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.lúcaçàonostexi Uráo4 .-: 157 heróicos, n relata, poi sobretudo homens se colocarem a saivo e, c inspecionando cada andar para que ninguém fosse deixado para trás. Encontraram um grupo de inválidos que não podiam servir-se da escada. Começaram, então, a carregá-los, embora soubessem que provavelmente a torre na qual estavam também cairia, como aconteceu. Picdotto foi encontrado horas mais tarde nos escombros, salvo milagrosamente por uma trave de sustentação que o abrigou. LET Q UFRN/CCHLA/DEPARTAMENTO DE LETRAS DISCIPUNA: LET0419 LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTO ARGUMENTATIVO , DISCINI, Norma. Heterogeneidade mostrada não marcada: ironia, discurso j indireto livre, paródia e estilização. In: . Comunicação nos textos. . São Paulo: Contexto, 2001. p. 156-174. :: Teoria :: Heterogeneidade mostrada não marcada: ironia, discursp indireto livre, paródia e estilização :: Introdução Antes de falar da heterogeneidade mostrada não marcada, que enfeixa ironia, discurso indirero livre, paródia e esrilizaçáo, façamos umabreve retrospeccivasobre a heterogeneidade constitutiva, até para consolidar a familiarização com ojs princípios daprópria heterogeneidade mostrada. Lembremos cntãoque o discurso é constitutivamente heterogéneo. Écondiçáo de qualquer discurso ser uma resposta a outros discursos. Por isso todo discurso é dialógico, se destacarmos que esse diálogo é interno e imanente: não se trata de um diálogo como o de uma conversa telefónica, representada na modalidade escrita por meio de troca de parágrafos que se iniciam por travessões. O diálogo constitutivo do discurso remete a formaçÕe£ ideológicas que, como crenças e aspirações ditadas pela sociedade, produzem o outro que atravessa o um. Esse outro* presença inevitável na constituição do KTTÍJ, orienta a construção que o sujeito faz do mundo. Por isso a percepção de mundo de cadasujeito, discursivizada nos textos, parece individual, mas é social. São vozes sociais em diálogo, essas que constituem heterogeneamente o texto, assirty ancorado historicamente e, por essa razão, dito discurso. Esse dialogismo interno de todo discurso remete então ao outro, que constituf inevitavelmente o um> sendo que esse outro é organizado não caótica e aleatoriamente, mas demaneiracoerenteesistemátíca. O outro que constituí o um enfeixa representações ese firma como conjunto organizado de prescrições e normas ditadas socialmente. Assim, esse outro subordina sujeito e discurso aos interesses sociais, sempre contraditórios. São, portanto, vozes ideológicas da intocdiscursividade, as que firmam a heterogeneidade constitutiva dos textos. Inter- discursividade, então, não supõe uma imitação deliberada de um texto por outro, Imitação deliberada de um texco por outro é intertextuálidade, de cujos exemplos veremos a paródia e a estilização. Mas isso já é outra coisa: é heterogeneidade mostrada não marcada. Voltando à heterogeneidade constitutiva, verificamos que, remetendo ao mundo feito discurso, ela se funda na "incompatibilidade radical" própria ao sentido, tomando para nós a palavra de Maigúeneau.9 A propósito, essa hete- rogeneidade constitutiva do discurso pode ser demonstrada no parágrafo ini- cial de um artigo jornalístico, da autoria de Bertrand de Qrleâns e Bragança, cujo título é Náo ceder para não perder, publicado na seção Tendências e deba- tes, do jornal Folha de S.Paulo (09.08.2003, p. A3). Nesse artigo, o autor debate a quês cão da reforma agrária no Brasil, alertando os fazendeiros a não ceder para não perder. Dando destaque a "uma manobra publicitária que no^ tenta passar a ideia de um descontentamento que se alastra como fogo", cj articulista afirma que "o que ganha ressonância é o MST, seus profissionais dí agitação e suas obscuras teses de uma agricultura coletivizada e sem proprieda- de privada". Observemos a abertura do artigo, feita de reminiscências. il MARLYTON Textbox Let0002/ Let0306nullnullnullnullTexto 12nullnullnullnullProfessores:nullnullÉrica ReviglionullnullMarlyton PereiranullnullTacicleide Dantas . Jn*,imvon<*oycuj nua É sempre com saudade que recordo os anos de minha infância, passados numa fazenda de café no norte do Paraná. Lembro-me do ambiente hospitaleiro e harmónico que lá reinava. Além do chefe de nossa família, meu pai era, ao mesmo rempo, um pai para todos e para ••cada um de seus colonos e agregados. Minha mãe, apesar dos cuidados com seus 12 filhos, sentia-se na obrigação de cumprir sua função social de ministrar aulas de catecismo para os filhos de seus empregados. Procurar no enunciado o crivo avaliativo sob o qual o mundo é construído é depreender o lugar social do sujeito; é, por meio da reconstrução de vozes que habitam o discurso, recuperar o dialogismo ou a heterogeneidade, ambos constitutivos do discurso. No caso do excerto jornalístico, rastreando temas e figuras, segundo os quais o mundo se legitima na cena da pacificação aparente das contradições sociais, constatamos uma voz que procura abafar a polémica. Esse efeito de abafamento da polémica é produzido por meio da semantizaçáo eufórica de um tempo anterior ao momento da enunciação, não por acaso concretizado na continuidade do pretérito imperfeito do indicativo: remava, era, sentia-se. Os temas do amor e do zelo, tanto entre membros da família, como entre senhor das terras e colonos, sustentam o tempo da infância, dado . como o da anterioridade eufórica, porque reprodutora de harmoniosas rela- ções sociais. Confirmam-se como naturais as relações de poder construídas historicamente, para que o discurso possa dialogar convergentemente com vozes sociais afins. O "ambiente hospitaleiro