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Resenha: Guerra de palavras incompreendidas: a conquista da América, segundo Todorov. Referência Bibliográfica: TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro. Tradução: Beatriz Perrone Moisés. São Paulo, Martins Fontes, 1996, 263 p. Dados do autor da resenha: Sonielson Juvino Silva é Mestre em Gestão Empresarial, pela Faculdade Boa Viagem, Recife, Brasil; MBA Executivo em Negócios Financeiros, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil, e graduando em História pela Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, Brasil. Em seu livro “A Conquista da América: a questão do outro”, Todorov afirma, logo nas primeiras linhas, que pretendeu falar da descoberta que o “eu” faz do “outro”, mas, para isso, escolheu contar uma história. E essa história recaiu sobre o choque cultural que envolveu conquistadores e nativos da América, embate que, segundo o autor, veria perpetrar-se o maior genocídio da história da humanidade. Todorov dividiu o seu trabalho em quatro capítulos (Descobrir, Conquistar, Amar e Conhecer), todos com três subcapítulos, onde procura, por meio de diversas obras do século XVI, promover o diálogo entre os seus autores. Dessa forma, a leitura torna-se agradável, como uma espécie de narrativa literária, onde os cronistas antigos são as personagens, sem perder o rigor e a dimensão de um trabalho acadêmico. Um Epílogo finaliza a obra, momento em que Todorov deixa o lado titereiro, que colocou em movimento autores de ideias e de momentos distintos, e aparece como o teórico e filósofo que mergulha no passado para construir reflexões presentes. No primeiro capítulo, “Descobrir”, o autor defende que Colombo buscava no Novo Mundo menos o ouro do que uma expansão do Cristianismo, sentindo-se em uma espécie de Cruzada marítima. Não que a riqueza não fosse importante, até para motivar os patrocinadores de novas viagens e empreitadas. Porém, a sua visão de “conquista” estava muito associada ao conceito europeu da época: o aumento da influência e ocupação territorial, de maneira que a preferência dele acabaria recaindo sobre a “terra” e não sobre os “homens”. A própria conversão dos nativos não estava dissociada desse intento, pois, conforme registros do diário do navegador, seu propósito seria ‘converter à nossa fé uma multidão de povos, ganhando grandes territórios e riquezas’ (p. 43). Todorov chama a atenção para o fato de Colombo apresentar extremo interesse em nominar tudo o que encontrava (ilhas, montanhas, rios, etc.), como se fosse um inventário de posse e sem se importar em saber se aqueles lugares já possuíam algum nome. Os nativos, com suas línguas e culturas, só eram percebidos por meio do filtro da paisagem e, por conseguinte, de maneira ambígua: ora ingênuos, ora maliciosos; ora covardes, ora valentes. A dificuldade de entender o outro teria ampliado a visão egocêntrica dos navegadores, levando-os a enxergar os nativos apenas a partir dos seus próprios valores europeus. Por não perceber o outro, sustenta o autor, impõem a ele sua própria visão de mundo. A alteridade, enfim, teria se estabelecido a partir de uma posição de desigualdade hierarquizada, onde os europeus se colocaram sempre em um patamar de superioridade. Todorov afirma que, gradativamente, Colombo passará do assimilacionismo, que implica uma igualdade de princípio, à ideologia escravagista e, portanto, à afirmação da inferioridade dos índios (p. 44). Conclui, enfim, que o navegador genovês descobriu a América, mas não os americanos (p. 47). No segundo capítulo, “Conquistar”, Todorov trata da conquista propriamente dita, após a chegada de Cortez. Começa afirmando que o choque entre o Velho e o Novo Mundos constituiu uma guerra, devendo o termo “conquista” ser entendido nesse contexto, ou seja, como o resultado do conflito. Entretanto, o autor ressalva que a mais devastadora arma utilizada não foram os arcabuzes, os canhões ou os cavalos, mas o controle da “comunicação”. Conforme o autor, os dois lados possuíam diferentes formas de se comunicar. Enquanto os europeus viviam a efervescência teórica promovida pelo Renascimento, com o acúmulo de astúcias guerreiras adquiridas durante séculos de conflitos territoriais, internos ou nas Cruzadas, os nativos tinham presentes os signos, os presságios e as profecias como memória efetiva. O mundo destes era voltado para o passado, para as tradições, dentro de uma perspectiva de tempo cíclico: saber sobre o passado seria saber sobre o futuro, pois tudo se repetiria. Assim, os líderes, como Montezuma, não admitiam a existência de um acontecimento novo e menos ainda puderam entender que estavam em meio a uma guerra de “assimilação total”, levada a cabo pelos espanhóis. Ou seja, acreditavam que tudo acabaria em um acordo de paz, como sempre ocorrera. As batalhas em si apresentavam estratégias de comunicação radicalmente opostas: os gritos de guerra utilizados