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a c o l e c ç A o S T V D I V M GIORGIO DEL VECCHIO C O L E C Ç Ã O S T V D I V M TEMAS FILOSÓFICOS, JURÍDICOS E SOCIAIS GIORGIO DEL VECCHIO da Universidade de Roma o HhH W Ctí A R M Ê N I O A M A D O Editor - Sucessor LIÇÕES DE FILOSOFIA DO DIREITO 5.“ Edição TRADUÇÃO DE ANTÓNIO JOSÉ BRANDÃO REVISTA E PREFACIADA POR L. CABRAL DE MONCADA E ACTUALIZADA POR ANSELMO DE CASTRO A R M É N I O A M A D O — E D I T O R , S U C E S S O R - C O I M B R A LIÇÕES D E FILOSOFIA DO DIREITO C O L E C Ç Ã O S T V D I V M TEMAS FILOSÓFICOS, JURÍDICOS B SOCIAIS GIORGIO DEL VECCHIO Professor da Universidade de Roma LIÇÕES DEFILOSOFIA DO DIREITO TRADUÇÃO DE ANTÓNIO JOSÉ BRANDÃO J.a EDIÇÃO CORRECTA E ACTUALIZADA SEGUNDO A IO.a E ÚLTIMA EDIÇÃO ITALIANA REVISTA E PREFACIADA POR L. CABRAL DE MONCADA E ACTUALIZADA POR ANSELMO DE CASTRO A R M É N I O A M A D O - E D I T O R , S U C E S S O R - C O I M B R A - 1 9 7 9 Titulo original: «Leziooi dl Filosofia dei Dtrltto» Autor: Giorgio Del Vecchio Direitos exclusivos em língua portuguesa de Arménio Amado — Editor, Sucessor Ceira — Coimbra — Portugal —1979 Colecção Studium, n.01 58 e 59 P R E F Á C I O A Filosofia do direito hoje mais em voga, é de data rela tivamente recente. A sua história não vai muito além de uma geração, remontando a pomo mais de sessenta anos. Se tomarmos como ponto de referência, para marcar o início dessa modernidade, o momento da renovação da filosofia de Kant no século transacto, poderíamos dizer que tal filosofia se subdivide fundamentalmente em dois períodos separados um do outro pela primeira guerra mundial: o do Neokantismo e o da reacção contra ele. Devemos, sem dúvida, ao primeiro o des pertar da reflexão filosófica no campo jurídico, depois do largo período positivista que acompanhou quase toda a segunda metade do século xix. Já, porém, lhe não devemos o estado mais actual da nossa consciência filosófica em nenhuma das grandes directrizes em que esta se afirma. Ao grito de Liebmann, «zuriick zu Kant» (voltemos a Kant), de 1865, sucedeu um estado de espírito que se poderia talvez exprimir melhor pelo grito precisamente oposto: fujamos de Kant. Ê preciso reconhecer isto: a mais moderna filosofia ultrapassou Kant numa larga frente, e foge dele. E contudo, facto não menos notável: a influência e a sombra de Kant continuam a persegui-la. Hoje, como escreveu Oktega, as portas da «prisão kantiana» parecem abrir-se de par em par. Os presos evadem-se de lá um a um! E contudo esses presos evadidos conservam ainda cá fora, já na liberdade, muitos dos hábitos contraídos na prisão. 8 PREFACIO Ao subjectivismo da Crítica kantiana sucedeu o óbjecti- vismo de um conhecimento de novo voltado para o ser. Toma ram a reatar-se neste ponto, em determinados sectores do pen samento filosófico contemporâneo, as melhores tradições da Philosophia perennis. 0 ser, a realidade, e a Ontologia que os estuda, protendem a retomar o seu antigo lugar no centro da especulação filosófica, submetendo a si novamente, embora seguindo outras vias, como nos melhores tempos da Grécia e da Idade Média, o estudo do sujeito, da lógica e da Teoria do conhecimento. A «revolução copemiciana», a que aludia o símile de Kant, insiste em produzir-se, mas desta vez no sentido inverso do imaginado pelo filósofo de Konigsberg. Os termos da pro blemática gnoseológica são, uma vez mais, invertidos ou, pelo menos, profundamente modificados nas sum relações. No centro do sistema solar do conhecimento fica, outra vez, o objecto. E gravitando em volta dele, como a Terra em volta do soi, está outra vez o sujeito. Mais do que isso: Constituindo como que o fundo longínquo, mas não já julgado de todo inacessível ao nosso órgão visual filosófico —espécie de esfera celeste sobre a qual este novo-velho sistema planetário das relações entre o sujeito e o objecto se desenha— eis outra vez retomada a Metafísica, que Kant prudentemente tentara afastar, que os neokantianos quiseram radicalmente eliminar, e dentro da qual voltam a perfilar-se todas as inquietações e anseios de infinito que agitam a alma contemporânea. Mas, facto não menos curioso: este estremecimento ê o de uma alma muito mais rica na consciência de si mesma, e isso precisamente devido, em grande parte, às profundidades da própria reflexão kantiana. Esta, nos seus grandes traços, a situação do presente. A moderna Filosofia do direito, hoje mais em voga, nasceu pois sob o signo do Neokantismo, e foi um rebento da grande árvore da filosofia kantiana. E se hoje, passados cerca de trinta anos, vemos aquela enveredar, em larga medida, por outros caminhos em demanda de outros horizontes, como por exemplo, os de um novo idealismo objectivo ou os de um novo Direito natural, PREFACIO 9 em que o melhor da Escolástica ressurge renovado, a primeira pergunta a fazer aos representantes destas diversas correntes, é e será sempre a mesma: — como forçaram eles as portas da prisão? Por onde saíram dela? Que elementos conservaram da lição de Kant? Ponhamos justamente estas perguntas a respeito do ilustre filósofo-jurista italiano, Giorgio del Vecchio, cujas Lezioni saem hoje em tradução portuguesa, à qwal estas despretenciosas linhas pretendem servir de prefácio. Qual o seu sistema de ideias? Em que relação se acha com Kant e o Neokantismo? Em que medida os ultrapassa? • A construção de ideias de del Vecchio nasceu em 1902, depois de largos estudos feitos na Alemanha, com o seu primeiro trabalho, intitulado II sentimento giairidico. Aí encontramos já em germe todo o seu ulterior sistema de ideias filosóficats, como este veio a desenvolver-se. Nasceu tal sistema sob o signo do Neokantismo, então em plena ascensão. A influência de Mar- burgo e as afinidades com o pensamento de Stammler são nele inegáveis. Tal qual este, del Vecchio atribui também à Filo sofia do direito, como objecto próprio das suas investigações, estes dois temas capitais: a determinação do conceito de direito, e a determinação do ideal jurídico. Que é direito, e como deve ser o direito? Eis aí também as duas preocupações máximas iniciais do filósofo italiano. A primeira chama-se uma questão lógico-gnoseológica; à segunda uma questão ético-axiológica. A primeira refere-se ao conhecer e ao conhecimento; a segunda ao dver ser e ao obrar. S certo que del Vecchio lhes acres centou uma terceira, empírico-fenomenológica, relativa ao ser histórico-social do direito, afastando-se neste ponto da sua ins piração kantiana de origem. Mas esta terceira parte ou capítulo da sua temática, diga-se de passagem, é hoje considerada uma espécie de corpo estranho e menos filosófico no sistema das 10 PREFACIO suas ideias, devendo ver-se nela antes o resíduo das correntes do sociologismo naturalista do século xix, ou seja, do positivismo e historicismo, que ainda se reflectem na formação do seu espírito. Mais importante, porém, é notar as posições fundamentais a que o ilustre professor italiano se soube elevar no segundo dos temas capitais, a que acabamos de nos referir, dado que no primeiro ele pode ser considerado um neókantiano da Escola de Marburgo. Ê, com efeito, na parte referente à determinação do ideal jurídico que del Vecchio sobretudo ultrapassa o kan- tismo, fundando uma nova metafísica. Já se tem chamado ao sistema de ideias delvecchiano um «idealismo crítico». Isto, sem dúvida, em atenção ao subjecti vismo transcendental do seu ponto de partida: a Oiítica da Razão paira. Tal designação contudo está longe de ser justa, se sem reservas a quisermos aplicar ao todo desse sistema. Se conservarmos à palavra «crítico» o seu significado rigorosa mente filosófico, a designação só poderá aplicar-se à primeira parte das suas investigações. De «idealismocrítico» só há na sua obra a atitude inicial; digamos: o primado por ele atribuído ao problema do conhecimento, a maneira como procura deter minar a priori o conceito de direito; e ainda a sua maneira de conceber as relações entre o direito e a moral. Mas este «idea lismo crítico» já do mesmo modo se não revela, com a mesma pureza e intensidade, na segunda parte da temática do filósofo, onde ele é menos fiel à primeira orientação, para se deixar atrair na órbita de outros mundos de ideias. A determinação do ideal jurídico, ou seja, do direito justo, é aquela parte da Filosofia jurídica, a que quase exclusivamente se consagram os filósofos juristas de todos os tempos, e a que mais usualmente se dá o nome de Direito natural. E sabe-se que o Neokantismo, com Stammler e del Vecchio, reagindo contra o positivismo e o naturalismo do século xix, e apesar da raiz kantiana do seu pensamento, foi neste século, fora da Escolástica, o verdadeiro restaurador da ideia dum Direito natu- rol. Isto é inegável. Como procurou, porém, del Vecchio assen tar e