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Morcegos gostam de pimentas

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74 • C I Ê N C I A H O J E • vo l . 3 2 • nº 18 9
PR IME IRA LINHA
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s morcegos parecem assustadores para muitas
pessoas. Por causa de seus hábitos noturnos,O
esses pequenos animais voadores raramente são
vistos de perto. A ignorância sobre eles, suas apari-
ções súbitas em noites escuras e o fato de que cer-
tas espécies alimentam-se de sangue geraram diver-
sos mitos – um deles é a lenda de que seriam mor-
tos-vivos sugadores de sangue (os vampiros). Ou-
tro mito é o de que seriam cegos. A maioria deles
enxerga bem, inclusive em cores. Além disso, qua-
se todos têm um ‘sexto sentido’, o sonar ou ecolo-
calização, que permite desviar de objetos durante
o vôo noturno. Alguns – os poucos que se alimen-
tam de sangue – têm ainda um ‘sétimo sentido’, a
percepção de fontes de calor próximas.
Os morcegos são mamíferos (como os humanos),
e os únicos, nesse grande grupo de animais, que de-
senvolveram a capacidade de vôo alado. En-
tre as 20 ordens de mamíferos hoje existen-
tes, a dos morcegos (Chiroptera) é a que apre-
senta a maior diversidade de hábitos ali-
mentares: tais animais podem consumir in-
setos, frutos, folhas, néctar, pólen, rãs, lagar-
tos, pequenos mamíferos e até peixes. Há
quase mil espécies de morcegos no mundo, e
a maioria alimenta-se de insetos. Apenas três
são hematófagas (bebem sangue), e por isso
são popularmente chamadas de ‘vampiros’.
Essa grande variedade de dietas faz com
que os morcegos interajam com várias espé-
cies, de plantas a vertebrados, incluindo ou-
tros mamíferos. Seja através da predação, do
ECOLOGIA Interações observadas em pesquisa podem indicar coevolução de animais e plantas
Morcegos gostam
de pimentas
A importância ecológica dos morcegos nas florestas tropicais, particularmente em função de suas interações
com algumas espécies vegetais, tem sido destacada em diversos estudos. Um caso especial é a relação
entre morcegos e pimenteiras. Os frutos dessas plantas são um alimento muito importante para certas
espécies de morcegos, que por sua vez dispersam suas sementes. A força dessa influência mútua sugere
tratar-se de um caso de coevolução. Por Marco Aurélio Ribeiro de Mello, do Programa de Pós-graduação
em Ecologia (Laboratório de Interações Vertebrados-Plantas), da Universidade Estadual de Campinas.
parasitismo (no caso dos hematófagos) ou do mutua-
lismo (cooperação), os morcegos acabam por in-
fluenciar a estrutura do ecossistema em que vivem.
Em uma floresta, por exemplo, eles podem levar es-
pécies de plantas para áreas onde elas não existiam.
Interações com plantas
Os morcegos frugívoros pertencem a duas famílias:
Pteropodidae, ou raposas-voadoras do Velho Mundo,
e Phyllostomidae, ou morcegos das frutas do Novo
Mundo. As interações entre morcegos e plantas po-
dem se dar por predação de sementes (quando o
embrião é morto), parasitismo (consumo de folhas)
ou mutualismo. No último caso, ambos os lados se
beneficiam: os morcegos obtêm alimento nas plan-
tas (frutos ou néctar) e estas, por sua vez, são polini-
zadas ou têm suas sementes dispersas.
A dispersão de sementes por morcegos costuma
ser muito eficiente, pois esses mamíferos geralmen-
te não danificam as sementes e até podem acelerar o
processo de germinação. Além disso, os morcegos
percorrem grandes distâncias em seus vôos notur-
nos, aumentando muito a chance de as sementes –
eliminadas quando defecam no ar – encontrarem
locais propícios ao seu estabelecimento.
As plantas que mantêm essas relações de mu-
tualismo exibem dois conjuntos de características,
chamados de ‘síndromes de interação’ com mor-
cegos: a quiropterofilia (relativa à polinização) e a
quiropterocoria (à dispersão). As plantas quirop-
terofílicas costumam ter flores de cores claras, odor
forte e não muito agradável para o homem, que só se
Figura 1.
Fêmea e filhote
recém-nascidos
da espécie
Carollia
perspicillata
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dezembro de 2002 • C I Ê N C I A H O J E • 75
abrem ao escurecer, duram em geral apenas uma
noite e têm modificações estruturais que facilitam
o transporte de pólen pelos visitantes. Já as plantas
quiropterocóricas têm frutos esverdeados, escuros
ou castanhos mesmo quando maduros, com odor for-
te, expostos nos ramos ou no próprio caule.
Que morcegos comem pimentas?
Dentro da família Phyllostomidae, há uma subfamí-
lia chamada Carolliinae, que costuma interagir com
pimenteiras em toda a sua área de distribuição, a re-
gião neotropical (a América Latina). Essa subfamília
compreende os gêneros Carollia e Rhinophylla.
