Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
7 Unidade 1 Introdução ao pensamento filosófico O que é a filosofia? Há diversas maneiras de responder o que é uma coisa. Por exem- plo, se alguém perguntar “o que é um carro?”, você pode falar sobre a utilidade do carro, do que ele é feito, como funciona, quem o inven- tou, quem o fabrica, etc. O mesmo acontece com a filosofia. Portanto, a primeira coisa que você deve saber ao começar a estudar esta disci- plina é: que tipo de resposta você encontra aqui. Muitos livros dizem qual é a história da filosofia, ou seja, como ela começou e se desenvolveu até os dias de hoje. Citam seus “inventores” gregos e contam alguns detalhes sobre suas vidas e obras, misturados com informações sobre a época em que viviam. Seguem, então, uma linha do tempo, que passa pela apropriação do pensamento grego na Roma Antiga; pela filosofia medieval e sua relação com a fé cristã; pelo importante papel da filosofia moderna para as ciências, até al- cançarem os dilemas do nosso próprio tempo e os autores da filosofia contemporânea. Existem ainda os livros que dizem quais suas áreas de estudo ou como ela se divide em lógica, epistemologia, filosofia da ciência, filosofia política, ética, estética, etc. Embora também recorramos a informações históricas e a expli- cações gerais sobre os diversos campos da filosofia, buscaremos uma resposta um pouco diferente. De maneira análoga, não vamos falar tanto sobre a história do automóvel ou sobre os diferentes modelos disponíveis no mercado, mas, principalmente, sobre como se dirige. Isso significa que a pergunta “o que é a filosofia?” pode ser substituída 8 por outras, como “o que a filosofia faz?” ou ainda “como se faz filoso- fia?”. E, assim como é na prática que se aprende a dirigir, este estudo será uma espécie de prática filosófica. O que passa pelo contato direto com trechos de textos clássicos e de importantes comentadores. No lugar de uma exaustiva lista de autores e teses, preferimos dar lugar a um pequeno número de filósofos. Certamente serão perdidos nomes importantes e mesmo entre os lembrados será impossível con- templar todo seu pensamento. Mas, se perdemos algo em extensão, esperamos ganhar em profundidade. Não uma profundidade densa e impenetrável, como muita gente pensa que é a filosofia, mas algo que se torne mais visível e claro a cada passo. O que pretendemos olhar com clareza nesta primeira unidade é a própria filosofia. Procuramos uma maneira de compreendê-la e ninguém pode explicá-la melhor do que os próprios filósofos. Devemos estudá-los tendo em mente esta simples pergunta: “O que é a filosofia?” A atividade filosófica Em primeiro lugar, se vamos aprender a pensar filosoficamente, precisamos deixar de lado alguns preconceitos. Entre eles o que en- cara esta atividade como “coisa de maluco”, uma “viagem” ou mero exercício de pensamento. É verdade que podemos ter essa impressão em um primeiro contato com a filosofia. Mas é possível mudá-la com um pouco de atenção e paciência. O fato de estudarmos filosofia em um curso de graduação já revela tratar-se de algo mais importante. Trata-se de uma ciência, como a sociologia é a ciência da sociedade, a matemática é a ciência dos nú- meros, a botânica é a ciência das plantas, etc. Mas a filosofia é a ciên- cia do quê? Ela não lida com objetos sensíveis e não faz experiências. Também não realiza cálculos e seus resultados não são mensuráveis. Seu material de trabalho e seus resultados são... ideias. Podemos, en- tão, dizer que a filosofia é a ciência do pensamento. Nesta pintura do holandês Rembrandt van Rijn (1606-1669), chamada O filósofo em meditação, retrata-se a clássica visão da filosofia como pensamento desligado das atividades cotidianas e superior às outras formas de conhecimento. No centro da tela, mostra-se a quietude do filósofo, placidamente concentrado, enquanto no canto inferior direito outro homem age diante do fogo. A escuridão que envolve toda a tela permite o contraste entre as duas atividades. O filósofo recebe a luz mais forte e natural, que é a luz de seu próprio pensamento. Do outro lado, a tarefa de acender o fogo fornece apenas uma réstia de luz, fraca e artificial. u pl oa d. w ik im ed ia .o rg / M u se u d o L