fundamentar a sua concepção de um Direito natural? Diremos só duas palavras a este respeito, por estar aí o punctum saliens da sua emancipação do kantismo. Kant der ar nos, como é geralmente sabido, o derradeiro termo na linha de evolução das ideias jusnaturalistas do século xvm. Também ele foi, sem dúvida, jusnaturalista. Mas o seu Direito natural, pelo total esvaziamento da Razão (Ver- nunft) dos seus conteúdos empíricos, ficara reduzido a uma forma vácua e pobre, espécie de moldura sem quadro, tabela sem números, ou ainda a uma figura abstracta à qual fora rou bada toda a vida. Além disso, esse direito deixou de se impor do exterior ao homem, passando a impor-se-lhe do interior. Deixem de estar necessariamente ancorado num ser transcen dente ou numa natureza repleta de momentos empíricos, para ser considerado uma simples lei da Razão. Os seus preceitos ideais, universais, não iam além disto: «obra por maneira que possas sempre tratar a vontade livre e racional, isto é, a huma nidade, em ti e nos outros, como um fim e não como um meio». Ou ainda: «obra por forma que a tua liberdade (não o mesmo que o arbítrio) possa sempre harmonizar-se com a liberdade dos outros, segundo uma lei geral de liberdade para todos». Tudo o que de concreto podia extrair-se do conceito de direito para Kant, como direito natural, consistia nisto. Com Kant o jusnaturalismo mirrara-se num absoluto e total jusracionalismo, convertida a Razão numa forma pura e sem conteúdos. Esta orientação foi também ainda a seguida por Stammler. Stammler, porém, já lhe não foi inteiramente fiel. O formar lismo criticista deste filósofo já não foi tão rígido como o de Kant. Assim, quando ele tratou de definir o seu conceito de Direito natural, aliás englobado na ideia formal de justiça, vol taram a aparecer dentro dele, inopinadamente, certas ideias, como a de personalidade livre e a de comunidade humana ou Estado, que, embora ele o não pensasse, tinham muito mais de empírico que de puramente racional e estavam longe de cor PREFACIO 11 12 PREFACIO responder a puras formas lógicas. Por outro lado, a preocupa ção teleológica ou finalista, embora sem projecção metafísica, que Kant arredara, voltava também a desempenhar na cons trução de Stammler um importante papel. Ora importa notar que este afastamento, a princípio quase insensível, do pensamento kantiano, e sobretudo este abraçar de preocupações teleológicas, vêm a produzir-se em del Vecchio num grau muito maior do que em Stammler, conduzindo-o a edificar, por último, na base do seu neokantismo, um verda deiro e novo sistema metafísico de ideias. E este é o ponto decisivo. A natureza humana à qual del Vecchio vai buscar o cri tério para definir o ideal jurídico, o direito justo, com efeito, nem é uma realidade puramente empírica, como era para muitos dos jusnaturalistas clássicos, nem mera ideia racional e a/penas formal, como era para Kant. Ê antes uma realidade espiritual orientada por fins e fazendo parte de um universo também teo logicamente estruturado. «A natureza humana é, neste sentido — diz ele — um princípio vivo que anima o universo e se exprime na infinita variedade do seu desenvolvimento. S aquela substância que reconhecemos imune da angústia da causalidade: a razão anterior que dá normas a todas as coisas e lhes assina a sua própria tendência'». E uma tal visualização teológica — note-se desde já — não é, como era para Kant e os neókan- tianos, um simples princípio regulativo, heurístico, da nossa compreensão de certas coisas, ou um certo ângulo de visão ou ponto de vista não essencial, só aplicáveis à esfera do humano. Ê mais. Ê uma estrutura da realidade que abarca o universo e o homem. Trata-se de uma teleologia não regvlativa, mas cons titutiva e carregada de momentos ontológicos. Ê, porém, evi dente que uma tal concepção da natureza humana, como a da natureza em geral, está já muito para além do kantismo, e constituü uma nova metafísica. E o mesmo se diga do conceito de personalidade humana que está na base destas ideias. Che gado a este ponto, dir-se-ia que é aí que o nosso filósofo dban- PREFACIO 13 dona definitivamente a lição de Kant, sem poder permanecer por mais tempo dentro do ergástulo kantiano. Foi por aí que del Vecchio se evadiu dele: pela porta das concessões —que aliás o Neokantismo, com Stammler, já começara a fazer — às visualizações teleológicas da realidade, através das quais vol tavam a descortinar-se, cá fora, em vasta perspectiva, as sedu toras paragens metafísicas. O ilustre mestre italiano alargou ainda mais esse buraco, já aberto nas grades da dita prisão, pelo teleólogismo stammleriano. E contudo, conforme já atrás notámos, também neste caso o evadido de tal prisão não pode esquecer-se dela, e continuou a conservar vivo o hábito das for mulações gnoseológicas de nítido sabor kantiano. Ao dar-nos o preceito supremo do seu Direito natural, o formalismo kantiano ergue-se de novo. Assim é dele esta fórmula: «obra por maneira que sejas, não simples meio ou veíoulo das forças da natureza, mas um ser autónomo com a dignidade de princípio e fim; não como indivíduo empírico {homo phaenomenon), mas como ser racional (homo noumenon»). Não parece estar-se a ouvir ainda a voz do mesmo Kant? E poderemos nós depois disto continuar a chamar ainda Idealismo ao sistema de ideias de del Vecchio? Se por Idealismo entendermos o Idealismo crítico, subjec tivo e transcendental, que reduz todo o mundo das nossas repre sentações a um jogo de formas criadas por uma «consciência em si mesma*, uma Bewusstsein überhaupt, não necessária e ontólogicamente ancorada num ser transsuibjectivo, absorvida toda a filosofia numa Teoria do conhecimento, como já disse mos acima, é evidente que não. Aquilo que ele conserva de Kant não é o bastante para o incluir sob a rubrica desse .. .ismo. Neste sentido, del Vecchio não é kantiano nem idealista. O seu Idealismo não é um Idealismo epistemológico nem critico. Mas se por Idealismo entendermos toda a outra concepção do uni verso caracterizada péla afirmação de uma realidade metafísica das ideias, quer em sentido platónico, como transcendência, quer aristotélico, como imanência, então poderemos tranquilamente 14 PREFACIO continuar a chamar a del Vecchio um idealista. Simplesmente: o seu idealismo será então um Idealismo metafísico. O Idealismo de del Vecchio é, além disso, uma forma de Idealismo parecida em vários aspectos com muitas outras que pulularam na história da filosofia do século xix e do actual, em que, como já foi notado por Recasens (*), tomam a aparecer muitos momentos derivados de todas as grandes correntes do Idealismo alemão post-kantiano. Fichte com a sua concepção do Eu, principio absoluto e autónomo,do qual toda a realidade do não-eu não passa de ser uma função; Schelling com o seu organicismo teleológico e metafísico, inspirador do sistema de Krause; Hegel com o seu panlogismo também metafísico, de uma Razão universal que acaba por se fazer natureza, cons ciência e espirito, a si mesmo se contemplando como pensamento absoluto, etc., todos estes momentos, com efeito, surgem aqui e além, como ingredientes de rápida fulguração que logo se diluem, absorvidos na síntese do pensamento delvecchiano. Nele, poderia dizer-se, estão em germe todas as formas conhecidas do Idealismo ocidental. Poderíamos também chamar-lhe por essa razão um Idealismo ecléctico. Recentemente, del Vecchio converteu-se ao Catolicismo. Este facto tem levado alguns escritores a darem ao sistema das suas ideias uma nova interpretação, tendente a desligá-lo de certos dos seus momentos kantianos, principalmente do que no kantismo há de formalismo ético e jurídico, bem como de muitos dos seus ingredientes hegelianos e scheTlinguianos, para o aproximarem de outras concepções e pontos de vista mais consentâneos com um jusnaturalismo escolástico de pura base tomista. Pretendeu-se descobrir aí como que o balbuciar duma verdade eterna e absoluta, em profunda concordância com as verdades fundamentais do Cristianismo. (') Direcciones contemporâneas dei pensamiento jurídico, pág. 107. PREFACIO 15 Conquanto, na sua generalidade, nos pareça inteiramente justificada esta última pretensão, não julgamos, porém, viável nenhuma tentativa de interpretação das ideias de del Vecchio em conjunto sobre a base de uma amputação de tal natureza de quaisquer dos momentos que elas contêm. Uma amputação destas equivaleria a uma violência praticada contra a realidade histórica do sistema que elas constituem, como esse sistema foi vivido e pensado pelo seu autor. Se o sistema pode em si mesmo ser considerado como contendo algo de contraditório, é preciso reconhecer que tal contradição está sobretudo na época e na situação histórica mental, de que ele emerge. Há contradi ções orgânicas no íntimo de muitos