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ANÁLISE DE CASOS CLÍNICOS AULA 4 Prof. Renato Staevie Baduy 2 CONVERSA INICIAL Em conteúdos anteriores, detivemo-nos exclusivamente aos textos de Freud, tomando como base trabalhos célebres de seus escritos sobre a técnica, para nos aproximarmos do fazer clínico do psicanalista. Os textos trabalhados – Sobre o início do tratamento (1913), Lembrar, repetir e perlaborar (1914) e Construções em análise (1937) são leituras fundamentais e indispensáveis aos que se pretendem psicanalistas. Dessa forma, o conteúdo abordado até aqui não se pretendeu esgotar as possíveis leituras desses textos, mas apresentá-los de forma simples, sucinta, direta e prática, partindo de um caso clínico. A partir desta etapa, mergulharemos em trabalhos mais contemporâneos, que lançam luz ao contexto cultural em que estamos inseridos, ou seja, ao laço social, na tentativa de pinçar, aí, casos clínicos que chegam aos consultórios cotidianamente que demandam leituras atuais para que nosso fazer esteja alinhado com este tempo. Dessa forma, faremos leituras de importantes psicanalistas brasileiros que, com muito rigor, não perdem de vista a psicanálise com sua história, mas não abrem mão de uma “brasilidade”, digamos assim. Nesta etapa, trabalharemos uma temática bastante atual, que tem se mostrado presente em diversos círculos psicanalíticos: o homem em análise. Para tanto, uma vinheta clínica será utilizada; nossa abordagem ao caso se pretende generalista, no sentido de abordar as questões do caso a partir de problemáticas do laço social, sem abrir mão da psicanálise. De antemão, é imprescindível dizer que esse tema se insere em um delicado campo de estudos sobre as masculinidades, por se demonstrar uma problemática interseccional, a qual não esgotaremos: atravessado por questões de gênero, raça, etárias e classe social e seus campos de estudos correlatos, como as teorias feministas, de negritude e branquitude e decoloniais etc. a que algumas psicanálises estão atentas. Logo, o caso clínico trabalhado nos coloca diante de escolhas e formas de abordar. Vejamos. TEMA 1 – VINHETA CLÍNICA O paciente chega ao consultório via plano de saúde. O primeiro contato para agendamento passa pelo sistema do próprio plano e a secretaria da clínica conveniada, o que traz específicas contribuições ao manejo da transferência e das contratações iniciais: diferente de quando o valor é compactuado entre 3 analista e analisante, e de quando o analisante vem por indicação (de quem? qual?). Em sua primeira sessão, o paciente vem e conta que é sua primeira experiência com profissional psi – com psicólogo(a) ou psicanalista –, mas conta que sentia que estava precisando, mesmo sem saber muito o porquê. Questionado sobre o que o traz até ali, ele relata rapidamente uma crise de meia idade. O paciente estava prestes a completar 50 anos, então, o analista pergunta: Como é chegar aos 50? O que significa crise de meia idade? Nesse momento, o paciente relata conflitos em relação ao trabalho: sentia medo de ser mandado embora, porque a empresa em que trabalha estava passando por uma reestruturação devido a novas demandas sociais em sua área. Esse medo, segundo o paciente, diz respeito a diferentes questões: desde sua capacidade profissional, dada sua idade, e a juventude que vem se inserindo no mercado, até ao manejo econômico de sua família: como manter a qualidade de vida dos filhos e esposa? Sua família é composta de uma filha de seu primeiro casamento, já na casa dos vinte e poucos anos, com relativa independência; um enteado, filho de sua atual esposa, com 18 anos; um filho, com a atual esposa, de 8 anos; e, finalmente, sua esposa. Ele relata que seu trabalho é a única fonte de renda do momento, a não ser por sua filha mais velha, que já trabalha, mas que o paciente ainda a auxilia. Seus conflitos, nesta sessão, são relativos a como garantir aos filhos um ensino de qualidade, uma vida confortável, estando próximo dos 50 anos, com um medo de demissão. O paciente, nesse instante, faz contas