ou vr e – P ar is / D om ín io P ú bl ic o 9 Como as outras ciências, podemos dividir seu exercício em duas formas distintas: a capacidade de criar um novo conhecimento ou de aprender conhecimentos que já foram produzidos. Por isso a pergunta “como se faz filosofia?” tem um duplo sentido: Em um deles, trata-se de determinar como se tornar um filósofo original, apontando-se um certo resultado; no outro, como podemos nos apropriar do philosophical way of thinking [jeito de pensar filosófico], e alude a uma forma específica de proceder intelectual. (PORTA, 2002, p. 23) É esse segundo sentido que nos interessa. Após a leitura deste li- vro, não esperamos que você saia criando suas próprias filosofias, nem simplesmente decorando um resumo dos principais autores e suas te- ses. Nosso objetivo é compreender como funciona a filosofia. Para isso, vamos estudar uma pequena parte do que foi criado por essa ciência no decorrer de quase 2500 anos. Se esta é a ciência do pensamento, devemos aprender a pensar com a filosofia. Pois, se estudamos matemática, aprendemos a lidar melhor com os números; se estudamos gastronomia, aprendemos a preparar e apreciar alimentos da melhor maneira; se estudamos jornalismo, so- mos capazes de criar e espalhar informações. Mas o que significa dizer que aprendemos a pensar quando estudamos filosofia? Sem dúvida, nós sabemos pensar e para fazer isso todos os dias ninguém precisa da filosofia. Nem mesmo as ciências precisam dela para pensar os seus conteúdos. Como nos dizem Deleuze e Guattari: [...] ninguém precisa de filosofia para refletir sobre o que quer que seja: acredita-se dar muito à filosofia fazendo dela a arte da reflexão, mas retira-se tudo dela, pois os matemáticos como tais não esperaram jamais os filósofos para refletir sobre a matemática, nem os artistas sobre a pintura ou a música. (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 14) Gilles Deleuze (1925-1995): Um dos mais influentes pensadores da atualidade, Deleuze possui uma obra extensa que inclui comentários sobre o trabalho de filósofos (Leibniz, Kant, Nietzsche, Bergson, Espinosa, etc.) e artistas (Kafka, Proust, Francis Bacon – tra- ta-se do pintor irlandês, não do filósofo homônimo –, etc.). Em 1968, apresenta Diferença e Repetição como tese de doutoramento. No mesmo ano, conhece Félix Guattari e deste encontro surge uma longa e produtiva colaboração, que inclui a publicação de O Anti-Édipo (1972) e Mil Platôs (1980). Félix Guattari (1930-1992): Filósofo e psicanalista, ultrapassou os limites dessas ciên- cias e criou uma obra bastante original, marcada pela invenção e reinvenção de conceitos. Junto com Jean Oury, fundou a clínica de La Borde, que se tornou espaço de aprendizagem a muitos estudantes. Militante político de esquerda, Guattari esteve bastante presente nos acontecimentos relativos ao Maio de 68 na França. Os matemáticos e os artistas possuem o conhecimento necessário para executar suas tarefas, para pensar sobre elas e ensiná-las. O mes- 10 mo acontece com os jornalistas, os publicitários, os administradores, etc. Portanto, se a filosofia tem algo a dizer, ela deve ser capaz de fornecer outro tipo de conhecimento. Dissemos que ela é a ciência do pensamento, pois é com isso que ela lida. Mas não precisamos da filo- sofia para pensar como executar nossas atividades diárias. Logo, o que vamos aprender com os filósofos é outro modo de pensar sobre a vida, sobre nossas profissões e sobre o mundo em que vivemos. Só podemos entender o que a filosofia tem a dizer quando conhecermosesse seu modo de pensar. O amante da sabedoria O termo grego philosophia é atribuído a Pitágoras, que pretendia distinguir o saber (sophia) da busca ou do amor (philo) pelo saber. Pitágoras teria afirmado que a sabedoria plena e completa pertence aos deuses, mas que os homens podem desejá-la ou amá-la, tornando-se filósofos. (CHAUI, 1994, p. 20-21) Essa definição da filosofia também está presente em O Banquete, obra fundamental de Platão. O texto conta a história de uma festa ofe- recida pelo poeta Agatão. Como era de costume, em meio aos comes e bebes os participantes proferem uma série de discursos e discutem suas opiniões. O tema em debate na ocasião era o deus do amor, Eros. Chegada