sistemas de ideias, cuja tentar tiva de eliminação, longe de os purificar, os torna simplesmente incompreensíveis como dado existencial de um pensamento vivido. Por isso, concluímos: O sistema de ideias do ilustre autor destas Lezioni pertence historicamente, de uma maneira definitiva, ao quadro da filo sofia idealista dos fins do século xix e mergulha as suas raízes no terreno das mais autênticas tradições do Idealismo alemão kantiano, post-kantiano e neo-kantiano. Ê a tentativa de uma síntese dessas três formas de Idealismo, reflectindo osque todas elas aliás têm de inacabado e de contraditório entre si. Nenhum desses elementos contudo assume nele a consistência de uma orientação ou directriz assaz forte, para lhe poder ser atri buída a nacionalidade de uma qualquer dessas três formas de Idealismo como única e exclusiva. Nem tão pouco os seus mo mentos metafísicos e jusnaturálísticos estão suficientemente libertos de preocupações «críticas», para se supor que na con tinuação da linha lógica do sistema possa vir a encontrar-se, ao fim e ao cabo, a pura escolástica tomista. A obra deste insigne filósofo-jurista pode, numa palavra, caracterizar-se, na sua suprema intenção filosófica —e nisto 16 PREFACIO vai a melhor homenagem que lhe podemos e devemos prestar — como mais um grande esforço por conciliar entre si as duas grandes correntes deste século, principalmente a partir da pri meira guerra mundial: a das exigências do espirito critico, aplicado a todo o conhecimento, de que foi paradigma a lição de Kant, e a das novas exigências de um mais puro idealismo ético. Por outras palavras: entre o que de eterno há em Kant, e as aspirações de uma nova Êtica de valores materiais, não simplesmente formais —no sentido de Max Scheler— supe- radora de todo o logicismo, a acenar para uma nova metafísica em que volta a ver-se ao longe o clarão das grandes verdades do Cristianismo. A solução pessoal religiosa que o nosso ilustre amigo deu ao problema dessa conciliação, não é uma solução lógica do sistema, como já contida nele, mas uma solução do «homo religiosus», para além de todo o filosofar, que é del Vecchio. Cabral de Moncada DUAS PALAVRAS DO TRADUTOR Costuma-se dizer que os livros também possuem um destino. Se fosse necessário ilustrar com um exemplo o adágio, nenhum outro melhor podia ser encontrado que o das Lições de Filosofia do Direito do ilustre Reitor da Universidade de Roma, o Pro fessor Giorgio del Vecchio. Editadas pela vez primeira em 1980, dois anos depois, em 1982, tomava-se necessária outra edição, já esgotada em 1986, ano em que se publica a terceira. A guerra impediu que saísse nova edição em 1989; esta é publicada em 1944; mas, logo no ano seguinte, houve necessi dade de imprimir a 5.° — a mesma que nestes dois volumes se apresenta ao mundo da cultura lusíada na versão portuguesa. Entretanto, o livro havia feito carreira fora da Itália. Tror duzido para espanhol, francês, alemão, turco e japonês, correra mundo, por toda a parte recebendo o prémio devido ao autor pelo notabilíssimo esforço precursor de que as lições são o coroar mento e a síntese. Com o brilho e a proficiência habituais, fez o meu querido Mestre e Amigo, Professor Cabral de Moncada, a biografia espiritual do Professor del Vecchio. Seja-me permitido, no entanto, acrescentar o seguinte: o êxito destas Lições deve-se ao facto de nelas o seu autor ter sabido, com arte consumada, tomar a Filosofia do Direito acessível a todos os juristas, mesmo àqueles destituídos de formação especializada. Todas as ques tões que ao jurista como tal interessam foram pelo Professor del Vecchio filosoficamente enfocadas e tratadas. T d - 2 18 DUAS PALAVRAS DO TRADUTOR Muitas vezes se repreende a Filosofia do Direito -por andar longe do mundo e da luta dos humanos interesses; e os seus cultores, por se alhearem das preocupações correntes do homem de leis, para nada os ajudando no momento em que melhor ou mais fundamente desejam meditar o Direito. Pois bem: o reparo não pode ser dirigido a estas Lições, onde se mantém contacto estreito com os dados da vida jurídica, sem todavia se cair na redundância inútil de repetir em termos filosóficos o já dito pela ciência dogmática do Direito. Eis a razão pela qucU elas têm actuado, por toda a parte, como despertador eficaz da vocação filosófica dos juristas. Oxalá continuem a cumprir em Portugal tão afortunado como benéfico destino. António José Brandão PREFÁCIO DO AUTOR  7A EDIÇÃO ITALIANA (1950) A revisão a que foi submetida a presente edição não intro duziu na obra nenhuma modificação substancial. Breves foram os acrescentamentos sofridos pela parte histórica (por exemplo, quanto à Filosofia do Direito na Alemanha) e o mesmo se diga dos sofl idos pela parte sistemática (por exemplo, os relativos ao Tribunal constitucional, aos direitos potestativos, ao matriar cado, à ideia de progresso e à luta pelo justiça). Fizeram-se também alguns retoques com o fim de introduzir na exposição maior clareza e precisão. Por último, em ordem a atingir o mesmo fim, introduziu-se igualmente leve alteração na ordem das matérias, no tocante às normas técnicas e aos destinatários das normas jurídicas. Possam os desvelos consagrados a esta nova edição e os melhoramentos nela introduzidos testemunhar, ao menos, a gra tidão do autor pelo constante e cada vez maior favor com que a obra tem sido acolhida pelos estudiosos. Roma, 1950 PREFÁCIO DA 8A EDIÇÃO A presente edição foi também objecto de uma nova revisão do autor, apesar do reduzido tempo decorrido sobre a prece dente. Nela se introduziram numerosos retoques e alguns adita mentos, como sejam, quanto a estes, as maiscompletas refe rências, na Parte Histórica, a Gioberti, Mazzini e a outros autores italianos e estrangeiros, com o que se preencheram várias lacimas; e, na Parte Sistemática, a reelaboração e melhor esclarecimento de alguns pontos, por exemplo, dos factos e actos jurídicos, o Estado e a sociedade dos Estados, etc. Sem nada prejudicarem a índole originária da obra, de manual escolar, os desenvolvimentos que vêm sendo introdu zidos, progressivamente, nas várias edições, não deixarão tam bém de ser de algum modo úteis aos estudiosos em geral das doutrinas jurídicas. Roma, 1951 PREFÁCIO DA PRESENTE ÍOA EDIÇÁO A presente 10.a edição, ao contrário da 9.a edição, quase idêntica à precedente, contém várias alterações e aditamentos de certa importância, tanto na Parte Histórica como na Siste mática. Aditou-se também a esta edição um índice analítico, de acordo com os votos expressos por alguns estudiosos. Rama, Dezembro de 1957 B I B L I O G R A F I A BAROLI, Diritto naturale privato e publico (6 vol., Cremona, 1837) Rosmini, Filosofia dei diritto (2.* ed., Intra, 1865). Taparelli, Saggio teoretico di diritto naturale appoggiato sul fatto (8.* ed., Roma, 1949). Tolomei, Corso elementare di diritto naturale o rationale (2.» ed., Pádua, 1855). Toscano, Corso elementare di Filosofia dei diritto (3.* ed., Nápoles, 1869). Miraglia, Filosofia dei diritto (3.* ed., Nápoles, 1903). Filomus Guelfi, Enciclopédia giuridica (7.* ed., Nápoles, 1917). Id., Lezioni e saggi di Filosofia dei diritto (ed. póstuma, Milão, 1949). Vanni, Lezioni di Filosofia dei diritto (4.® ed., Bolonha, 1920). Petrone, II diritto nel modo deUo spirito (Milão, 1910). Id., Filosofia dei diritto, con Vaggiunta di vari saggi su Etica, diritto e Sociologia (ed. póstuma, Milão, 1950). 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Ao efectuá-las, aprendemos a ver a que conclusões se chega quando se parte de certas premissas e, assim, a tirar partido da aprendizagem, com o intuito de nos avizinharmos de sistema mais perfeito, que seja produto de mais intensa maturidade, capaz de evitar os erros já entretanto cometidos e de aproveitar os progressos já entretanto atingidos. A História da Filosofia é, por conseguinte, meio de estudo e de investigação, e, como tal, poderosa ajuda para o nosso trabalho: oferece-nos repositório de observações, de raciocínios, de distinções, que a um homem só, no decurso da vida, seria impossível ocorrer. Acontece-nos o mesmo que a qualquer artí fice actual que, agora, seria incapaz de ser o inventor de todos os instrumentos da sua arte. No caso particular da Filosofia do Direito, a história dela mostra-nos sobretudo que em todas as épocas se meditou sobre o problema do Direito e da Justiça. Logo: o facto denuncia 32 LIÇÕES DE FILOSOFIA DO DIREITO que tal problema não é uma invenção artificiosa mas corres ponde à necessidade natural e constante do espírito humano. A Filosofia do Direito, porém, não se nos depara, nas suas origens, como disciplina autónoma mas mesclada com a Teo logia, a Moral e a Política; só pouco a pouco se operou a sua autonomia. Nos primeiros tempos, a confusão foi completa e, no