e pensa que vai precisar de mais uns 15 anos bem inserido no mercado de trabalho, tendo em vista o tempo que o filho mais novo tem para se formar e começar a trabalhar, demonstrando assim, certa angústia diante dessa posição de pai provedor e mantenedor do estilo de vida da família. Ainda na primeira sessão, quando questionado sobre o motivo de sua vinda, o paciente, por fim, inclui um momento de sua história, já há alguns anos, o qual, diante desse medo da demissão, tem ressurgido em suas lembranças. Ele havia ficado seis meses desempregado logo após o nascimento de seu filho mais novo e, mesmo com um dinheiro reservado para atravessar esse momento, se viu muito angustiado, sem forças para sair de casa, ir se exercitar na academia do prédio, ou, até mesmo, ir à piscina do condomínio. Ele conta que 4 mandava currículo diariamente e que não se permitia fazer outra coisa por que, em sua cabeça, era inconcebível sem estar empregado. Nesse período, ele relembra, havia lido uma conversa de WhatsApp de sua esposa com outro homem, um antigo colega de faculdade. Narra que isso o fez se sentir traído, mas, muito mais que isso, o entristeceu e mexeu muito com sua autoestima. Consequentemente, o casamento atravessa um momento de tensão. Dessa forma, diante do desemprego, somado a essa conversa, o paciente faz um quadro deprimido e constrói um cenário de impossibilidades: a que ele se deve? Na segunda sessão, o paciente chega e conta de outra situação que tem vivenciado. Relata que está apaixonado por outra mulher, uma colega de empresa que mora em outra cidade, onde os encontros acontecem em suas viagens a trabalho e diz que vem mantendo um relacionamento com ela há meses. Diz que sua esposa descobriu há algum tempo e que ele prometeu não ficar mais com a colega, mas que mantém a relação mesmo assim. Narra que isso trouxe uma grande crise em seu casamento, quase resultando em divórcio, mas que conseguiram suportar. O paciente conta ainda que, por sua esposa ser bissexual, tem plena crença de que eles poderiam formar um trisal e expandir a família. O que, nesse momento, ganha intensidade na conversa entre ele e sua esposa, mostrando-se como uma possibilidade real, já que ela tem se aberto a isso, topando um encontro para conhecer a mulher. Assim, seguem as sessões: o paciente vai narrando os últimos acontecimentos dessa relação a três: os desafios, os namoros, a relação a distância, a separação da nova mulher com seu marido, a inclusão dos filhos nesse cenário, os medos, enfim. Sobretudo, um medo específico o atormenta: e se, um dia, a esposa descobrir que ele nunca deixou de se encontrar com a nova companheira? Será que ele conta ou não? Como será? Essas perguntas o inquietam bastante, ora o impedindo de desfrutar os encontros, ora sendo uma pequena “pulga atrás da orelha” e, ora não se fazendo presente. Diversas sessões se passam, até a descoberta da esposa de que o caso dos dois nunca havia sido interrompido, causando o rompimento do trisal e trazendo um severo conflito ao casamento. Desse modo, as sessões que se seguem trazem grandes inquietações, aumentando o nível da angústia e causando muita confusão ao paciente: será que o casamento vai acabar? Será que eu sou culpado? Será que me separo para continuar com o romance? Será 5 que o romance também acabou? Muitas cenas transcorrem, a outra mulher retorna ao seu casamento, e a relação do paciente com sua esposa se encaminha para a separação. Mesmo com as sessões tendo como conteúdo esse amontoado de questões, demandando um trabalho de organização ao analista e analisando, de suporte à angústia, o percurso analítico continuava sendo trilhado. Em certa sessão, o analista questiona o paciente: por que você ficou e continuou ficandocom a fulana? Ele conta que, na época, sua esposa havia engordado consideravelmente e que vinha de um momento mais deprimido e, assim, não o procurava sexualmente, por se sentir feia e gorda. Isso impactava, ele diz, em sua autoestima, não se sentindo desejado. Foi quando, em uma viagem a trabalho, uma mulher muito