sua vez, Sócrates pergunta a Agatão se o amor é desejo. Ad- mitindo que sim, ele é levado a concordar que desejamos apenas aqui- lo que não possuímos; logo, o amor pode ser definido como carência e necessidade. Pitágoras (século VI a.C.): É difícil descrever sua exata biografia, pois o nome de Pitágo- ras está presente em uma série de relatos póstumos e repletos de fantasia. Sabe-se com mais certeza ter nascido na cidade de Samos e ser um dos grandes responsáveis pelo desenvolvimento das ciências matemáticas e da filosofia. Fundou, na cidade de Crotona, uma escola que recebeu o nome de pitagórica. Seus estudos abordavam a essência dos números, considerados divinos e responsáveis pela harmonia do universo. Descobriu vá- rios fundamentos da matemática e da astronomia, mas a maior contribuição de Pitágoras (ou de seus discípulos) está no campo da geometria, especialmente na teoria sobre as relações entre os lados do triângulo retângulo, o chamado Teorema de Pitágoras. Platão (cerca de 427-348 a.C.): Discípulo de Sócrates, fundou, em Atenas, a Academia, que dirigiria até sua morte. Seus ensinamentos retomam os ensinamentos de Sócrates, dando-lhes um sentido próprio. De um modo geral, a doutrina de Platão considera a exis- tência de dois mundos distintos: o mundo sensível (em que estamos) e o mundo das ideias. As ideias correspondem à realidade verdadeira, na qual o mundo sensível seria apenas uma sombra. A esta teoria corresponde seu método dialético – que consiste na elevação do pensamento desde as coisas sensíveis até o conhecimento das ideias verdadeiras – e 11 a teoria das reminiscências – que supõe haver em nossa alma a lembrança de um contato com as ideias, ocorrido antes do nascimento e a partir do qual podemos vislumbrá-las neste mundo. Sócrates (cerca de 470-399 a.C.): Como não deixou nenhum escrito, o que conhecemos sobre a vida e os pensamentos de Sócrates foi preservado pelos depoimentos de Xenofonte, Aristófanes e Platão. Mas tais depoimentos não convergem. Enquanto as obras de Aristó- fanes retratam Sócrates como um personagem cômico e cujo pensamento seria prejudicial para a cidade, Platão o tem em grande medida e constrói sua filosofia com base em seus ensinamentos. Cidadão ativo na polis, foi denunciado como traidor das leis e corruptor dos jovens. Isto principalmente por causa de seu método (a maiêutica), que consistia em indagar seus interlocutores sobre suas opiniões, até que admitissem a fragilidade de suas certezas. O julgamento e a execução de Sócrates são eventos centrais da obra de Platão. De fato, Sócrates poderia ter evitado a morte se tivesse aceitado a ajuda dos amigos para fugir. Ao contrário, argumentava que não pretendia desobedecer às leis da cidade. Tal fidelidade com a justiça da polis revela uma importante característica de seu pensamento. Esta tela de Anselm Feuerbach (1829-1880) reinterpreta um momento de O Banquete, de Platão, em que Alcebíades chega à casa de Agatão. É notável no quadro a existência de duas atmosferas distintas. De um lado estão Alcebíades e seu companheiros, que chegam em uma turba, nitidamente embriagados e agitados. De outro, aqueles que já participavam do banquete – entre eles Sócrates – em um clima de concentração e diálogo. Sócrates lembra, então, o mito sobre o nascimento de Eros. Filho de Penia (que significa pobreza e privação) com Poros (também chama- do riqueza ou recurso), o deus do amor é, ao mesmo tempo, pobre e audacioso, mendicante e esperto. Eros vive nas ruas e anda descalço, mas se interessa por tudo o que é belo e está sempre tramando meios de consegui-lo. Mas tudo o que adquire é logo perdido. Assim também seria o filósofo. Ele é carente de sabedoria e capaz de construir inúme- ros artifícios para buscar o saber, mas a sabedoria nunca é alcançada. upload.wikimedia.org / National Galerie – Berlim / Domínio Público 12 Platão instaura, assim, uma distância insuperável entre a filosofia e a sabedoria. A filosofia define-se por ser aquilo do que é privada, [...] que lhe escapa e, contudo, que possui em si de certa maneira [...]