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1 Capítulo 5 - Vias Descendentes e Reflexos Motores O corpo afeta o mundo Augusto Valadão Junqueira Introdução Quando estudamos a neurologia básica, precisamos ter em mente exatamente do que estamos falando. Poderá ser, de uma forma geral, sobre movimento, sobre sensibilidade ou sobre associação. Neste capítulo trataremos de um tema ligado ao movimento. As vias descendentes podem estar relacionadas também com modulação sensorial ou motricidade visceral, mas as que estudaremos aqui estão ligadas exclusivamente ao controle do movimento somático (musculatura estriada esquelética), tanto a parte voluntária quanto a parte automática reflexa. "Descendentes" porque obviamente se originam em estruturas superiores do sistema nervoso central, seguindo um trajeto descendente. Há basicamente duas divisões: o sistema lateral (ou via descendente lateral), que terminará nos neurônios laterais do corno anterior da medula, e o sistema medial (ou via descendente medial), que irá até os motoneurônios mediais. O primeiro compreende o trato córtico-espinhal lateral e o rubro- espinhal, enquanto o segundo inclui os tratos córtico-espinhal anterior, retículo- espinhal, vestíbulo-espinhal e tecto-espinhal (ou teto-espinhal). Veremos cada um em mais detalhes. As vias córtico-espinhais Como o próprio nome diz, são vias que se originam no córtex cerebral e vão até a medula espinhal. Por isso vias córtico-espinhais. Quando é dito que elas se originam no córtex, você precisa entender o que isso significa: os corpos destes neurônios estão na substância cinzenta do córtex cerebral. Todo o resto dessas vias (desde a sua saída do córtex cerebral até a medula) será representado pelas fibras que são os axônios desses neurônios. Como vimos, no SNC o agrupamento de fibras é chamado de trato, fascículo ou lemnisco. No caso das vias descendentes teremos tratos. Daí trato córtico-espinhal. Os corpos desses neurônios estão localizados em uma região bem definida do cérebro, conhecida como córtex motor primário (ou M1). Existe um sulco que corta a região superficial central do cérebro de um lado a outro, Capítulo 5 – Vias Descendentes e Reflexos Motores 2 formando uma "metade anterior" e uma "metade posterior". Esse sulco se chama sulco central. A área imediatamente anterior a esse sulco é o giro pré- central, por estar antes do sulco central. É no giro pré-central que se encontram os neurônios que darão origem ao trato córtico-espinhal. O trato córtico-espinhal sai do córtex cerebral integrando a coroa radiada, passa entre os núcleos da base como parte da cápsula interna e ao chegar no tronco encefálico passa a ser um agrupamento de fibras mais bem definido. Você não precisa saber detalhes sobre essas estruturas, mas saiba pelo menos o que elas são: a coroa radiada é o maior conjunto de fibras (isto é, substância branca) que sai do córtex cerebral, passando a se chamar cápsula interna ao passar por entre os núcleos da base, que são agrupamentos de corpos de neurônios em meio à substância branca do encéfalo. Ao chegar na metade inferior do bulbo, onde há uma estrutura bilateral conhecida como pirâmide, grande parte (cerca de 80%) das fibras do trato córtico-espinhal se cruza, atravessando a decussação das pirâmides para ir ao lado oposto antes de continuar a descer. Decussar é o mesmo que cruzar; decussação das pirâmides é a região do bulbo onde há o cruzamento dessas fibras, assim chamado por ficar entre as pirâmides de cada lado. As fibras que se cruzam vão descer pelo funículo lateral (lembra-se dos funículos da medula?) do lado oposto, constituindo o trato córtico-espinhal lateral, enquanto a pequena parte que não se cruza continua pelo funículo anterior do mesmo lado, formando o trato córtico-espinhal anterior. Por isso o trato córtico-espinhal lateral é também chamado de piramidal cruzado, enquanto o anterior é o piramidal direto. Mas muito cuidado nessa hora: logo antes de terminar seu trajeto na medula, o trato córtico-espinhal anterior também se cruza, atravessando o plano mediano pela comissura branca para inervar um motoneurônio medular do lado oposto ao que teve origem. Tem-se assim a seguinte situação: como ambos os tratos córtico-espinhais acabam por ser cruzados, o