atraente do trabalho demonstrou interesse por ele, sendo difícil para ele resistir. Relata ainda que, desde o início, assim que a conheceu, pensou que sua esposa gostaria dela também, que isso poderia trazer ânimo a ela, tirando-a do estado deprimido, podendo formar um trisal. Justifica, assim, que sua intenção sempre foi a de ampliar a família. É importante dizer que isto já havia acontecido anteriormente, o casal, há alguns anos, havia se interessado por outra mulher, na tentativa de formar um trisal. A moça em questão, após alguns encontros e viagens conjuntas, declinou da ideia. Desde então, paciente e esposa não haviam encontrado mais ninguém de mútuo interesse para ocupar esse lugar (Qual?). Na sequência, ainda nessas sessões de elaboração e construção da separação, o paciente fica muito angustiado quando começa a pensar em contar para os filhos sobre o término do casamento: principalmente, ao filho mais novo. Então, ele tem uma lembrança, relacionando essa angústia, a quando o pai morreu, ainda em sua infância; por ser o filho mais velho, assumiu um papel de cuidado da casa e dos irmãos junto à mãe. Dessa forma, relaciona essa lembrança à sensação de culpa e falha ao pensar em contar aos filhos. Algumas poucas sessões depois o paciente conta ao seu filho mais novo, que fica bastante triste e choroso por alguns dias. Então, entra em cena toda sua preocupação de com quem passará o Natal e Ano Novo, após 15 anos em família. Até que, antes mesmo nas festas chegarem, o tratamento é interrompido: o paciente é desligado da empresa e, consequentemente, perde seu plano de saúde, optando por esperar ter um plano novamente para retomar a análise. 6 TEMA 2 – MASCULINIDADES O debate sobre masculinidades tem ganhado cada vez mais espaço nas pautas envolvendo questões de gênero. Credor de uma herança epistemológica dos discursos feministas, que localizam problemas vinculados aos comportamentos e à lógica de poder e opressão masculinas, as discussões se fazem presentes nos mais diversos contextos: filmes, livros, eventos, produção cultural, teórica, ativista etc. Contudo, quando se indica um debate sobre masculinidades, afinal de contas, de que se trata? Seguimos com esta fala de Tulio Custódio em texto escrito para o livro Cartografias da masculinidade, organizado por Pedro Ambra (2021, p. 106): Tenho insistido no uso do termo Homem com H maiúsculo para denotar, de modo explícito, que estamos falando de uma categoria que marca, como ideia, uma existência. Não de “humanidade” (como insistiram em usar muitos autores num passado não tão remoto), mas de gênero: o Homem como uma forma de existência que marcaria, idealmente, tudo o que se atribui a esse gênero. A partir desse Homem, e da lógica de padrão que informa a construção de imagens no contexto de uma sociedade patriarcal capitalista dependente da superioridade racial branca como a nossa, podemos enxergar a possibilidade e a potencialidade de um debate sobre masculinidades. Dessa forma, o debate sobre masculinidades está fixado sobre duas premissas: que os homens revejam seus comportamentos e, também, que outras masculinidades sejam construídas (Custódio, 2021). Quanto ao campo da psicanálise, as questões de gênero têm uma presença significativa na base de sua construção teórica, mesmo que de maneira velada. Não nos interessa, nesse momento, o resgate de como as questões de gênero estão no centro da construção teórico-clínica da psicanálise, mas resta nos lembrarmos de que a psicanálise é forjada diante dos sintomas femininos da época freudiana: por que será? O que os sintomas de uma época dizem de seu contexto sócio-histórico? Na esteira deste questionamento dos sintomas de uma época, também podemos localizar porque agora, mais de cem anos depois da questão freudiana – o que querem as mulheres? –, pudemos forjar a seguinte pergunta: o que querem os homens?1 1 Quanto a essa questão, remetemos ao recém lançado livro de Vinicius Lima: Homens em análise: travessias da virilidade (2024). 