. O filósofo é consciente de seu estado de não sabedoria, pois deseja a sabedoria, procura progredir na direção da sabedoria [...] sem jamais poder atingi-la. (HADOT, 2004, p. 79 e 82) A ciência das ciências A filosofia não é o saber, mas o amor pelo saber. Contudo, o co- nhecimento que ela busca não é o mesmo que se reconhecia como importante na época. Segundo Pierre Hadot, na tradição grega do pe- ríodo, sophia (saber) significava menos um saber teórico do que um saber-fazer ou um saber-viver. O sábio (sóphos) era aquele que possuía a arte de fazer alguma coisa e, principalmente, aquele que viveu e sabia muitas coisas. Sua sabedoria estava profundamente ligada à ha- bilidade para agir em determinadas situações. A filosofia, pelo contrário, não busca nenhum conhecimento espe- cífico, mas os princípios que tornam possível o conhecimento a respei- to de todas as coisas. Além do mais, a filosofia busca “conhecer pelo saber e não em vista de alguma utilidade” (ARISTÓTELES, 2002, 982b 17). Isso, segundo Aristóteles, caracteriza-a como a mais livre de todas as ciências, pois ela existe por si mesma e não em vista de outra coisa. Aristóteles (cerca de 384-322 a.C.): Nascido em Estagira, antiga cidade da Macedônia, foi viver em Atenas ainda jovem. Tornou-se aluno de Platão e, mais tarde, professor de Alexandre, o Grande. Após a morte de Platão, Aristóteles fundou o Lykeion (origem da palavra Liceu). Seu método de ensino ficou conhecido como peripatético, que significa algo como “ensinar andando”, pois o mestre ministrava suas aulas passeando entre os jardins. Aristóteles contribuiu imensamente em diversas áreas do conhecimento, como ética, política, física, metafísica, lógica, poesia, retórica, zoologia e biologia. É considerado por muitos o filósofo que mais influenciou o pensamento ocidental, tendo criado vários conceitos que permanecem presentes em todas as línguas modernas (atual, virtual, energia, essência, categoria, potência, etc.). Para Aristóteles, todos os homens tendem por natureza ao saber. Ele descreve uma espécie de hierarquia de saberes, que começa com as sensações. Delas, surge a memória e, a partir de uma série de recorda- ções de um mesmo fato, adquire-se a experiência. Considerando a expe- riência de várias situações diferentes, surge então uma noção universal 13 que ele chama de ciência ou técnica. “A experiência é conhecimento de coisas particulares, ao passo que a técnica é conhecimento de univer- sais” (ARISTÓTELES, 2002, 981a 12). Todas as ações humanas dizem respeito a um conteúdo particular. Seguindo o exemplo de Aristóteles, um médico não cura o ser huma- no, mas sempre um ser humano em particular. Assim como o jardi- neiro não cuida dos jardins em geral, mas de um determinado jardim. Por isso, uma pessoa pode ter a experiência necessária para cuidar de um assunto e ser muito eficiente a esse respeito sem conhecer as leis que tornam esse procedimento válido. Ela pode ter a experiência sem possuir a ciência. Por outro lado, alguém que conheça todas as leis da químicae da física pode ser inútil diante de um incêndio. Ainda assim, de acordo com Aristóteles, valorizamos mais a ciência do que a experiência. Consideramos mais sábios os que dominam a ex- plicação e conhecem as causas, não aqueles que são capazes de agir. Há mais de dois mil anos, Aristóteles propôs que a ciência era mais valorizada que a experiência. Em sua opinião, ocorre o mesmo em nossa sociedade atual? A ciência nos fornece o conhecimento dos princípios e das causas. Com ela, não sabemos apenas como se faz alguma coisa, mas por que se deve fazer deste modo. Para Aristóteles, a filosofia também busca o conhecimento dos princípios e das causas, mas não em relação a uma única ciência. Como dissemos, ela busca compreender o que torna possível o próprio saber a respeito de todas as coisas. Por isso, Aristó- teles descreve a filosofia como a ciência de todas as ciências. Essa definição da filosofia foi mantida durante séculos por inú- meros pensadores. Já no século XX, o filósofo e matemático inglês Bertrand Russell defendeu o seguinte: A filosofia, como todos os outros estudos, visa em primeiro lugar o conhecimento. O conhe- cimento que ela tem em vista é o tipo de conhecimento que confere unidade sistemática ao corpo das ciências, bem como o que resulta de um exame crítico dos fundamentos de nossas convicções, de nossos preconceitos, e de nossas crenças. (RUSSEL, 