córtex de um hemisfério cerebral comanda os neurônios motores do lado oposto da medula e, por conseguinte, a musculatura do lado oposto do corpo. Nunca mais se esqueça disso. Via descendente lateral Vimos que a origem dos dois tratos córtico-espinhais (lateral e anterior) é a mesma, mas seu destino é fundamentalmente diferente. O trato córtico- espinhal lateral (TCEL) terminará no núcleo lateral do corno anterior da medula, ou seja, os neurônios responsáveis pela inervação da musculatura apendicular. O trato córtico-espinhal anterior (TCEA), por sua vez, terminará no núcleo medial deste mesmo corno e portanto será visto na próxima seção. Capítulo 5 – Vias Descendentes e Reflexos Motores 3 Além do TCEL, o trato rubro-espinhal termina também no núcleo lateral de motoneurônios. Tem esse nome pois é um feixe de fibras que se origina no núcleo rubro, um agrupamento de corpos neuronais do mesencéfalo. Lembre-se que o mesencéfalo é o componente superior das três divisões do tronco encefálico. As fibras do trato rubro-espinhal são cruzadas (diz-se contralaterais ou heterolaterais), da mesma forma que as do TCEL. Elas atravessam o plano mediano no tegmento mesencefálico (uma região do mesencéfalo), logo na altura de sua origem, descendo a medula pelo funículo lateral juntamente com o TCEL. Por tudo isso o trato córtico-espinhal lateral e o rubro-espinhal são chamados em conjunto de via descendente lateral. Enquanto o TCEL se liga a todos os neurônios do grupo lateral do corno anterior da medula, o trato rubro-espinhal liga-se apenas a alguns deles. Como já foi estudado, a parte mais medial desses neurônios controla a musculatura proximal dos membros, enquanto a parte mais lateral é responsável pela musculatura distal (incluindo mãos, dedos...). Há uma discordância entre os autores sobre quais neurônios exatamente são inervados pelo trato rubro- espinhal: alguns consideram que sejam os neurônios mais mediais (Machado, 2006), enquanto outros defendem que sejam na verdade os neurônios mais laterais (Haines, 2006). O mais importante é saber que a função do trato rubro- espinhal no ser humano é pequena, servindo apenas como um suporte ao TCEL. Em caso de lesão do trato rubro-espinhal (o que é raro acontecer isoladamente na prática) haveria uma certa perda de força nos membros do lado afetado, mas os movimentos finos seriam mantidos intactos pela ação do TCEL. Isso pode se manifestar, por exemplo, por tremores vistos principalmente mediante esforço físico do membro afetado. Já uma lesão do trato córtico- espinhal lateral (e quando falamos isso entenda bem que pode significar tanto uma lesão no córtex motor, onde estão os corpos neuronais, quanto uma lesão nas fibras que deles se originam, em qualquer parte de seu longo trajeto – da mesma forma que no exemplo anterior a lesão poderia se dar tanto no núcleo rubro quanto nas fibras que dele partem para formar o trato rubro-espinhal), dada a maior importância funcional deste feixe, acarreta em uma perda completa das funções motoras complexas dos membros. Essa é uma função exclusiva do TCEL, não podendo ser compensada pela ação de outra via. Via descendente medial É uma via cujos tratos terminarão na porção medial do corno anterior da medula, inervando os motoneurônios responsáveis pela musculatura axial(do "tronco"). O primeiro componente da via descendente medial já foi visto: o trato córtico-espinhal anterior. Ele é responsável pela movimentação voluntária Capítulo 5 – Vias Descendentes e Reflexos Motores 4 (guarde isso: praticamente tudo que tem origem no córtex cerebral será o componente voluntário de alguma coisa) da musculatura axial do corpo. Vimos também que ele desce a medula pelo funículo anterior — o mesmo acontecerá com todos os tratos da via descendente medial, com a diferença que nem todos são cruzados. Veremos cada um. O trato retículo-espinhal tem esse nome por se originar na formação reticular. A formação reticular é uma extensa e complexa estrutura do tronco encefálico com diversas funções, ocupando cada uma de suas três divisões. As porções ligadas à movimentação somática pertencem à formação reticular pontina e bulbar (isto é, a formação reticular presente na ponte e no bulbo). É ipsilateral (o mesmo que homolateral, o que quer dizer que