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O FONOAUDIÓLOGO, ESTE APRENDIZ DE FEITICEIRO Lúcia Arantes Os quadros de atraso no desenvolvimento da linguagem constituem um lugar privilegiado para se refletir sobre a natureza da clínica fonoaudiológica. As múltiplas formas de abordagem do fenômeno são reveladoras perspectivas segundo as quais o clínico contempla a linguagem. Existem quadros de retardo e linguagem vinculados a patologias como deficiência mental, auditiva, lesões cerebrais e psicoses. Quadros, estes, que são aparentemente menos controvertidos: a explicitação etiológica confere ao clínico “maior segurança”. Mesmo assim, a configuração de seu papel (o que sou?) e a de sua atuação (o que faço?) permanecem intocadas, o que parece indicar que o desvendamento da origem do retardo (sua causa) não é fator determinante na condução do trabalho clinico. Na verdade, detectá-la elimina, apenas, o problema diagnóstico, mas não soluciona o terapêutico. Por outro lado, o diagnóstico, quando obscuro, deixa em aberto um leque de possibilidades interpretativas, que podem ser delineadas, definidas, a partir da concepção de linguagem do clínico. Esclareço que tal concepção nem sempre é explicitamente assumida por ele. Há autores que associam o retardo de linguagem com fatores ambientais, quer dizer, à falta ou pobreza de estimulação (Eisenson, 1971). Há, também, os que apostam na determinação orgânica desses quadros, relacionada ou a fatores lesionais pouco definidos do sistema nervoso central, ou a fatores de natureza hereditária (Ingram, 1969). Há, ainda, vertentes que remetem a explicação para a interação do sujeito com o mundo físico. Este é o caso de Zorzi (1987) e Seber (1980), que, inspirados na epistemologia genética de Piaget, acreditam na possibilidade de explicar o retardo de linguagem a partir das vicissitudes do desenvolvimento cognitivo, tomado como determinante do desenvolvimento lingüístico. Numa perspectiva sociointeracionista, Palladino (1986) discute a determinação dessa condição patológica como sendo de origem interacional.1 A relação da criança com o outro seria, neste caso, lugar privilegiado para se buscar a compreensão dso casos de retardo. 1 Esclareço que a perspectiva interacionista assumida pela pesquisadora é aquela desenvolvida por De Lemos e pesquisadores do Projeto de Aquisição de Linguagem na Unicamp. A diversidade na busca de entendimento de um mesmo fenômeno decorre de filiações a diferentes perspectivas. O olhar do clínico resulta ser dirigido por uma concepção (implícita ou explícita) de linguagem, concepção esta que o coloca em um posto de observação, o qual não só determina o seu entendimento do quadro, mas que, também e principalmente, configura o perfil do terapeuta e do paciente. Se o fato é a linguagem (retardo de linguagem) e se, por outro lado, toda concepção de linguagem implica as de aprendiz e de outro (como assegura De Lemos), não se deveria mesmo esperar outra coisa. Talvez sejam exatamente a complexidade desses quadros e a controvérsia que gira em torno deles que conferem aos retardos de linguagem tamanho interesse e fascínio. Eles impõem, porém, ao clínico a exigência de pensar sobre a natureza do processo de desenvolvimento da linguagem. Ele não pode se esquivar a tal reflexão, já que o que lhe caberá é (re)instaurar tal processo. Note-se que a definição de seu próprio papel, o de terapeuta, é, nesse caso, decorrência obrigatória. Se admitirmos, retomando a afirmação de De Lemos (anotações de aula),2 que toda concepção de linguagem traz em si a de aprendiz e que esta circunscreve também o lugar o outro, poderemos apreender o sentido da afirmação anterior sobre a relevância do processo de inserção da criança na linguagem. Exploremos as posições acima mencionadas. Em uma visão comportamentalista, como defendida por Eisenson (1991), deve-se conceber a linguagem como comportamento operante, isto é, como resultado de um processo associativo decorrente