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O fonoaudiólogo, este aprendiz de feiticeiro


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O FONOAUDIÓLOGO, ESTE APRENDIZ DE FEITICEIRO 
Lúcia Arantes 
 
 Os quadros de atraso no desenvolvimento da linguagem constituem um 
lugar privilegiado para se refletir sobre a natureza da clínica fonoaudiológica. 
As múltiplas formas de abordagem do fenômeno são reveladoras perspectivas 
segundo as quais o clínico contempla a linguagem. 
 Existem quadros de retardo e linguagem vinculados a patologias como 
deficiência mental, auditiva, lesões cerebrais e psicoses. Quadros, estes, que 
são aparentemente menos controvertidos: a explicitação etiológica confere ao 
clínico “maior segurança”. Mesmo assim, a configuração de seu papel (o que 
sou?) e a de sua atuação (o que faço?) permanecem intocadas, o que parece 
indicar que o desvendamento da origem do retardo (sua causa) não é fator 
determinante na condução do trabalho clinico. Na verdade, detectá-la elimina, 
apenas, o problema diagnóstico, mas não soluciona o terapêutico. Por outro 
lado, o diagnóstico, quando obscuro, deixa em aberto um leque de 
possibilidades interpretativas, que podem ser delineadas, definidas, a partir da 
concepção de linguagem do clínico. Esclareço que tal concepção nem sempre 
é explicitamente assumida por ele. 
 Há autores que associam o retardo de linguagem com fatores 
ambientais, quer dizer, à falta ou pobreza de estimulação (Eisenson, 1971). Há, 
também, os que apostam na determinação orgânica desses quadros, 
relacionada ou a fatores lesionais pouco definidos do sistema nervoso central, 
ou a fatores de natureza hereditária (Ingram, 1969). Há, ainda, vertentes que 
remetem a explicação para a interação do sujeito com o mundo físico. Este é o 
caso de Zorzi (1987) e Seber (1980), que, inspirados na epistemologia genética 
de Piaget, acreditam na possibilidade de explicar o retardo de linguagem a 
partir das vicissitudes do desenvolvimento cognitivo, tomado como 
determinante do desenvolvimento lingüístico. Numa perspectiva 
sociointeracionista, Palladino (1986) discute a determinação dessa condição 
patológica como sendo de origem interacional.1 A relação da criança com o 
outro seria, neste caso, lugar privilegiado para se buscar a compreensão dso 
casos de retardo. 
 
1 Esclareço que a perspectiva interacionista assumida pela pesquisadora é aquela desenvolvida por De 
Lemos e pesquisadores do Projeto de Aquisição de Linguagem na Unicamp. 
 A diversidade na busca de entendimento de um mesmo fenômeno 
decorre de filiações a diferentes perspectivas. O olhar do clínico resulta ser 
dirigido por uma concepção (implícita ou explícita) de linguagem, concepção 
esta que o coloca em um posto de observação, o qual não só determina o seu 
entendimento do quadro, mas que, também e principalmente, configura o perfil 
do terapeuta e do paciente. Se o fato é a linguagem (retardo de linguagem) e 
se, por outro lado, toda concepção de linguagem implica as de aprendiz e de 
outro (como assegura De Lemos), não se deveria mesmo esperar outra coisa. 
 Talvez sejam exatamente a complexidade desses quadros e a 
controvérsia que gira em torno deles que conferem aos retardos de linguagem 
tamanho interesse e fascínio. Eles impõem, porém, ao clínico a exigência de 
pensar sobre a natureza do processo de desenvolvimento da linguagem. Ele 
não pode se esquivar a tal reflexão, já que o que lhe caberá é (re)instaurar tal 
processo. Note-se que a definição de seu próprio papel, o de terapeuta, é, 
nesse caso, decorrência obrigatória. 
 Se admitirmos, retomando a afirmação de De Lemos (anotações de 
aula),2 que toda concepção de linguagem traz em si a de aprendiz e que esta 
circunscreve também o lugar o outro, poderemos apreender o sentido da 
afirmação anterior sobre a relevância do processo de inserção da criança na 
linguagem. 
 Exploremos as posições acima mencionadas. Em uma visão 
comportamentalista, como defendida por Eisenson (1991), deve-se conceber a 
linguagem como comportamento operante, isto é, como resultado de um 
processo associativo decorrente de estimulação externa. Aqui, o “aprender” 
ganha relevo: se há estimulação adequada não há modelagem de resposta. 