e harmónico", discursivizado com apoio na figura paternal do proprietário rural e na figura irretocável da dedicada es- posa, mãe dos 12 filhos, mulher a que é sobreposto o traço da extrema generosidade devido à catequização dos filhos dos colonos, firma o espaço que, tal qual o tempo, é dado na harmonia transcendente porque respalda- da pela ilusória independência em relação a qualquer construção social. Na harmonia transcendente da cena narrada, robustecem as figuras dos patrões generosos, enquanto se ratifica um mundo bom, porque- perfeito, e perfeito, porque avesso a contradições. Aliás, o texto prossegue, apresentan- do: o Brasil como "gigante da agropecuária", a reforma agrária como acitude "confiscatória", num recorte discursivo que, circunscrito ao topo da pirâmi- de social, converge para determinados textos, já ditos e ainda por dizer, en- quanto diverge de outros. Não poderia ser diferente, já que o dialogismo é inerente à própria linguagem. LiÇão 4 :: 1159 :: Ironia j i É interessante observar, para além das vozes sociais, o arranjo que determi- nado texto oferece para as várias vozes que nele se apresentam. O modo de apresentar o outro firma-se então como estratégia discursiva, como mecanismo de construção do sentido de determinado texto. Passamos a falar ejm heterogeneidade mostrada, a qual remete ao fenómeno da poliforiia. Várias .(polys] vozes (fonia) podem facultativamente, apresentar-se no;interior de um discurso. A propósito, no excerto jornalístico considerado, é curioso nocir, como efeito produzido no texto c pelo texto, a monofonia. Ora, se a polifor ia mostra as várias vozes que se apresentam no interior de um discurso, o efeito de monofonia dá-se como suspensão do entrecruzamento de vozes de um tejx- to. É assim que se funda o acento único da voz do enunciador. Vale ressaltjar que efeitos de monofonia ou de polifonia não são gratuitos, como nada o |é. Vejamos como o excerto jornalístico citado combina o efeito de monofoniia com estratégias argumentativas. Tal excerto do artigo de órlèans e Bragança não apresenta fenómenos de heterogeneidade mostrada: nem a marcada, nem a não marcada. Naquela, J • /!• • Cestariam recursos como o usode aspas, itálico e conjunções integrantes pospostas a um verbum dicendi, que remetem ao uso do discurso direto e do discurso indireto. Nesta estariam recursos como o da ironia e o do discurso indireto livre, dos quais ainda falaremos. Por essa eliminação dos dispositivos da heterogeneidade mostrada, temos reforçado o efeito ae monofonia. A propósito, é tanto pelo dito, segundo o qual o tempo cja infância reproduz harmoniosas relações sociais, quanto pelo modo de dizeir, segundo o qual as verdades enunciadas adquirem estatuto de acabamentoje transparência, que se dá, no artigo, a incorporação do efeito de monofonia às estratégias enunciativas. O modo de dizer no texto propõe, para a vcjz do sujeito, um acento único, que se alia ao efeito de robustecimento dja autoridade hierárquica e ao efeito de manutenção da ordem estabelecida, (p acento único do dizer, ou o efeito de monofonia, sustenta-se, por sua vez, na linearidade das relações entre as vozes do enunciador e do narrador; aquele, o sujeito que delega; este, o sujeito delegado; ambos, em convergêncié Expliquemos essa convergência, dando exemplo do contrário, ou seja, d divergência de vozes. 160 :: A comunicação nos textos Lição 4:: 161 Pode haver divergências entre narrador e enunciador, resultando em polifonia. Um bom exemplo dessa divergência está na ironia. Para ilustrar tal procedi- mento, não custa lembrar um dos casos de ironia das cartas de Graciliano Ramos, autor que aí a reúne em abundância: Maniçoba, 19 de junho de 1911. Minha mãe: Aqufcheguei em paz e salvamento, graças a Nosso Senhor Jesus Cristo. Isto aqui é bom como o diabo: acorda-se às cinco da manhã, leva-se o dia lendo, rumando, comendo e rezando; dorme-se is nove da noite. Uma vida de anjo. Quando chegar aí - está compreendendo? - hei de ter o corpo pesando 70 quilos e a alma leve de pecados, tão leve como os vagons que levam material para a construção da estrada de ferro de Palmeira.10 Antes do fenómeno da ironia, porém, salta aos olhos o fato de que o enun- ciado da carta já na abertura remete à heterogeneidade mostrada (e marcada). Isso se faz quando é colocada em tipo itálico a expressão paz e salvamento, como se estivesse indicando: "Essas palavras não são minhas". Prossegue a carta na demonstração de certa mobilidade de modo de presença do sujeito, ao acen- tuar a ambiguidade da qualificação de Maniçoba: um lugar bom como o diabo. Essa comparação paradoxal surpreende, devido à apresentação concomitante de figuras dadas como contrárias culturalmente: o que é bom e o que ruim, ou do diabo. Passa, por fim, a carta, a afirmar que a alma estará leve um dia. Mas essa leveza, afirmada pelo narrador, é negada pela enunciação. Tal negação passa a ser explicitada, aliás, na própria equiparação do peso da alma, após a estada em Maniçoba, com o peso dos vagões carregados da estrada de ferro de Pal- meira. Então o enunciado afirma a leveza; a enunciação a nega. Da discrepância entre a voz do dito e a voz do dizer emerge a ironia. Ganha o texto em polifonia. No parágrafo citado do artigo de Órleans e Bragança, não temos essa movimentação de vozes. Lá, enquanto é enunciado o tempo da infância como reprodução de harmoniosas relações sociais, como vimos, verdades são discursivizadas com estatuto de acabamento e transparência, devido ao modo de dizer, que se afasta dos recursos da pojifonia. Esse modo de dizer supõe, para a voz do sujeito, um acento único, aliado ao efeito de exacerbamento da autoridade hierárquica. Enunciador