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vai modular isso de uma maneira muito ampla. E literariamente, a beleza é muito acentuada porque ela se presta a uma série de metáforas muito elucidativas. 59 O Direito do Sangue Onde está baseada a legitimidade? Para a concepção medieval a legitimidade está baseada no direito do sangue, é portanto um conceito biológico, pelo fato de se ter sangue, o rei pode mandar. A Ética, a Moral, o comportamento, o Direito de cada um tem como limite o poder soberano legítimo do rei ungido por Deus. E a peça é justamente a história das transgressões a esse princípio. A coisa é muito mais ampla do que se pensa, porque, note bem, o sangue é uma coisa viva, que nos dá vida. E essa peça é cheia de metáforas vegetais, metáforas que falam da vida das plantas. Há um paralelo entre a vida dos homens e das plantas. Sangue e Seiva Aquilo que é sangue no rei, é seiva nas plantas. A seiva é mais ou menos o sangue da natureza, e o sangue é a seiva do rei. Onde elas se encontram? Elas se encontram exatamente na legitimidade, na medida em que o rei tem um sangue sagrado, ungido, e de certa maneira ele encarna também a seiva da natureza. Isso está ligado a uma velha concepção de soberania, a uma velha concepção de realeza que vem dos povos primitivos, que vem dos ritos agrários e que se traduz na realeza, nesse momento da Idade Média, pela ligação visceral, pela ligação orgânica do rei com a natureza. Soberania e Natureza Vejam bem, obedecer ao rei é obedecer à lei da natureza. Transgredir, não seguir o rei, é violar a lei da natureza. O rei faz corpo com a natureza. Mas, notem bem, por outro lado, como o rei faz corpo com a natureza, a monarquia estará próspera enquanto o rei estiver ligado com a natureza e for saudável. No momento em que o rei não estiver mais ligado com a natureza, em que houver uma discrepância, digamos assim, entre o sangue do homem e a seiva da natureza, a sociedade entra em crise. 60 Há um princípio mágico em jogo, quer dizer, a soberania está baseada com essa ligação mágica do rei com a natureza. Waste Land Esse princípio místico que está presente também em Ricardo II, que está ligado às lendas medievais, que está ligado aos mitos agrários que exprime a saúde ou a doença da sociedade é uma coisa tão poderosa que repercute até os nossos dias. Naturalmente muitas pessoas já leram o poema a Terra Estéril, por alguns traduzido como a Terra Hermada, por outros como a Terra Gasta. Em inglês é The Waste Land, do poeta T. S. Eliot, é um poema moderno, é um poema feito em 1920. Esse poema procura exatamente mostrar que o mundo contemporâneo está doente por causa da crise dos valores morais, por causa da crise dos valores espirituais. Em que ele vai se inspirar? Na lenda do Santo Grau. Ele vai se inspirar, exatamente, no problema do rei doente que doença é a terra. Isso dá uma idéia de como esses mitos, essas lendas são duradouras e como elas servem para exprimir vários momentos da história. Elas serviram para Shakespeare exprimir a crise da monarquia inglesa no fim da Idade Média, serviram para T. S. Eliot, na entrada do século vinte, comentar a crise dos valores espirituais. Que raízes são essas que se arraigam? Que ramos se esgalham nessa imundície pedregosa? Filho do homem não podes dizer, ou sequer estimas Porque apenas conheces um feixe de imagens fraturadas, Batidas pelo sol. E as árvores mortas já não mais te abrigam Nem te consola o canto dos grilos E nenhum rumor de água a latejar na pedra seca Apenas uma sombra medra sobre esta rocha escarlate Chega-te à sombra desta rocha escarlate E vou mostrar te algo distinto de tua sombra 61 A caminhar atrás de ti quando amanhece Ou de tua sombra vespertina ao encontro do levante Vou revelar te o que é o medo em um punhado de pó. T. S. ELIOT O Bom Governo Renato Janine Ribeiro A política medieval se constrói em cima de uma grande idéia que é a idéia do bom governo. A idéia principal é essa de que o governo deve agir segundo certos valores que são o da justiça, o da bondade e o da caridade, aqueles valores que a igreja cristã desenvolveu, que ela detalhou por toda a Idade Média é que deveriam ser então a pedra de toque de todo governo medieval. Justiça Somente se pode entender a idéia do rei justo a partir da idéia de justiça e aí nós temos o grande conceito político medieval. É uma idéia de justiça muito diferente da nossa, tanto que às vezes a gente até usa o termo latino justicia, porque ela significa a idéia de que cada um ocupa o seu lugar no mundo. Os lugares são diferenciados e cada um deve ocupar um deles, mas sem jamais se meter no lugar que não é o seu. Então a idéia de justiça está ligada, por exemplo, a idéia de um mundo que se organiza como o cosmos. O termo cosmos, indica essa idéia de universo, na qual tudo está ordenado, cada planeta tem o seu lugar saindo da Terra, como todo mundo sabia na Idade Média, no centro do mundo e tendo a Terra em torno dela vários planetas que giram, inclusive o próprio Sol, girando em torno da Terra. Então essa idéia de uma ordenação cósmica de que todas as estrelas, todos os astros estão bem distribuídos, se liga também a idéia de uma justiça, de uma sociedade, na qual todas as pessoas têm o seu lugar determinado. Bondade 62 O rei justo, ele basicamente expressa a sua bondade de duas maneiras. Uma através das esmolas. Em relação aos pobres, que são inúmeros na Idade Média, ele faz caridade. Para os nobres, o rei justo deve mostrar-se um rei magnânimo, um rei generoso, então se um nobre se destaca em um torneio o rei dá a metade do seu reino para ele, é um gesto magnânimo, o rei mostra que premia aquele que é valoroso, aquele que é poderoso. Para uns ele dá esmola, para outros ele dá a metade do reino, dá um grande feudo, mas em todos os casos a bondade do rei está se expressando no fato de que ele dá coisas. Não é a idéia de que ele governa bem, não é o jeito que ele desenvolve o seu Estado, de que ele vence a pobreza, não, ele atende os pobres, mas sempre haverá pobres. Corpo Outra semelhança que era usada pelo rei medieval era a relação dele com o corpo. Quer dizer, o rei era como se fosse a cabeça e os súditos como se fossem os membros do corpo. A cabeça manda, mas ela tem com o corpo uma relação de cooperação, a cabeça não pode viver sem o corpo e nem o corpo sem a cabeça, então o rei não pode existir sem os súditos e os súditos também não podem ter vida sem a cabeça que lhes dá ordem, que lhes dá comando etc. Então sempre se dava ao rei essa imagem ideal de alguém que tinha uma relação harmônica com os súditos a ele subordinados. Tirano O rei justo se opõe a uma figura que é a grande figura negra do pensamento medieval que é o tirano. O tirano trata todos os súditos como se fossem escravos ou animais, como se não tivessem racionalidade e como se dependessem de uma esfera que não é humana, de uma esfera que é do bicho, aquele que é tratado como mero objeto e por isso mesmo enquanto o rei justo tem uma relação de amor com o seu povo, o tirano tem uma relação de medo. Ele mete medo nos súditos e ele também morre de medo dos súditos. Não se concebe um tirano sem o medo de ser assassinado. Isso leva a uma conseqüência interessante que é a questão do sono. Fala-se que muitas vezes que o tirano tem um sonho ruim, que ele tem um sono conturbado, que ele dorme mal e há uma frase que aparece, por exemplo, em Thomas Morus mas que já apareceu antes e que 63 continua a aparecer ainda hoje na imagem do tirano. A idéia de que ele não dorme duas vezes seguidas