Lembremos que a criança é tabula rasa. O outro – o terapeuta – conduzirá o 
processo de modelagem do comportamento lingüístico. Ele será o 
“estimulador-reforçador”, quer dizer, o adestrador. 
 A aquisição, pensada a partir da perspectiva inatista proposta por 
Chomsky, tem a linguagem como um saber inato, uma gramática universal 
inscrita na mente-cérebro do indivíduo. Mediante a ativação de princípios e 
parâmetros inatos, a criança constrói a representação interna de uma língua 
 
2 Esse ponto de vista se apresenta desenvolvido e reformulado em De Lemos, 1992. 
específica. Ativação que é propiciada por exposição a um input, a uma língua 
particular. Vê-se que, por ser portadora do saber lingüístico, caberá à criança 
(e a mais ninguém) a tarefa solitária de analisar o material lingüístico a que é 
exposta. O outro é falante-ouvinte, e, como tal, provedor de input. Uma 
concepção como esta exclui, por princípio, a possibilidade de atuação do 
fonoaudiólogo: a criança tem, ao nascer, uma predisposição inata para adquirir 
linguagem, ao outro resta a função de exemplar, quer dizer, de fornecer o 
material lingüístico necessário à atividade (analítica) da criança. Aliás o que 
importa mesmo é o material lingüístico; o falante é dispensável; máquinas 
reprodutoras de linguagem o substituem com excelência. O que é essencial, 
portanto, é a exposição a um ambiente lingüístico, condição única e suficiente 
ao exercício desta capacidade. Numa proposta como esta, o adquirir toma o 
lugar do aprender (ver De Lemos, 1986). 
 Em uma perspectiva piagetiana, a linguagem estará a serviço das 
construções cognitivas da criança – é, portanto, instrumento do pensamento. 
Não é por acaso que na clínica o desenvolvimento cognitivo torna-se questão 
central. Ele é determinante do desenvolvimento lingüístico. Podemos dizer, 
então, como Zorzi (1987) que o papel do terapeuta deve ser o de “propiciar 
situações que permitam a ação e descoberta por parte da criança”. Note-se aí 
um ponto de convergência entre as perspectivas chomskyana e a de Piaget, 
apesar da enorme divergência entre elas em relação à condição inicial 
(biológica) da criança: no caso de Chomsky, o saber lingüístico é prévio e, no 
de Piaget, qualquer saber deverá ser construído. Para ambos, contudo, é a 
criança o autor de seu conhecimento. Deve-se concluir que o outro é provedor, 
seja de material lingüístico seja de objetos para a ação. A ele, 
conseqüentemente, é subtraída qualquer atividade estruturante. 
 Numa concepção interacionista de natureza social a linguagem é 
fundante. Sua construção se dá na interação, entendida como “matriz de 
significações” (De Lemos, 1986). O conhecimento é, portanto, fruto da 
atividade intersubjetiva. A criança tem um papel ativo, apesar de inconsciente. 
Sua atividade é suporte empírico para atividade interpretativa do outro, que a 
ela confere forma e sentido, como se diz Lier-De Vitto (1992).3 Recupera-se, 
 
3 Lier-De Vitto, M. F. (1992). Na trilha do interacionismo. Texto inédito. 
assim, seu papel estruturante. Se no comportamentalismo a criança é passiva 
e o ambiente estimulador de sua atividade, aqui, trata-se de uma criança ativa, 
que produz sons e movimentos. Note-se que falar em ambiente não é o mesmo 
que falar de outro. Como já apontado anteriormente, no primeiro caso, o outro 
me modelador-adestrador, enquanto que, em uma perspectiva interacionista, 
ele é intérprete. Como minha reflexão é guiada pela vertenteinteracionista, a 
discussão ampla desta visão estará mais bem apresentada a seguir. 
 Até aqui, procurei mostrar que uma concepção de linguagem, implica, 
de fato, uma concepção de aprendiz e de outro (na Fonoaudiologia, a de 
terapeuta). Entretanto, se retomarmos a história da Fonoaudiologia veremos 
que, paradoxalmente, esse tipo de reflexão sobre a linguagem e as 
possibilidades de sua apropriação pela criança tem estado esquecida. A 
preocupação exclusivamente ligada à supressão de sintomas fez com que a 
linguagem ficasse marginalizada. Curiosamente, a Fonoaudiologia, apesar 
disso, sempre tomou a Lingüística como uma fonte privilegiada para seus 
empréstimos, o que poderia levar à conclusão da falsidade de m inha 
afirmação acima. 