não se cruza, terminando do mesmo lado do corpo em que se origina). Está também ligada aos movimentos axiais voluntários, além de ser o elemento-chave em alguns movimentos estereotipados (como o ato de caminhar) e em ajustes posturais antecipatórios, necessários para que o corpo entre em uma posição estável e firme antes que possamos exercer os movimentos finos que a via descendente lateral irá realizar (como firmar o braço antes de começar a escrever, ou o goleiro que flexiona as pernas antes de saltar). O trato vestíbulo-espinhal se origina nos núcleos vestibulares, um conjunto de quatro núcleos (lateral, medial, superior e inferior, formando uma espécie de cruz) de cada lado no tronco encefálico, responsáveis por manter o equilíbrio da cabeça em relação ao corpo. Os núcleos de origem do trato vestíbulo-espinhal são o núcleo vestibular lateral (que é ipsilateral, responsável pelos ajustes posturais do corpo) e o núcleo vestibular medial (bilateral – ou seja, é tanto cruzado quanto direto –, responsável pelos ajustes posturais da cabeça). Embora com duas origens diferentes, o trato vestíbulo-espinhal é visto como uma coisa só, cuja função é manter o equilíbrio e a postura básica de forma automática, sem precisar ser voluntária. Mais sobre o sistema vestibular será visto no estudo dos nervos cranianos e do cerebelo. O trato tecto-espinhal, por fim, tem esse nome por se originar no colículo superior, uma estrutura do tecto (ou teto) do mesencéfalo. O colículo superior, como veremos mais adiante neste período, é uma região que abriga uma variedade de núcleos ligados à regulação da visão e aos movimentos oculares. O trato tecto-espinhal, assim, coordena a orientação sensório-motora da cabeça e, se preciso, do corpo. Isso significa que ele age acertando o corpo, de forma involuntária, de acordo com o que vemos. Se de repente vemos um objeto sendo jogado em nossa direção, por exemplo, reflexamente mudamos a postura de nosso corpo para uma posição defensiva, fechando os olhos e podendo até erguer o braço para posicionar a mão à frente do rosto. Este trato é contralateral, cruzando-se na mesma região que se cruza o trato rubro- espinhal (no tegmento do mesencéfalo). Capítulo 5 – Vias Descendentes e Reflexos Motores 5 Visão geral Vimos que as vias descendentes são compostas por vários tratos. É importante ter uma visão geral do que significa tudo isso, pois é comum que haja uma confusão quando falamos dos "neurônios" de cada via. Lembre-se que um neurônio motor é unipolar, e por isso terá destacadamente um corpo e um longo axônio. Cada trato é um conjunto de fibras nervosas, isto é, axônios. Esses axônios precisam ter se originado em algum lugar; logo, cada trato tem uma origem, um lugar onde estão os corpos dos neurônios que projetam essas fibras descendentes que formarão cada trato. O trato córtico-espinhal tem sua origem no giro pré-central do córtex cerebral, a área motora primária. Lá, então, estão seus corpos neuronais (o soma dos neurônios que originam suas fibras). Suas fibras (tanto as da divisão lateral quanto da divisão anterior – uma separação que passa a existir a partir da decussação das pirâmides, no bulbo) descem até a medula espinhal, o que certamente é um longo trajeto. Em qualquer lugar desse trajeto elas podem ser lesadas, gerando a síndrome do primeiro neurônio motor, que será vista abaixo. Mas nem todos os corpos dos neurônios da via descendente estão no córtex. Existem quatro outros pontos de origem, todos eles no tronco encefálico: o núcleo rubro (no mesencéfalo, de onde sai o trato rubro-espinhal), o colículo superior (também no mesencéfalo, de onde parte o trato tecto- espinhal), a formação reticular (na ponte e no bulbo, de onde sai o trato retículo-espinhal), e os núcleos vestibulares (na transição ponto-bulbar do IV ventrículo, que será estudado mais adiante, de onde parte o trato vestíbulo- espinhal). O trato córtico-espinhal lateral e o trato rubro-espinhal percorrem a medula pelo funículo lateral. Todos os outros (córtico-espinhal anterior, retículo-espinhal, vestíbulo-espinhal e tecto-espinhal) percorrem o funículo anterior. Os feixes que se originam do mesencéfalo para cima (córtico-espinhal lateral e anterior, rubro-espinhal e tecto-espinhal) são contralaterais (cruzados), sendo que o córtico-espinhal lateral se cruza no bulbo e o anterior na comissura branca da medula, enquanto os outros dois o fazem no próprio mesencéfalo, onde se originam. O restante dos tratos é ipsilateral (direto). Guarde bem essas informações, pois serão fundamentais no entendimento dos casos clínicos de lesões medulares. Síndromes dos neurônios motores Para entender isso, precisamos ter bem sedimentados os conhecimentos do capítulo anterior e do que já foi visto neste. Entenda que existem dois Capítulo 5 – Vias Descendentes e Reflexos Motores 6 neurônios motores diferentes na via córtico-espino-muscular: aquele que se encontra na área motora do córtex cerebral, chamado de primeiro neurônio motor, e aquele cujo corpo fica no corno anterior da medula, conhecido como segundo neurônio motor ou simplesmente motoneurônio. O primeiro permanece no SNC em todo seu trajeto, formando o trato córtico-espinhal. O segundo tem seu corpo no SNC (na medula), mas seu prolongamento logo parte em direção horizontal para formar o SNP. Este é um bom raciocínio para entender a posição de cada um: o primeiro neurônio motor é vertical, indo do córtex até a medula; o segundo neurônio motor é horizontal, indo da medula até os músculos do corpo (estriados esqueléticos, no caso). Formam, assim, uma espécie de L. A síndrome do primeiro neurônio motor ou síndrome do neurônio motor superior, portanto, acontece quando se lesa o neurônio motor cortical que estudamos neste capítulo. Pode ocorrer por um acidente vascular encefálico (AVE) que afete seu corpo no córtex ou o começo de seu prolongamento no encéfalo, ou ainda por um acidente da coluna, que o afete já na altura da medula. A ação do trato córtico-espinhal anterior é a mesma da formação reticular, como vimos, e por ela pode ser compensada em caso de lesão. Quando falamos em síndrome do primeiro neurônio, assim, nos referimos ou a uma lesão em sua origem no encéfalo ou a uma lesão no funículo lateral da medula, por onde passa o trato córtico-espinhal lateral. Os sintomas clássicos desta síndrome são: paresia (perda de força; em casos extremos que se perca toda a via tem-se uma plegia, que é a perda total da movimentação), hipertonia e hiperreflexia. Os dois últimos sintomas são fáceis de entender se soubermos o seguinte:a acetilcolina, neurotransmissor usado na placa motora (ou junção neuromuscular; é o ponto de ligação entre as fibras do SNP e um músculo), é produzida no próprio motoneurônio, e continuará sendo produzida mesmo com a lesão do primeiro neurônio motor. Sem a orientação devida de seu "superior", entretanto, o motoneurônio fica "perdido" e começa a liberar a acetilcolina na placa motora de forma constante, deixando o músculo permanentemente contraído (hipertonia) e altamente sensível a qualquer estímulo que venha de outros segmentos medulares (hiperreflexia), porque é como se estivesse o tempo todo "pré-ativado". Um sinal característico desta síndrome é o sinal de Babinski, um achado clínico que consiste na flexão dorsal reflexa do hálux quando a planta do pé é estimulada. O normal é que o hálux se dobre para baixo quando a pele da região plantar é tocada. Durante a síndrome do primeiro neurônio, portanto, este reflexo tem manifestação "invertida". Os sintomas da síndrome do primeiro neurônio estarão presentes na mesma metade do corpo ou na metade oposta ao lado da lesão, dependendo da altura em que ela ocorreu. Como o trato córtico-espinhal se cruza na decussação das pirâmides, lesões acima do bulbo terão sintomatologia Capítulo 5 – Vias Descendentes e Reflexos Motores 7 contralateral (porque o trato ainda não tinha se cruzado onde foi lesado), enquanto lesões abaixo dele serão expressas de forma ipsilateral. A síndrome do segundo neurônio motor ou síndrome do neurônio motor inferior ou ainda síndrome do motoneurônio é a lesão do neurônio que se encontra no corno anterior da medula, seja em seu corpo na medula ou em qualquer parte do trajeto do nervo que forma antes de chegar no músculo que inerva. Será sempre homolateral, já que não há cruzamento nenhum dos neurônios do corno anterior da medula – cada um sai pela raiz ventral de seu lado para integrar um nervo espinhal e ir até seu músculo. O quadro clínico desta síndrome difere da