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1 UNISINOS – EAD DIREITO COMERCIAL II AUTOR: LEANDRO DE MELLO SCHMITT1 AULA: ORIGEM E TEORIA GERAL DOS TÍTULOS DE CRÉDITO 1. Breve histórico sobre os títulos de crédito O primeiro título de crédito que se tem notícia é a letra de câmbio, ou littera cambii do direito italiano. Alguém emite uma ordem a outrem para que pague ao beneficiário (tomador) determinada quantia. Exemplificando: eu sou credor de José no montante de R$ 1.000,00, porém, ao mesmo tempo, sou devedor de Pedro igualmente neste valor. Posso emitir uma letra de câmbio em favor de Pedro indicando José como sacado. Se José aceitar a letra passa ele a ser o principal devedor da quantia expressa na cártula. A letra de câmbio surgiu na Itália, havendo um exemplar de 1330, em Florença, no condão de que mercadores italianos pudessem fazer negócios nas feiras (ou mercados) localizadas nas importantes cidades onde havia um intenso tráfico comercial em face da utilização de rotas marítimas, sem a necessidade de transportar metal-moeda por grandes distâncias (de suas sedes até os locais de realização das feiras), o que poderia representar grandes riscos. Assim, um determinado banqueiro situado em uma cidade-estado italiana, um centro comercial da época, recebia em depósito determinada quantia em metal de um certo comerciante e emitia, na sequência, dois documentos: a cautio, ou comprovante de depósito, e a littera cambii, ou seja, uma carta na qual o banqueiro emitia uma ordem a seu correspondente em outra cidade para que pagasse ao depositante o equivalente depositado, ou ainda, à pessoa por este indicada (normalmente credor do depositante). Também poderia ocorrer do depositante, com a carta (littera cambii) em mãos, fazer a entrega desta pessoalmente a um credor seu que, por sua vez, apresentava-a ao banqueiro ou correspondente deste para receber o valor nela indicado. A importância de tal documento foi notória e logo a letra de câmbio passou a ser largamente utilizada face à maior facilidade na circulação do crédito, sendo este, até hoje, o propósito maior dos títulos de crédito: promover a circulação da riqueza. 1 Advogado. Especialista em Direito Civil. Mestre em Direito. Professor na Unisinos e Ajuris. Membro do Comitê Jurídico da ACI. 2 Logo, a partir da littera cambii, o comerciante que se deslocava para celebrar negócios nos mercados distantes de sua sede, não precisava mais transportar metal- moeda em comitivas por estradas tortuosas e com ladrões sempre de tocaia, bastando levar consigo um pedaço de papel assinado por um banqueiro no qual ficasse registrado o valor titularizado pelo comerciante em face do referido banqueiro, e que, o mais notável, poderia ainda ser transferido em favor de terceiro pelo credor indicado. Shakespeare em seu magistral The Merchant of Venice (“O Mercador de Veneza”) mostra a história na qual o bon vivant Bassânio vai buscar crédito junto ao judeu Shylock, porém, ficando o crédito condicionado a uma garantia cambial (aval) a ser prestada pelo mercador Antônio, amigo de Bassânio e, respectivamente, inimigo de Shylock. É na Veneza e Florença do Século XIV, inclusive, que o instituto do aval passa a existir como garantia prestada por terceiro, ou seja, que não o próprio devedor, de pagamento nos títulos de crédito. Passados séculos desde sua criação, nem mesmo a virtualização dos títulos de crédito fizeram este instituto perder sua importância. Pelo contrário: continuam eles a desempenhar seu papel fundamental na documentação e circulação do crédito. 2. Noção de Título de Crédito O título de crédito pode ser definido em seu sentido amplo e restrito. Em sentido amplo título de crédito é todo e qualquer documento que represente um direito de crédito de uma pessoa (credor) em face de outra (devedor). Já em sentido restrito temos os documentos que a ordem jurídica considera títulos cambiários (ex.: letra de câmbio, cheque, duplicata, nota promissória, etc.). É no seu sentido restrito que nos interessa o estudo dos títulos de crédito. 2.1. Conceito Em definição clássica título de crédito “é o documento necessário para o exercício do direito, literal e autônomo, nele mencionado” (VIVANTE, Cesare. Trattato di diritto commerciale. 3. ed. Milão, v. 3, n. 953, p. 154-155). Whitaker define título de crédito como sendo o documento formal capaz de realizar imediatamente o valor nele contido e necessário ao exercício do seu direito literal e autônomo. Ulhoa Coelho vai afirmar que título de crédito é um documento que se reporta a um fato (relação de crédito). É ele prova de que determinada pessoa é credora de outra e é definido pela lei processual (CPC, art. 585, I) como título executivo 3 extrajudicial, portanto, documento dotado de executividade quando então poderá o credor promover a execução judicial do seu direito contra o devedor2. 2.2. Características O título de crédito tem natureza comercial, é documento formal, considerado um bem móvel que deve ser apresentado (cartularidade) para o exercício do direito de crédito nele representado. 