2005, capítulo XV) Bertrand Russell (1872-1970): Sua obra é extensa e abrange diversos campos da filosofia, principalmente a lógica, a filosofia da matemática e a filosofia da linguagem. É um dos grandes responsáveis pela consolidação da chamada filosofia analítica, uma das mais importantes correntes filosóficas do século XX. Entre suas principais teses está a de que a linguagem pode ser analisada de modo a revelar a relação de sua estrutura lógica com a estrutura da própria realidade. Todas as frases poderiam ser reduzidas ao que ele chama de sentenças atômicas, que representariam o conteúdo de nossa experiência sensível. Também é conhecido por seus textos políticos e pelo ativismo em favor de causas liberais e pacifistas. 14 A polêmica entre os filósofos A definição da filosofia como ciência de todas as ciências parece supor a unidade de todos os conhecimentos por ela adquiridos. Mas isso nem sempre acontece. Pelo contrário, os textos nos mostram de- bates e desacordos entre os filósofos. Avançando no conhecimento desses pensadores, veremos que nem todos dizem a mesma coisa a respeito dos mesmos assuntos. Não exis- te “a” opinião da filosofia sobre tal ou qual assunto, nem mesmo sobre o que a própria filosofia significa. As interpretações sobre o mesmo pensador também podem ser diferentes e até mesmo no interior da obra de um filósofo pode haver discordâncias e mudanças. Um filósofo não para de remanejar seus conceitos, e mesmo de mudá-los [...]. O filósofo apre- senta às vezes uma amnésia que faz dele quase um doente: Nietzsche, diz Jaspers, “corrigia ele mesmo suas ideias, para constituir novas, sem confessá-lo explicitamente; em seus estados de alteração, esquecia as conclusões às quais tinha chegado anteriormente”. Ou Leibniz: “eu acredi- tava entrar no porto, mas... fui jogado novamente em pleno mar”. (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 34) Friedrich Nietzsche (1844-1900): É o grande representante desta compreensão da fi- losofia como disputa que nunca alcança um final feliz. Para Nietzsche, a necessidade de sistematização e de uma coerência infalível está baseada na falsa crença de que existe um único sistema válido e verdadeiro. Pelo contrário, afirma, o que existe é vontade contra vontade. As ideias não fariam mais do que “representar” tais vontades, tentando se impor contra as outras. A crença de que existe apenas uma Verdade seria sintoma de uma “vontade fraca”, que tenta eliminar as outras por ser incapaz de aceitar aquilo que a vida é realmente: uma luta constante. Karl Jaspers (1883-1969): Sua obra é bastante inspirada no pensamento do filósofo e teólogo dinamarquês Kierkgaard, mas seu encontro com a filosofia se deu a partir da psiquiatria. Sua primeira obra, Psicopatologia geral (1913) estudava as perturbações da relação do homem com o mundo. Daí sua preocupação com a existência humana, entendi- da como um conjunto de situações limitadoras, o que remete não a uma condição estável, mas à capacidade de ganhar-se ou perder-se a cada instante da vida. Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716): Filósofo, cientista, matemático, diplomata e bibliotecário alemão. A ele e a Newton, em trabalhos independentes, é creditado o desenvol- vimento do cálculo diferencial integral utilizado até hoje. Sua principal contribuição na investi- gação metafísica é a teoria sobre as mônodas, que podem ser comparadas ao que os átomos representam para os fenômenos físicos. No campo da física, Leibniz antecipou Albert Einstein argumentando, em uma polêmica com Newton, que o espaço e o tempo são relativos. A falta de uma única certeza pode dar a impressão de que não chegamos a parte alguma. Mas isso não é verdade. Talvez nossa maior dificuldade com a filosofia seja procurar uma única chegada sem per- ceber que existem diversos pontos de partida. 