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1 Capítulo 6 - Vias Ascendentes e Sensibilidade O mundo afeta o corpo Augusto Valadão Junqueira Visão geral Quando falamos em sensibilidade, nosso raciocínio precisa ser o oposto daquele visto quanto aos movimentos: começamos pela periferia (a pele, por exemplo), onde há receptores sensoriais1, e passamos pelo SNP para só então chegar ao SNC, percorrendo o caminho medula => prosencéfalo ou tronco encefálico => prosencéfalo. Estudaremos aqui as vias medulares e citaremos algumas coisas daquelas que se iniciam no tronco encefálico, sendo estas mais aprofundadas no capítulo dos nervos cranianos. Veremos as vias da sensibilidade dividindo-as em dois grupos: o sistema epicrítico e o sistema protopático. Para entender este capítulo, é importante ter em mente as divisões do corte transversal da medula e do corte longitudinal de um segmento medular (com as raízes ventral e dorsal unindo-se para formar um nervo comum). É bom também entender o significado de alguns termos: somestesia engloba os sentidos "físicos" do corpo (tato, dor, temperatura e propriocepção). Impulsos exteroceptivos são aqueles que vêm de agentes externos (tato, dor e temperatura), enquanto os proprioceptivos são gerados por impulsos intrínsecos do nosso corpo, detectados por receptores que ficam dentro dos músculos e tendões (propriocepção consciente e inconsciente). Sistema epicrítico As palavras-chave do sistema epicrítico são tato fino (ou epicrítico), propriocepção consciente e sensibilidade vibratória. As vias do sistema epicrítico não fazem sinapse na medula, apenas passam por ela pelo funículo posterior até chegar em núcleos bulbares, onde finalmente fazem sinapse, percorrendo todo seu trajeto até o bulbo de forma direta (sem cruzar na medula). Isto é, o primeiro neurônio desta via é aquele presente em todas as vias: o do gânglio espinhal, cujo corpo fica ainda no SNP. O segundo 1 Não confunda os receptores sensoriais (que detectam sinais como dor ou temperatura) com os receptores moleculares (que detectam neurotransmissores na membrana pós-sináptica). Ambos são referidos apenas como "receptores", mas são bem diferentes. Capítulo 6 – Vias Ascendentes e Sensibilidade 2 neurônio terá seu corpo presente apenas no tronco encefálico. Os termos em negrito neste parágrafo são o que há de fundamental para diferenciar o sistema epicrítico do protopático, que será estudado adiante. Como foi dito, o raciocínio precisa começar na periferia: nos receptores. No caso do sistema epicrítico, que veicula o tato, a propriocepção e a sensibilidade vibratória, é fácil entender que são todos mecanorreceptores, isto é, receptores sensíveis a deformações mecânicas. No caso da propriocepção, existem dois receptores altamente especializados: os fusos neuromusculares (receptores musculares capazes de detectar variações de comprimento no músculo) e os órgãos neurotendíneos (receptores tendinosos que detectam a tensão sobre os tendões). A associação desses dois tipos de receptores irá permitir ao SNC saber exatamente a posição e o estado de contração atuais de cada região do corpo (ou seja, a propriocepção). Os impulsos captados pelos receptores cursarão pelo processo periférico (o "dendrito") dos neurônios pseudo-unipolares do gânglio espinhal. O processo central ("axônio") desses neurônios, por fim, penetrará na medula pela raiz dorsal. Após penetrar a medula, o sistema epicrítico pode ser dividido em dois fascículos: o fascículo grácil e o cuneiforme. O fascículo grácil conduz os impulsos provenientes dos membros inferiores e da metade inferior do tronco, levando-os até o núcleo grácil (no tubérculo grácil, no bulbo). O fascículo cuneiforme conduz os impulsos provenientes dos membros superiores e da metade superior do tronco, levando-os até o núcleo cuneiforme (no tubérculo cuneiforme, no bulbo). Como começa antes, o fascículo grácil acaba assumindo posição medial no funículo posterior da medula, estando presente em toda a sua extensão. O funículo cuneiforme, que surge apenas na altura da metade superior do tronco, assume posição lateral em relação ao fascículo grácil no funículo posterior. Da mesma forma, no