Oriente, temos o seu melhor exemplo, pois, aí, os livros sagrados apresentam-se simultaneamente como tratados de Cos mogonia, de Moral, e contêm elementos de outras ciências, assim teóricas como práticas. Nestes escritos predomina o espí rito dogmático. Neles é o direito concebido à maneira de pres crição divina, superior ao poder humano, e, por isso, não como objecto de discussão e ciências, mas tão só de fé. As leis positivas são também consideradas indiscutíveis; e não se julga susceptível de fiscalização e limite o poder existente, expressão da divindade. Em esta fase, própria dos povos orientais, ainda o espírito crítico não se tinha manifestado. Contudo, injusto seria olvidar que muitos destes povos, sobretudo os hebreus, os chineses e os indianos deram notável impulso aos estudos filosóficos, sobretudo no respeitante à Moral. A Filosofia Grega Primórdios É a Grécia a pátria por excelência da Filosofia, que nela atinge desenvolvimento autónomo 0). Em os primeiros tempos, a mente grega não se vira para os problemas éticos, nem tão pouco para os jurídicos, pois preocupa-se exclusivamente com a natureza física. Assim, a Escola Jónica, a mais antiga (vi séc. A. C.), tentou explicar os fenómenos do mundo sensível me diante a sua redução a certo tipo único deles. Mas esta escola, à qual, entre outros, pertenceram Tales, Anaximandro, Ana ximenes, Heraclito e Empédocles (que formulou a teoria dos HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 33 quatro elementos: água, ar, fogo e terra), não tem importância para o nosso estudo. Outra escola, quase contemporânea da jónica, a Eleática, tentou responder ao mesmo problema pela boca dos seus repre sentantes — Xenófanes, Parménides, Zenão de Eleia, Melisso de Samos— mas de modo bem mais profundo e reflectido. Erguendo-se até um conceito metafísico, sustentou que o ser é uno, imutável, eterno. Por outro lado, aceita uma única dis tinção: entre aquilo que é e aquilo que não é, Daqui a negação do conceito de devir e de movimento: ambos correspondem apenas a ilusão dos sentidos. Não é de admitir o nascimento e a morte, o trânsito entre ambos. Relacionam-se com as doutrinas das Escolas Jónica e Eleá tica as doutrinas de outros filósofos, como Eraclito, que sustenta, ao contrário dos Eleáticos, o conceito do devir; Empédocles, que formulou a teoria dos quatro elementos: o fogo, o ar, a água, a terra; Anaxágoras, Demócrito, etc., que consideram também não o problema ético-jurídico, mas o cosmológico ou o do ser em geral; embora encontremos já uma outra referência àquele problema em Heráclito e Demócrito. Mais forte conexão com a nossa disciplina apresenta outra escola desta época: a Pitagórica. Pouco se conhece de Pitágoras, quer quanto à vida, quer quanto à doutrina. Nascido em Samos, no ano de 582 A. C., emigrou para a Itália meridional, para Orotone onde fundou uma sociedade, com adeptos escolhidos da sua doutrina. Esta corporação aristocrática, de carácter religioso e moral, vincu lando seus membros por forte disciplina, não se manteve muito tempo. Com efeito, surgiram desconfianças políticas, e Pitá goras teve de refugiar-se em Metaponte, onde morreu no ano de 500 A. C. Segundo parece, era oral o ensino de Pitágoras e, por isso, não se encontra traço de seus escritos: das suas teorias chegaram até nós apenas fragmentos recolhidos em aponta mentos de discípulos e as referências de Aristóteles, que as F D-3 34 LIÇÕES DE FILOSOFIA DO DIREITO contestou. Particularmente importante é o estudo do continua- dor de Pitágoras, Filolau, contemporâneo de Sócrates, com o seu escrito Da Natureza ( uepl <pÚTe<oç). Deste trabalho possuí mos notáveis fragmentos. A intuição fundamental de Pitágoras é a de que a essência de todas as coisas é o número. Donde: o princípio numérico é princípio das coisas. Este conceito matemático abre caminho a considerações astronómicas, musicais e políticas. Assim, para os pitagóricos, a Justiça é relação aritmética, uma equação ou igualdade. À luz desta concepção, deduzem o conceito de retribuição, de troca, de correspondência entre o facto e o tra tamento adequado dele ( tò ávTi7ce7tv8ói;). Encontra-se nesta con cepção — a qual se aplica igualmente à pena— o germe da futura doutrina aristotélica da Justiça. Os Sofistas A escola que, em primeira mão, enfrentou os problemas do espírito humano, do conhecimento, e da ética, foi a dos Sofistas, no século v A. C. Eram os Sofistas naturais da Grécia e da Grande Grécia (Itália meridional, Sicília) e constituíam um grupo de pen sadores e oradores que, muito embora professando doutrinas diferentes, se aparentavam entre si por traços comuns. Os prin cipais de entre eles foram Protágoras, Górgias, Hípias, Gal- licle, Trasímaco, Pródigo e outros. Só conhecemos as ideias deles através dos escritos dos seus adversários (a principal fonte delas são para nós os diálogos platónicos em que Sócra tes muitas vezes polemiza com os sofistas). Homens de grande vigor dialético e de robusta eloquência,percorriam várias cidades sustentando nos seus discursos as teses mais dispares; tinham o gosto de se oporem às ten dências dominantes; frequentemente provocavam escândalo no numeroso auditório com os seus paradoxos. historia da filosofia do direito 35 É de sobremodo notável o facto de então se começar a discutir e a criticar o princípio da autoridade, a minar a fé tradicional e a despertar a atenção do povo; e isto está em relação com o período de discórdias internas em que se encon trava a Grécia. A obra dos Sofistas relaciona-se com esta situação. Os Sofistas eram individualistas e subjectivistas. Ensina vam que cada homem possui seu modo próprio de ver e de conhecer as coisas. Daqui a tese, segundo a qual não é pos sível urna ciência autêntica, de carácter objectivo e universal mente válida, mas tão só opiniões individuais. Ficou célebre o dito de Protágoras: o homem é a medida de todas as coisas (tcocvtov XpT)[idcTcov fiéxpov ív&pwfioç ): ou seja: cada homem pos sui a sua visão própria da realidade. Em sentido bem diverso foi sustentado, mais tarde, por Kant, por exemplo, que a mente humana é a medida de todas as coisas. Kant, com efeito, considerava a mente humana como sendo necessariamente idêntica em todos os indivíduos e, por isso, ao afirmar que ela é a medida de todas as coisas, não destruía a validez uni versal da ciência. As formas subjectivas, dentro da doutrina kantiana, são aptas a apreender, pela maneira inerente à sua própria estrutura, a realidade sensível — e de tal sorte que toda a experiência dela leva já o seu ounho. Mas estas formas são igualmente próprias e comuns a todos os sujeitos ,pensantes. Ora, para os Sofistas, apenas existem as opiniões mutáveis de cada indivíduo e, portanto, uma verdadeira ciência não é pos sível. Negando os Sofistas a possibilidade de uma verdade objec tiva, negam também que exista uma justiça absoluta; também o direito, para eles, é algo de relativo, opinião mutável, expres são do arbítrio e da força: justo é «aquilo que favorece ao mais forte». Assim, Trasímaco pergunta se a justiça é um bem ou um mal, e responde: «A justiça é na realidade um bem de outrem; é uma vantagem para quem manda, é um dano para quem obedece». * 36 LIÇÕES DE FILOSOFIA DO DIREITO Como pelo exposto se dá conta, os Sofistas eram cépticos em moral, mais negadores e destruidores do que construtivos e afirmativos. Não Obstante, grande mérito foi o seu por terem atraído a atenção dos homens sobre dados e problemas relativos ao homem, ao pensamento humano; e a perturbação trazida pela sua actividade à consciência pública foi ainda benéfica e fecunda, pois aguçou o espírito crítico para muitos temas que até então a ninguém preocupavam. Enquanto os filósofos da escOla Jónica se haviam entregue ã exclusiva meditação do mundo externo, os Sofistas deram o seu interesse a proble mas psicológicos, morais e sociais. A eles se deve, por exem plo, a colocação rigorosa do problema de saber se a justiça tem um fundamento natural; se aquilo que é justo por lei — ou, como nós dizemos, o direito positivo— é também justo por natureza (a antítese entre o vó^w Styaiov e o <pú<m Síxatov). Ante este problema, assumiram geralmente atitude negativa, dizendo que se existisse um justo natural, todas as leis seriam iguais. Todavia, mais importante que a resposta dada, que, digamos, é discutível e até inaceitável, foi o terem proposto o problema. Na verdade, depois da solução negativa tentada pelos Sofistas, outros filósofos puderam tentar uma solução afirmativa. Os Sofistas foram, em síntese, o fermento que suscitou a grande filosofia idealista grega: uma floração extraordinária do pen samento de que nenhum outro povo pode orgulhar-se. Esta resume-se, principalmente, nos nomes de Sócrates, Platão e Aristóteles, que soberanamente resplandecem