7 TEMA 3 – MASCULINIDADES E PSICANÁLISE: O OPERADOR LÓGICO A partir do Seminário XX: mais, ainda (1972-1973), Lacan faz um esforço para despersonificar as identidades de gênero, localizando-as como permeadas por lógicas distintas em relação ao falo. Dessa forma, ele passa a situar duas modalidades de gozo em relação à lógica fálica: gozo fálico e gozo Outro. O primeiro estaria localizado ao lado homem da tábua da sexuação, e funcionaria como um operador lógico, no qual todo homem está inscrito na função fálica. Porém, esse operador, para funcionar, comportaria em si uma contradição fundamental: algum homem não está inscrito na função fálica (Ambra, 2015). É nesse momento que Lacan retornará, em seu trabalho de condensar em fórmulas seu ensino, o texto freudiano Totem e Tabu, pois nele já haveria uma formalização do tipo de exterioridade que o pai da horda primitiva representa a todos os homens: teria havido um homem que possuiu em usufruto todas as mulheres, sendo a exceção à regra. Pedro Ambra (2015) retoma esse trabalho lacaniano e inclui algo valioso para se pensar a masculinidade em nossa época. Ele faz um recurso à História, especificamente ao surgimento e desenrolar da ideia de virilidade e sua associação com o que se compreende por homem no Ocidente. Pensando as fórmulas da sexuação, a precisa inclusão de Ambra é de como uma virilidade ideal, que comporta diversas nuances ao decorrer da História, obviamente e, de partida, perdida, serviria para pensar logicamente como operadora da masculinidade. Leia-se: Parece-nos que a História pode fornecer um modelo cuja formalização seria ainda mais próxima daquela necessária às fórmulas. Em vista do apresentado, é defensável que o quantificador existencial máximo, ∃x.¬ x, refere-se mais precisamente não ao pai da horda primeva, mas a uma virilidade ideal, localizada no passado e perdida. É, de fato, possível encontrar em diferentes momentos da história da masculinidade no Ocidente, muitos elementos relativos a fantasias de criação da civilização, de uma virilidade localizada alhures ou em uma era onde o refreamento sexual não operava. No entanto, foi só a partir de uma construção gradual, iniciada no século XVI com a nostalgia do ideal de cavalaria e que atingiu seu ápice no início do século XX, que todos esses elementos concentraram-se em algo que pode ser denominado como mito viril. (Ambra, 2015, p. 137) É necessário, então, fazer uma distinção e, ao mesmo tempo, traçar o entrecruzamento, da forma como Ambra (2015) trabalha seu texto, entre a virilidade e a masculinidade. Para o autor, a virilidade é sinônimo das representações de um suposto passado sem leis, quando um homem todo- 8 poderoso teria existido. O mito viril corresponderia, desse modo, nas fórmulas da sexuação, ao algum homem que não estaria submetido às leis que produzem o homem masculino (∃x.¬Φx). Por sua vez, a construção da masculinidade seria uma resposta à virilidade perdida (∀x.Φx), que, sobre si, faria função de suporte ao masculino. Isto é: a masculinidade se referirá, daqui em diante, ao conjunto de representações, vivências e discursos que o todo homem ocidental teria no que diz respeito ao seu sexo, o que é indissociável do ideal de civilização no qual ele se encontra. A masculinidade, ∀x.Φx, será assim tanto baseada quanto assombrada pela virilidade, ∃x.¬Φx, que a sustenta, ao mesmo tempo em que, ao se afirmar como função operante para o conjunto homem, fundará esse mesmo mito viril. (Ambra, 2015, p. 138)É posto, então, um operador lógico para aqueles que se identificam e se constituem subjetivamente como homens, compondo o conjunto Homem no laço social, em resposta a uma lógica operada em relação ao falo: uma virilidade perdida alhures. Contudo, poderíamos indagar: essa lógica operaria da mesma forma levando em consideração marcadores de raça, classe, etários e capacitistas? TEMA 4 – MASCULINIDADES E PATERNIDADES: NOMEAR-SE PAI NO LAÇO SOCIAL O que está em jogo no ato de adoção2 de uma criança? Mais especificamente, o que está em jogo no ato de se nomear pai de alguém? Ainda: Qual a relação da entrada da posição