de estimulação externa. Aqui, o “aprender” ganha relevo: se há estimulação adequada não há modelagem de resposta. Lembremos que a criança é tabula rasa. O outro – o terapeuta – conduzirá o processo de modelagem do comportamento lingüístico. Ele será o “estimulador-reforçador”, quer dizer, o adestrador. A aquisição, pensada a partir da perspectiva inatista proposta por Chomsky, tem a linguagem como um saber inato, uma gramática universal inscrita na mente-cérebro do indivíduo. Mediante a ativação de princípios e parâmetros inatos, a criança constrói a representação interna de uma língua 2 Esse ponto de vista se apresenta desenvolvido e reformulado em De Lemos, 1992. específica. Ativação que é propiciada por exposição a um input, a uma língua particular. Vê-se que, por ser portadora do saber lingüístico, caberá à criança (e a mais ninguém) a tarefa solitária de analisar o material lingüístico a que é exposta. O outro é falante-ouvinte, e, como tal, provedor de input. Uma concepção como esta exclui, por princípio, a possibilidade de atuação do fonoaudiólogo: a criança tem, ao nascer, uma predisposição inata para adquirir linguagem, ao outro resta a função de exemplar, quer dizer, de fornecer o material lingüístico necessário à atividade (analítica) da criança. Aliás o que importa mesmo é o material lingüístico; o falante é dispensável; máquinas reprodutoras de linguagem o substituem com excelência. O que é essencial, portanto, é a exposição a um ambiente lingüístico, condição única e suficiente ao exercício desta capacidade. Numa proposta como esta, o adquirir toma o lugar do aprender (ver De Lemos, 1986). Em uma perspectiva piagetiana, a linguagem estará a serviço das construções cognitivas da criança – é, portanto, instrumento do pensamento. Não é por acaso que na clínica o desenvolvimento cognitivo torna-se questão central. Ele é determinante do desenvolvimento lingüístico. Podemos dizer, então, como Zorzi (1987) que o papel do terapeuta deve ser o de “propiciar situações que permitam a ação e descoberta por parte da criança”. Note-se aí um ponto de convergência entre as perspectivas chomskyana e a de Piaget, apesar da enorme divergência entre elas em relação à condição inicial (biológica) da criança: no caso de Chomsky, o saber lingüístico é prévio e, no de Piaget, qualquer saber deverá ser construído. Para ambos, contudo, é a criança o autor de seu conhecimento. Deve-se concluir que o outro é provedor, seja de material lingüístico seja de objetos para a ação. A ele, conseqüentemente, é subtraída qualquer atividade estruturante. Numa concepção interacionista de natureza social a linguagem é fundante. Sua construção se dá na interação, entendida como “matriz de significações” (De Lemos, 1986). O conhecimento é, portanto, fruto da atividade intersubjetiva. A criança tem um papel ativo, apesar de inconsciente. Sua atividade é suporte empírico para atividade interpretativa do outro, que a ela confere forma e sentido, como se diz Lier-De Vitto (1992).3 Recupera-se, 3 Lier-De Vitto, M. F. (1992). Na trilha do interacionismo. Texto inédito. assim, seu papel estruturante. Se no comportamentalismo a criança é passiva e o ambiente estimulador de sua atividade, aqui, trata-se de uma criança ativa, que produz sons e movimentos. Note-se que falar em ambiente não é o mesmo que falar de outro. Como já apontado anteriormente, no primeiro caso, o outro me modelador-adestrador, enquanto que, em uma perspectiva interacionista, ele é intérprete. Como minha reflexão é guiada pela vertenteinteracionista, a discussão ampla desta visão estará mais bem apresentada a seguir. Até aqui, procurei mostrar que uma concepção de linguagem, implica, de fato, uma concepção de aprendiz e de outro (na Fonoaudiologia, a de terapeuta). Entretanto, se retomarmos a história da Fonoaudiologia veremos que, paradoxalmente, esse tipo de reflexão sobre a linguagem e as possibilidades de sua apropriação pela criança tem estado esquecida. A