pelos índios, para assustar o inimigo, funcionavam, na verdade, para denunciar a presença deles. Já os espanhóis, por vezes usavam tiros de canhões apenas para assustar, o que garantia a vitória mesmo sem luta. A animosidade e a discórdia que os povos nutriam uns com outros, como os Astecas e os Maias, foram fartamente usadas pelos europeus. Estes enviavam mensagens contraditórias a uma ou outra nação, ora amistosas, ora agressivas, com o único objetivo de confundir a percepção dos oponentes. Também se mostravam fortes quando estavam fracos, o que evitava perdas importantes, e se faziam de fracos quando estavam fortes, para atrair o adversário para armadilhas. Como o autor assinala, “os índios não se dão conta de que as palavras podem ser uma arma tão perigosa quanto as flechas” (p. 87). A grande superioridade dos europeus, conclui, é a capacidade de comunicação inter-humana, ou, dito de outra forma, “os especialistas da comunicação humana levam a melhor” (p. 94). Entretanto, ressalva Todorov, tal conquista trouxe em si uma perda irreparável: a revelação de que o europeu, ao tentar impor ao Mundo a sua superioridade, destruía a sua própria capacidade de se integrar ao diferente. Século depois, conclui o autor, tentará reconstituir o “bom selvagem”, mas será em vão, pois este já estará assassinado ou assimilado. O terceiro capítulo, “Amar”, começa com uma questão inquietante: se os conquistadores tiveram uma compreensão superior da sociedade nativa, por que cuidaram em destruí-la? A resposta sugerida é a busca incessante pelas riquezas, como o ouro, tornando o índio mero instrumento de sua obtenção, o que causou, segundo o autor, a morte de tanta gente ao mesmo tempo, que não se pode comparar a nenhum dos grandes massacres do século XX. Entretanto, a retirada do nativo de suas lavouras, a destruição das plantações ou o confisco delas, a desestruturação das famílias, o trabalho forçado até o esgotamento e a morte, o suicídio como recurso para escapar do sofrimento, são pontos que ele coloca ao lado da teoria simplista da “guerra biológica”. Ou seja, os maus tratos e o descaso com o bem estar e a vida do outro (ação humana direta), constituiu fator extremamente importante no chamado “choque microbiano” (ação humana indireta). A religião também teria contribuído para a tragédia, ao sugerir que as doenças serviam para punir os descrentes e era uma prova de que Deus estava ao lado dos conquistadores. Todorov apresenta, ainda, uma distinção entre a sociedade dos sacrifícios e sociedade dos massacres. Enquanto a primeira executa o ritual em praça pública, evidenciando a força dos laços sociais e o seu predomínio sobre o ser individual, o massacre, ao contrário, revela a fragilidade desses laços sociais, sendo, de preferência, executado longe, o que teria sido o caso dos europeus no distante Novo Mundo. Todos esse eventos, prossegue o autor, não ocorreriam sem o estabelecimentoda igualdade como identidade, ou seja, da colocação do diferente como inferior, de ver o índio como algo entre o ser o humano e os animais. Para sustentar esse argumento, ele apresenta o documento chamado Requerimiento, de 1514, o qual, por baixo da suposta intenção de regulamentar o processo de colonização, determina a punição exemplar dos índios que se recusarem a tais regras. Em outras palavras, ou eles “se submetem de livre e espontânea vontade, ou serão submetidos à força, e escravizados” (p. 145). Estaria, assim, criado um dos primeiros estatutos do que posteriormente ficou conhecido por “guerras justas”. O autor se detém, então, em um debate de textos entre o erudito e filósofo Gines de Sepúlveda e o padre dominicano Bartolomé de Las Casas. Enquanto o primeiro defende a diferença, o preceito maniqueísta do bem contra o mal, para justificar a “guerra legítima”, o segundo invoca a semelhança natural de todos os homens, o fato de todos serem “filhos de Deus”, para condenar essa mesma guerra. Não demora para o religioso vislumbrar os índios como dóceis, obedientes e pacíficos, dotados, inclusive, de virtudes cristãs. Todorov nos leva a perceber que hoje sabemos mais dos nativos por meio das “acusações” de Sepúlveda do que pelas “defesas” empreendidas por Las Casas, ou seja, o preconceito da igualdade pode se revelar pior do que o da superioridade. Retomando o tema da Conquista para efeitos comparativos, o autor conclui que enquanto “Las Casas ama os índios, mas não os conhece; Cortez conhece-os, a seu modo, embora não sinta por eles nenhum ‘amor’ especial” (p. 173). No quarto e último capítulo, Todorov analisa em detalhes ainda dois outros cronistas do século XVI. O primeiro é o dominicano Diego Durán, que chegou ao México ainda criança e lá ficou por toda a vida. Assim, não apenas foi “formado” no Novo Mundo, como teve a oportunidade de aprender a língua dos nativos, incluindo símbolos culturais e religiosos. Durán defendeu o entendimento da cultura nativa como recurso imprescindível