anterior por diversos aspectos. Primeiro, o trato córtico-espinhal inerva toda a medula, então sua lesão irá afetar todo o corpo abaixo do ponto da lesão (as estruturas superiores à lesão não são afetadas, já que sua inervação não é comprometida). Já o motoneurônio, mais humilde, inerva apenas um miótomo, que caracteriza-se por ser um grupo muscular, um único músculo ou apenas uma parte específica de um músculo. A síndrome do segundo neurônio motor, portanto, afetará apenas uma parte restrita da musculatura, que é a parte inervada por aquele segmento medular afetado. Haverá sempre paralisia do miótomo em questão, e o restante da sintomatologia é basicamente o oposto: hipotonia e hiporreflexia. Não há mais segundo neurônio, não há mais acetilcolina na placa motora, não há mais contração, não há mais reflexos musculares. Simples assim. Vale observar que a síndrome do segundo neurônio motor, no começo (isto é, na fase aguda), apresenta também hipertonia e hiperreflexia, tal como a primeira síndrome. Isso acontece porque quando o motoneurônio é lesado existe ainda um certo estoque de acetilcolina que já havia sido produzida, e essa acetilcolina vai sendo liberada na placa motora até que acabe (a acetilcolina, como veremos no capítulo de sinapses, é degradada pela enzima acetilcolinesterase depois de ser usada em uma sinapse), levando então à hipotonia e à hiporreflexia. A síndrome do primeiro neurônio motor, por outro lado, causa hipotonia e hiporreflexia no princípio do quadro. Isso acontece porque há uma espécie de choque: diante do trauma sofrido (a lesão do primeiro neurônio), o segundo neurônio se ―congela‖ por um tempo, cessando temporariamente a liberação de acetilcolina. Neste caso, após um tempo, a hiperreflexia tende a surgir antes da hipertonia. Movimentos reflexos Nem sempre é preciso que haja uma interferência superior do SNC para que um motoneurônio possa agir. É o caso dos reflexos musculares, arcos reflexos que envolvem uma aferência pela raiz dorsal da medula e uma eferência imediata por sua raiz ventral. Capítulo 5 – Vias Descendentes e Reflexos Motores 8 Nesta seção não estaremos falando apenas de motricidade. O primeiro passo para um reflexo envolve, logicamente, uma sensibilidade. Todo raciocínio de sensibilidade deve começar com uma pergunta: de onde começa? E essa pergunta gera outra: qual o receptor? Aqui o impulso sensitivo terá origem no interior do próprio músculo ou de uma cápsula articular. O receptor no primeiro caso (no músculo) se chama fuso muscular (ou fuso neuromuscular), e no segundo (cápsula articular) se chama órgão tendinoso de Golgi (ou órgão neurotendíneo). O fuso muscular informa sobre o comprimento do músculo, isto é, sua contração isotônica. Isotônico significa "tensão constante", pois para o fuso o estado da força de contração do músculo não será importante, e sim seu estado de estiramento. O órgão neurotendíneo, presente nos tendões, indicará a tensão dos músculos, chamada de contração isovolumétrica, pois o estiramento não será importante, e sim a força de contração. Essas duas informações geradas irão percorrer os nervos em direção à medula, entrando pela raiz dorsal para gerar uma resposta imediata na própria medula. Existem dois reflexos que funcionam assim: o reflexo miotático simples e o reflexo miotático inverso. O reflexo miotático simples é unissegmentar, isto é, envolve apenas um segmento da medula: o mesmo segmento que recebe a informação aferente é o que cumpre a ação eferente. O neurônio sensitivo do gânglio espinhal se liga diretamente ao neurônio motor do corno anterior (e por isso este reflexo é classificado como monossináptico). Serve para regular o comprimento muscular, sendo de grande importância para a resposta postural antigravitária dos músculos extensores. Constantemente o corpo sofre uma pressão da gravidade que deveria fazer com que nossa musculatura flexora se dobrasse; isso é impedido pelo reflexo miotático simples da musculatura axial extensora, que se contrai reflexamente o tempo todo e impede que nosso corpo colabe. Este mecanismo é visto também no reflexo patelar (de grande importância clínica) e no reflexo mandibular, importante para a mastigação. Uma informação importante aqui é o princípio da inervação recíproca: a mesma