preocupação exclusivamente ligada à supressão de sintomas fez com que a linguagem ficasse marginalizada. Curiosamente, a Fonoaudiologia, apesar disso, sempre tomou a Lingüística como uma fonte privilegiada para seus empréstimos, o que poderia levar à conclusão da falsidade de m inha afirmação acima. Ocorre, contudo, como é característica de todo empréstimo, que apenas parte da arquitetura da “teoria-mãe” – a Lingüística – seja incorporada, como bem assinalou Maia (1984); a reflexão teórica e suas conseqüências necessárias permaneceram intocadas. É sobre elas que pretendi discorrer brevemente ao elaborar a trama de conceitos envolvida numa concepção de linguagem. Procurei mostrar que ela tem como corolário as de aprendiz e de feiticeiro – o outro. Quis, com isto, mostrar que o aparato descritivo não pode ser amputado do discurso que o sustenta e o justifica. Cabe, ainda, dizer como a Lingüística foi introduzida na Fonoaudiologia. Acompanho Coudry (1988) quando afirma que foi como “lingüística das formas”. Nesse caso, é a língua como objeto formal e homogêneo que está em questão. A conseqüência principal desta assunção, para a Fonoaudiologia, é clara: a linguagem enquanto atividade foi descartada. É ela que fica desconsiderada. Pergunto: como pode o fonoaudiólogo desconsiderar “a fala singular” de seu paciente? Convém lembrar que Chomsky, representante maior da vertente formalista, insiste na afirmação de que a competência independe da atividade do sujeito. Fatores individuais são, para ele, problemas do desempenho sobre o qual a teoria nada tem a declarar. O fonoaudiólogo, em seu exercício clínico, se defronta, como já disse, exatamente com a face da linguagem que escapa à regra, com o que não é previsível, com o que é residual. Na clínica, o fenômeno lingüístico revela sua face mais inapreensível e heterogênea. A linguagem em sua dimensão patológica é a expressão mais clara e maior do singular, do individual. É a revelação de uma singularidade inscrita na linguagem. Como compatibilizar teorias lingüísticas normativas e/ou formalistas com um fenômeno que escapa ao gramatical, ao correto? Elas não conduzem o fonoaudiólogo para além da caracterização do fenômeno patológico enquanto violação das regras, para além de um diagnóstico que tem se prestado, unicamente, à elaboração de um perfil lingüístico da doença. Como supor, a partir daí, uma terapêutica? Pode-se entender, assim, a impregnação de modelos clínicos advindos da Psicologia e mesmo da Medicina na Fonoaudiologia: técnicas clínicas são também, em grande parte, “emprestadas”. Elas, contudo, não prevêem nem incidem sobre o mesmo objeto – a linguagem. Se, de um lado, o empréstimo de modelos lingüísticos formalistas (que, como vimos, recusam a singularidade da produção do paciente), tem se mostrado inapropriado ao exercício clínico, de outro, dos “modelos clínicos” incorporados, está ausente a linguagem. Ao fonoaudiólogo só pode interessar o fenômeno lingüístico como discurso, como atividade e, mais, como atividade dialógica. Atividade, porque a ele interessa a produção singular do paciente, e esta, sabe-se, escapa à categorização da lingüística tradicional. Não é preciso dizer o lugar que o uso ou o desempenho ocupam nessa teoria. Dialógica, porque outra não é a natureza da clínica. A relação com a Lingüística só será fecunda, a meu ver, quando duas condições puderem ser satisfeitas. A primeira diz respeito à adoção de uma lingüística do discurso, pela razão acima mencionada. A segunda, exige que a Fonoaudiologia abra mão da recorrência histórica de “aplicação” e reconheça que, embora promissora em sua relação com teorias do discurso, as “respostas” para a clínica devem ser buscadas na própria clínica e não fora dela. O que quero dizer é que pressupostos podem ser partilhados por diferentes disciplinas. O que deve ser recusado são apropriações e usos parciais e irrefletidos. Adotar uma lingüística do discurso não significa, portanto, apenas mudar de