 Ocorre, contudo, como é característica de todo empréstimo, que apenas 
parte da arquitetura da “teoria-mãe” – a Lingüística – seja incorporada, como 
bem assinalou Maia (1984); a reflexão teórica e suas conseqüências 
necessárias permaneceram intocadas. É sobre elas que pretendi discorrer 
brevemente ao elaborar a trama de conceitos envolvida numa concepção de 
linguagem. Procurei mostrar que ela tem como corolário as de aprendiz e de 
feiticeiro – o outro. Quis, com isto, mostrar que o aparato descritivo não pode 
ser amputado do discurso que o sustenta e o justifica. 
 Cabe, ainda, dizer como a Lingüística foi introduzida na Fonoaudiologia. 
Acompanho Coudry (1988) quando afirma que foi como “lingüística das 
formas”. Nesse caso, é a língua como objeto formal e homogêneo que está em 
questão. A conseqüência principal desta assunção, para a Fonoaudiologia, é 
clara: a linguagem enquanto atividade foi descartada. É ela que fica 
desconsiderada. Pergunto: como pode o fonoaudiólogo desconsiderar “a fala 
singular” de seu paciente? Convém lembrar que Chomsky, representante maior 
da vertente formalista, insiste na afirmação de que a competência independe 
da atividade do sujeito. Fatores individuais são, para ele, problemas do 
desempenho sobre o qual a teoria nada tem a declarar. 
 O fonoaudiólogo, em seu exercício clínico, se defronta, como já disse, 
exatamente com a face da linguagem que escapa à regra, com o que não é 
previsível, com o que é residual. Na clínica, o fenômeno lingüístico revela sua 
face mais inapreensível e heterogênea. A linguagem em sua dimensão 
patológica é a expressão mais clara e maior do singular, do individual. É a 
revelação de uma singularidade inscrita na linguagem. 
 Como compatibilizar teorias lingüísticas normativas e/ou formalistas com 
um fenômeno que escapa ao gramatical, ao correto? Elas não conduzem o 
fonoaudiólogo para além da caracterização do fenômeno patológico enquanto 
violação das regras, para além de um diagnóstico que tem se prestado, 
unicamente, à elaboração de um perfil lingüístico da doença. Como supor, a 
partir daí, uma terapêutica? Pode-se entender, assim, a impregnação de 
modelos clínicos advindos da Psicologia e mesmo da Medicina na 
Fonoaudiologia: técnicas clínicas são também, em grande parte, 
“emprestadas”. Elas, contudo, não prevêem nem incidem sobre o mesmo 
objeto – a linguagem. Se, de um lado, o empréstimo de modelos lingüísticos 
formalistas (que, como vimos, recusam a singularidade da produção do 
paciente), tem se mostrado inapropriado ao exercício clínico, de outro, dos 
“modelos clínicos” incorporados, está ausente a linguagem. 
 Ao fonoaudiólogo só pode interessar o fenômeno lingüístico como 
discurso, como atividade e, mais, como atividade dialógica. Atividade, porque a 
ele interessa a produção singular do paciente, e esta, sabe-se, escapa à 
categorização da lingüística tradicional. Não é preciso dizer o lugar que o uso 
ou o desempenho ocupam nessa teoria. Dialógica, porque outra não é a 
natureza da clínica. 
 A relação com a Lingüística só será fecunda, a meu ver, quando duas 
condições puderem ser satisfeitas. A primeira diz respeito à adoção de uma 
lingüística do discurso, pela razão acima mencionada. A segunda, exige que a 
Fonoaudiologia abra mão da recorrência histórica de “aplicação” e reconheça 
que, embora promissora em sua relação com teorias do discurso, as 
“respostas” para a clínica devem ser buscadas na própria clínica e não fora 
dela. O que quero dizer é que pressupostos podem ser partilhados por 
diferentes disciplinas. O que deve ser recusado são apropriações e usos 
parciais e irrefletidos. 