parental paterna e seu correlato lógico, mas não tão óbvio – a masculinidade? Thais Garrafa (2020), em seu artigo “Os primeiros tempos da parentalidade”, demonstra como se nomear pai e mãe é exigente, do ponto de vista de um trabalho psíquico que implica assumir uma posição na família e diante do filho, por óbvio. Mas também na sociedade, na cultura e na história, em uma relação complexa de como a sociedade e a cultura compreendem estes termos (pai e mãe) e, ao mesmo tempo, como a história de cada um narra tais papéis. Cabe ainda, situar certo conflito posto, diante da realidade social brasileira, que as paternidades não coincidem logicamente, nem garantem, 2 Em psicanálise, toda criança precisa ser adotada, mesmo nos casos de consanguinidade; este é o paradigma psicanalítico para se pensar o laço parental. 9 como se supõe por certo argumento biologicista, com os genitores (tampouco as maternidades). Especificamente à paternidade, é possível pinçar o discurso sobre as masculinidades, como resposta ao ideal viril, operando, neste trabalho árduo de tomar para si o significante “pai”. É claro que o resultado desse trabalho – o que o sujeito vai manejar para inventar aí a sua paternidade –, é de absoluta singularidade, apesar de elementos próprios ao laço social da época. O momento de se reconhecer ou ser reconhecido como homem, nos primórdios, desde que se espera um bebê, até os atravessamentos que a criança identificada como menino vai encontrando nos marcadores de gênero, compõe traços fundamentais na constituição subjetiva: e esse sujeito estará submetido a ideais e imperativos sobre o que é ser homem e como performar a sua masculinidade. Um correlato a esse processo constitutivo de ser nomeado como homem no laço social também se dá em relação à paternidade: e este pai também terá de se haver com o que a época exige e idealiza em relação à paternidade. Dessa forma, o nomear-se pai também diz respeito a um delicado processo de constituição subjetiva. Parece, assim, ser possível explorar certo mal-estar na paternidade, expresso e representado em diversos discursos que se recolhe em nossa cultura – como o pai provedor, o pai autoritário, o pai ausente, o pai que ajuda, o pai rede de apoio, o bom pai que é quase uma mãe etc. –, à luz desta chave de leitura: a masculinidade amparada pelo mito/ideal viril e seu ponto de encontro com a ideologia maternalista3. Como os pais estão sustentando e construindo a relação com seus filhos a partir dos modelos, das expectativas e exigências de nossa época em relação à paternidade? Como pensar o fenômeno brasileiro no qual quase 6%4 das crianças recém-nascidas são registradas sem o nome do pai, associando-o à ideologia maternalista e à padronização das masculinidades? 3 Conforme Vera Iaconelli (2023). 4 Dados da Arpen (Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais) no período de cinco anos, entre 2016 e 2021. 10 TEMA 5 – RETORNANDO À VINHETA Antes de tudo, é preciso dizer que o caso apresentado demonstra um sujeito que está às voltas em como responder às demandas e expectativas sociais do que é ser homem e ser pai. Mesmo que não nomeando a problemática de forma específica, ou sem buscar a travessia das problemáticas de gênero ali colocadas de forma crítica, ele se apega aos parâmetros que guiam a masculinidade padrão: recobrir as fissuras do ideal viril. E isso o leva a um contínuo desmoronamento. Ainda que seja impossível reduzir o sofrimento do paciente a essas questões, sua angústia aponta para um padecer em relação a como se constituiu como sujeito a partir dos traços de masculinidade. Há aqui um primeiro marcador importante, que o localiza frente à fantasia familiar, quando relata ter assumido a responsabilidade pelos irmãos junto à mãe, após a morte do pai. Tal acontecimento se mostra paradigmático para pensar como o paciente se posiciona diante da demanda do Outro. Sua chegada para a análise sinaliza certa crise nessa posição subjetiva: o que será de mim e, consequentemente, da minha família, se eu perder o emprego e deixar de ser