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1 Um redirecionamento: O ponto de vista semiótico Irene Machado A produção de linguagem Existem, evidentemente, muitas possibilidades de estudo da comunicação, de seus processos, de seus objetos. As várias teorias, desenvolvidas em campos precisos do conhecimento – antropologia, biologia, filosofia, lingüística, sociologia, cibernética –, se voltaram para o fenômeno da troca entendendo-o como compartilhamento de mensagens em diferentes contextos. Às ciências humanas interessou, basicamente, a troca de mensagens em processos de interação social; as ciências biológicas, as neurociências e ciências da mente tomaram para si a tarefa de examinar as trocas de mensagens processadas no interior de organismos e de sistemas vivos; as ciências duras, por sua vez, se voltaram para as trocas de mensagens em circuitos e dispositivos tecnológicos. Em todos esses campos, o estudo das mensagens como fenômeno de troca visa uma maior compreensão do modo como acontecem as interações por meio da linguagem. Emissão e recepção, canais de transmissão, códigos que organizam as informações em mensagem centralizam grande parte dessas abordagens. A partir delas se consagrou a noção de troca como transporte ponto-a-ponto, criadora de um modelo unidirecional de transmissão. Há, também, uma outra possibilidade de se entender a comunicação valorizando, não a troca como transporte, mas a dinâmica dialógica transformadora da informação em linguagem e, conseqüentemente, da mensagem em instância produtora de sentido dentro do circuito de respondibilidade. Dois aspectos se destacam nessa abordagem: a valorização do ambiente interativo produtor de discursos bivocais e a transmutação da informação em códigos de emissão e de recepção. Em vez de transporte, o que se valoriza é a interação dialógica, tal como foi concebida por Valentin Volochinov (1929) em seu clássico estudo sobre o signo ideológico em enunciações interativas (Voloshinov 1973). A transmutação da informação em código na constituição da mensagem ocupa o centro dessa abordagem que define a vertente do estudo semiótico da comunicação. Transmutação diz respeito à transformação que mostra a passagem de uma dimensão a outra. Envolve, portanto, 2 alteração. A codificação assim concebida pressupõe tanto a descodificação quanto a recodificação que denuncia a interferência no código de partida. Logo, mensagem aqui não diz respeito apenas àquilo que sai de uma fonte e atinge um receptor graças à existência de um código previamente constituído; trata-se de um processo dinâmico de significação que implica tanto a operação conjunta entre fonte e recepção para codificar a informação, quanto a variedade de códigos que entram em ação no processo de recodificação. Além da idéia de transporte espacial que confere a dimensão de signo à mensagem interessa à semiótica da comunicação entender a semiose que envolve a interação de códigos. Essa é a dinâmica dialógica que se pretende compreender nesse artigo cujo objetivo é situar o ponto de vista semiótico nos estudos da comunicação na cultura. Para isso, alguns encaminhamentos teóricos se fazem necessários. Seguindo a tradição dos lógicos antigos e medievais, John Locke denominou semiótica (do grego Σηµειιωτικη, sêmeiotikê) a ciência geral dos signos dos quais os mais comuns são as palavras (apud Jakobson 1970: 14). Para a moderna semiótica, a doutrina abriga uma grande variedade de signos. Charles Sanders Peirce, reafirmando a concepção de Locke, sistematizou os estudos dessa variedade firmando a semiótica como teoria geral dos signos. Entende por signo qualquer coisa que sugere a presença ou existência de um fato, condição ou qualidade. A expressão “qualquer coisa” é referência direta de representação (representamen para Peirce). Daí o signo ser definido como a ação de representar uma coisa que está no lugar de outra para alguém ou para um organismo (Sebeok 1997: 51). Contudo, tal representação não é automática tampouco limitada. Um signo para uma pessoa, uma comunidade, um grupo ou uma cultura não é um signo para todos, indistintamente. Daí a importância do “estar no lugar de para alguém”. Tudo depende da informação que o signo dirige para alguém que, por sua vez, resulta da relação que se estabelece entre significante e significado (na teoria lingüística de Ferdinand Saussure), ou signo, objeto e interpretante (na teoria dos signos de Ch. S. Peirce). A diferença na conceptualização dessas relações resultou em diferentes frentes teóricas de estudo dos signos. Aquilo que Ch. S. Peirce formulou como semiótica, o lingüista genebrino Ferdinand Saussure denominou semiologia. Esta é uma diferença fundamental para se compreender a variedade de processos que coube à ciência dos signos explicitar. 