15 Os filósofos pensaram uns contra os outros. A História da Filosofia é uma história de polêmicas, é uma história de incompatibilidades doutrinárias. Os sistemas filosóficos, na verdade, não concordam sobre nada, nem sobre o objeto da própria Filosofia. [...] Sobre o que é efetiva- mente o objeto da Filosofia, os filósofos estão em desacordo. Sobre como proceder para filo- sofar, sobre que método utilizar, eles estão em desacordo. Sobre quais os problemas a serem enfrentados, estão em desacordo. E também sobre quais as soluções para os problemas. A História da Filosofia é a história desses desacordos. (PORCHAT, 2005, p. 237) Mas os filósofos não estão caminhando cada qual em sua direção. Os caminhos se cruzam. Um autor critica o outro tentando respon dê-lo, refutando seus argumentos e apresentando novas respostas. A aparência de que o afirmar proposições é a atividade básica em filosofia é muito forte e se deve a que, inclusive para o próprio filósofo, o problema é dado como parte do legado histórico do qual ele nem sempre é plenamente consciente ou que, por ser-lhe óbvio, não considera necessário explicitar. (PORTA, 2002, p. 33) A arte de inventar conceitos Deleuze e Guattari (1992) definem a filosofia como a arte de criar, inventar e fabricar conceitos. E o que são conceitos? De um modo geral, podemos entendê-los como uma ideia que reúne diversas coisas como semelhantes. Assim, por exemplo, o conceito de “casa” diz respeito ao lugar onde você mora e também ao lugar onde seu vizinho mora. Não temos dificuldade alguma em chamar dois lugares diferentes com o mesmo nome. Mas isso nem sempre acontece na filosofia. Para tomar alguns exemplos, o conceito de “trabalho” para Karl Marx não é o mesmo para Hannah Arendt. Da mesma forma, o con- ceito de “substância” de Aristóteles é transformado radicalmente por Descartes. E quando Santo Agostinho fala em “liberdade” ele não está falando a mesma coisa que Sartre. Isso acontece porque a filosofia não cria seus conceitos simplesmente reunindo alguns atributos comuns, como a palavra “casa” reúne a qualidade de ser uma moradia, possuir paredes, teto, ser uma propriedade privada, etc. O que a filosofia faz é problematizar a definição desses atributos. A partir desse problema, ela cria um novo sentido para um termo conhecido ou cria um novo termo para responder à questão que ela mesma colocou. Encontramos um exemplo na própria origem do termo philosophia. Para os gregos, a sophia (saber) significava um conhecimento prático, e as palavras compostas por philo designavam o interesse e o prazer em viver para alguma coisa. Em princípio, portanto, philosophos é aquele16 que busca o saber-fazer. Mas uma vez criado, o conceito se transforma. Diante do problema de como podemos conhecer, a philosophia passa a designar o desejo de outro saber, diferente de todos os conhecimentos práticos e superior a eles. Assim, o próprio conceito “filosofia” é cria- do como conceito filosófico. Criar conceitos sempre novos é o objeto da filosofia. É porque o conceito deve ser criado que ele remete ao filósofo como àquele que o tem em potência, ou que tem sua potência e sua competência. [...] Os conceitos não nos esperam inteiramente feitos, como corpos celestes. Não há céu para os conceitos. Eles devem ser inventados, fabricados ou antes criados, e não seriam nada sem a assinatura daqueles que os criam. [...] Platão dizia que é necessário con- templar as Ideias, mas tinha sido necessário, antes, que ele criasse o conceito de Ideia. Que valeria um filósofo do qual se pudesse dizer: ele não criou um conceito, ele não criou seus conceitos? (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 13-14) O que permite ao filósofo criar um novo conceito e acrescentá-lo entre as palavras que os homens utilizam normalmente? Na vida coti- diana sabemos pensar e agir sem o auxílio da filosofia e seus concei- tos. De alguma maneira, portanto, os filósofos precisam abrir espaço para sua atividade. Desde a Grécia Antiga até os nossos dias, eles interrompem a rotina dos cidadãos e quebram o sentido comum das palavras e atitudes humanas. Em alguns momentos, a filosofia parece dizer o óbvio. Mas com um pouco mais de atenção perceberemos que ela fala sobre o óbvio. Ela toma e questiona aquilo que está pressuposto, revelando que o chão sobre o qual andamos não é tão firme quanto parece. Onde a tradição, a fé, a cul- tura, o senso comum e até mesmo as ciências tem uma convicção, a filo- sofia coloca uma questão. Não por acaso, a figura símbolo de sua origem é a de Sócrates, que vagava por Atenas perguntando aos seus cidadãos por que eles consideravam uma estátua bonita (o que