o provedor? Como se a maneira adequada de se fazer pai e marido correspondessem, unicamente, segundo os ideais de pai/homem que garante o sustento da casa pelo esforço do seu emprego. Claro, seu sofrimento é muito justo, apontando para uma certa falha do funcionamento sintomático. Sobretudo, e nos interessa para pensar os homens em análise, o caso evidencia como esse claudicar do sintoma está situado também em relação ao declínio do ideal viril: o sintoma se mostra falho quando o ideal de virilidade esmorece. A queda do ideal viril também está posta quando o paciente relata que sua autoestima ficou prejudicada por não ser procurado sexualmente pela esposa. Como se a falta de desejo sexual da esposa fosse em relação a ele, como se ela não o desejasse e, no limite, isso o fizesse menos homem. Há uma máxima que circula socialmente como dito popular de que o homem precisa de sexo. Talvez possamos hipotetizar que, diante da falta de desejo sexual das mulheres pelos homens, algo das masculinidades heterossexuais se fragilize. Especialmente neste ponto, mas não exclusivamente, chama a atenção a resposta diante dessa fragilidade: uma procura para recobrir a queda, retomar o 11 ideal viril. Para tanto, o paciente lança uma demanda ao campo do Outro: me deseje. Neste caso, ele encontra uma nova mulher, que diz ser muito bonita e que isso lhe faz muito bem, hipotetizando, inclusive, que também faria bem à esposa e ao casamento: o que dá notícias dos traços narcísicos de onipotência e onipresença. É intrigante notar como as tentativas de recobrir as faltas estruturais do ser falante, utilizando-se da lógica fálica, tocam no impossível de maneira quase insuportável. É neste sentido que podemos pensar em desmoronamento. Diante da travessia de questões postas a sua masculinidade, pela via do sexual, do casamento e da paternidade, a forma de lidar com o que fragiliza se dá pela repetição e põe em risco seus laços sociais: desembocando, ao menos até agora, no fim do casamento e da relação amorosa. Em relação à paternidade e à função do paciente na dinâmica familiar, a construção familiar atual revela as constituintes vivências edípicas. Algo da posição que ele encontrou em sua família de origem se repete no laço familiar atual. Fica também evidente como as referências de masculinidade, paternidade e o papel do homem na família, marcam e fazem uma função de aderência, dando consistência ao imaginário, causando quase uma impossibilidade de pensar outras modalidades de ocupação destes papéis: Se não for pai provedor, o que resta? O momento da análise em que o paciente estava elaborando como contar ao filho mais novo sobre a separação e como a conversa se desenrolou, mostrou-se especialmente doloroso, trazendo claras sensações de culpa e de falha em manter o ideal de família. Nessas sessões, foi possível ao paciente se lembrar e falar da morte do pai e como encontrou um jeito de lidar e construir um lugar junto à dinâmica familiar a partir de então. Isso é atualizado e reaparece agora, no momento de sua separação, por meio de fragmentos edípicos, do declínio doideal viril e, sobretudo, como um luto a ser trabalhado. NA PRÁTICA Embora o cunho do conteúdo já se demonstre extremamente prático, o conteúdo traz significativas diferenças em comparação aos conteúdos anteriores. Se anteriormente nos detivemos exclusivamente sobre os textos freudianos e ao campo psicanalítico, agora expandimos nossas leituras. 12 Esta etapa, então, especialmente quanto à análise do caso, ganha um cunho, por vezes, mais teórico do que clínico. Em comparação com as etapas anteriores, o manejo clínico e a direção do tratamento foram negligenciados em detrimento da problemática das masculinidades que o caso traz. Muitas vezes, a discussão apresentada no último tópico, no qual retornamos à vinheta, a análise ganha um caráter bastante teórico e hipotético, não tendo o contorno da própria fala do paciente, ou seja, alguns pontos do debate são elucubrações teóricas sobre as quais o caso nos faz pensar e não foram elaboradas em análise