à conversão. Condenou o mero assimilacionismo por achar, não sem razão, que os índios poderiam “fingir” a conversão e eles, por desconhecimento, não perceber. Logo o religioso identifica fortes semelhanças entre os cultos nativos e cristãos, atribuindo a isso a algum peregrino que por ali tenha passado antes de Colombo, podendo ser até o andarilho São Tomé. O fato é que, ao se concentrar nas semelhanças e desconsiderar as diferenças, torna-se o chamado “mestiço cultural” que, por não compreender o seu lugar, termina por emitir opiniões ambíguas ou contraditórias, atribuindo muitas vezes pensamentos próprios às suas personagens. O sincretismo proposto por ele acaba tendo o cristianismo como ponto de partida. Ensina Todorov: “O domínio do saber leva a uma aproximação com o objeto observado; mas essa aproximação, justamente, bloqueia o processo do saber” (p. 214). O outro cronista discutido foi o franciscano Bernardino de Sahagún, que também chegou jovem ao Novo Mundo e aqui permaneceu o resto da existência. Por sua formação em gramática, a chamada “linguística”, buscou não apenas aprender a língua nativa, o “nahuatl”, mas também ensinar latim aos índios. Mesmo ironizado pelos conterrâneos ele não se intimidou e, em uma via de mão dupla, ensinou aos nativos os preceitos cristãos e aos europeus a cultura local. Do verbo passou à escrita. Coletou oralmente lendas e rituais e os converteu na língua “nahuatl”, preocupando-se em escrever uma versão em espanhol, onde expunha o seu ponto de vista. Enquanto outros buscam intervir nos textos narrados, buscando aproximá-los dos seus objetivos, Sahagún teria optado pela fidelidade intergral dentro do possível, ou seja, esforça-se por manter o material “original”, sem tentar adaptá-lo ou compará-lo às tradições europeias. A própria tradução que realiza constitui acréscimos ou esclarecimentos, mas jamais substituição; constitui escolhas, como a preferência pelo tema da crueldade e o silêncio sobre a questão da sexualidade, mas nunca a anulação do outro. Seus estudos o levam a concluir que não se pode derrubar os ídolos de um povo sem pôr abaixo toda uma sociedade. Sugere, daí, um “Estado Novo”, “mexicano”, com orientação cristã. Passa, então, a condenar a situação existente, ganhando rapidamente a antipatia dos seus, o que leva o rei espanhol Felipe II a cortar-lhe as ajudas financeiras e a proibir com rigor a circulação das suas obras (p. 235). Sahagún, ao contrário de Las Casas, não emprega uma visão idealizada dos índios: enxerga-os com qualidades e defeitos, mas ambos diferentes dos apresentados pelos espanhóis. Não alimenta ilusões, a exemplo de Durán, quanto a um sincretismo em termos consensuais. “Sua intenção é justapor as vozes em vez de fazer com que elas se interpenetrem” (p. 238). O autor apresenta-nos ainda um epílogo, o qual subtitula de “A profecia de Las Casas”. Diante dos crimes perpetrados pelos espanhóis no Novo Mundo, o religioso do século XVI teria profetizado um futuro sombrio para a Espanha. A longa duração de atos como a escravidão e o colonialismo primordial, sustenta Todorov, teria gerado sentimentos de vingança, ódio e outras reações, aproximando a situação atual à profecia citada, com uma única ressalva: a substituição da palavra “Espanha” por “Europa”, uma vez que várias nações logo seguiram os passos dos primeiros conquistadores. Para que tais injustiças e violências feitas ao “outro” não sejam esquecidas, justifica Todorov, é que o seu livro teria sido escrito. “O outro precisa ser descoberto”, diz, pois a estranheza do outro exterior acaba revelando um outro interior (p. 244). No momento em que a suposta superioridade cultural europeia parece fadada à superação definitiva, o autor espera que sobreviva entre os seus escombros uma igualdade que não leve à identidade e uma diferença que não implique em subordinação. Para escrever o livro, Todorov revela que escolheu a linha do “diálogo”, ou seja, buscou evitar a mera reprodução da voz das personagens, bem como o controle total delas. Diz ele: “Eu interpelo, transponho, interpreto esses textos; mas também deixo que falem (daí tantas citações) e se defendam” (p. 246). Dessa forma, o trabalho resultante extrapola o assunto de que trata, tornando-se também ótima referência como método de pesquisa histórica, notadamente aquelas relacionadas a temas como identidade, diferença e alteridade. Para além de Cortez, que teria dito que “a conquista do saber leva à conquista do poder”, Todorov advoga a conquista do saber “ainda que seja para resistir ao poder”, e conclui: “Reconhecer, aqui e ali, a superioridade dos conquistadores não significa fazer seu elogio; é necessário analisar as armas da conquista, se quisermos ter possibilidade de freá-la um dia. Pois as conquistas não pertencem só ao passado” (p. 250). Recife (PE), 21 de julho de 2014. Sonielson Juvino Silva CPF 250.872.824-15
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