e narrador conver- gem, portanto, para que não haja diferentes tons de voz, para que se fixe definitivamente um mundo dado como ideal, justamente porque se cum- pre na imagem da própria fixidez. :: Discurso indireto livre Podemos identificar o efeito de polifonia sustentado em outro dispositivo: o discurso indireto livre. Tomemos um excerto da crónica A importância da vida concreta, de Contardo Calligaris. Essa crónica, publicada no jornal Folha ^fS./Wtf (25.10.2001), encontra-se entre os 101 textos do mesmo género e do mesmo autor, reunidos no livro já citado, Terra de ninguém" Discorrendo sobre os desdobramentos midiáticos, em função dos ataques ao World Trade Genter e ao Pentágono (EUA), ocorridos em 1.1 .de setembro de 2001, o cronista especifica e-mails recebidos sobre o assunto. Segundo o relato espantado e constrangido de Calligaris, entre tais mensagens encontravam-se justificativas ao.ataque, em forma de alusões à. "substituição de vítima por vítima", ou seja, o ataque teria sido uma "retribuição" a "políticas americanas iníquas contra o Terceiro Mundo". Segundo o, cronista, encontravam-se também, entre ias mensagens, supostas justificações das mortes daqueles cidadãos "pelos crimes do capital" e, ainda, supostas acusações, no sentido de que "os funcionários do World Trade Center eram 'todos alienados'". É para este último argumento que o fragmento, selecionado da-crónica, responde: Cada vez mais, parece-meque,quandodenundamosaalienacãodosoutros,qufsesempre operamos uma extraordinária violência: negamossuas vidas concretas. Épor esse caminho queo terrorista transformaqualquer um em alvo: elenão enxerga nunca as existências, só a funciona] idade de todos no sistema que ele combate. Há uma criança, no avião:1 E apenas mais um expoente do mundo inimigo: quem sabe umfiituro dirigente do FMl. Essa redução é fácil para o terrorista, pois elejáfezo mesmo com sua própria vida: renunciou à exiscênciaparase tornarpuro instrumento (dedestruição). O segmento aqui colocado em itálico, especialmente para nossas reflexões, representa a formulação da combinatória de vozes, a voz do cronista-narrador e a voz do terrorista, o ele de quem se fala. Com essa mistura, depreendem-se dois acentos na própria voz do cronista. É verdadeiramente impossível, pelo contex- to, deduzir como apenas do cronista tais elucubrações que se iniciam com uma pergunta. O autor incorporou então a voz do terrorista de maneira híbrida: sem marcas que sucedessem um verbum dicendi, como o elo subordinativo (o terro- rista perguntou se...), próprio do discurso indireto; sem a rupturasintática refor- çada pelo emprego de dois pontos, travessão ou aspas, subsequentes ou não aio verbum dicendi, como é próprio do discurso dirêto. Diluídas as marcas que sepa- rariam o outro mostrado, os enunciados destacados da crónica permitem entr^- ver uma discordância de vozes, o que dá indicação do uso de discurso indiretjo livre. Com tal recurso, a crónica ganha em polifonia. \| •"•!$ .11;$$ 162:: A comunicação nos textos ^M Calligaris rompeu os limites entre dois atos enunciativos: o dele próprio e o do terrorista. Certamente é o cronista mesmo quem fala nesses enunciados destacados, mas o que vale é que ele aí se permite a participação na mistura com a voz do outro. Retoma depois a própria voz, ao dar continuidade ao texto: "Essa redução é fácil para o terrorista". Se não tivesse evocado os pensa- mentos do terrorista por meio do discurso indireto livre, o cronista poderia ter formulado a citação do outro em discurso direto ou em discurso indireto, como esta demonstrado em ambas as versões ora apresentadas: a primeira para o discurso direto e a segunda para o indireto. Primeira versão - Há uma criança no avião? - O terrorista costuma perguntar. - É apenas mais um expoente do mundo inimigo: quem sabe, um futuro dirigente do FMI. - O terrorista completa. Segunda versão O terrorista costuma perguntar se há uma criança no avião. Em caso afirmativo, costuma responder que ela nada mais é do hue um expoente do mundo inimigo e um possível futuro dirigente do FMl. \e é notar o distanciamento irónico entre o cronista-narrador e o terrorista, este que é devastado nos próprios pensamentos. Aliás, o uso do ponto de interrogação, bem como a escolha lexical futuro dirigente do FMI, com o investimentofigurativo de ódio maximizado, acabam por confirmar o acento da voz do terrorista na voz do cronista. Eis a dissonância enunciativa, própria do discurso indireto livre. Não poderia, portanto, haver separação entre o discurso citante do cronista e o discurso citado das vítimas, simplesmente porque no discurso indireto livre não há discurso citante e discurso citado. Aliás, somente notamos, no segmento em discurso indireto livre, a comprovação de duas enunciações por meio da leitura do excerto inteiro da crónica. O discurso indireto livre se realiza contextualmente e, por essas razões, viabiliza a heterogeneidade mostrada não marcada, fortalecendo a polifonia como regra genérica da crónica jornalística contemporânea. É no discurso indireto livre, portanto, que se dá o hibridismo do relato do discurso do outro. Se levantarmos a hipótese de hibridismo para o discurso indireto analisador da expressão, veremos que ela é falsa. Apesar de _ Lição 4:: 163 manter a conjunção (marca do discurso indireto) t as aspas (marca do discíirso direto), o discurso indireto analisador da expressão faz restar tão.