bulbo, pode-se ver que os núcleos cuneiformes são laterais aos núcleos gráceis. Partindo então de seus núcleos no bulbo, as vias do sistema epicrítico se cruzam (mergulhando ventralmente no próprio bulbo, constituindo as chamadas fibras arqueadas internas) e inflectem-se cranialmente para se unir às fibras do núcleo principal do trigêmeo e do núcleo mesencefálico do trigêmeo (formando assim o lemnisco medial), atingindo o tálamo contralateral (onde fica o corpo do terceiro neurônio de cada via), mais precisamente no núcleo ventro- posterior (VP) do tálamo (entenderemos melhor isso quando estudarmos o tálamo, no capítulo do diencéfalo). Daí partem, enfim, para a área somestésica primária (S1) do córtex cerebral. Já vimos que existe um sulco central no córtex, diante do qual está o giro pré-central (correspondente à área motora primária ou M1). Pois bem, atrás desse mesmo sulco há o giro pós- central, que é onde se localiza a área somestésica primária, ponto final tanto do sistema epicrítico quanto do protopático. Importante observar, entretanto, Capítulo 6 – Vias Ascendentes e Sensibilidade 3 uma diferença fundamental quanto a isso: os impulsos da via epicrítica tornam-se conscientes apenas quando chegam em S1, enquanto os impulsos da via protopática são "sentidos" já a nível talâmico. Com isso entendemos, por exemplo, que uma lesão na área somestésica primária causa perda das sensibilidades do sistema epicrítico (tato fino, propriocepção consciente e sensibilidade vibratória), mas não das sensibilidades protopáticas, que serão estudadas a seguir. Sistema protopático Já podemos entender todas as principais diferenças entre o sistema protopático e o epicrítico. Primeiro, o protopático veicula as seguintes informações: tato grosso (ou protopático), dor e termossensibilidade. O primeiro neurônio de cada via protopática é também aquele do gânglio espinhal, mas o segundo neurônio está presente no corno dorsal da substância cinzenta da medula espinhal, ou seja, há sinapse a nível medular. Os neurônios do corno dorsal então se cruzam (ainda na medula, diferentemente do sistema epicrítico, que se cruza apenas no bulbo) e percorrem o eixo ântero-lateral dos funículos medulares até alcançar o tálamo, formando por isso os tratos espino-talâmicos anterior e lateral. Não se esqueça disso: os tratos espino-talâmicos se cruzam na comissura branca logo no segmento medular em que têm origem, subindo pela medula já do lado oposto ao que realmente representam. Utiliza mecanorreceptores (no caso do tato grosso), termorreceptores (para a sensibilidade térmica, sensíveis a alterações físicas de temperatura) e nociceptores (para a dor, sensíveis a substâncias químicas específicas). Ou seja, existem receptores próprios para a dor. A dor não é uma exacerbação do tato ou da temperatura, como muitos acham. É uma sensibilidade própria e altamente especializada, como veremos adiante. Os neurônios presentes no corno dorsal da medula podem se projetar para o funículo anterior (formando o trato espino-talâmico anterior), que veicula o tato grosso, ou ainda para o funículo lateral, veiculando dor e temperatura pelo trato espino-talâmico lateral. Em todos esses casos há cruzamento imediato, como explicado, mas existe uma exceção: as vias da dor crônica, que possuem várias peculiaridades. Veremos maissobre ela no próximo tópico. O sistema protopático chega também ao núcleo ventro-posterior (VP) do tálamo, unindo-se antes disso às fibras do núcleo espinhal do trigêmeo para formar o lemnisco espinhal. Chegando ao tálamo, torna-se consciente. O sistema protopático torna-se consciente a nível talâmico. Escreva isso na Capítulo 6 – Vias Ascendentes e Sensibilidade 4 parede quarenta vezes e não se esqueça nunca mais. Mas ele segue também à área somestésica primária (S1), para fins modulatórios do córtex cerebral. Dor aguda e dor crônica Os nociceptores reconhecem estímulos capazes de ultrapassar os limites fisiológicos, provocando lesões no organismo. Estão presentes em todo o corpo, exceto no tecido nervoso. A cabeça dói, todavia, porque os nociceptores estão presentes nas meninges e nos vasos sanguíneos. Existem dois tipos de dor: a dor rápida (ou aguda) e