3. Princípios do Direito Cambiário Os títulos de crédito possuem, dentro da doutrina comercial, princípios que lhe são próprios, considerados até mesmo atributos que os diferenciam de outros documentos. Passamos a análise de cada um deles. 3.1 Literalidade Pelo princípio da literalidade tem-se que o direito expresso no título encontra como limite o valor, a data para a sua exigibilidade (salvo se for à vista), bem como contra quem o direito poderá ser exercido, exatamente e na medida do que está referido ao próprio título, nada a mais, nada a menos. É este princípio decorrente do rigor formal da disciplina dos títulos de crédito, rigor este necessário para promover um ambiente de certeza e segurança jurídica, mormente se considerarmos que a característica maior dos títulos de crédito é a circulação do crédito. Messineo refere que “o direito decorrente do título é literal no sentido de que, quanto ao conteúdo, à extensão e às modalidades desse direito, é decisivo exclusivamente o teor do título” (Apud Ulhoa Coelho, ob. cit., p. 398). Se eu vendi determinada mercadoria pelo preço de R$ 1.000,00, tendo concedido um prazo de 30 dias para o comprador me pagar este valor, não poderei exigir tal crédito em valor maior, nem antes da data avençada para o pagamento. Assim como, de outro lado, não terá o devedor o direito de me pagar menos que a quantia expressa no título e, se atrasar o pagamento para além dos 30 dias, incorrerá nos encargos da mora. Ou seja: eu tenho um crédito na exata medida do que consta na cártula, isto de um lado, e, de outro, o devedor tem uma obrigação também na exata medida do que fora lançado ao título por ele aceito. Via de regra, o princípio da literalidade não comporta exceções. Não obstante, encontramos na legislação cambial duas exceções: a) o sacado que tiver dado o aceite na letra de câmbio e, antes de devolvê-la, o sacado tiver cancelado o aceite (através de documento extracambiário), o cancelamento não surtirá efeitos perante os posteriores possuidores da letra que tomaram conhecimento do aceite, muito embora não 2 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. V. 1. São Paulo : Saraiva, 15. ed., 2011, pp. 394-395. 4 conheçam que este tenha sido cancelado; b) na duplicata, se o sacado retiver o título com a concordância da instituição financeira cobradora e der ciência ao apresentante sobre a retenção, o documento de ciência substituirá a duplicata. Ainda naduplicata, a lei reconhece o aceite tácito (ou seja, não lançado por escrito no título), dotando assim a duplicata de executividade (ver art. 8º, da Lei nº 5.474/68 – Lei das Duplicatas). Fora tais hipóteses excepcionais, o credor do título de crédito somente poderá exercer os direitos na exata medida do que ficar expresso na cártula. 3.2. Incorporação Não há direito sem a existência do título, isto por que o título incorpora o direito nele mencionado. Para nós, a incorporação não consiste em um princípio autônomo, pois que a sua definição coincide com a do princípio da cartularidade, adiante examinado. 3.3. Cartularidade Em Vivante está a ideia de que o título de crédito é o documento necessário para o exercício do direito literal e autônomo nele mencionado. Assim, o credor somente poderá exercer os direitos mencionados na cártula se e desde que esteja na posse da mesma. Há uma presunção de que aquele que detém o título seja o seu credor, salvo hipóteses como o desapossamento violento ou procedido com má-fé. Nem mesmo uma cópia autenticada de um título de crédito possibilita o exercício de seus direitos: é necessária a apresentação do original. A exceção ao princípio da cartularidade se dá em relação à duplicata. Nem sempre o vendedor extrai a duplicata, ou mesmo que extraída, pode eventualmente não ter sido ela restituída pelo devedor, ao que, mesmo assim e observados certos requisitos, autorizará o credor exigir o seu crédito. Atualmente, também tem sido abrandado este princípio em face das chamadas “duplicatas virtuais”. Trata-se de instrumento largamente utilizado nos presentes dias quando o credor encaminha a cobrança via instituição financeira. Não há saque da duplicata, mas tão somente da guia de compensação bancária ou boleto de cobrança. Em razão da velocidade das relações comerciais, há que se reconhecer a executividade de tais instrumentos e claro, lembrando que mesmo não havendo o saque da duplicata, a cobrança somente será possível se efetivamente esta tiver como causa uma compra e venda mercantil ou uma efetiva prestação de serviços. Ainda em razão da cartularidade o credor apenas poderá exigir judicialmente seu crédito, através de ação executiva, caso aparelhe a execução com o original do título. Poderia, no entanto, juntar aos autos cópia autenticada do título e, para maior segurança, requerer que o juiz autorize a entrega do original ao escrivão, mediante certidão nos autos. 