na história do pensamento. Sócrates Viveu em Atenas, de 469 a 399 A. C., o grande adver sário dos Sofistas, Sócrates, mais sábio da vida do que propria mente filósofo. Também perante as doutrinas socráticas estamos em situa ção igual à que se nos oferece quanto às doutrinas sofistas; HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 37 ou seja: não temos escritos autênticos; conhecemo-los só através dos relatos de outros. Neste caso, temos os dos admiradores e discípulos, ao passo que dos Sofistas só temos os dos adver sários e críticos. Queremo-nos referir aos Diálogos de Platão e aos Memoráveis de Xenofonte. De longe, porém, são os pri meiros a fonte mais importante, embora aí o pensamento socrá tico, por vezes, seja de tal modo identificado com o do seu genial discípulo que difícil se torna destrinçar um do ouitro. Assim se verifica sobretudo nos últimos diálogos; os primeiros, nomeadamente a Apologia, Eutifrón e Criton, mantiveram-se mais fiéis à palavra de Sócrates, que Platão recolhe da sua boca. Discutia Sócrates de modo peculiar, multiplicando as per guntas e a elas dando respostas de maravilhosa e concludente simplicidade. Ao contrário dos Sofistas, que tudo afirmavam saber, declarava ele nada saber. Molestava-os com a sua iro nia, e confundia-os, interrogando-os (ironia — pergunta, inter rogação) sobre questões aparentemente simples, mas, no fundo, muito difíceis. Deste modo, constrangia-os, indirectamente, a darem-lhe razão. Por certo aspecto, Sócrates avizinhou-se dos Sofistas; também orientou a sua meditação para o estudo do homem. Como é sabido, tinha por mote a inscrição délfica: «Conhece-te a ti mesmo» (yvw&í aeauTÓv). Ninguém como ele insistiu tanto na necessidade do auto-conhecimento. Mas neste estudo chegou a conclusões opostas às dos Sofistas: mos tirou que é preciso distinguir entre aquilo que é impressão dos sentidos, em que predomina a variedade e o arbítrio individual, a instabili dade e a acidentalidade subjectiva, e aquilo que é produto da razão, onde encontramos conhecimentos necessariamente iguais para todos os homens. Portanto, é preciso erguer-se dos sen tidos à unidade conceituai, racional. Sócrates ensinava a pro curar o princípio da verdade. Saber e operar para ele são como ciência e virtude, uma só e mesma coisa, pois esta não é mais do que uma aplicação daquela. 38 LIÇÕES DE FILOSOFIA DO DIREITO O que nos afirmou do saber em geral vale também para o saber jurídico. Para além das coisas singulares devemos apren der a ver a universalidade. Aqueles que apenas conseguem ver a variedade das coisas justas, as simples teses ou normas jurídicas, mais não a Justiça em si, não merecem o nome de filó sofos (91X600901). São antes amantes de opiniões (91X086^01). Acima das contradições do mundo empírico, objecto da opinião, existe o mundo inteligível, objecto da ciência. Filosofia é, preci samente, amor da ciência. Sócrates, deste modo, lançou as primeiras pedras para um sistema filosófico idealista, mas não construiu o edifício, que foi obra de Platão. Ensinou o método do filosofar, sobre tudo no respeitante à Ética, reagindo contra o cepticismo prá tico dos sofistas na procura do Bem. Ensinou a respeitar as leis (que os Sofistas haviam ensi nado a desprezar), e não só as leis escritas, mas também as que, embora não escritas, valem igualmente em todos os luga res, e são impostas pelos deuses aos homens. Sócrates afirmou assim a sua fé em uma Justiça superior, para a validez da qual não é preciso sanção positiva, nem formulação escrita. A obediência às leis do Estado é, no entanto, para Sócrates, um dever que deve cumprir-se em todos os casos. O bom cidadão deve obedecer mesmo às leis más, para não estimular com a sua atitude os maus cidadãos a violar as 'boas. O próprio Sócrates exemplificou em vida este prin cípio, pois, acusado injustamente de ter introduzido novos deu ses e corrompido a juventude, foi condenado à morte por este pretenso delito, enfrentandoserenamente a execução da sen- tensa em vez de aproveitar a fuga que amigos aflitos lhe haviam preparado. A acusação de ter introduzido novos deuses, já feita por Aristóteles na Rane, foi possível só porque Sócrates se dizia inspirado por uma divindade (Sa[[A«v), que não era outra senão a sua consciência; e esta atitude, que parecia contrária à religião dominante, serviu de pretexto aos seus inimigos. A ma neira sublime e serena como encarou a morte toma ainda mais historia da filosofia do direito 39 admirável a sua figura e faz dele um precursor de outros már tires do pensamento. Pelo seu ensino, dedicado à investigação dos princípios racionais da actividade humana, Sócrates merece ser considerado um dos principais (se não absolutamente, o primeiro) dos fundadores da Ética. Platão As obras do grande discípulo de Sócrates, Platão (427- -347 A. C.), escritas em forma de diálogo, figuram o Mestre na ocasião de discutir com discípulos e com Sofistas, seus adver sários, de sorte que o sistema platónico parece vir de Sócrates. Não foi este, porém, o edificador: Sócrates abriu caminho à especulação filosófica, mas não nos legou sistema completo. O Sócrates platónico não coincide com o Sócrates histórico, mas, em grande parte, é o próprio Platão. Das doutrinas deste só nos ocupamos na medida em que interessam especialmente à nossa doutrina. Mencionaremos dois dos seus diálogos, a República, ou rcoXixeía (que melhor se tra duziria por «Estado») e as Leis, ou Nófxou A estes, acrescen taremos outro, que fica entre os dois primeiros, intitulado o Político — 7roXmx0£. De todos, o mais importante é o primeiro, em que Platão nos apresenta, como todo o rigor, a sua concepção do Estado. Ele pretende encarar o problema da Justiça no Estado, pois, como ele diz, ali ela pode ser lida mais claramente, porque está escrita em caracteres grandes, ao passo que, em cada homem, está escrita com letras pequenas. Para Platão, o Estado é o homem em grande, ou seja: um organismo completo, em que se encontra reproduzida a mais perfeita unidade. Constituído por indivíduos, solidamente estruturado, semelha um corpo formado por vários órgãos, cujo conjunto lhe toma possível a vida. No indivíduo, corno no Estado, deve reinar aquela harmonia que se obtém pela virtude. A Justiça é a virtude por excelência, pois consiste em uma 40 LIÇÕES DE FILOSOFIA DO DIREITO relação harmoniosa entre as várias partes de um corpo. Ela exige que cada qual faça o que lhe cumpre fazer (xá êau-rou 7tp<xTTeiv) com vista ao fim comum. Platão compraz-se em traçar com rigor o paralelo entre o Estado e o indivíduo, empenha-se na descrição até aos mais pequenos detalhes e dá-lhe uma base psicológica. Três partes ou faculdades existem na alma do indivíduo: a razão, que domina; a coragem, que actua; os sentidos, que obedecem. Atendendo a elas, há que distinguir no Estado três classes: a dos sábios, destinados a dominar; a dos guerreiros, chamados a defender o organismo social; a dos artífices e agricultores, a quem cabe nutri-lo. Mas, assim como o indivíduo deve ser dominado pela razão, assim também o Estado o deve ser pela classe que representa a saJbedoria, isto é: pelos filósofos. A causa da participação do indivíduo no Estado e da sua submissão a ele é a falta de autarquia — a congênita imper feição que faz dele um ser incapaz de só por si prover às neces sidades várias da própria vida. O ser perfeito, capaz de se bastar a si mesmo, de tudo abranger e dominar, é o Estado. O fim do Estado é universal, pois compreende no âmbito das suas atribuições, a vida toda dos indivíduos: tem por fim a felicidade de todos mediante a virtude de todos. Não seja esquecido que, para a Filosofia grega clássica, felicidade e virtude, em vez de termos antitéticos, são termos coincidentes, porque a felicidade corresponde à actividade da alma segundo a virtude, isto é: segundo a sua própria natureza. O Estado, segundo Platão, domina a actividade humana em todas as suas manifestações; a ele incumbe promover o Bem em todas as suas formas. O seu poder é, por conseguinte, ilimi tado: nada fica reservado ao arbítrio dos cidadãos, mas tudo cai debaixo da competência e intervenção do Estado. Esta concepção absoluta é contrariada pela de outros filó sofos, para quem existem limites bem determinados à activi dade estadual (a concepção kantiana do Estado-de-Direito). Mas a concepção platónica foi, aliás, a dominante no mundo HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 41 helénico. Assim, para os gregos, a principal função do Estado é a educadora (roxiSeta). No diálogo da República encontramos largas dissertações sobre o tema. Para Platão, os meios de educar são, sobretudo, a Música (na qual entra também a primeira instrução literá ria) e a Ginástica. A Música, em seu entender, cria predis posição favorável à recepção