a dor lenta (ou crônica). Apresentam mecanismos em grande parte diferentes: desde os receptores que utilizam até os caminhos que percorrem, cada uma tem sua via e funcionamento próprios. A dor aguda é uma dor bem localizada na superfície do corpo (dor em pontada), cessando com a interrupção do estímulo. É sobre ela que falamos ao citar o trato espino-talâmico lateral: um trato cruzado cujo neurônio se localiza no corno posterior da medula, projetando-se para o funículo lateral do lado oposto ao subir para o tálamo. É chamado de feixe neoespinotalâmico, por ter surgido há menos tempo na escala evolutiva. A dor crônica é pouco localizada e geralmente profunda (dor em queimação), causada quando há lesão dos tecidos que circundam os nociceptores. Os receptores para esse tipo de dor são terminações livres de fibras nervosas do tipo C, um tipo de fibra cuja transmissão é bem mais lenta que aquela geradora da dor aguda, por ser mais fina e amielínica. A dor crônica é desencadeada basicamente por três mecanismos: a) o sangramento gerado pela lesão causa anóxia do tecido nutrido pelos vasos rompidos. A anóxia gera uma cascata de reações que acaba por estimular os nociceptores; b) o sangramento causa também liberação de mastócitos na região afetada, que por sua vez liberam substâncias algogênicas (que provocam dor) como a histamina e a serotonina, estimulando os receptores da dor pela inflamação gerada; c) a lesão celular faz com que as próprias células liberem, durante seu rompimento, substâncias fortemente algogênicas (como o peptídeo bradicinina) e substâncias irritantes que potencializam a ação da bradicinina (derivados do ácido araquidônico como a prostaglandina). Esses mecanismos em associação alteram o microambiente químico local e criam um estado de hiperalgesia em volta dos nociceptores, que ficam por isso mais sensíveis (ou seja, ligeiramente despolarizados). Estímulos que antes eram inócuos, assim, passam a ativar os receptores da dor crônica. Se o estado de hiperalgesia se mantém por algum tempo, forma-se o real motivo da persistência prolongada da dor crônica: a reação inflamatória neurogênica. Trata-se de um fenômeno em que as próprias terminações nervosas ("pré-despolarizadas") secretam prostaglandinas Capítulo 6 – Vias Ascendentes e Sensibilidade 5 e neuropeptídeos com ação vasodilatadora local, acentuando a inflamação e prolongando a dor. Ou seja, tem início um círculo vicioso em que a própria fibra "se faz doer" indefinidamente. Além de partir de receptores diferentes, a dor crônica segue também uma via diferente. É na verdade um feixe espino-retículo-talâmico, pois faz diversas sinapses na formação reticular antes de seguir para o tálamo. É também bilateral: não só passa para o funículo lateral do lado oposto, como sobe pela medula também pelo funículo lateral homolateral ao seu lado de origem. Os tratos espino-retículo-talâmicos dos dois lados são conhecidos, em conjunto, como feixe paleoespinotalâmico, por ser a via de dor mais antiga de um ponto de vista filogenético (evolutivo). O conteúdo emocional da dor crônica, contudo, acontece apenas a nível cortical: é no córtex cingulado (o giro do cíngulo que estudaremos no capítulo do telencéfalo) que a pessoa "sofre" pela dor. Cirurgias nessa região podem fazer com que o paciente deixe de se incomodar com a dor, mesmo que ela continue presente. Existe também um fenômeno digno de nota conhecido como dor referida. Trata-se de uma convergência das fibras primárias (os neurônios pseudo-unipolares dos gânglios espinhais) em um mesmo segmento medular. Isso faz com que a lesão em uma área seja sentida (referida) em outro ponto distante do corpo, sem relação aparente nenhuma com a causa do problema. É o que acontece por exemplo no infarto do miocárdio, em que dói o braço ou a mandíbula, nas dores renais, que podem estar presentes apenas na região superior das costas, e nas dores do diafragma, que podem ser sentidas também no ombro. Alguns autores acreditam que a causa dessa convergência medular seja uma origem embriológica em comum entre as estruturas. Propriocepção inconsciente Vimos que a propriocepção consciente é parte do sistema epicrítico. Mas existem também