modelo teórico. Tal adoção envolve um compromisso maior, o do fonoaudiólogo participar da reflexão teórica a partir de seu material singular: os ditos “distúrbios da linguagem”. Isso quer dizer que a Fonoaudiologia deve assumir a responsabilidade de tomar para si a linguagem na sua dimensão patológica como objeto próprio. Ele é o lugar de sua reflexão... “seu mistério”, como diz De Lemos (1992). Só assim poderá vir a construir uma teoria da clínica da qual a área carece. Não se pode desprezar, como se vê, o diálogo com a Lingüística, já que ela é, por excelência, a ciência da linguagem. Lingüística e Fonoaudiologia compartilham o mesmo objeto. O que o fonoaudiólogo não deve admitir é colocar-se na posição daquele que mão pensa mas aplica, quer dizer, na posição daquele que deixa o pensar para a Lingüística e toma o aplicar para si próprio. A partir da assunção de uma perspectiva discursiva, mais especificamente interacionista da aquisição da linguagem, pretendo agora tecer considerações acerca de um modo outro de pensar a prática clínica nos retardos de linguagem. Para isto, torna-se necessário ver brevemente os modos de intervenção clássicos nos quadros de retardo de linguagem. Três momentos podem ser nitidamente delimitados relativamente ao fluxo de intervenção do fonoaudiólogo, quais sejam: o da entrevista, o da avaliação e o da terapia propriamente dita. Na entrevista, colhia-se o histórico do paciente tomado como fato, quer dizer, a anamnese era entendida como reveladora da “verdade” a respeito da criança. A fala dos pais adquiria valor da “literalidade”, era insuspeitável. A escuta do clínico, nesta abordagem, muito se aproxima daquela que, segundo Barthes (1990) pode ser configurada da seguinte forma: “há de um lado aquele que fala, que se entrega, que confessa e de outro lado, aquele que escuta, que se cala, julga e sanciona”. O fonoaudiólogo, buscando a “verdade”, decodificava mensagens que deveriam ser reveladoras da etiologia. Para tanto, realizava um “esforço de atenção”, elegendo informações relevantes. Tal atitude deve ser evitada, diz Barthes. Ao abandonar tal escuta, “nos livramos do perigo inerente a toda atenção intencional, (do) perigo de escolher entre informações que nos são transmitidas”. O que se considera como importante (ou irrelevante) é, segundo ele, ditado por expectativas e tendências prévias. E completa, citando Freud: “ao adaptar nossa escolha à nossa expectativa, corremos o risco de encontrar o que de antemão já sabíamos” (apud Barthes, 1990). Podemos dizer que o clínico buscava, na realidade, o que, de certa forma, era previsível e/ou desejável: dados sobre o desenvolvimento orgânico da criança que pudessem justificar o estado patológico. Assim, o doente desaparecia em favor da doença. A entrevista, em última instância, reeditava o que já sido dito na instância teórica e determinado em outras áreas do saber.4 Do orgânico passava-se, então, à linguagem. Tinha início a avaliação, momento em que se investigava aquilo que estava ausente: a própria linguagem (como é freqüente nos casos de retardo). Avaliação que sempre tomava o modelo formalista da Lingüística tradicional como panode fundo. As possibilidades de proceder eram as seguintes: a primeira era de inspiração inatista. Embora não manifesta enquanto produção, ainda assim a linguagem “podia” ser avaliada como compreensão. As capacidades analíticas, biologicamente dadas, precedem e garantem a produção, o desempenho. O paciente era submetido, por isso, a uma bateria de testes ou provas. Fatores como extensão do enunciado e a complexidade morfossintática do discurso do terapeuta determinavam o nível de compreensão da criança. O segundo modo de avaliação era de inspiração piagetiana. Observavam-se as construções sensório-motoras. Neste caso, ou se realizava uma série de provas de cognição, ou então se atentava para a organização do “brincar”. Tanto o resultado das provas como o da análise da brincadeira solitária deveriam revelar o nível do desenvolvimento simbólico da criança. Avaliava-se, portanto, em que período do estágio sensório-motor encontrava-se o paciente. Por isso o atraso no desenvolvimento cognitivo era entendido como agente causador do quadro de linguagem (ver Zorzi, 1987 e Seber, 1980). 