do bem e do belo. Dá, a seguir, um lugar à Matemática (na qual inclui a Astronomia). Final mente, para os mais capazes, reserva o ensino científico e filo sófico. Platão dedica particular interesse à formação dos homens para a vida pública. Os melhores indivíduos deverão atingir os lugares de governo mediante selecção gradual e adequada educação, mas nunca antes dos cinquenta anos, dedi cando-se exclusivamente ao desempenho desta função, pois nenhuma outra actividade do cidadão é mais alta do que esta. Nesta concepção, o elemento individual é totalmente sacri ficado ao social e político. Não se descobre aqui traços da ideia de que o indivíduo seja titular de direitos originários. O Estado domina de modo absoluto. E Platão vai até ao ponto de suprimir, com vista a mais intensa e eficaz coesão política, as entidades sociais intermédias, que podem existir entre o Estado e o indivíduo. Ohega mesmo a sustentar a tese da supressão da propriedade e da familia; ou seja, por outras palavras: propõe a comunidade dos patrimónios e das mulhe res, por julgar que, deste modo, se obteria uma família única, capaz de assegurar a completa e perfeita unidade orgânica e harmonia do Estado. Mas as teses eram válidas apenas para as duas classes superiores (ou seja para aqueles que mais directamente participavam na vida pública, os magistrados e os guerreiros). Com elas, portanto, estamos bem longe das modernas doutrinas comunistas. A personalidade humana, de nenhuma maneira é adequadamente reconhecida por Platão. Debalde se procura em seus escritos a condenação da escra vidão. Os servos estão excluídos das três classes em que divide os homens no Estado, às quais confiava o desempenho de fun 42 LIÇÕES DE FILOSOFIA DO DIREITO ções estaduais. Por aqui se verifica quão erroneamente inter pretam a teoria platónica aqueles que teimam em ver nela a precursora do socialismo hodierno. Platão foi conduzido à sua concepção do Estado ideal, não por considerações económicas mas por preocupações éticas e políticas. Ficam assim resumidamente expostos os conceitos formu lados por Platão no diálogo da República. O diálogo acerca das Leis, composto mais tarde, quando Platão ultrapassava os setenta anos, apresenta já carácter diferente. Aqui, em vez de nos dar a descrição de um puro ideal, considera antes a realidade histórica nos seus aspectos contingentes e permite-nos avaliar o seu admirável senso prático. No diálogo da República, Platão tinha formulado a máxima de que os sábios deverão governar segundo a sabedoria; e, se admitirmos que a sabe doria domina o mundo as leis serão supérfluas (neste sentido, leia-se ainda o Político, 294 a 299); mas se considerarmos a prática, e a natureza humana concretamente, constatamos a necessidade das mesmas. O diálogo das leis exprime precisa mente a passagem entre aquilo que idealmente devia ser e aquilo que a vida impõe, e trata longamente o problema da legislação. E isto sem afectar os princípiosfundamentais expos tos na República. Platão reserva para o Estado uma função educadora. Por isso quer as leis acompanhadas de exortações e dissertações que expliquem os seus fins. Ãs leis penais atmbui fim essencialmente terapêutico. Platão considera os delin quentes como enfermos (posto que, segundo o ensinamento socrático, nenhum homem é voluntariamente injusto): a lei é o meio para curá-los, a pena é o remédio para os mesmos. No entanto, não se recusa a tirar as últimas consequências da sua atitude. Pelo delito, nem só o delinquente revela estar enfermo, pois também o Estado se ressente da sua enfermidade. Quando a saúde do Estado o exige, —isto é: quando esta se acha permanentemente ameaçada por um delinquente incorri gível —, impõe-se a supressão do delinquente para salvaguarda do bem comum. A este propósito convém notar a diferença HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 43 entre a concepção de Platão e a da moderna Escola de Antro pologia criminal. Esta considera a delinquência como um pro duto da degenerescência física, ao passo que, para Platão, o delinquente é intelectualmente deficiente, a sua enfermidade é aberração, ignorância da verdade, ou seja: da virtude que é conhecimento da verdade. No diálogo das Leis, Platão mostra um maior respeito da personalidade individual (muito embora os escravos fiquem sem pre excluídos). A família e a propriedade são conservadas e já não sacrificadas a uma espécie de estadualismo, como na Repú blica. No entanto, à autoridade do Estado concede ainda impor tância sobrepujante. A ele compete fixar a repartição da pro priedade (e daí a divisão dos indivíduos por classes), intervir nos matrimónios e vigiar a vida conjugal (sujeita sempre a uma rigorosíssima vigilância), dirigir a actividade musical e poética (também esta regulada para fins educativos), superin tender na religião, no culto, etc.... Quanto à forma política, critica Platão tanto a monarquia como a democracia, em que uma parte dos cidadãos manda enquanto a outra obedece, pro pondo uma espécie de síntese de ambas, cujo modelo é sobre tudo o regime de Esparta (onde ao lado de dois reis, havia o Senado e os Eforos). Como dissemos, neste diálogo encontra-se notável base his tórica ; por exemplo: há nele um maravilhoso tratado da génese do direito. Transparece aí, igualmente, um conhecimento mais completo e rigoroso da realidade empírica do que aquele à luz do qual foi concebido e escrito o diálogo da República. Mas, ainda neste, onde o Estado se nos depara como pura concepção ideal, não falta um enxerto histórico, o qual deriva da 7tóXiç grega: esta apresenta-se aí nos seus traços essenciais e, simulta neamente, idealisada. Platão queria reagir contra o cepticismo dos sofistas e as tendências demagógicas do seu tempo, afir mando que só os melhores deviam governar, e desejava também impedir a dissolução da coisa pública. Desta sorte, deve-se reconhecer que a sua teoria política teve também um intuito 44 LIÇÕES DE FILOSOFIA DO DIREITO prático e contém numerosas referências às condições históricas da época. Aristóteles Aristóteles (384-322 A. C.), nascido em Estagira, foi, durante vinte anos, discípulo de Platão e, mais tarde, preceptor de Alexandre Magno. Quando este subiu ao trono, fundou Aristóteles a sua escola em Atenas, no Ginásio liceu (dedi cado a Apoio Auxeioç). Dedicou-se a todos os ramos de conhe cimento e pode dizer-se que, com ele, iniciaram-se muitas das nossas ciências. Porém, tendo-se perdido grande cópia dos escri tos anteriores ao seu laJbor, não se pode hoje ajuizar até que ponto (beneficiou das investigações dos antecessores. O carác ter do seu génio é diferente do de Platão: este, por índole, é mais especulativo, Aristóteles mais inclinado à observação dos factos. Nas questões cardeais de Filosofia, contudo, não se afasta muito do Mestre; é, por isso, errado apresentá-lo, como vulgarmente acontece, na qualidade de seu adversário e antagonista. ® verdade que Aristóteles expressamente refuta algumas teorias de Platão. Amiúde se faz referência às discór dias pessoais que teriam oposto o mestre ao discípulo. Mas pro vavelmente exagerou-se a este respeito e formaram-se lendas em tomo das relações entre os dois grandes filósofos. Deve-se reconhecer, em todo o caso, que também Aristóteles foi essen cialmente metafísico e idealista. Na exposição do pensamento deste filósofo também nos limitaremos ao exame das doutrinas que mais directamente interessam à Filosofia do Direito. Para este propósito, as obras a considerar, pela importância directa, são a Política e a Ética. Desta última, chegaram até aos nossos dias três redacções: Ética Nicomaqueia, Ética Eudemia e a chamada Grande Moral ou Magna Moralia, cujos capítulos, em muitos dos seus passos, coincidem. Só a primeira, a Nicomaqueia, não oferece dúvidas que é obra de Aristóteles; quanto às outras duas, a Eudemia, HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 45 provavelmente, é um trabalho de Eudeme, seu discípulo, e a Grande Moral um extracto das duas versões primeiras. Tam bém a Política (7roXiTtxà), em oito livros, não nos chegou com pleta. Outro escrito dele, sobre as constituições (rcoXiTeiai), con tendo a descrição de 158 constituições, perdeu-se quase total mente e só há pouco se descobriu fragmento importante dele: a Constituição dos Atenienses. Para Aristóteles, assim como para Platão, o sumo bem é a Felicidade, fruto da virtude. O Estado é uma necessidade: não é apenas simples au^or/íoc (aliança), simples associação momentânea para atingir fim particular, mas perfeita união orgânica, tendo por fim a virtude e a felicidade universal; é a comunhão necessária ao serviço da .perfeição da vida. O ho mem é £tõov toXitíxov (animal político) pois à vida política é levado pela próipria natureza. E o Estado, logicamente, prima aos