3 Semiótica segundo Peirce é doutrina da natureza essencial e das variedades fundamentais da semiose, isto é, da cadeia produtiva da construção de sentidos. Sua base fundadora não é a palavra, mas a lógica que comanda as diferentes operações entre signo, objeto e interpretante, permitindo distinguir variedades de signos sempre a partir de tricotomias. Dentre as operações fundantes de sua teoria, merece destaque aqui a operação de semelhança – que define a classe de signos denominada ícone; a operação de contigüidade – que define a classe de signos denominada índice; e a operação de contigüidade instituída – que define a classe de signos denominada símbolo. Trata-se de operações dialógicas de tradução de um signo por meio de outro signo em que se encontre mais desenvolvido. Semiologia seria uma disciplina para o estudo da vida dos signos e das leis que os regem e teve na lingüística uma forte desencadeante. Por isso, a semiologia saussureana tomo a palavra como signo privilegiado e sistematizou a partir dela o algoritmo fundamental da semiose: a relação entre significante (qualidades materiais) e significado (conceito, intérprete imediato). Com base nessa concepção dicotômica, Saussure concebeu a arbitrariedade do signo uma vez que nada prende a imagem, o conceito, ao som. Não se pretende, evidentemente, enveredar pela discussão da teoria, mas tais conceitos devem ser compreendidos como algoritmos fundamentais da semiose. O que, grosso modo, interessa para a semiótica da comunicação é não apenas a dinâmica dialógica da semiose, proposta na teoria dos signos de Peirce, como também os desdobramentos da significação levada adiante pela semiótica discursiva de Greimas, particularmente a semiótica do sensível. Feitos esses encaminhamentos, é preciso dizer que não é propriamente a troca o alvo primordial da pesquisa semiótica, mas aquilo que ela tem de singular: a semiose, vale dizer, a focalização das instâncias de comunicação como lugar de produção de mensagem, isto é, de transformação da informação em signo; de geração e circulação de sentido; de construção de campos de significação; de criação de circuitos de respondibilidade. Semiose aqui é compreensão da interatividade dialógica entre códigos, discursos, linguagens que ocorrem em instâncias de enunciação. A abordagem semiótica assim concebida propõe um outro funcionamento ao clássico circuito formulado pela teoria da comunicação. Em vez de emissão / mensagem / recepção – pressupondo na mensagem uma codificação comum entre o pólo da emissão e o da recepção – a abordagem semiótica da comunicação opera basicamente com a noção de mensagem como sistema suscetível a codificações, ou seja, 4 um sistema organizado de signos que uma vez posto em circulação provoca resposta que não é uma mera descodificação. A semiose não pode prescindir da noção do signo como algo que está no lugar de algo para alguém; logo, nãopode prescindir, conseqüentemente, do interpretante. Aqui está uma diferença fundamental: a resposta a um texto é sempre outro texto, um outro sistema de signos, uma vez que é significação. Não estamos operando no circuito da codificação / descodificação; mas sim da codificação-descodificação-recodificação como atividade processual dialógica sem a qual não se pode falar em mensagem. Seria ingênuo acreditar que tal formulação engloba tudo o que se pode chamar de abordagem semiótica da comunicação. A premissa que define semiótica como disciplina para o estudo das mensagens, que entende produção, circulação e interpretação de mensagens como operação e intervenção com e no código – e, conseqüentemente, com e na linguagem, discurso