 Adotar uma lingüística do discurso não significa, portanto, apenas mudar 
de modelo teórico. Tal adoção envolve um compromisso maior, o do 
fonoaudiólogo participar da reflexão teórica a partir de seu material singular: os 
ditos “distúrbios da linguagem”. Isso quer dizer que a Fonoaudiologia deve 
assumir a responsabilidade de tomar para si a linguagem na sua dimensão 
patológica como objeto próprio. Ele é o lugar de sua reflexão... “seu mistério”, 
como diz De Lemos (1992). Só assim poderá vir a construir uma teoria da 
clínica da qual a área carece. 
 Não se pode desprezar, como se vê, o diálogo com a Lingüística, já que 
ela é, por excelência, a ciência da linguagem. Lingüística e Fonoaudiologia 
compartilham o mesmo objeto. O que o fonoaudiólogo não deve admitir é 
colocar-se na posição daquele que mão pensa mas aplica, quer dizer, na 
posição daquele que deixa o pensar para a Lingüística e toma o aplicar para si 
próprio. 
 A partir da assunção de uma perspectiva discursiva, mais 
especificamente interacionista da aquisição da linguagem, pretendo agora tecer 
considerações acerca de um modo outro de pensar a prática clínica nos 
retardos de linguagem. Para isto, torna-se necessário ver brevemente os 
modos de intervenção clássicos nos quadros de retardo de linguagem. 
 Três momentos podem ser nitidamente delimitados relativamente ao 
fluxo de intervenção do fonoaudiólogo, quais sejam: o da entrevista, o da 
avaliação e o da terapia propriamente dita. Na entrevista, colhia-se o histórico 
do paciente tomado como fato, quer dizer, a anamnese era entendida como 
reveladora da “verdade” a respeito da criança. A fala dos pais adquiria valor da 
“literalidade”, era insuspeitável. A escuta do clínico, nesta abordagem, muito se 
aproxima daquela que, segundo Barthes (1990) pode ser configurada da 
seguinte forma: “há de um lado aquele que fala, que se entrega, que confessa 
e de outro lado, aquele que escuta, que se cala, julga e sanciona”. O 
fonoaudiólogo, buscando a “verdade”, decodificava mensagens que deveriam 
ser reveladoras da etiologia. Para tanto, realizava um “esforço de atenção”, 
elegendo informações relevantes. 
 Tal atitude deve ser evitada, diz Barthes. Ao abandonar tal escuta, “nos 
livramos do perigo inerente a toda atenção intencional, (do) perigo de escolher 
entre informações que nos são transmitidas”. O que se considera como 
importante (ou irrelevante) é, segundo ele, ditado por expectativas e tendências 
prévias. E completa, citando Freud: “ao adaptar nossa escolha à nossa 
expectativa, corremos o risco de encontrar o que de antemão já sabíamos” 
(apud Barthes, 1990). Podemos dizer que o clínico buscava, na realidade, o 
que, de certa forma, era previsível e/ou desejável: dados sobre o 
desenvolvimento orgânico da criança que pudessem justificar o estado 
patológico. Assim, o doente desaparecia em favor da doença. A entrevista, em 
última instância, reeditava o que já sido dito na instância teórica e determinado 
em outras áreas do saber.4 
 Do orgânico passava-se, então, à linguagem. Tinha início a avaliação, 
momento em que se investigava aquilo que estava ausente: a própria 
linguagem (como é freqüente nos casos de retardo). Avaliação que sempre 
tomava o modelo formalista da Lingüística tradicional como panode fundo. As 
possibilidades de proceder eram as seguintes: a primeira era de inspiração 
inatista. Embora não manifesta enquanto produção, ainda assim a linguagem 
“podia” ser avaliada como compreensão. As capacidades analíticas, 
biologicamente dadas, precedem e garantem a produção, o desempenho. O 
paciente era submetido, por isso, a uma bateria de testes ou provas. Fatores 
como extensão do enunciado e a complexidade morfossintática do discurso do 
terapeuta determinavam o nível de compreensão da criança. 
 O segundo modo de avaliação era de inspiração piagetiana. 
Observavam-se as construções sensório-motoras. Neste caso, ou se realizava 
uma série de provas de cognição, ou então se atentava para a organização do 
“brincar”. Tanto o resultado das provas como o da análise da brincadeira 
solitária deveriam revelar o nível do desenvolvimento simbólico da criança. 