indivíduos, tal como o organismo prima as suas partes. Assim como não é possível conceber uma mão viva separada do corpo, assim também, não se pode conceber o indivíduo sem o Estado. O Estado regula a vida dos cidadãos mediante leis. Estas dominam inteiramente a vida, porque os indivíduos não pertencem a si mesmos, mas ao Estado. Conteúdo das leis é a justiça. Desta, Aristóteles nos deixou uma profunda aná lise. O princípio da justiça é a igualdade, a qual é aplicada de várias maneiras. Aristóteles distingue, portanto, a justiça em muitas espécies. A primeira de entre elas é a chamada justiça distribuitiva (tò Síxouov èv Taiç, tò Siavs[i.yjTixóv), que preside à distribuição das honras e dos bens e tem por fim obter que cada um receba daquelas e destes porção adequada ao seu mérito (xax’ áÇíav). Se — explicava Aristóteles — as pessoas são desiguais em mérito, tão-pouco as recompensas deverão ser iguais. Com isto, mais não se fez, como é manifesto, senão confirmar o princípio da igualdade: pois este seria violado, na sua aplicação específica, se fosse dado tratamento igual a méritos desiguais. A Justiça distributiva consiste, portanto, 46 LIÇOES DE FILOSOFIA DO DIREITO em uma relação proporcional que Aristóteles, não sem algum artifício, define como uma proporção geométrica ( yewfAeTpixfl ávaXoyía). A segunda espécie de justiça é a justiça correctiva ou equi paradora, a que tamlbém se podia chamar rectificadora ou sinalagmática, por presidir às relações da troca (tó év rolç ouvXX«Y(i-«°i Siop&wTixSv). Ainda neste domínio se explica o princípio da igualdade, emlbora de forma diversa, pois, neste caso, trata-se apenas de medir impessoalmente os ganhos e as perdas; — ou seja: as coisas e as acções consideradas em seu valor objectivo, supondo-se iguais os termos pessoais. Tal medida, segundo Aristóteles, encontra o seu tipo próprio na proporção aritmética (api^ Yixixf) ávaXoíya). Esta espécie de justiça procura lograr que as duas partes, que se encontramem relação, venham a achar-se, uma relati vamente à outra, em condições de paridade; e de tal sorte, que nenhuma receba ou dê demais ou de menos. Daqui segue-se a definição desta espécie de justiça como ponto intermédio ou meio termo entre o dano e a vantagem. No entanto, estes ter mos compreendidos em sentido amplo aplicam-se não só às relações voluntárias ou contratuais, mas também às que Aris tóteles chama involuntárias (<£xoú<na), e que têm origem no delito; portanto também se exige uma certa equiparação, ou seja: uma exacta correspondência entre o delito e a pena. A jus tiça correctiva rectificadora ou equiparadora preside, assim, a todas as trocas e relações quer de natureza civil quer de natu reza penal. A propósito desta matéria, Aristóteles efectua ainda algumas sub-distinções, embora não explique muito claramente o seu pensamento. Pode encarar-se por dois aspectos a justiça correctiva ou equiparadora: enquanto preside à formação das relações de troca e lhes impõe uma certa medida, ou enquanto tenta fazer com que esta medida, no caso de controvérsia, venha a prevalecer mediante a intervenção do juiz: no primeiro historia da filosofia do direito 47 caso, apresenta-se como justiça comutativa e no segundo como justiça judicial. Quanto aos delitos, a justiça correctiva é sem pre necessariamente exercida na forma imediata da justiça judicial, visto que, aqui, se trata precisamente de reparar con tra a vontade de uma das partes um dano injustamente ocorrido. Em matéria de trocas ou contratos a justiça correctiva for nece normas, sobretudo aos próprios contraentes, e a obra rectificadora do juiz pode também não ser necessária. Preocupou-se Aristóteles com a dificuldade da aplicação da lei abstracta aos casos concretos e sugeriu um correctivo da rigidez da Justiça: a equidade, critério de aplicação das leis, o qual permite adaptá-las a cada caso particular e tempe rar-lhes o rigor com a adequação. A fim de aclarar este con ceito, comparou a equidade a certa medida (regra lésbia), feita de uma substância flexível, capaz de se adaptar à sinuo sidade dos objectos a medir. Ora, dizia, as leis são formais, abstractas, esquemáticas; a justa aplicação delas exige uma adaptação, e esta adaptação é indicada pela equidade — a qual, segundo Aristóteles, pode ir ao ponto de se manifestar mesmo nas situações ainda não disciplinadas pelo legislador e sugerir novas normas jurídicas. No campo das relações entre o Estado e o indivíduo, Aris tóteles, por muitos aspectos, afasta-se de Platão. Este pre tendia destruir os graus intermédios entre o Estado e o indi víduo. Aristóteles, porém, se concebe o Estado à maneira de síntese mais alta da convivência humana, apta pela sua con servação. A síntese estadual, para ele, não deve sacrificar as sínteses menores, os agregados menos numerosos, a família, as tribos ou aldeias (xw^ai). Do primeiro agregado — a famí lia— transita-se para o segundo —a tribo— e a reunião dos xwjjiai dá lugar à 7tóXtç, ou seja: o Estado grego. Não se esqueça que a cidade grega correspondia a unidade política de muito menor dimensão que o Estado moderno. 48 LIÇÕES DE FILOSOFIA DO DIREITO A consideração que a Aristóteles mereceram os graus intermédios de convivência, demonstra, da sua parte, concep ção histórica superior à de Platão. Aqueles agregados cons tituem as diversas etapas para se chegar ao Estado. A abolição da família e da propriedade, concebida por Platão, acha no discípulo viva oposição e crítica. Neste con traste revela-se a diversidade de temperamento dos dois filó sofos : ao idealismo absoluto, puramente especulativo de Platão, opõe-se o espírito observador de Aristóteles, que nos próprios factos indaga a sua razão relativa e o grau do seu desenvol vimento sucessivo. A família tem por elementos o homem, a mulher, os filhos e os criados; é sociedade estabelecida perpetuamente pela natu reza. Da união de várias famílias resulta a aldeia ou a vila (xtí>|x>]); da reunião de várias vilas, o Estado — que é único, e, portanto, goza de plena autarquia. Ele constitui o fim das outras formas de convivência e é dado pela natureza. Para prescindir do Estado o indivíduo teria de ser mais ou menos do que homem: um deus ou um bruto. Aristóteles observa o fenómeno da escravatura e tenta justificá-lo, demonstrando como aqueles homens incapazes de se governarem, devem ser dominados. Alguns homens nasce ram para serem livres, outros para serem escravos. Além destas razões, apresenta outras de ordem prática para provar a utili dade da escravidão. 0 Estado, conforme a concepção aristo- télica, necessita de uma classe de homens que se dediquem às ocupações materiais, que sirvam as outras classes de condição privilegiada, de sorte que estas fiquem aptas a dedicarem-se às formas superiores da actividade, especialmente à vida pública. Convém lembrar que, naquele tempo, a escravatura era considerada, em geral, como necessária para a vida do Estado. É notório que também o Estado romano tinha nesta instituição uma das suas bases. Pense-se, por exemplo, nas grandiosas obras públicas construídas pelos escravos; pense-se também na possibilidade de os cidadãos participarem livremente na HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 49 vida pública e de se dedicarem às letras e às ciências, eviden temente devido, em parte, à existência da escravidão. Esta era um efeito, tido por legítimo, da conquista militar. Muitos dos escravos mais cultos, especialmente gregos, exercitavam nobres funções, servindo de grande proveito à formação cultural dos seus proprietários. Em Roma, muitos escravos eram amanuen ses e professores muito estimados; e muitos outros faziam ser viço nas numerosas bibliotecas, especialmente nas da época do Império. Talvez os factos que acabam de ser recordados ajudem a compreender melhor agora, pelo menos até certo ponto, o motivo pelo qual Aristóteles aceitava como necessária a escra vatura: esta, dizia ele, podia abolir-se se a lançadeira e a agulha corressem sem auxílio de alguém sobre o tear. Tais palavras indicam que ele estava dominado pela ideia da função económica desempenhada pela escravatura no seu tempo. Pois, para a abolição desta contribuíram, em épocas sucessivas, além de outras causas, o progresso da indústria, a invenção das máquinas, etc.... Ê de admitir, portanto, com respeito a certas fases da história, a relativa necessidade da escravatura — e, neste sentido, são apreciáveis as observações de Aristóteles. Mas, por outro lado, é inadmissível a sua tese, se lhe for atri buído o alcance de uma justificação absoluta, uma vez que a escravatura, em si mesma considerada, vai contra o direito que qualquer homem naturalmente tem à autonomia. E de nenhuma maneira se pode afirmar que, por natureza, exista uma espécie de homens destinados à servidão. Enquanto Platão escorçou o perfil ideal do Estado, Aris tóteles, por sua vez, dedicou-se à observação das constituições dos Estados existentes mediante finas análises. Da sua colec ção de constituições políticas perdeu-se infelizmente a maior parte, e apenas se aohou o fragmento sobre a constituição ateniense (traduzida para o italiano por Ferrini). E embora a Política contenha também considerações de carácter geral, o nosso autor preocupou-se, de preferência, com as conexões F D-4 50 LIÇÕES DE FILOSOFIA DO DIREITO entre as instituições e as condições históricas e naturais. Quer dizer: preocupou-se, não com o óptimo absoluto, mas com o óptimo relativo. O seu exame recai sobre os governos mais adequados às várias situações de facto. Foi Aristóteles quem, antes de qualquer outro, fez a dis tinção dos vários poderes do Estado — o legislativo, o executivo e o judiciário. A constituição política é o ordenamento dos três referidos poderes. E segundo o poder supremoé exercido por uma, por algumas ou por todas as pessoas, distingue três tipos de constituição: monarquia, aristocracia e 'política. A estes três tipos, considera-os igualmente bons, sempre que o poder supremo seja exercitado para o bem de todos (xoivòv ou|x<pépov). Se, porém, é exercitado em benefício de quem o possui (ÍSiov au[i.