é o Belo?) ou por que julgavam justa uma determinada atitude (o que é a Justiça?). Sócrates não pretendia simplesmente transmitir um conhecimen- to, mas questionar aquilo que as pessoas tomavam como dado e co- nhecido. Não se trata simplesmente de perguntar, mas de colocar um problema. Os diálogos socráticos escritos por Platão quase sempre ter- minam em aporia, ou seja, não encontram solução porque esbarram em uma dificuldade lógica insuperável. Seus personagens são levados a reconhecer que, depois de afirmarem tantas coisas, já não tem tanta certeza sobre o que disseram. Este ainda é o principal modelo do procedimento filosófico. Aqui- lo que é tomado como pressuposto, a filosofia toma como questão. Ela cria seus conceitos para responder a tais questões. Por isso, estudar filosofia não é apenas decorar o que os filósofos dizem, mas entender o que eles dizem como uma tentativa de solucionar um problema. 17 O primeiro passo para entender filosofia é sempre estabelecer o problema. Diante de um filó- sofo particular, devemos começar pela pergunta “qual é o problema por ele proposto?” e, even- tualmente, “por que ele o formula dessa maneira?”. (PORTA, 2002, p. 26) De modo muito semelhante, Oswaldo Porchat diz que para estu- dar um filósofo nós devemos tentar entender a “lógica” de seu pensa- mento. Ele não está falando da lógica formal, pois a filosofia não é um sistema dedutivo. “Lógica” aqui significa o modo de pensar. Para compreender a Filosofia de um filósofo, é preciso descobrir qual o seu método de pensar, qual o seu método de organizar o discurso filosófico, como ele pensa que se pode progredir em direção a novas proposições. Se não se faz isso não se entende nada de um filósofo, absoluta- mente nada. (PORCHAT, 2005, p. 239) Movimento e permanência: duas respostas para dois problemas As teses filosóficas devem ser compreendidas como resposta a uma determinada pergunta e não como simples opinião. Para compreender isso, vamos tomar um exemplo clássico: a oposição entre Heráclito e Parmênides. Escola de Atenas é um dos mais importantes quadros do pintor renascentista Rafael Sanzio (1483-1520). Entre os diversos filósofos representados, destacam-se Platão e Aristóteles, no centro da tela. Parmênides (retratado lendo, em pé) e Heráclito (retratado sentado, pensando) estão na parte inferior da tela e, embora estejam próximos, não travam uma discussão. pt .w ik ip ed ia .o rg / P al ác io A po st ól ic o – V at ic an o / D om ín io P ú bl ic o 18 É famosa a afirmação de Heráclito de que um homem não pode entrar duas vezes no mesmo rio. Isto porque o homem que retorna não seria o mesmo homem, nem o rio seria o mesmo rio. Para ele, o universo pode ser explicado como um contínuo processo de geração e corrupção. Assim, todas as coisas se movem e nada permanece. O movimento é considerado princípio e causa de todas as coisas. “Tudo flui, nada persiste, nem permanece o mesmo”. Para explicar a tese de Heráclito, o filósofo alemão Georg W. F. Hegel utiliza a imagem da harmonia musical. [...] a repetição de um único som não é harmonia. Da harmonia é precisamente o absoluto devir, transformar-se [...]. O essencial é que cada diferente, cada particular seja diferente de um outro [...]. Mudança é unidade, relação de ambos a um, um ser [...]. (HEGEL, 1996, p. 105) Georg W. F. Hegel (1770-1831): Estudou com o poeta Friedrich Hölderlin e o filósofo Schelling, acompanhando com eles o desenrolar da Revolução Francesa e elaborando críticas às filosofias de Kant e seus seguidores. Sucedeu Fichte, um dos pós-kantianos, como profes- sor na Universidade de Berlim, onde lecionou até sua morte. A primeira e mais importante obra de Hegel é a Fenomenologia do Espírito. Também publicou a Enciclopédia das Ciências Filosófi- cas, a Ciência da Lógica, e os (Elementos da) Filosofia do Direito. Outras obras foram compila- das a partir de anotações feitas por seus estudantes, sendo publicadas postumamente. Após sua morte, o hegelianismo manteve vários seguidores, entre eles Karl Marx. No século XX, seu pensamento foi constantemente trazido à tona nas mais diversas discussões filosóficas, nas obras de autores como Lukács, Marcuse, Adorno, Ernst Bloch, Alexandre Kojève, Sartre, Merleau-Ponty, entre