Avaliava-se, portanto, em que período do estágio sensório-motor encontrava-se 
o paciente. Por isso o atraso no desenvolvimento cognitivo era entendido como 
agente causador do quadro de linguagem (ver Zorzi, 1987 e Seber, 1980). 
 
4 Essa discussão tem sido encaminhada em conjunto com Ruth Palladino e Francisco Lier-De Vitto. 
 A terceira possibilidade de investigação destes quadros surgiu no início 
da década de 80, fortemente influenciada pelos primeiros estudos 
interacionistas e, portanto, também pela Pragmática. Ela consistia na 
observação das condutas comunicativas da criança, reveladoras das 
“intenções” ali contidas. A linguagem era entendida como extensão de tais 
condutas. Porém, a possibilidade de passagem do domínio comunicativo para 
o lingüístico nunca mereceu a reflexão dos fonoaudiólogos, que apenas 
acrescentavam um novo item ao conjunto dos comportamentos da criança a 
serem descritos. Não é por acaso que tais avaliações, muitas vezes, apareciam 
conjugadas às de cunho inatista, ou mesmo às piagetianas. Linguagem e 
comunicação eram domínios aceitos como equivalentes e a segunda, pré-
requisito para a primeira. 
 Este me parece um bom momento para mostrar que, nas três 
abordagens acima discutidas, a hierarquia conhecimento – uso está presente. 
Sobre esse ponto elas convergem. No caso da proposta inatista é saber prévio 
e necessário ao desempenho. Na piagetiana, o saber é outro: trata-se de 
esquemas cognitivos. Para os interacionistas, a comunicação é o 
conhecimento anterior que assenta as bases para a linguagem. Deve-se 
pensar que o aprendiz, em que pelo menos um aspecto, é o mesmo. É ele 
quem analisa o input lingüístico. A diferença corre por conta da natureza do 
saber, pressuposto em cada uma das vertentes acima. 
 Todas essas práticas nunca ultrapassaram (e não poderiam fazê-lo) o 
limite da descrição da linguagem, enquanto falta. A avaliação consistia em 
elencar as (im)possibilidades da criança e, na maior parte das vezes, nada 
mais era que uma paráfrase da queixa da família. Por isso, não esclareciam o 
diagnóstico, nem iluminavam o próximo passo: a terapia. Esta, como já vimos, 
operava outro salto: o de aproximação-apropriação de técnicas 
comportamentalistas da clínica psicológica. Na verdade, talvez se aproximasse 
mais da Pedagogia, uma vez que a complexidade envolvida no controle dos 
estímulos e dos reforços para a modelagem da resposta foi raramente 
assumida. Operava-se, de fato, com uma noção genérica de “ensinar”, de 
“corrigir”. Note-se que do orgânico, focalizado na entrevista, passava-se para o 
lingüístico e deste para o pedagógico. Na realidade, em tal intervenção, o 
discurso do fonoaudiólogo era, no dizer de Palladino (1992), um “bloco de 
colagens” sem conteúdo próprio. Discurso que gerava uma aparente coerência 
e que conferia ao dizer do fonoaudiólogo uma aparente exatidão. 
 Em oposição a este estado de coisas, poder-se-ia entender esses três 
momentos terapêuticos como necessariamente imbricados. Pode-se avaliar ao 
longo da atividade terapêutica e integrar a entrevista ao processo dito de 
avaliação. Cada um desses rótulos ganharia assim um novo sentido. Essa 
mudança deve envolver uma outra concepção de linguagem, como veremos 
mais adiante. 
 Na entrevista, o terapeuta deve buscar não o “verdadeiro”, o “literal”. O 
discurso da família deve ser mais que ouvido e registrado. Deve ser escutado 
de forma bastante singular e na sua singularidade. Nele, estará inscrito o lugar 
designado para a criança na linguagem, como tem sido dito por Lier-De Vitto 
(1992). Nele, estão os indícios que podem levar à elaboração de um sentido, a 
um entendimento do silenciamento da criança.5 
 Embora a criança não fale, no discurso do outro ela é falada. É nesse 
sentido que a entrevista se compõe com a “avaliação”6: a linguagem do outro 
também está a mercê de interpretação, da “avaliação” do clínico. A ele fica 
delegada a tarefa de escutar e não apenas ouvir. 