pela fala do paciente. Isso poderia nos levar a pensar em uma psicanálise selvagem, se tais conjecturas fossem comunicadas ao paciente como construção do analista, o que não foi o caso. De qualquer forma, essa advertência é de extrema importância para o nosso fazer clínico: quando, diante de um novo paciente, nada sabemos. É a partir desta constatação, de que um analista nada sabe sobre o paciente, que uma psicanálise pode ser (re)construída na radicalidade do um-a-um. Somente assim, a escuta pode captar o que há de mais singular no discurso do analisante. Assim sendo, há uma diferença abissal entre a escuta de sujeitos em análise e a escrita de casos clínicos: a primeira, o método da psicanálise e, a segunda, uma das formas de investigação e transmissão da psicanálise, traçada por meio da experiência de tratamento. Como escreve Dunker (2017, p. 7): A psicanálise é uma experiência que se transmite por muitos meios. Ela passa do analista ao analisante em sua longa jornada pelo divã. Ela se reconstrói a cada vez, por meio da escuta em supervisão clínica. Ela envolve um domínio peculiar, a um tempo prático e conceitual, do que os outros psicanalistas contam e escreveram sobre sua experiência. Se Freud definia a psicanálise como um método de tratamento (Behandlungsmethode), um método de investigação (Forschung), além de uma nova disciplina científica (neue wissenschaftliche Disziplin), no quadro dessa tripla partição, o caso clínico ocupa um lugar privilegiado, pois ele envolve e unifica estas três qualificações. Um caso clínico emerge de uma experiência de singular tratamento, ele constitui uma versão particular do método de investigação e pode aspirar, finalmente, a exprimir achados e evidências de uma linguagem universal, por meio de narrativas, conceitos ou matemas. Quando escutamos analisantes, não os colocamos na condição de um caso, no sentido de uma categoria, de procedência diagnóstica, que seria o gênero no qual aquele que ali se apresenta cai como uma espécie. Há sujeitos em análise, não há casos em análise. Essa tripartição nos ajuda a compreender como o campo da psicanálise se define e se constitui. Neste estudo, precisaremos nos localizar no intuito de manter o mais radical da ética da psicanálise. 13 FINALIZANDO A escolha sobre a temática, os homens em análise hoje, é contundente em nossa formação: cada vez mais as demandas decorrentes de certa “crise da masculinidade” chegam aos nossos consultórios. Dessa forma, para que o psicanalista esteja à altura de seu tempo, como nos interpela Lacan, a exclusividade ao campo psicanalítico se demonstra frágil para nossa formação. O psicanalista não se restringe ao campo psicanalítico, ele está situado em um contexto sócio-histórico-político. Assim, é preciso expandi-lo, dialogar com outras produções: das artes, da filosofia, da política, da sociologia, antropologia, da economia etc. Nesta etapa, pinçamos uma problemática localizada nos debates de gênero, parentalidade e conjugalidade. Nota-se, então, clara mudança na forma de construção do texto. Se, nas discussões de caso de conteúdos anteriores, a abordagem se fazia exclusivamente ao campo psicanalítico, aqui, o caso foi analisado de forma a circunscrevê-lo também ao contexto social de nossa época. 14 REFERÊNCIAS AMBRA, P. O que é um homem?: psicanálise e história da masculinidade no ocidente. 2. ed. São Paulo: Zagodoni, 2021. CUSTÓDIO, T. Padrão, padrão, padrão. In: AMBRA, P. Cartografias da masculinidade. São Paulo: Cult Editora, 2021. DUNKER, C. A construção de casos clínicos em psicanálise: método clínico e formalização discursiva. São Paulo: Annablume, 2017. IACONELI, V. Manifesto antimaternalista: psicanálise e políticas da reprodução. Rio de Janeiro: Zahar, 2023. GARRAFA, T. Os primeiros tempos da parentalidade. In: IACONELLI, V. Parentalidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. LACAN, J. (1972-1973) O seminário: Livro XX – Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. LIMA, V. Homens em análise: travessias da virilidade. São Paulo: Blucher, 2024.