as vias de propriocepção inconsciente, responsáveis por importantes mecanismos de manutenção do equilíbrio corporal e da distribuição do tônus da musculatura. Diferem das vias que estudamos por um fator básico: não se dirigem diretamente ao tálamo, mas sim ao cerebelo (órgão responsável pela coordenação automática dos movimentos). São portanto vias extra-talâmicas, não sendo incluídas nem no sistema epicrítico, nem no protopático. Suas funções serão estudadas mais a fundo no capítulo referente ao cerebelo. Veremos aqui apenas o básico de sua trajetória. O primeiro neurônio está sempre nos gânglios espinhais, como as demais vias que estudamos. O segundo neurônio (o primeiro do SNC) poderá estar em três lugares: a) no núcleo dorsal (ou torácico), situado na região mais dorsal Capítulo 6 – Vias Ascendentes e Sensibilidade 6 do corno posterior, de onde partem fibras para o funículo lateral homolateral para formar o trato espinocerebelar posterior; b) na base (região ventral) do corno posterior, de onde partem fibras que se cruzam duas vezes (uma na medula em sua origem e outra no tronco encefálico antes de penetrar no cerebelo, sendo então, em última análise, também homolaterais) para formar o trato espinocerebelar anterior percorrendo também o funículo lateral; c) no núcleo cuneiforme acessório do bulbo (ao lado do núcleo cuneiforme estudado neste capítulo), de onde parte o trato cuneocerebelar. As funções de cada um desses tratos serão explicadas no capítulo referente ao cerebelo. Revisão dos funículos Somando a matéria deste capítulo com a do capítulo de vias descendentes, temos diversas vias que transitam pela medula. Lembremos agora de todas elas de maneira esquemática, indicando o que há em cada funículo medular. Lembre-se que há um momento em cada via, e que o momento analisado quando pensamos em "funículos" é a parte do trajeto de uma via em que ela está passando pela medula espinhal. Isso deverá servir de guia para todos os raciocínios apresentados a seguir: 1) Funículo posterior Descendo: - Nenhuma via de movimento. Subindo: - Fascículo grácil e fascículo cuneiforme trazendo as informações epicríticas (tato fino, propriocepção consciente e sensibilidade vibratória) do mesmo lado do corpo em que se encontram. 2) Funículo lateral Descendo: - Trato córtico-espinhal lateral (movimentos finos e apendiculares em geral) que irá inervar o mesmo lado em que se encontra; - Tratorubro-espinhal (auxílio nos movimentos apendiculares) que irá inervar o mesmo lado. Subindo: - Trato espino-talâmico lateral trazendo parte das informações protopáticas (dor e temperatura) do lado oposto do corpo; - Trato espinocerebelar posterior (propriocepção inconsciente); Capítulo 6 – Vias Ascendentes e Sensibilidade 7 - Trato espinocerebelar anterior (propriocepção inconsciente). 3) Funículo anterior Descendo: - Trato córtico-espinhal anterior (movimentos axiais voluntários) que irá inervar o "centro", portanto indiferente a "lados"; - Trato retículo-espinhal (movimentos axiais voluntários, posturais e preparatórios) que irá inervar o "centro", portanto indiferente a "lados"; - Trato vestíbulo-espinhal (movimentos axiais involuntários ligados ao equilíbrio) que irá inervar o "centro", portanto indiferente a "lados"; - Trato tecto-espinhal (movimentos reflexos ligados à visão) que irá inervar o "centro", portanto indiferente a "lados". Subindo: - Trato espino-talâmico anterior trazendo parte das informações protopáticas (tato grosso) do lado oposto; "O oceano é grande porque sabe receber de rios pequenos." — autor desconhecido Referências 1. Bear MF, Connors BW, Paradiso MA. Neurociências: Desvendando o Sistema Nervoso. 3rd ed. Porto Alegre: Artmed; 2008. 2. Haines DE. Neurociência Fundamental. 3rd ed. São Paulo: Elsevier; 2006. 3. Kandel ER, Schwartz JH, Jessel TM. Princípios da Neurociência. 4th ed. Barueri: Manole; 2003. 4. Lent R. Cem Bilhões de Neurônios. 1st ed. São Paulo: Atheneu; 2005. 5. Machado ABM. Neuroanatomia Funcional. 2nd ed. São Paulo: Atheneu; 2006. 6. Rubin M, Safdieh JE. Netter Neuroanatomia Essencial. 1st ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2008.
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