informação aferente que é utilizada para ativar os motoneurônios da musculatura agonista (os músculos axiais extensores, por exemplo) é também usada para inibir a musculatura antagonista (os músculos axiais flexores, no caso do exemplo), para que não haja resistência desnecessária no processo. Isso é feito através de um interneurônio inibitório do H medular. Capítulo 5 – Vias Descendentes e Reflexos Motores 9 Figura 5.1 – Reflexo patelar, um exemplo de reflexo miotático simples. (Ilustrações: William de Andrade) O reflexo miotático inverso serve para regular a força muscular, relaxando um músculo submetido a uma força contrátil muito forte. É por causa desse reflexo que, se tentarmos levantar um piano, a força de nossa musculatura uma hora irá ceder. É um circuito dissináptico: o neurônio do gânglio espinhal irá se ligar a interneurônios inibitórios, que por sua vez se ligarão com os neurônios motores do corno anterior. Outros ramos irão emergir da fibra aferente para se ligar a: a) interneurônios inibitórios de motoneurônios da musculatura agonista auxiliar (gerando um "relaxamento solidário" com o músculo agonista em questão); b) interneurônios excitatórios de motoneurônios da musculatura antagonista (uma espécie de princípio da inervação recíproca ao contrário, contribuindopara o efeito de relaxamento do músculo agonista). Capítulo 5 – Vias Descendentes e Reflexos Motores 10 Figura 5.2 – Reflexo miotático inverso. O reflexo flexor de retirada, por fim, é o consagrado reflexo de tirar o pé quando pisamos em um prego. Ocorre sempre que um estímulo nocivo atinge uma das extremidades corporais. Preste atenção: extremidades corporais. Ao contrário dos outros dois reflexos (e isso é de grande importância), o reflexo flexor de retirada não usa os fusos neuromusculares e os órgãos neurotendíneos como receptores, e sim os nociceptores (receptores de dor) situados na pele. Sua origem não é, portanto, no próprio elemento efetuador (o músculo), mas sim uma origem cutânea. É um reflexo multissegmentar que utiliza um circuito multissináptico: as fibras que chegam pela raiz dorsal emitem ramos distintos, que se estendem por vários segmentos medulares, estabelecendo sinapses com: a) neurônios de segunda ordem de estímulos dolorosos do sistema protopático (estudaremos isso no capítulo de vias ascendentes), que levarão a informação dolorosa ao tálamo; b) Capítulo 5 – Vias Descendentes e Reflexos Motores 11 interneurônios excitatórios em sequência, que acabarão por atingir os motoneurônios da musculatura flexora de vários segmentos medulares; c) interneurônios inibitórios dos motoneurônios da musculatura antagonista (extensora, em geral), seguindo o princípio da inervação recíproca para garantir que a flexão dos membros seja eficiente ao tirá-los de perto do estímulo. Em alguns casos, quando o estímulo é muito intenso, o fenômeno se estende ao lado oposto do corpo, de modo a compensar a alteração postural que advém do movimento brusco do reflexo. Isso se faz por um circuito de inervação cruzada com interneurônios que irão afetar o corno anterior do lado oposto da medula, realizando o que se chama de reflexo de extensão cruzada. Há uma extensão da musculatura antagonista no lado oposto do corpo para compensar a flexão brusca do lado afetado, impedindo que a pessoa caia no chão. O trato córtico-nuclear Nem todos os neurônios de M1 vão até a medula. Parte deles terminam no tronco encefálico, nos núcleos motores dos nervos cranianos. Esse assunto será abordado no capítulo referente aos nervos cranianos. "O amigo de todo mundo só é amigo de si mesmo." — Claude Aveline, escritor francês do século XX. Referências 1. Bear MF, Connors BW, Paradiso MA. Neurociências: Desvendando o Sistema Nervoso. 3rd ed. Porto Alegre: Artmed; 2008. 2. Haines DE. Neurociência Fundamental. 3rd ed. São Paulo: Elsevier; 2006. 3. Kandel ER, Schwartz JH, Jessel TM. Princípios da Neurociência. 4th ed. Barueri: Manole; 2003. 4. Lent R. Cem Bilhões de Neurônios. 1st ed. São Paulo: Atheneu; 2005. 5. Machado ABM. Neuroanatomia Funcional. 2nd ed. São Paulo: Atheneu; 2006. Capítulo 5 – Vias Descendentes e Reflexos Motores 12 6. Rubin M, Safdieh JE. Netter Neuroanatomia Essencial. 1st ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2008.