-somente tkma única enunciação, a citante e subordinante. Exemplo: MASSACRE NO CENTRO Delegado afirma ter ouvido testemunha-chcivepara o caso dos aaaaijMtosde moradores de nia .APalícixCivilinfôrmouontem já ter suspeitos dos ataques que mataram seis moradores de rua e feriram nove, no. centro da capital paulista, desde:a semana passada. . • .A declaração foi dada pelq.delegado Luiz Fernando Lopes Teixeira. [...] Tudo.o que.Tebceira disse foi .que na tarde de ontem ele ouviu quatro testemunhas, uma .. .da&quais "extremamente importante"para as apurações. Não disse quem é nem ojque teria visto. Folha de S.Paulo, Cotidiano. 26.08.2004. pi Cl. Retomando agora a questão da poMfonia na crónica jornalística contempo- rânea, é preciso destacar que o género crónica nem sempre se pautou por esse efeito de sentido. Se tomarmos crónicas do Brasil colonial, dos séculos XVI e XVII, verificaremos que os mecanismos de construção do sentido, no que diz respeito ao efeito de polifonia, são outros. A obra Documentos históricos brasi- leiros reúne, entre as fontes consideradas históricas como cartas, registros co- merciais, registros.paroquiais, moedas recunhadas no Brasil, a crónica.12 Aliás, tal obra viabiliza a inserção-do género crónica ao se declarar como "Históriaido Brasil apresentada na palavra de seus atores e autores dentro do cenário nacio- nal. Não é um compêndio. É História feita do cotidiano."13 Refere-se então aos cronistas, como sujeitos que, "sem pretensão de fazer historiografia, limita- ram-se a narrar, sem grandes preocupações explicativas, os acontecimentos que colecionaram". l4 Interessa-nos, para a projeção do género crónica, essa ausên- cia de grandes preocupações explicativas. A crónica de autoria de André João Antonil, publicada no ano de 1711, em Cultura e opulência no Brasil por suas drogas e minas e inserida nos Documentos históricos brasileiros sustenta-se no tema da mão-de-obra escrava na lavoura canavieira do Brasil colonial. Observemos a primeira parte, na reprodução do excerto que segue. Como há de haver o senhor do engenho com seus escravos Os escravos são as mãos e os pés do senhor do engenho; porque sem eles no Brasil na 3 é possível fazer, conservar e aumentar fazendas, nem ter engenho corrente. E do modo, c< >m que se há com eles, depende tê-los bons ou maus para o serviço. Por isso e' necessá* -io 164 :-. A comunicação nos textos comprar cada ano algumas peças e reparti-las pelos partidos, roças, serrarias e barcas. £ porque comumente são de nações diversas, e uns mais boçais que outros, e de figuras muito diferentes, se há de fazer repartição com reparo e escolha, e não às cegas. Os que vem para o Brasil são Ardas, Minas, Gongos, de S. Tomé, d'Angola, de Cabo Verde, e alguns de Moçambique, que vem nas naus da índia. Os Ardas, e os Minas são robustos. Os de Cabo Verde, e S. Tomé são mais fracos. Os d'Angola criados em Loanda são mais capazes de aprender ofícios mecânicos, que os das outras panes já nomeados, entre os Gongos há também alguns bastantemente industriosos, e bons não só para o serviço de cana, mas para as oficinas, e para os meneios de casa. Uns chegam ao Brasil muito rudes, e muito fechados, e assim continuam por toda a vida. Outros em poucos anos saem ladinos, e espertos, assim para aprenderem a doutrina cristã, como para buscarem modo de passar a vida, e para se lhes encomendar um barco, para levarem recados, c fazerem qualquer diligenciadas que costumam ordinariamente ocorrer. As mulheres usam de foice, e de enxada, como os homens; porém nos matos, só os escravos usam de machados. Dos ladinos se faz escolha para caldeireiros, carapinas, calafates, tacheiros, barqueiros, e marinheiros porque estas ocupações querem maior advertência. Os que desde novatos se meteram em alguma fazenda, não é bem que se tirem dela contra sua vontade, porque facilmente se amofinam, se morrem. Os que nasceram no Brasil, ou se criaram desde pequenos cm casa dos brancos, afeiçoando-se a seus senhores, dão boa conta de si; e levando bom cativeiro, qualquer deles vale por quatro boçais. Melhores ainda são, para qualquer ofício, os mulatos; porém muitos deles, usando mal dos favores dos senhores, são sobefbos, e viciosos, e prezam-se de valentes orelhados para qualquer desaforo. E contudo eles, e^las da mesma cor, ordinariamente levam no Brasil a melhor sorte; porque com aquela parte de sangue de brancos, que têm nas veias c talvez dos seus mesmos senhores, os enfeitiçam de tal maneira, que alguns tudo lhes sofrem, tudo lhes perdoam; c parece, que se não atrevem a repreendê-los, antes os mimos são seus. E não é fácil decidir, se nesta parte são remissos os senhores, ou as senhoras; pois não falta entre eles, e elas, quem se deixe governar por mulatos, que não são os melhores; para que se verifique o provérbio, que diz: - Que o Brasil é Inferno dos Negros, Purgatório dos Brancos, e Paraíso dos Mulatos, e das Mulatas... Se procurarmos diagnosticar o enfraquecimento ou fortalecimento da heterogeneidade mostrada não marcada e a funcionaliade discursiva de tal fato, verificaremos que o género crónica, atrelado como está à especificidade de fon- te documental do Brasil-colônja, impõe, para o modo de dizer, regras que afastam ambiguidades e priorizam o acento único da voz. A crónica de Antonil firma-se, por meio de estratégias próprias para fazer crer num mundo "real", reproduzido "com máxima fidedignidade", o que supõe um tom de voz criterioso e, por isso, altamente digno de fé. Um modo de dizer que dilui a polifonia é então compatível com esse tom de voz, que remete a um ethos ^_ Lição 4:: 165 i prudente, cordato, ponderado. Para isso contribui, na cena enunciativa criada, a ausência da ironia, por exemplo. • -. j Essa imagem de um sujeito fidedignoj porque criterioso, e criterioso porque sustentado em um acento único de voz; é compatível com a própria orientação ideológica da crónica. Essa orientação., definindo o lugar, social do sujeito, como o das alturas eufóricas, investe num mundo estável,.dado <f:omo naturalmente dividido entre,senhores>e escravos, enquanto supõe, pari esse .. mundo, .como..