4 Essa discussão tem sido encaminhada em conjunto com Ruth Palladino e Francisco Lier-De Vitto. A terceira possibilidade de investigação destes quadros surgiu no início da década de 80, fortemente influenciada pelos primeiros estudos interacionistas e, portanto, também pela Pragmática. Ela consistia na observação das condutas comunicativas da criança, reveladoras das “intenções” ali contidas. A linguagem era entendida como extensão de tais condutas. Porém, a possibilidade de passagem do domínio comunicativo para o lingüístico nunca mereceu a reflexão dos fonoaudiólogos, que apenas acrescentavam um novo item ao conjunto dos comportamentos da criança a serem descritos. Não é por acaso que tais avaliações, muitas vezes, apareciam conjugadas às de cunho inatista, ou mesmo às piagetianas. Linguagem e comunicação eram domínios aceitos como equivalentes e a segunda, pré- requisito para a primeira. Este me parece um bom momento para mostrar que, nas três abordagens acima discutidas, a hierarquia conhecimento – uso está presente. Sobre esse ponto elas convergem. No caso da proposta inatista é saber prévio e necessário ao desempenho. Na piagetiana, o saber é outro: trata-se de esquemas cognitivos. Para os interacionistas, a comunicação é o conhecimento anterior que assenta as bases para a linguagem. Deve-se pensar que o aprendiz, em que pelo menos um aspecto, é o mesmo. É ele quem analisa o input lingüístico. A diferença corre por conta da natureza do saber, pressuposto em cada uma das vertentes acima. Todas essas práticas nunca ultrapassaram (e não poderiam fazê-lo) o limite da descrição da linguagem, enquanto falta. A avaliação consistia em elencar as (im)possibilidades da criança e, na maior parte das vezes, nada mais era que uma paráfrase da queixa da família. Por isso, não esclareciam o diagnóstico, nem iluminavam o próximo passo: a terapia. Esta, como já vimos, operava outro salto: o de aproximação-apropriação de técnicas comportamentalistas da clínica psicológica. Na verdade, talvez se aproximasse mais da Pedagogia, uma vez que a complexidade envolvida no controle dos estímulos e dos reforços para a modelagem da resposta foi raramente assumida. Operava-se, de fato, com uma noção genérica de “ensinar”, de “corrigir”. Note-se que do orgânico, focalizado na entrevista, passava-se para o lingüístico e deste para o pedagógico. Na realidade, em tal intervenção, o discurso do fonoaudiólogo era, no dizer de Palladino (1992), um “bloco de colagens” sem conteúdo próprio. Discurso que gerava uma aparente coerência e que conferia ao dizer do fonoaudiólogo uma aparente exatidão. Em oposição a este estado de coisas, poder-se-ia entender esses três momentos terapêuticos como necessariamente imbricados. Pode-se avaliar ao longo da atividade terapêutica e integrar a entrevista ao processo dito de avaliação. Cada um desses rótulos ganharia assim um novo sentido. Essa mudança deve envolver uma outra concepção de linguagem, como veremos mais adiante. Na entrevista, o terapeuta deve buscar não o “verdadeiro”, o “literal”. O discurso da família deve ser mais que ouvido e registrado. Deve ser escutado de forma bastante singular e na sua singularidade. Nele, estará inscrito o lugar designado para a criança na linguagem, como tem sido dito por Lier-De Vitto (1992). Nele, estão os indícios que podem levar à elaboração de um sentido, a um entendimento do silenciamento da criança.5 Embora a criança não fale, no discurso do outro ela é falada. É nesse sentido que a entrevista se compõe com a “avaliação”6: a linguagem do outro também está a mercê de interpretação, da “avaliação” do clínico. A ele fica delegada a tarefa de escutar e não apenas ouvir. Parto