No gênero Carollia, destaca-se a espécie C. pers-
picillata (figura 1), um morcego pequeno (cerca de
16 g) e basicamente frugívoro. Segundo vários estu-
dos publicados, esse morcego pode se alimentar dos
frutos ou infrutescências (frutos compostos) de pipe-
ráceas, solanáceas (maria-pretinha e outras), cecro-
piáceas (embaúba) e moráceas (figos silvestres) e plan-
tas de outras famílias, além de insetos e néctar.
Embora sua dieta seja bastante variada, C. pers-
picillata mostra forte preferência por plantas da fa-
mília Piperaceae, conhecidas pelos nomes populares
de pimenteiras, jaborandis e outros. Destaca-se nessa
família o gênero Piper (figura 2), composto de plan-
tas de porte arbustivo que, em sua maioria, crescem
em áreas abertas, como clareiras, bordas de mata e
capoeiras. Uma ilustre integrante desse gênero é a
pimenta-do-reino (P. nigrum), usada como condimen-
to em praticamente todo o mundo.
Substâncias obtidas de outras espécies desse
gênero são usadas como medicamentos e cosméti-
cos, naturais ou industrializados. Todas as espécies
de Piper apresentam infrutescências com formato
de espiga, como acontece com a pimenta-do-reino.
Vantagens para ambas as partes
Na mata atlântica, e também em outros biomas, pou-
cas espécies do gênero Piper frutificam na estação
seca (de maio a agosto). Nessa época, os morcegos C.
perspicillata têm que se alimentar de outros itens,
como frutos de outros vegetais, insetos ou néctar.
Assim que recomeça o principal período de fru-
tificação, os morcegos respondem a essa mudança
aumentando rapidamente o consumo de pimentas:
nessa época, elas costumam tornar-se o principal
item na dieta de C. perspicillata. Essa preferência
alimentar é observada em quase todos os locais onde
essa espécie de morcego ocorre.
As plantas do gênero Piper apresentam, com gran-
de freqüência, reprodução sem troca de material ge-
nético (assexuada), mas a reprodução sexuada tam-
bém é importante para a espécie. A forma sexuada
apresenta vantagens únicas, como, por exemplo, o
aumento da variabilidade genética, que favorece a
resistência a alterações ambien-
tais. A maior variação genética
pode ainda aumentar a chance do
surgimento de indivíduos resis-
tentes a parasitas (pragas), o que
torna toda a espécie menos vul-
nerável à extinção, como propos-
to pelo biólogo norte-americano
Leigh van Valen, da Universida-
de de Chicago.
É aí que os morcegos partici-
pam. Após consumirem os frutos,
eles defecam as sementes duran-
te o vôo, espalhando-as por uma
grande área. Também se deve con-
siderar a teoria, criada em 1970
pelo pesquisador norte-america-
no Daniel H. Janzen (hoje na Uni-
versidade da Pennsylvania), de que seria vantajoso
para os descendentes crescerem longe da planta-mãe.
Segundo ele, a proximidade com a planta-mãe faci-
lita a disseminação de parasitas e/ou patógenos e a
localização das novas plantas por predadores.
Somando-se a vantagem da reprodução sexuada
à da dispersão das sementes por uma vasta área, po-de-se considerar que os morcegos prestam um óti-
mo ‘serviço ecológico’ às plantas.
Os efeitos mútuos da interação
Constatadas as claras vantagens mútuas da interação
entre Carollia e Piper, torna-se interessante investi-
gar e quantificar como esses dois grupos (de morce-
gos e de plantas) influem uns sobre os outros. Esse foi
o principal objetivo dos estudos do Projeto Morcegos
& Plantas, desenvolvido na Reserva Biológica Poço
das Antas, no estado do Rio de Janeiro (figura 3) pelo
autor deste artigo (em pesquisa de mestrado), junto
com outros pesquisadores ( http://zap.to/morcegos ).
Uma evidência dessa forte interação é a sincronia
observada entre a reprodução dos morcegos e das
plantas. Dados obtidos na reserva, somados a infor-
mações presentes na literatura, mostram que a es-
pécie C. perspicillata tende a se reproduzir de modo
Figura 2.
Arbusto
de Piper
arboreum,
pimenteira
encontrada
na Reserva
Biológica
Poço
das Antas (RJ)
Figura 3.
Ilhas dos
Barbados,
área de estudo
do Projeto
Morcegos
& Plantas,
na Reserva
Biológica
Poço
das Antas (RJ)
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mais intenso quando aumenta a disponibilidade de
seu alimento preferido. A época que apresenta a
maior proporção de fêmeas em estágio final de gra-
videz coincide com o período de maior produção de
frutos de Piper e com a estação das chuvas (figura 4).