-contradições,, apenas o.> fato. de =serem: ou 'não dí ceis,' determinados.escravos, ciu-deserem ou não;"remissòs"jdeterminados sen lores* com ..mulatos, e,mulatas.iA<propósito, observa-se, na.crónica interca, unv único caso de heterogeneidade mostrada e marcada. Na citação: do provérbio, temos curiosamente os dois pontos^e o travessão do discurso direto e, ainda, a conjunção integrante que do discurso indiretO; Lembrando que o provjérbiò é género que ratifica a cristalização do dizer e do dito, o Brasil, dado como "Purgatório dos Brancos", firma a simulação de quanto os cidadãos, superiores elivres, tinham de purgar por conviver com os seres inferiores e escravos. Uma convicção serena crê saber e faz crer que sabe muito bem o que diz. Não caberiam aqui interrogações como aquelas do discurso indiretp livre, que viabilizariam o pensar e o sentir dos escravos que, por tais meios, seriam tidos como sujeitos com voz. O efeito de monofonia articula-se portanto a determinada cena en unciativa, que propugna, como único, um mundo perfeitamente fixo, acabado e transpa- rente. Esse simulacro se diluiria num texto que apresentasse mistura de vozes. Como o sentido se dá pela diferença, o efeito de polifonia da crónica do jornalis- mo contemporâneo contribui para enfatizar determinado modo de presença, no mundo, do sujeito cronista, diferente daquele depreensível da crónica de Antonil. Que fiquem confirmados recursos da heterogeneidade mostrada não marcada, tal como ironia e discurso indireto livre, atrelados ambos ao efeito de polifonia, como estratégia relacionada à tendência para construir simulacros de movimen- tação do dito e do dizer. O contrário se dá com o efeito de monofonia, aliado da cristalização do dito e do dizer. Nada é gratuito. :: Intertextualidade: paródia e estilização Ao falar da heterogeneidade mostrada não marcada, não mais nos gi^iam, portanto, a presença de aspas, itálico e outros instrumentos afins, os quais mostram e marcam pontualmente o outro. Corri a heterogeneidade mosirada tf.,-, 166 :: A comunicação nos textos não marcada, o eu mostra deliberadamente o outro, mas não o circunscreve a marcas específicas. É por meio do contínuo que essa heterogeneidade represen- ta a retomada do outro, como propõe Authier-Revuz.15 Examinemos a intertextualidade, outro fenómeno da heterogeneidade mos- trada não marcada. Jntertextualidade é a imitação de um texto por outro, de modo a resultar, no texto que imita, um efeito de bivocalidade: a voz do imi- tado e a voz do que imita estão presentes e diluídas uma na outra. Vale o outro, como discurso imitado e considerado de referência. Esse outro impregna intei- ramente o enunciado que o recupera intertextualmente. Por conseguinte, na intertextualidade, o outro será, primeiro, imitado; depois, captado, no caso da estilização e, subvertido, no caso da paródia. :: Paródia A paródia, para imitar e subverter o outro mostrado, viabiliza meios de reconhecimento dos temas e figuras encadeadas e tratadas de maneira própria no discurso de referência. Imita a cena narrada, mas a subverte. Como a todo enunciado está pressuposto o sujeito da enunciação, a enunciação parodística subverte também a ética que sustenta o discurso de referência. Tomemos um anúncio publicitário que pretende vender o aquecedor tipo Fórmula l, da marca Longhi. LlÇâo 4 :: 167 Fonte: 20* Anuário do Clube de Criação de São Paulo. São Paulo, 1995, p. 194. O anúncio imita o texto de referência, o quadro intitulado Marte e Vfaus, do pintor italiano Saraceni, das primeiras décadas do século XYII, discípulo de Caravaggio. Promovendo a recontextualização da cena do encontro idílico entre duas divindades mitológicas, a figura centralizada do aquecedor exacerba,! no anúncio, a inadequação entre o discurso imitado e o discurso de imitação). O sujeito enunciador do quadro de Saraceni, dèpreensível da cena firmada em torno de elevações divinas,.emblematicamente ieonizadas.nas-figuras.deMarte t Vénus, é subvertido juntamente com o quadro enunciado^para que se CGíiS'- titua a.paródia. A publicidade ressemantiza então os baixos corpo*lis, - figurativizados no quadro, com traços de sacralização. Apresenta tais partes . * como as.que, diretamente aquecidas, são investidas de hiperbólica importar cía devido à localização, do aquecedor. Aliado da hipérbole está,o riso e, com el:, a orientação contrária imprimida à magnificência do amor, reservada à figurai de Vénus. Desloca-se, portanto, a voz da paródia para nova e oposta direção, que possibilita o efeito de derrisão no anúncio publicitário. Pela recontextualização inadequada do quadro de Saraceni, assim virado ao avesso, consolida-se no anúncio do aquecedor Longhi a voz irónica, a mostrar a dissensão com o outro imitado. A mobilidade parodística remete, portanto, à pressuposição recíproca entre texto parodiado e paródia: lê-se o anúncio.,do aquecedor, pensando no quadro imitado e subvertido; devido à inadequação resultante, o efeito de humor se fortalece. A paródia legitima então o outro, pela imitação, mas subverre-o. A cena narrada no quadro, pautada pela suntuosidade dos aposentos e grandeza simbólica dos atores, bem como pjela grandiloqiiência de um modo de narrar, é posta de ponta-cabeça. Destacarse que é o aquecedor tipo Fórmula l, produto industrial da cotidianidajde moderna, projetado em direção certeira sobre os baixos corporais, que reverte e subverte o dito e o dizer do quadro de Saraceni. O efeito do riso, assim construído, remete a um ethos lúdico. Imitar e subverter, entretanto, são