 Parto de Barthes (1990), que propõe uma distinção importante entre 
ouvir e escutar. Ouvir é, segundo ele, um fenômeno fisiológico, enquanto que o 
escutar é um ato psicológico definível por seu objeto. O autor vai além e 
discute a existência de pelo menos três tipos de escuta. 
 A escuta indicial está presente tanto no homem como no animal. Ela 
torna o confuso (o indiferente) distinto (pertinente). É indicial porque um sinal 
efetivo, presente, anunciando uma ausência que lhe é contígua. O ausente é 
evocado pelo sinal presente. Um ruído, por exemplo, pode anunciar o agressor. 
 A escuta de decodificação implica a capacidade de leitura, ou seja, de 
atribuição de significado. É, portanto, possibilidade unicamente humana. 
“Escutar é decodificar o que é obscuro, confuso ou mudo.” Se, por um lado, a 
noção de decodificação implica escutar o opaco, implica também a 
possibilidade de revelação de uma verdade, de um significado. A decodificação 
tem o poder de tornar o opaco, transparente. Como vimos acima, é essa escuta 
 
5 Sobre a distinção entre silêncio e silenciamento, ver Orlandi (1987). 
6 Note-se que “avaliação” adquire novo sentido. Por isso coloco entre aspas como termo a redefinir. 
que impera na intervenção fonoaudiológica clássica. Ela é intencional, isto é, 
parte da intencionalidade do terapeuta como sujeito capaz de regular a relação 
intersubjetiva e supõe, também, o controle da informação. Não é outra coisa 
que a noção de intencionalidade sugere: há uma verdade que pode ser dita e 
decodificada. Haverá, então, opacidade? 
 A terceira escuta, para Barthes, é radicalmente distinta das anteriores. 
Ela não visa apenas o que é dito ou emitido, mas aquele que fala e se 
desenvolve em um espaço intersubjetivo. Ela implica a noção de inconsciente, 
diz ele. A escuta psicanalítica é, para Barthes, exemplar desta terceira escuta: 
“o que é oferecido para ser ouvido por essa escuta é exatamente aquilo que o 
indivíduo que fala não diz” (Denis Vasse, apud Barthes, 1990:225, grifo meu). 
 Nesse sentido, considero que ela não é exclusiva da Psicanálise e que 
pode, por isso, interessar também ao fonoaudiólogo. Aqui, a interlocução é 
responsável pela construção de sentidos. Vê-se que tal concepção implica 
entender a linguagem não como comunicação e nem como transmissão de 
mensagens, mas como efeito de sentido. É isto que tem sido defendido por Eni 
Orlandi na Análise do Discurso e por Cláudia T. G. de Lemos na Aquisição de 
Linguagem. 
 A discussão feita por Barthes serve, contudo, aos propósitos deste 
trabalho, na medida em que propicia o esclarecimento de revoluções contidas 
no abandono de uma concepção de linguagem e na assunção de outra, 
principalmente no que concerne ao papel do outro: o do terapeuta,no caso. 
 Na intervenção fonoaudiológica clássica, como vimos, o significado era 
tomado como literal. Nesta outra leitura da clínica, a que sugiro aqui, podemos 
dizer com Orlandi (1987) que “não há um centro, que é o sentido literal e suas 
margens, que são os efeitos de sentido. Só há margens. Por definição, todos 
os sentidos são possíveis [...} no processo, que é a interlocução, os sentidos se 
recolocam de forma múltipla e fragmentária” (p.144). Tal concepção em muito 
se aproxima com a terceira escuta proposta pro Barthes. Vejamos porque: “o 
que é escutado aqui e ali não é um significado, objeto de reconhecimento ou 
decifração, é a própria dispersão” (grifo meu).7 
 
7 Convém assinalar que em Barthes decodificação e decifração são sinônimos. 
 Assim, o fonoaudiólogo deve, a partir dessa escuta, atribuir um sentido 
inédito à história do paciente. A entrevista surge como lugar/momento de 
compreensão do silenciamento do paciente. Se, como diz Rubino (1989), “o 
discurso da mãe faz falar o bebê”, eu acrescento que ele também pode fazê-lo 
calar. Entender a linguagem de uma criança (que não fala) implica, 
obrigatoriamente, observar como ela é falada, como ela aparece no discurso do 
outro. É ali que a criança é eregida como sentido para o terapeuta: da 
entrevista nasce o discurso do terapeuta. Discurso...sentido. Sentido, que se 
constitui no texto/diagnóstico que norteará a atividade terapêutica propriamente 
dita. Essa escuta/discurso sustentará a entrevista e todo o processo de 
intervenção. 