5 3.4 Autonomia As obrigações contempladas no título de crédito são autônomas umas em relação às outras. Significa que se o título for colocado em circulação não poderá o devedor opor ao possuidor de boa fé as exceções pessoais que eventualmente poderia suscitar em relação ao credor originário. É, segundo a doutrina, um dos mais importantes princípios do título de crédito, surgido no Século XIX, quando então o título de crédito passa de simples documento de prova de uma dada relação jurídica creditória e passa a ser concebido como um documento constitutivo de direito novo, autônomo, originário e inteiramente desvinculado da relação causal3. Se alguém subscreve um título de crédito, na verdade está prometendo, ainda que abstratamente, a pagar à pessoa indeterminada a quantia expressa na cártula, num dado momento ou mesmo à vista. Para garantir a plena circulação do crédito mencionado no título, não seria lógico, nem mesmo razoável que, tendo este circulado e estando nas mãos de terceiro que o recebeu de boa-fé, agora, ser este último surpreendido por declaração em sentido contrário, qual seja, de que os devedores anteriores não mais pretendem pagar o valor indicado no documento. A doutrina costuma ensinar que o princípio da autonomia das obrigações cambiais se subdivide em dois outros princípios, sendo eles o da abstração e o da inoponibilidade das exceções pessoais aos terceiros de boa-fé. Vejamos estes dois a seguir. 3.4.1. Abstração O título de crédito, uma vez entrando em circulação, acaba por se desvincular do negócio jurídico que lhe deu causa. Temos que lembrar que a abstração apenas se opera se o título circular. Entre emitente e tomador originário não há este fenômeno. Portanto, apenas quando o título é transferido – endossado – a terceiro de boa-fé e assim desde para outro terceiro, é que podemos dizer que o título passa a existir independentemente da validade ou não da relação jurídica que lhe deu causa. E a consequência disto é a impossibilidade do devedor opor a terceiros de boa-fé aspectos da relação jurídica causal. Daí a surgir um outro subprincípio que, por razões meramente didáticas, prefere a doutrina tratar em separado. Estamos a referir sobre o subprincípio da inoponibilidade da exceção pessoal ao terceiro de boa fé. 3.4.2 Inoponibilidade da exceção pessoal ao terceiro de boa fé 3 ROSA Jr., Luiz Emygdio F. da. Títulos de Crédito. Rio de Janeiro : Renovar, 6. ed., 2009, p. 67. 6 Este subprincípio pretende proteger o crédito antes mesmo da própria pessoa do terceiro adquirente do título. Quanto maior a proteção que o sistema confere ao terceiro de boa fé maior a probabilidade do crédito circular através do documento de título de crédito, pois maior será a segurança que este conferirá àquele que confia que tal documento representa um crédito passível de realização. Não fosse assim os títulos de crédito jamais seriam um instrumento a gozar de algum prestígio ou mesmo credibilidade, salvo, é claro, a fim de documentar a relação entre os seus participantes originários. Sendo assim, tendo o título circulado, não poderá o executado, em Embargos à Execução, alegar contra o terceiro possuidor de boa fé que o título de crédito não é válido por que existe alguma questão que lhe serviria de defesa em face do credor originário (endossante). Este princípio está previsto no art. 17 da Lei Uniforme de Genebra. Claro que se houver prova de que o terceiro conhecia o fato oponível ao credor anterior, obviamente que tal servirá para caracterizar a sua má-fé e fazer cair por terra o princípio da inoponibilidade. Fran Martins afirma que “por esta regra, consagrada no artigo 17 da Lei Uniforme, o obrigado em uma letra não pode recusar o pagamento ao portador alegando suas relações pessoais com o sacador ou outros obrigados anteriores do título”4. Agora, evidentemente que este princípio não é absoluto. Haverá algumas exceções que sempre serão oponíveis, mesmo que contra o terceiro de boa fé. Dizem elas respeito à forma do título. Se houver vício de forma (a falta de um requisito que a lei reputa essencial, por exemplo), o obrigado poderá recusar o cumprimento da obrigação constante à cártula, isto por faltar à mesma o rigor cambiário. Apenas devemos esclarecer que esta exceção não se trata de uma exceção pessoal, ou seja, baseada nas relações pessoais entre o devedor e o credor, mas sim cambial, pois exige o rigor cambial que o terceiro ao adquirir o título de crédito certifique-se, antes disso, que o documento contém todos os requisitos formais que a lei considera essenciais, visto que, à falta de um deles, fará com que o documento não mais valha como título de crédito. Poderá servir como prova de uma relação de crédito, apto a aparelhar uma ação monitória, por exemplo, porém jamais uma ação cambial (executiva). 4 MARTINS, Fran. Títulos de Crédito. Letra de Câmbio e Nota Promissória. Rio de Janeiro : Forense, v. 1., 5. ed., 1995, pp. 17-18.
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