outros. Uma música só é harmoniosa porque possui diferentes tons e pode ser executada por diversos instrumentos. A música é movimento de uma nota a outra diferente, composição entre instrumentos que se complementam. Assim também é para Heráclito, para quem o mundo é harmonioso porque tudo está sempre mudando de uma coisa a outra coisa diferente. Por outro lado, Parmênides nega a geração e a corrupção. Todas as coisas se transformariam apenas aparentemente, pois na realida- de tudo permanece o mesmo. Mas como uma coisa pode se tornar outra? Como o claro se torna escuro, o quente se torna frio e assim por diante? Ao contrário de Heráclito, Parmênides não explica essa transformação pela ideia de um movimento incessante e, negando o movimento, ele nega igualmente que exista a diferença. Tudo precisa ser o mesmo, sempre. Na teoria de Parmênides, toda mudança e movimento são ilusões, o que poderia ser contestado por qualquer criança diante do fato de seu próprio crescimento e das mudanças que isso produz. A todo o 19 momento sentimos que as coisas mudam. Não é difícil rejeitar Par- mênides e tomar sua tese como falsa, dando razão a Heráclito. Mas não podemos ser tão apressados. Se quisermos nos apropriar do pen- samento filosófico, não devemos julgar uma tese e compará-la a outra tomando apenas os seus resultados e ignorando o problema que a mo- tiva. Vejamos agora como se pode, através de argumentos, compreen- der e defender Parmênides, para depois voltar a refutá-lo com base nos mesmosargumentos que o defendiam. A negação da mudança não é um capricho do filósofo, nem um simples meio de se contrapor a Heráclito dizendo o contrário do que ele diz. A preocupação de Parmênides é explicar como o pensamento pode operar diante de uma realidade que sempre muda. Para pensar que uma coisa é outra (por exemplo: “o computador é leve”) ou que uma coisa se torna outra (por exemplo: “a água evaporou”) é preciso reunir de algum modo os termos do enunciado: reunir o computador com a qualidade de ser leve, reunir a forma líquida da água e sua for- ma gasosa. Se os termos fossem absolutamente distintos, ou seja, se o mundo fosse constante movimento, não se poderia falar qualquer coi- sa com sentido. Na transformação, algo precisa permanecer o mesmo para que se possa dizer “isto é tal coisa”. É necessário um princípio de identidade. Por isso a teoria de Parmênides tem o mesmo, o uno, o imu- tável como princípio de todas as coisas: sem pressupor que as coisas continuam sendo as mesmas não poderíamos sequer pensar sobre elas e suas transformações. Haver explicitado a própria ideia de Razão ao descobrir o princípio de identidade como o seu elemento primeiro e definidor e, inversamente, haver entendido o dito princípio como exigên- cia básica de toda inteligibilidade, é justamente o aporte parmenidiano decisivo. Uma vez que se toma consciência disso, surge o problema de que todo tipo de mudança e alteridade cons- titui algo irracional. A solução de Parmênides é, por consequência, não as reconhecer como reais. Dado que, por outra parte, os sentidos nos informam da existência de ambas [mudança e alteridade], eles não podem nos brindar mais que pura aparência. (PORTA, 2002, p. 36) Aqui está uma boa maneira de compreender Parmênides, tomando sua tese como resposta coerente e argumentada ao problema de como funciona o pensamento. Mas também é possível voltar a refutá-lo a partir da mesma saída, pois sua solução é opor absolutamente o pen- samento e as sensações, tomando as últimas como ilusões. Ele nega aquilo que experimenta – o fato de que todas as coisas mudam – em nome de uma coerência lógica. E só pode fazer isto tomando o pensa- mento como a própria realidade. É o que afirma Nietzsche (1996, p. 133-134): “A experiência não lhe apresentava em nenhuma parte um ser tal como ele o pensava, mas, do fato que podia pensá-lo, ele con- cluía que ele precisava existir.” 20 Aquilo que em uma primeira aproximação pode parecer uma sim- ples troca de opiniões entre dois filósofos, possui em seu fundamento dois diferentes problemas ou duas maneiras diferentes de lidar com o mesmo problema. Por isso, para compreender o que um filósofo afir- ma, precisamos tentar encontrar a pergunta que ele responde.
Compartilhar