 Vê-se por que ganha relevo o que se fala sobre a criança na entrevista e 
também o que se diz para a criança no processo de avaliação-terapia. A família 
cria esse “personagem” (termo de De Lemos). É no texto familiar que reside a 
possibilidade de compreender por que a criança ficou paralisada naquele papel 
e não se desdobrou em “ator e autor”. Transformação que, também, segundo 
De Lemos, caracteriza o processo de aquisição da linguagem. O que impede 
esse desdobramento (a conversão do discurso do outro na ilusão do discurso 
próprio) é uma questão para a clínica. 
 Note-se que o dizer da criança é determinado, segundo essa visão, pelo 
do outro. Para o fonoaudiólogo, é imprescindível pensar uma concepção de 
linguagem como esta. Caso contrário, como pensar o papel do clínico? A ele 
ficará delegado o papel de um “outro” “que, por estar submetido à ordem da 
linguagem, pode por isso ‘resolver’ o enigma, atribuir-lhe um sentido” (Lier, 
1992) ... um novo sentido. 
 O terapeuta é intérprete diferenciado por duas razões. Primeira, porque 
se trata de alguém instrumentalizado por uma teoria de linguagem; segundo, 
pelo fato de, por estar por fora da história da criança, poder criar “novas” 
interpretações virtualmente capazes de fazer circular o que estava paralisado. 
Convém lembrar que, se no processo de apropriação da linguagem pela 
criança ela “incorpora fragmentos do dizer alheio (...) [e que] o significante 
circula por muitos lugares e se compõe com outros em organizações possíveis; 
isolado ele não é mais do que um precipitado de sentidos, de possibilidade de 
significar. O significante insiste, convoca uma leitura”, diz Lier-De Vitto. Leitura 
que caberá também ao terapeuta fazer. Ao se oferecer como espelho 
(intérprete) para o paciente, ele poderá abrir a possibilidade de (re)significar a 
história da criança e de (re)introduzi-la na ordem do simbólico. Note-se que a 
clínica passa a poder ser entendida, também, como espaço de alteridade 
constitutiva. É a partir do seu discurso sobre o silenciamento da criança que o 
terapeuta lhe abre, também, um novo lugar na linguagem. 
 Essa concepção de linguagem contempla pontos essenciais à reflexão 
do fonoaudiólogo. Nela, o Outro ocupa lugar central. O singular – “as margens” 
– volta à cena. O importante é que o fonoaudiólogo não perca de vista o 
conjunto de pressupostos implicados nesta concepção de linguagem. Só desse 
modo ele evitará incorrer no antigo vício da aplicação, vício este que 
empobrece o fenômeno clínico e fere a teoria que “adota”. Ambos, teoria e 
clínica, envolvem uma complexidade que não deve ser minimizada ou 
simplificada. 
 Entendo o diálogo com a Lingüística como necessário e promissor. 
Porém, ele deve ser assentado em bases que impliquem colaboração e não 
submissão de uma área à outra. Ao fonoaudiólogo resta a exigência da criação 
de um “texto próprio”, que se origine deste diálogo e da análise do objeto que 
lhe é particular (e nem por isso estranho à Lingüística). 
 Entender a clínica a partir dessa perspectiva implica abrir mão da solidez 
de um saber normativo, exato e formalizado. Implica arriscar-se pela via de 
outra possibilidade de compreensão da clínica. Via em que a dispersão, a 
“inexatidão” sejam o desafio. Finalizo, fazendo minhas as palavras de Rodulfo 
(1990) ao discutir as relações entre a Psicanálise e a Psiquiatria. Diz ele: “há 
coisas mais perigosas que a inexatidão: uma delas é a aparência de exatidão, 
a exatidão simulada”. 
 
LIER-DE VITTO, Mª F. (Org.) Fonoaudiologia: no sentido da Linguagem. 2ª Ed. 
p. 23-31. São Paulo: Cortez Editora, 1994 
 
 
 
 
 
 
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