processo de ensino-aprendizagem, no sentido de estimular alunos e professores para um debate mais qualitativo e mais conceitual do que usualmente acontece nas aulas de ciência. Observamos reações interessantes da parte dos colegas que nos auxiliaram na aplicação dos questionários para os alunos. Eles foram aplicados em quatro turmas de nível médio simultaneamente, com a participação, portanto, de quatro professores diferentes. Providencialmente e intencionalmente não participamos diretamente da aplicação das questões nas turmas no Ensino Médio, pois de nossa parte, quanto mais colegas estivessem envolvidos na atividade melhor chances teríamos de encontrar pistas que nos levassem a encontrar subsídios para corroborar nossa hipótese de que uma demanda epistemológica externa ao professor pode auxiliar estimular a procura de uma prática docente diferente daquela a que está acostumado. Portanto, iniciamos nossa investigação (de como os colegas professores reagem quando os alunos se deparam com situações que envolvem questões de fundo epistêmico) desde a aplicação dos questionários. II.1 A PRIMEIRA PESQUISA EXPLORATÓRIA A primeira pesquisa exploratória foi realizada em uma escola de Ensino Médio, com 164 alunos distribuídos em quatro turmas de segunda série. Essa instituição de ensino é uma escola pública situada num bairro de classe média, num ponto de entroncamento de diversos meios de transporte. Esse fato permite a existência de um público diversificado, espalhado por diversos outros bairros, alguns de baixa renda. Esta Instituição, além do ensino regular e técnico, também forma professores para o ensino fundamental, oferece curso de Pedagogia como também cursos de pós-graduação Latu-Sensu na área de educação. As questões que foram propostas nessa primeira investigação tentam identificar como os alunospercebem o papel da experimentação na construção do conhecimento científico e como concebem a relação entre ciência e natureza. As questões propostas e os resultados obtidos estão colocados nas tabelas abaixo em valores percentuais. Foram descontados os casos em que algum aluno não tenha respondido a uma das perguntas ou que tenha marcado todas as opções de uma dada pergunta. Não os levamos em consideração por não terem ocorrido em número significativo. Listamos abaixo as perguntas da pesquisa exploratória, alguns comentários sobre a natureza dos itens de cada questão e os percentuais de respostas de cada questão. O fato mais importante a se destacar nessa fase inicial de nossa investigação consistiu em perceber como os colegas professores (de Física e de outras disciplinas) reagiram durante a aplicação dos questionários abaixo. Conforme veremos mais a diante, algumas situações apontaram, desde o início da apresentação destes questionários, que a preocupação sobre o nível de aprofundamento dos conteúdos e conceitos apresentados de forma mais qualitativa do que quantitativa com seus alunos, somente aparece quando os professores identificam ou ficam cientes de que esses alunos estão sendo expostos ou estimulados a refletirem sobre esses mesmos conteúdos e conceitos. Portanto, os professores que participaram da aplicação dos questionários foram os primeiros a ser “expostos” a essa demanda epistemológica que pretendíamos, naquele momento, começar a fomentar. II.1.1 AS PERGUNTAS DA PRIMEIRA PESQUISA Questão 1 - Normalmente, alunos começam a estudar Física e nem se perguntam sobre questões que são fundamentais. Uma delas é sobre a origem da Física. Para você, quando foi que a Física começou? a) No Big-Bang. b) Quando o primeiro humano olhou para um evento da natureza e resolveu pensar por que ele ocorre. c) Na Grécia. d) No século XVII com Galileu Galilei. Conforme observamos no histograma II.1.1, o fato de haver uma grande incidência de respostas no item (b) nos causou surpresa, no entanto, através de relatos informais de professores, já era sabido que os alunos tendem a confundir a ciência com a própria natureza, acreditando que seu surgimento tenha ocorrido com o início do universo. A grande opção pelo item (b) foi explicada em princípio por três hipóteses. A primeira hipótese referia-se ao fato da resposta (b) ser mais elaborada. Isso poderia ter levado alguns alunos que não soubessem o que marcar a escolhê-la. A segunda hipótese apontava para a situação de haver alunos que não conhecessem o significado do termo “Big Bang”, achando que essa expressão pudesse ser uma brincadeira. Entretanto, ao analisar a baixa marcação dos itens seguintes (c e d) fez- se a terceira suposição, que contrariava as duas hipóteses anteriores. Essa baixa marcação Histograma II.1.1 - a)34%; b)43%; c)04%; d)19%; era um indicativo de que as opções (a) e (b) foram escolhidas com certo grau de consciência. De uma forma geral, as duas respostas majoritárias expressam duas visões antagônicas que polarizam descoberta e invenção. Na primeira, o conhecimento está na natureza cabendo aos homens descobri-lo. Na segunda, ele é uma construção do pensamento humano sobre a natureza. Questão 2 - O que geralmente chamamos de teoria, muitas vezes é entendido como uma soma de resultados, de experiências, de observações e explicações sobre o mundo que vão sendo acumuladas, progressivamente, ao longo dos séculos. Por exemplo, só foi possível entender o que é a velocidade quando se entendeu de forma bastante clara o significado de tempo e espaço. Ou seja, foi sendo construída uma teoria sobre a velocidade e esse conhecimento deu origem a novas teorias, com base em teorias anteriores. Entretanto, diversos avanços científicos também foram realizados quando teorias mais antigas foram completamente abandonadas, para dar lugar a outras teorias que, conceitualmente, divergiam drasticamente das anteriores. Um exemplo é a teoria da relatividade de A. Einstein, que, entre outras coisas afirma que o tempo passa de forma diferente quando o sistema está em diferentes velocidades. Assim, a construção do conhecimento se relaciona com o seguinte: a) Toda teoria nova só acontece por ter havido outras teorias que a antecederam. b) Novas teorias não estão necessariamente ligadas a teorias anteriores. c) Novas teorias são originais a ponto de não ter relação com outras anteriores. 0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 item a item b item c item d d) Apesar de uma teoria nova ter dependência com anteriores, sua proposta traz sempre uma novidade. Histograma II.1.2 - a)12%; b)27%; c)04%; d)57%; No histograma II.1.2 observamos, que a incidência maior de respostas no item (d) revela, indiretamente, a visão de que os conhecimentos científicos se desenvolvem num processo de acúmulo constante e contínuo de informações que vão, linearmente, sedimentando-se e formando o corpus de determinada área de pesquisa. É uma imagem continuísta e ingênua do desenvolvimento científico. Esse modelo linear de acumulo de conhecimento se presta a formar uma visão de que a ciência sempre avança na mesma direção, ou seja, para frente, cumulando novas verdades que foram testadas e admitidas como válidas. A crença na cumulatividade das teorias científicas, por sua vez, dá uma contribuição perversa ao senso comum, pois aparentemente leva a crer que os conhecimentos mais atuais simplesmente se imbricam sobre os anteriores sem a necessidade de questioná-los. Portanto, o elevado índice na opção (d) revela esta imagem ingênua, linear e continuísta do desenvolvimento das teorias. Questão 3 - Você já deve ter visto que muitos cientistas trabalham em laboratórios de pesquisa enquanto outros desenvolvem seus estudos teoricamente. Para você a) O conhecimento científico surge primeiro no pensamento humano e posteriormente é comprovado pela experimentação no laboratório. b) Ou o conhecimento científico surge primeiro pela observação de experiências de laboratório e posteriormente é elaborado pelo pensamento humano. Essa questão 3 foi colocada com a intenção de se discutir o empirismo como método de investigação científica hegemônico no imaginário de uma grande parcela de professores. No histograma II.1.3 observamos que a opção (a) aponta para a crença de que o laboratório é uma 0 10 20 30 40 50 60 item a item b item c item d espécie de “templo da ciência” ou ainda, crença mais forte, de que o laboratório seria um “tribunal científico”. Esta parece ser a imagem que o senso comum tem do laboratório. Desconsidera que a experiência, algumas vezes - ou na verdade, por diversas vezes - não é montada ou construída de forma imparcial ou destituída de intenções previamente determinadas para se corroborar determinada tese (de certa forma esta é a maior semelhança com um tribunal de justiça). Histograma II.1.3 - a)65%; b)35%. A opção (b) desconsidera, claramente, que uma experiência só pode ser realizada ou montada com uma visão previamente bem estruturada do que se quer estudar. A opção valoriza também o discurso das chamadas descobertas “por acaso” que tantas vezes é associada ao gênio do indivíduo que vê aquilo que tantos outros não conseguem ver. Nessa questão, apesar de haver uma tendência clara pela escolha da resposta (a), houve um relativo equilíbrio entre as duas opções. Se houvesse uma maioria esmagadora optando por uma das respostas, poderíamos definir uma tendência
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