<pépov), aquelas formas normais degeneram, e surgem, res pectivamente, a tirania, a oligarquia e a democracia ( a qual, neste sentido, corresponde antes ao que nós hoje designamos por demagogia). Escola Estóica Recordaremos ainda duas escolas posteriores a Aristóteles, e de notável importância: A Estóica e a Epicúrea. A primeira deriva de uma sua antecedente, a dos Cínicos, representada sobretudo por Antístenes, o qual, entre os seus adeptos, contou o famoso Diógenes. Antístenes foi discípulo de Górgias e, mais tarde, de Sócrates; isso não o impediu de manter antagonismo aberto relativamente aos outros discí pulos deste, sobretudo Platão. Para os cínicos, a virtude é o único bem e consiste na modéstia, na continência, no saber contentar-se com pouco. O sábio não deve ter necessidades e despreza o que o comum dos homens apetece: segue apenas as leis da virtude e não atende às restantes leis (positivas). Deste modo, em parte alguma se sente estrangeiro e é cosmo polita (cidadão do mundo). Segundo estas ideias, os cínicos desprezam todos os costumes e todas as leis vigentes, adoptam historia da filosofia do direito 51 atitude negativa em face do Estado e tratam de influir os cidadãos no sentido de os levar a quebrar os vínculos que os ligam ao Estado e a volver à simplicidade primitiva do estado de natureza. A Escola estóica aparenta-se com esta, mas caracteriza-se por ser sublimação da ideia fundamental dos cínicos. Teve por fundador Zenão de Cipro, o qual iniciou o seu ensino em Atenas no ano 308 A. C. Foi ele quem do pórtico de Atenas tomou o nome para a escola: <rróa, pois era ali o local onde se reunia com os discípulos. A ele sucederam Cleante e Crisipo. Entre os estóicos dos temjpos posteriores devem citar-se especialmente Panésio, Possidónio (que foi o Mestre de Cícero em Rodes), Séneca, Epicteto (autor do famoso Ey/eipíSeov ou manual, admiravelmente traduzido por Leopardi) e Marco Aurélio. Os estóicos conceberam o seguinte ideal do homem sábio: aquele que venceu todas as suas paixões e se livrou das influências externas. Só deste modo se obtém o acordo consigo mesmo, ou seja: a liberdade autêntica. Semelhante ideal — pelos estóicos personificado sobretudo em Sócrates — deve ser cultivado por cada homem, pois a cada um é imposto pela recta razão. Existe uma lei natural que domina e se reflecte também na consciência individual. O homem, por sua natureza, participa de uma lei universalmente válida. Eis porque, para os estóicos, o preceito supremo da ética é o que manda «viver segundo a natureza» (ojAoXoyoujjivox; ty) <púaeii;9jv). Este conceito da lei universal acarreta consigo a conse quência de que devem cessar as barreiras políticas e os homens ser considerados cosmopolitas, ou cidadãos do mundo, embora em um sentido mais elevado do que aquele que os cínicos davam à expressão. Assim como Platão, em homenagem à* 7tóXiç, suprimia a família e a .propriedade, suprime a escola estóica o Estado em homenagem ao Estado universal. Até então dominara um ideal predominantemente político, cujo fim supremo era, em substância, a pertença do indivíduo 52 LIÇÕES DE FILOSOFIA DO DIREITO ao Estado. Mas com a filosofia estóica anuncia-se e prepara-se moral mais ampla e humana. O Estoicismo afirma a existência de uma liberdade que nenhuma opressão poderá destruir: a liberdade que resulta da superação das paixões. O homem é livre se segue a sua verdadeira natureza, se aprende a vencer as suas paixões, tomando-se independente delas. Neste sentido, nenhuma diferença há entre livres e escravos. Há uma Sociedade do género humano para lá dos limites traçados pelos Estados políticos, baseada na identidade da natureza humana e das leis racionais que lhe correspondem. É por si mesmo significativo que entre os mais insignes cultores desta filosofia, se encontrem um escravo como Epicteto e um imperador como Marco Aurélio. A Filosofia Estóica, de certo modo, preludia o Cristianismo. A Escola Epicúrea À escola estóica opõe-se a epicúrea, a qual, por sua vez, foi antecedida pela escola cirenaica ou hedonística, fundada por Aristipo de Cirene. Para esta escola, o único bem é o prazer; e o prazer é igualmente o único fundamento das obri gações. Epicuro, que fundou a sua escola em Atenas no ano de 306 A. C. e a manteve até à morte (270 A. C.), parte do con ceito fundamental dos cirenaicos, mas teve o mérito de ter dado à doutrina hedonista um mais amplo e racional desen volvimento. Para Epicuro, a virtude já não é, como era para os estóicos, o fim supremo da vida, mas meio de atingir a feli cidade. Assim se anuncia o princípio utilitário ou hedonístico, contrário ao da Moral estóica, e pode afirmar-se que as escolas éticas posteriores se dividiram, segundo estas duas diversas concepções, em um contínuo contraste. Foi Epicuro homem sábio e prudente, que recomendava a temperança como virtude primeira para assegurar o prazer. Segundo a sua doutrina, não se trata de procurar quaJlquer HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 53 prazer, nem de fugir a toda a dor, mas conduzir-se em um modo que a soma final represente um máximo possível de prazer e o mínimo possível de sofrimento. Tal conduta envolve um certo cálculo e uma medida utilitária. A intemperança, especialmente, prejudica o organismo, abrevia a vida e, por tanto, diminui a faculdade de gozar. Neste sentido, a Epicuro foi dado apontar preceitos de natureza ética. Por outro lado, a Escola Epicúrea contém, embora em germe, uma teoria sobre a distinção qualitativa ou graduação dos prazeres. Ao invés da Escola Cirenaica, que considerava sobre tudo as sensações físicas, Epicuro atribui maior peso aos pra zeres e ás dores espirituais, assaz mais duradouros. Assim para ele, a amizade é tida na conta de prazer maior. Isto mostra como a sua doutrina não é exclusivamente materialista. Mas nesta graduação dos prazeres tem origem a crítica do utilitarismo; visto que se admitem prazeres superiores e inferiores, faz-se mister um critério de escolha, uma regra quali tativa, de harmonia com a qual o sumo bem pode ser inclusi vamente a satisfação da consciência, ainda que a troco de uma dor física. Supera-se, deste modo, a simples doutrina hedonista que, sem distinções, quer o prazer pelo prazer. Merece ainda atenção a doutrina de Epicuro respeitante ao Estado. Ainda neste campo, domina o utilitarismo. Nega o nosso filósofo que o homem seja por natureza sociável. Na origem, esteve em luta permanente com o seu semelhante. Mas tal luta, sendo causa de sofrimento, foi suprimida pelo Estado. à luz desta concepção, o direito é um pacto ditado pela utili dade e o Estado o efeito daí resultante. Por isso, os homens poderão sempre romper com tal pacto, quando da sua manu tenção deixe de resultar a utilidade em função da qual adveio a sua celebração. O Estado epicurista, como se vê, corresponde à situação de anarquia potencial. Depara^se-nos aqui (pres cindindo de uma ou outra alusão dos Sofistas) a primeira formulação histórica da doutrina do contrato social, que, nesta sua primeira forma rudimentar e tosca, se contrapõe à doutrina 54 LIÇOES DE FILOSOFIA DO DIREITO platónica ou aristotélica que dava ao Estado por fundamento a própria natureza humana. Teremos ocasião de nos referir às diversas formas que a doutrina contratual assumiu depois, na Idade Média e na Idade Moderna. Os Juristas Romanos Não teve Roma filosofia original; mas assim como no Oriente o supremo tema da actividade
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