A constatação de que a frutificação de pimentei-
ras – em especial P. arboreum na área de estudo – é o
alimento preferido de C. perspicillata permite su-
por que esse item da dieta tenha melhor qualidade
nutricional, o que já foi sugerido em outros traba-
lhos. Considerando que a gravidez (em especial sua
fase final) e a lactação são períodos críticos para as
fêmeas, pode ser muito vantajosa essa maior abun-
dância desse alimento. Isso reduziria riscos como os
de mortalidade de embriões, de filhotes recém-nas-
cidos e também da própria mãe.
Do ponto de vista das pimenteiras, é vantajoso ter
suas sementes dispersas pelos morcegos. O fato de os
morcegos voarem sobre grandes áreas, somado ao es-
tímulo à germinação (quebra da latência) das semen-
tes proporcionado (segundo estudos já publicados)
por seu suco gástrico e aos nutrientes contidos nas
fezes (que podem auxiliar o estabelecimento de plân-
tulas), faz com que a distribuição espacial das pimen-
teiras seja fortemente influenciada pelo padrão de
movimento dos morcegos. Isso é facilmente confir-
mado na Reserva Biológica Poço das Antas, onde os
caminhos de vôo adotados pelos morcegos coincidem
com os locais de maior abundância de pimenteiras.
Quando as pimenteiras – graças à ajuda dos mor-
cegos – conseguem se estabelecer em uma nova área,
o número de indivíduos dessas plantas aumenta rapi-
damente. Em conseqüência, os morcegos passam a
visitar mais a nova ‘mancha’ de alimentos, trazendo
inclusive outras espécies de plantas. Com isso, o proces-
so de sucessão ecológica é iniciado, o que auxilia, por
exemplo, a regeneração de uma área desmatada.
Considerando que essa interação ocorre entre um
gênero de morcegos e outro de plantas, que influen-
ciam um ao outro de modo muito intenso, alguns
pesquisadores já sugeriram tratar-se de um caso de
coevolução. Nesse tipo de evolução conjugada, em
algum momento de sua história evolutiva um tá-
xon (espécie ou gênero) passou a exercer forte in-
fluência sobre outro, determinando quais das suas
características são mais vantajosas, ou seja, exercen-
do uma pressão seletiva. Essa pressão faz com que,
pela lei da seleção natural, os indivíduos que têm
essas características sejam favorecidos em sua capa-
cidade de deixar descendentes, o que aumenta a fre-
qüência das mesmas na espécie (ou gênero).
A permanência desse jogo de influências por mi-
lhares ou milhões de anos pode levar a novas linha-
gens evolutivas, em cada táxon, e talvez ao surgimen-
to de novos gêneros ou espécies. Esse fenômeno foi
proposto pelo biólogo norte-americano Paul R. Ehrlich,
da Universidade de Stanford, ao estudar a grande
especificidade das interações entre as plantas heli-
coniáceas e as borboletas que as polinizam. No caso
dos morcegos e das pimenteiras, essa hipótese ainda
precisa ser testada através de mais estudos.
Morcegos devem ser preservados
Pouco conhecidos fora do ambiente acadêmico e em
geral tidos como criaturas nocivas pela população,
os morcegos são na verdade espécies-chave nas flo-
restas tropicais. A extinção de espécies animais que
interagem com plantas (e também com outros gru-
pos), como os morcegos, pode alterar de forma impre-
visível os processos ecológicos, eventualmente cau-
sando profundo impacto em um sistema natural.
Um exemplo já estudado é o de algumas espécies
de cactos e agaves dos desertos do México. Essas plan-
tas dependem de morcegos que vivem na região para
sua polinização, mas estes foram quase dizimados
pela população humana que se instalou ali. Na au-
sência dos morcegos, a reprodução sexuada dos cac-
tos e agaves fica seriamente comprometida, o que
reduz a variabilidade genética e pode ser fatal para
tais plantas, em um prazo longo.
Situações como essa mostram a importância de
preservar animais como os morcegos. O maior co-
nhecimento sobre seu comportamento e suas inte-
rações com o ambiente pode até modificar as noções
erradas sobre esses mamíferos voadores. Um pa-
ciente e bem coordenado trabalho de divulgação
científica, que informe a população sobre os ‘servi-
ços ecológicos’ e econômicos prestados por mor-
cegos, pode transformar animais comuns, como os
morcegos do gênero Carollia (além de outras espé-
cies mais raras), em espécies carismáticas, capazes
de atrair atenção da mídia e gerar grandes esforços
de pesquisa e conservação. n
Figura 4.
Variações – na
área de estudo
– no volume
de chuvas,
na proporção
de fêmeas
adultas
grávidas
e lactantes de
C. perspicillata,
na proporção
de indivíduos
de P. arboreum
frutificando e
na proporção
de ocorrência
de sementes
de Piper nas
fezes de
C. perspicillata OBS
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Pimenteiras frutificando Consumo de pimentas

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