de Barthes (1990), que propõe uma distinção importante entre ouvir e escutar. Ouvir é, segundo ele, um fenômeno fisiológico, enquanto que o escutar é um ato psicológico definível por seu objeto. O autor vai além e discute a existência de pelo menos três tipos de escuta. A escuta indicial está presente tanto no homem como no animal. Ela torna o confuso (o indiferente) distinto (pertinente). É indicial porque um sinal efetivo, presente, anunciando uma ausência que lhe é contígua. O ausente é evocado pelo sinal presente. Um ruído, por exemplo, pode anunciar o agressor. A escuta de decodificação implica a capacidade de leitura, ou seja, de atribuição de significado. É, portanto, possibilidade unicamente humana. “Escutar é decodificar o que é obscuro, confuso ou mudo.” Se, por um lado, a noção de decodificação implica escutar o opaco, implica também a possibilidade de revelação de uma verdade, de um significado. A decodificação tem o poder de tornar o opaco, transparente. Como vimos acima, é essa escuta 5 Sobre a distinção entre silêncio e silenciamento, ver Orlandi (1987). 6 Note-se que “avaliação” adquire novo sentido. Por isso coloco entre aspas como termo a redefinir. que impera na intervenção fonoaudiológica clássica. Ela é intencional, isto é, parte da intencionalidade do terapeuta como sujeito capaz de regular a relação intersubjetiva e supõe, também, o controle da informação. Não é outra coisa que a noção de intencionalidade sugere: há uma verdade que pode ser dita e decodificada. Haverá, então, opacidade? A terceira escuta, para Barthes, é radicalmente distinta das anteriores. Ela não visa apenas o que é dito ou emitido, mas aquele que fala e se desenvolve em um espaço intersubjetivo. Ela implica a noção de inconsciente, diz ele. A escuta psicanalítica é, para Barthes, exemplar desta terceira escuta: “o que é oferecido para ser ouvido por essa escuta é exatamente aquilo que o indivíduo que fala não diz” (Denis Vasse, apud Barthes, 1990:225, grifo meu). Nesse sentido, considero que ela não é exclusiva da Psicanálise e que pode, por isso, interessar também ao fonoaudiólogo. Aqui, a interlocução é responsável pela construção de sentidos. Vê-se que tal concepção implica entender a linguagem não como comunicação e nem como transmissão de mensagens, mas como efeito de sentido. É isto que tem sido defendido por Eni Orlandi na Análise do Discurso e por Cláudia T. G. de Lemos na Aquisição de Linguagem. A discussão feita por Barthes serve, contudo, aos propósitos deste trabalho, na medida em que propicia o esclarecimento de revoluções contidas no abandono de uma concepção de linguagem e na assunção de outra, principalmente no que concerne ao papel do outro: o do terapeuta,no caso. Na intervenção fonoaudiológica clássica, como vimos, o significado era tomado como literal. Nesta outra leitura da clínica, a que sugiro aqui, podemos dizer com Orlandi (1987) que “não há um centro, que é o sentido literal e suas margens, que são os efeitos de sentido. Só há margens. Por definição, todos os sentidos são possíveis [...} no processo, que é a interlocução, os sentidos se recolocam de forma múltipla e fragmentária” (p.144). Tal concepção em muito se aproxima com a terceira escuta proposta pro Barthes. Vejamos porque: “o que é escutado aqui e ali não é um significado, objeto de reconhecimento ou decifração, é a própria dispersão” (grifo meu).7 7 Convém assinalar que em Barthes decodificação e decifração são sinônimos. Assim, o fonoaudiólogo deve, a partir dessa escuta, atribuir um sentido inédito à história do paciente. A entrevista surge como lugar/momento de compreensão do silenciamento do paciente. Se, como diz Rubino (1989), “o discurso da mãe faz falar o bebê”, eu acrescento que ele também pode fazê-lo calar. Entender a linguagem de uma criança (que não fala) implica, obrigatoriamente, observar como ela é falada, como ela aparece no discurso do outro. É ali que a criança é eregida como sentido para o