movimentos intertextuais que não $u- põem necessariamente o efeito do riso e do humor. O discurso de referência pode ser imitado e subvertido, como no anúncio que segue, referente à campa- nha pró-uso da camisinha nas relações sexuais, sem que se instaure o riso. Re$ta então a polémica, estabelecida intertextualmente por imitação e subversão. Observemos o discurso de referência, uma reprodução do afresco Criação \k Adão, de Michellangelo. Em sequência, examinemos o anúncio publicitário Culdc-sc, take care, fais gaffi, da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aicjls. -í*. l tíO:: A comunicação nos textos Fonte: Criação de Adão (Ml /1512). Michellangelo (1475 -1564). Fresco (280 x 570 cm). Cena do teto da Capela Sistlna. Vaticano, em História geral da arte. Pintura II. Espanha, Ediciones dei Prado. mar. 1996, p. 16. CUIDE-SE TAKECARE FAISGAFFF. Fonte: Cu/da-se, taka care, tais gaite. Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, em Catálogo de Ações, produtos e serviços em osr/Alds no local de trabalho. Coordenação Nacional de DST e Aids, Brasília, Ministério da Saúde, 1997, p. 80. ilA imitação da cena da doação da vida, feita por Deus a Adão, em ij:cna.c|é afresco do teto da Capela Sistina, Vaticano, é realizada no anúncio, qije foca~ liza, em close-up, os perfis do destinador e do destinatário do dom da dxistên-; cia. Entretanto, ao colocar a camisinha, como concretude de objeto aoad0»; subverte-se a magnitude do enunciado e enunciação da cena do Génese. Ai/ figura de Adão, recontextualizada com outras e diferentes vulnerabilidade^ afasta-se do.momento.sublime da criação. Aprisionado a um tempo em ao desejo sexual, deve-se atrelar o dever .proteger-se contra a Aids, .o 'AM anúncio subverte o Adão.do Gênesej.isso porque o apresenta circunscrin limites dos embates cotidianos da contemporaneidade. Orientado então urgência de dever ser atento e de dever proteger-se no ato sexual, esse] contemporâneo define-se como um sujeito de corpo mais curvado. A£$irri;4 enunciação propaga a responsabilidade de. usar camisinha. A propósito, ò próprio catálogo que abriga o anúncio traz esta observação explicativa: "É como se Deus, em pessoa, estivesse dizendo que é preciso usar camisinha nas relações sexuais, terminando com a noção de pecado que ainda possa envol- ver o ato sexual, em si, e o uso do preservativo."16 Polémicas; e, dessa vez, com princípios religiosos da própria Igreja Católica, para ale'm da polémica entre o afresco e o anúncio. Importa enfatizar que aumenta o bivçcalismo do anúncio, com a intertextualidade que, estabelecida como mecanismo de cons- trução do sentido, constitui-se como meio de persuasão para vender, uma ideia e não um produto. :: Estilização A estilização, diferentemente da paródia, imita e capta enunciado e enunciação do discurso de base. Considerando a finalidade do discurso publi- citário, de fazero leitor crer, de maneira intensificada, na boa qualidade do objeto oferecido, deparamos com uma estilização a servi- ço da Hering, marca de rou- pas de malha para o dia-a-dia, tais como camisetas e outras •••^*&&ff KSSHÍ ! HàW l 'vestimentas básicas. Fonte: 23» Anuário do Clube de Criação de São Paulo. São Paulo. 1998. p. 260. M m W: fl 170:: A comunicação nos textos Lição 4 :: 171 Temos aí o exemplo de um anúncio publicitário feito à maneira de foto- grafias antigas. Como só podemos falar em estilo, se o entendermos como modo recorrente de fazer e de ser, cotejemos três fotos antigas com o anúncio. Nas fotos antigas está o estilo tomado como base pelo anúncio. 'Ç' \. Ill As fotos, imitadas e captadas pelo estUizador-anunciante, pertencem à década de 30 do século passado. O modo de presença dos açores, mais para a foto, do que na foco, reúne-se à estilização publicitária para que uma única totalidade seja dada como modo próprio de presença. Um único mundo é então representado e para isso são reunidos corpos que, de maneira similar, ocupam o espaço: pela escacicidade. No simulacro do esvaziamento de contradições humanas, que dariam movimento demais aos olhos, como diz Fernando Pessoa, firmam-se figuras dadas pelo enrijecimento da postura, que acompanha certo esvaziamento da própria identidade.l7 Por isso não surpreende a ausência, seja do arqueado de boca de um sorriso, seja do franzimento de senho num rictus de dor. É preciso parecer parado em pose especial para a foto, com olhar frontal ou semi-frontal para a câmera, a qual, também estática, não pode supor variações de tomadas, na definição/>/í>wg/<?, de cima para baixo, ou antiplongée, de baixo para cima. O efeito de sentido de estaticidade alia-se à representação verticalizada dos corpos, para atores que de- vem parecer fincados ao solo, no simulacro de pertencimento a um universo de valores, em que raízes de toda ordem são dadas euforicamente. Assim, quanto mais o ator do enunciado se consolida como ausente de soltura e de contradi- ções, mais o perfil do ator da enunciação é delineado com caráter altivo, corpo ereto e tom controlado de voz. Esse parecer do ser do sujeito, dado pelo modo recorrente de dizer, é o ethos do ator da enunciação. Esse é o estilo da totalidade fotografiasan^as, assim discursivizado como uma unidade desentido Na estilizacão de estilo, o estilizador-anunciante faz o anúncio à modtvdo outro, imitando e captando a cena narrada e a cena enunciativa das fotografias antigas. Para^ém disso, porém, desvela outra estilização, dessa vez dada corn o logotipo da Henng em relação com o.símbolo do cristianismo, a figura dos peixes entrecruzados, tal como é apresentada na, catacumbas romanas. E^sa aç^ conotativo ot^ o da,figura dos peíxes^figura que,poderia ser vista apenas como íc- presentação cruzada.de animais.vCrtebrados, aquáticos, que possuem os mem- bros transformados em nadadeiras e.respiracio branquial. Os outros sentidos açresantadosTiaestíli^^^^ de comprovar a excelência inquestionável do produto. Para que o leitor possa fazer a adição de tais sentidos novos, é mostrado o símbolo primitivo no recorte oval destacado sobre fundo branco, na primeira metade a esquerda do anúncio, que, não fechada pelas bordas geométricas dos retangulos dos outros segmentos, dá destaque ao enunciado e à enunciação imitados e captados pelo logotipo. Entre o símbolo desenhado sobre íedras e o logotipo da Hering, explicitado no rodapé do retângulo em letras brancas sóbrio preto, configura-se então uma imitação e captação desvelada pelo anún- cio. Tal recurso enfatiza a marca Hering em cena discursiva de antiguidade legitimadora. A simbologia do peixe, que remete a crenças orientais, em que ele é.tido ao.mesmo tempo como Salvador e instrumento da Revelação, é assimilada pelo cristianismo: "Se Cristo é frequentemente representado como um pescador, sendo os cristãos peixes, pois a água do batismo é seu elemento natural e o instrumento de sua regeneração, ele próprio [Cristo] é simbolizado pelo peixe. Acrescenta a mesma fonte bibliográfica, que ÍTJ^7fV°V7°S Índ°-eUr°Peus> ° Pei". «nblcma da água, é símbolo da fecund.dadeedasabedona. Escondido nas profundezas do ocenao.de é penetrado pela força sagrada do ab.smo. Dormindo nos lagos ou atravessando os rios, ele distribui a chuva, a urmdade, a inundação. Ele controla, assim, a fecundidade do mundo. Prossegue a mesma fonte consultada, demonstrando o peixe como "símbp- to do Deus do Milho entre os índios da América Central" ou "da sorte, np Uima . Entre outras variantes simbólicas do peixe em lendas e práticas rituaii, é descrito esse símbolo na astrologia, em que «a tradição representa o signb f t JL Y 'á:: A comunicação nos textos i: 173 [astrológico] com dois peixes sobrepostos em sentido inverso e ligados por uma espécie de cordão umbilical". Tomaremos como o outro imitado e capta- do na construção estilizada do logotipo, o símbolo do cristinianismo. „>• Visto que o peixe é também um alimento, e que o Cristo ressuscitado o comeu (Lucas, 24,42), ele se transforma no símbolo do alimento eucarístico e figura frequentemente ao lado do pão. O peixe inspirou uma rica iconografia entre os artistas cristãos: se ele carrega uma nau sobre o dorso, simboliza o Cristo e a sua Igreja; se carrega uma cesta de pão, ou se ele próprio se encontra sobre um prato, tle representa a Eucaristia; nas Catacumbas, ele é a imagem do Cristo. Voltemos à marca Hering. Ao logotipo na base do retângulo, segue o slogan "O básico do Brasil". O anúncio oferece dessa maneira a tentação da entrada para um mundo dado como ideal, associado não gratuitamente à marca osten- tada. Esse mundo ideal é construído também por meio de recursos da estilização do estilo das fotografias antigas, como foi visto. Examinemos, então, um pou- co mais, os mecanismos que contribuem para que o outro seja mostrado, por meio da estilização. Atentando para o retângulo de cor preta, lembramos que, enfeixados na cor branca sobre o fundo escuro, apresentam-se os segmentos verbais, na representa- ção de tudo o que reúne, nesse discurso, a máxima atração: a antiguidade avalizadora da inquestionável qualidade da marca Hering. Desde 1880. Aliás, o ponto final, após a explicitação do tempo de existência da marca, é para certificar o leitor de que não há como não escolher Hering. O leitor, assim manipulado, sente que não há como não querer a autoridade dada pela longa experiência. Tal ênfase dada, quer pelo recorte da fotografia, quer pela representação, no alto da metade esquerda do texto, do símbolo cristão dilatado, confirma-se, portanto, na integração sincrética do visual com o verbal. Falemos da foto incorporada pelo anúncio. Essa foto é não só a unidade que recupera a totalidade de fotos do mesmo estilo, remetendo ao modo de presença de fotografias antigas. Ela é também a representação do outro imitado e captado, para que o anúncio pudesse se cumprir argumentativamente. A pro- pósito, observemos como o anúncio se utiliza dela como estilo imitado e cap- tado, para constituir essa anterioridade legitimadora da marca. O espaço e os atores selecionados se juntam, na foto, com a duratividade temporal, para que esta seja dada como eufórica. Duratividade, aliás, já figurativizada na expressão verbal Desde 1880: Desde 1880, eles usam, nós usamos Hering. Essa é a mensagem induzida sincreticamente. Portanto, um l presente durativo enfatiza a continuidade temporal, enquanto corrob>ra â continuidade da própria marca. Assim, a marca Hering passaa pertencer i um acontecimento que dura bastante, até aqui, o presente momento. O discurso, por sua vez, particulariza e concretiza visualmente as ideias, por meio da f gura de atores que, radicados em determinado espaço na cena, do instam inço fotográfico, reforçam ainda mais a longaduração temporal, Desde 1880, c. não - o momento presente [até] hoje. :v O,discurso do.anúncio.