terapeuta: da entrevista nasce o discurso do terapeuta. Discurso...sentido. Sentido, que se constitui no texto/diagnóstico que norteará a atividade terapêutica propriamente dita. Essa escuta/discurso sustentará a entrevista e todo o processo de intervenção. Vê-se por que ganha relevo o que se fala sobre a criança na entrevista e também o que se diz para a criança no processo de avaliação-terapia. A família cria esse “personagem” (termo de De Lemos). É no texto familiar que reside a possibilidade de compreender por que a criança ficou paralisada naquele papel e não se desdobrou em “ator e autor”. Transformação que, também, segundo De Lemos, caracteriza o processo de aquisição da linguagem. O que impede esse desdobramento (a conversão do discurso do outro na ilusão do discurso próprio) é uma questão para a clínica. Note-se que o dizer da criança é determinado, segundo essa visão, pelo do outro. Para o fonoaudiólogo, é imprescindível pensar uma concepção de linguagem como esta. Caso contrário, como pensar o papel do clínico? A ele ficará delegado o papel de um “outro” “que, por estar submetido à ordem da linguagem, pode por isso ‘resolver’ o enigma, atribuir-lhe um sentido” (Lier, 1992) ... um novo sentido. O terapeuta é intérprete diferenciado por duas razões. Primeira, porque se trata de alguém instrumentalizado por uma teoria de linguagem; segundo, pelo fato de, por estar por fora da história da criança, poder criar “novas” interpretações virtualmente capazes de fazer circular o que estava paralisado. Convém lembrar que, se no processo de apropriação da linguagem pela criança ela “incorpora fragmentos do dizer alheio (...) [e que] o significante circula por muitos lugares e se compõe com outros em organizações possíveis; isolado ele não é mais do que um precipitado de sentidos, de possibilidade de significar. O significante insiste, convoca uma leitura”, diz Lier-De Vitto. Leitura que caberá também ao terapeuta fazer. Ao se oferecer como espelho (intérprete) para o paciente, ele poderá abrir a possibilidade de (re)significar a história da criança e de (re)introduzi-la na ordem do simbólico. Note-se que a clínica passa a poder ser entendida, também, como espaço de alteridade constitutiva. É a partir do seu discurso sobre o silenciamento da criança que o terapeuta lhe abre, também, um novo lugar na linguagem. Essa concepção de linguagem contempla pontos essenciais à reflexão do fonoaudiólogo. Nela, o Outro ocupa lugar central. O singular – “as margens” – volta à cena. O importante é que o fonoaudiólogo não perca de vista o conjunto de pressupostos implicados nesta concepção de linguagem. Só desse modo ele evitará incorrer no antigo vício da aplicação, vício este que empobrece o fenômeno clínico e fere a teoria que “adota”. Ambos, teoria e clínica, envolvem uma complexidade que não deve ser minimizada ou simplificada. Entendo o diálogo com a Lingüística como necessário e promissor. Porém, ele deve ser assentado em bases que impliquem colaboração e não submissão de uma área à outra. Ao fonoaudiólogo resta a exigência da criação de um “texto próprio”, que se origine deste diálogo e da análise do objeto que lhe é particular (e nem por isso estranho à Lingüística). Entender a clínica a partir dessa perspectiva implica abrir mão da solidez de um saber normativo, exato e formalizado. Implica arriscar-se pela via de outra possibilidade de compreensão da clínica. Via em que a dispersão, a “inexatidão” sejam o desafio. Finalizo, fazendo minhas as palavras de Rodulfo (1990) ao discutir as relações entre a Psicanálise e a Psiquiatria. Diz ele: “há coisas mais perigosas que a inexatidão: uma delas é a aparência de exatidão, a exatidão simulada”. LIER-DE VITTO, Mª F. (Org.) Fonoaudiologia: no sentido da Linguagem. 2ª Ed. p. 23-31. São Paulo: Cortez Editora, 1994 Referências Bibliográficas BARTHES, R. O óbvio e o obtuso. São Paulo, Nova Fronteira, 1990. COUDRY, M. I. 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