ík;Heringx:oncentra..então a.figurativizaçáo:;jresse $ . longo, tempo,de;duração,#bandonando\esttate^ piei eneè-fl momento. Essedong<htempa-dc .duração;^^^ ., tãoeoctenso, é ,Ou:que;importt/.paraveojisdtuÍE o&.atores,/os liomemfotográíàb-^t doSj.que extrapolam o a£fuÍ£-o<agõra.da.:ccnzpublicitária. Ancoram-se os ata- : í rés .do anúncio, na Jongaoextensão: temporal e, não »na simultaneidade cc m<o ' f universo do consumo da cena publicitária. Por tais volteios, o anúncio se f rma • à moda das fotos antigas, consolidando uma anterioridade temporal apresenta- ; da como argumento de autoridade. j O espaço, não-urbano, com o rio e a mata entrevistos ao fundo, urie-se aos atores, para que se consolide a homogeneidade figurativa em que se apoia a anterioridade desejável. A propósito, é bom ressaltar as figuras rnasculinas adultas, em pose especial para a foto. As calças escuras,-de-pregas na cintura e tecido.risca.de giz,,as,camisetas brancas, o lenço que se solta da cinta, junijanv se à expressão facial circunspecta e aos corpos imóveis. Às calças, presas a suspensórios, acrescenta-se o chapéu-coco, usado pelo homem do seguindo plano, para que o conjunto da foto, revestido no original da cor amarelejada í das coisas velhas, possa acionar no leitor a crença num mundo sólido, porque antigo, e bom, porque sólido. Fazendo a intersecção desse tipo de muijido, com a marca Hering, o anúncio firma o acordo de confiança entre a Hering e o leitor; na intersecção, a metáfora. Por sua vez, para consolidar a excelência da marca, utiliza-sè, o anúncio, da interdependência entre o detalhe do logdtipo com as qualidades da roupa; na interdependência, a metonímia. Em amjbas, o sentido conotado, que viabiliza, nesse discurso, sensações agradáveii do tempo de antigamente. Tempo, espaço e atores do estilo imitado e captado são ainda reforçadcjs na materialidade do anúncio. A foto é apresentada com cortes assimétricos, que remetem a um amarfanhamento de algo guardado por muitos anos, pa|ra a confirmação sensorial do relevante valor. Tais cortes, portanto, que parecem danificar a foto, na verdade reforçam a nostalgia da estilização. Assim se ,, -m l41 íií UçâQ 4:: 17õ confirmam como desejáveis tão-somente tempo, espaço e atores da totalidade estilizada; desejáveis e também possivelmente recuperáveis. Por isso o leitor crê poder adentrar na cena estilizada. Se usar Hering, entretanto. Diante de tais considerações, vemos que a estilização se constituiu, no anún- cio, em meio para fazer o consumidor se decidir por determinada marca. Para isso o anúncio Hering fez convergirem as vozes do seu texto com a outra, das fotografias antigas. Não gratuitamente, o estilizador, que interessa como simu- lacro discursivo de um sujeito e não como fusão no mundo do anunciante Hering e da agência W/BRASIL, apaga o lugar da contemporaneidade ao seu ato de enunci- ar. Importa então o sujeito que, bipartido em enunciador e enunciatário, deixa- se definitivamente invadir pelo ethos do outro estilizado. A anterioridade, investida definitivamente com o estatuto de autoridade máxima, legitima a marca. Por isso temos um anúncio que, feito h maneira de tempos antigos, cede ao outro, imitado e captado, o próprio discurso. Misturam-se a tal ponto a vozdo anúncio e a do mundo discursivizado pelas fotos antigas, que fica a ilusão, para o leitor, de poder viver os idos anos: Desde J880. É interessante observar, por fim, como o discurso da propaganda se utiliza da intertextualidade. para, firmando um etkoslúâico, fazer o leitor crer, no sentido de fazer o leitor comprar: produtos e ideias. Essa ludicidade é dada pelo movi- mento de ir e vir que, na intertextualidade, viabiliza o centro discursivo pelo não- centro.Confirma-se o ethos lúdico, já que e acionado o prazer do reconhecimen- to do outro mostrado, o que recupera o inacabamento do mundo. :: Produção de texto :: Ensaio analítico I :; Jcvixal: ideologia e poliíbriia Considere o artigo jornalístico, publlcadonzFolhadeS.Paulo, caderno Brasil (15.07.2004, p. A7)> apresentado'em sincretismo com a fotografia que o encabeça. Artigo e fotografia recuperam um fato em pauta na mídia, a festa junina realizada em Brasília, com a encenação de um casamento caipira. Assim foi comemorado o aniversário de casamento do presidente Lula e Marisa Letícia. Diz a legenda da foto: O presidente Lula eaprimeira-dama, Marisa Letícia, vestidos de noivos caipiras, no arraial em comemoração das bodas de pérola. Para fazer o ensaio analítico, examine, no artigo: : a interpretação do feto feita pela colunista da Folha, Danuza Leão; . : a polémica instaurada entre vozes sociais; o privilégio dado a determinado ponto de vista; a legitimação de ideais comprometidos com determinados segmentos sociais; a pohfoma dada por um modo indireto de dizer, viabilizado por perguntas retóricas. A pergunta retórica ': --constitui um modo indireto de dizer;;por meio dela, pergunta-se, não pari /obter resposta; mas para:Conduzir,0teitora fazer determinadas asserções} -..contém em si, implicitamente, a resposta,- misturando vozes: a que pergunta e a que responde; • advém do narrador, que ó.quem f az-a-pergunta e quem manipula o narratário- leitor,, para determinada conclusão; • instituíam sujeito como presença mais próxima: em relação ao narratário- leitor e em relação ao próprio enunciado; • traz em si a voz respcndente, viabilizando nos textos: a heterogeneidade mostrada; o efeito de polifonia; • faz com que o narrador se aproxime do narratário, para que este $e veja obrigado a seguir a orientação dada; " • promove a incorporação do narratário e do/seu discurso, ao evitar uma afirmação direta; • simula a existência de um jogo de vozes, sendo compatível a determinadas cenas genéricas do jornal;19 • é algo desnecessário, do estrito ponto de vista informacional. Exemplos de perguntas retórica em jornais VARIEDADES SUA VIDA Inclui programação de cinema e TV MEDO DE GENTE Não gosta de falar em público? Tem vergonha de pedir informações? Não sabe paquerar?. Cuidado: você pode ter fobia social. Jornal da Tarde. 31.07.2004, p. 1. XEROS...OQUÊ? A xerostomia ó o fenómeno da boca seca e pode ser desencadeada pela ingestão de líquidos, o consumo excessivo de café e o hábito de fumar. m
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