e demais sistemas semióticos – não é descrição de um mecanismo. Trata-se de tradução da necessidade interna da cultura de organizar as informações em linguagens. Estamos lidando, portanto, com manifestações de cultura: mensagem, linguagem, comunicação, sistemas de signos serão palavras vazias se não forem consideradas imersas na cultura. Por isso que as noções de circuito, de circulação, de respondibilidade, de recodificação, de interpretante, de dialogia são as bases do que estamos chamando aqui de ponto de vista semiótico e da própria semiose da comunicação. Em vez de um transporte linear, de um lugar, temos em vista um circuito em que os papéis são intercambiáveis. Disso estava ciente Marshall McLuhan que apresenta uma formulação muito cara à semiótica. Segundo ele, “toda forma de transporte não apenas conduz, mas traduz e transforma o transmissor, o receptor e a mensagem. O uso de qualquer meio ou extensão do homem altera as estruturas de interdependência entre os homens, assim como altera as ratios entre os nossos sentidos” (McLuhan 1971: 68; 108). Ainda que não fosse seu propósito, McLuhan estava lidando com produção de mensagem em contexto enunciativo. Chegamos, assim, ao caráter inequívoco da abordagem semiótica da comunicação: a produção de mensagem como produção de linguagem em ação na e da cultura. Trata-se de uma abordagem que privilegia a focalização da linguagem considerando não apenas a expansão em largueza – isto é, a constituição de vários sistemas de signos – como também 5 a penetração em profundidade – isto é, a construção de sentido. Com isso se quer dizer o seguinte: a linguagem existe na cultura, não como propriedade dos sistemas, mas como potencialidade de que diferentes sistemas de signos dispõem para produzir mensagens. Onde houver sistema organizado de signos haverá linguagem produzindo mensagem. Assim, para os semioticistas que atuam nas várias esferas da investigação, é consenso que semiótica tem uma vocação inter e transdisciplinar, intersigno, inter e transmídia. Por isso situam as teorias sobre o signo e a significação como campo privilegiado para o estudo da comunicação. Os objetos de investigação são os signos verbais e não-verbais, naturais e tecnológicos em contextos enunciativos. Vale dizer, todos os sistemas semióticos que as linguagens da comunicação já conseguiram sistematizar. Ao abrigar objetos múltiplos e complexos, visam compreender que propriedades, poderes de referências, de significação e de representação os signos têm; como eles se estruturam em sistemas e processos, como funcionam socialmente, como interagem e que efeitos produzem Com isso, não é exatamente a teoria dos signos o assunto desse artigo. A proposta aqui é explicitar o que existe de semiótica na comunicação – ou, em que sentido comunicação é semiose – respeitando uma tradição de pensadores que teve em Santo Agostinho (séc. V) um grande desbravador. Já em sua época, semiótica foi concebida como teoria da comunicação que entendia o signo como a ação que põe o pensamento, as vivências, a informação em linguagem. O signo seria aquilo que se faz com linguagem, ou seja, aquilo que se produz em contexto comunicativo. O que mais surpreende é o fato de tal formulação ter surgido numa época em que linguagem era tão somente palavra em contexto do ato de fala. Se nessa época a necessidade de compreender signos já era imperativa, que diremos nós que vivemos num tempo em que a produção de signos ocorre em esferas de linguagem que estão muito longe de se limitar à palavra. Idéias, experiências, conceitos, vivências; materiais, ações, movimentos – enfim, uma diversidade de manifestações que são constantemente traduzidas em signos por meio da variedade de códigos culturais que não se limitam à palavra mas abrigam as codificações visuais, gestuais, sonoras, audiovisuais, cinéticos, digitais, enfim, formas de codificação criadas em função de necessidades comunicacionais da cultura. 6 Portanto, vamos partir do pressuposto de que o mundo é produtor potencial de informações; contudo, se essas informações não forem organizadas em linguagem de modo a criar signos para os quais buscamos significações, não estaremos diante de objetos de cultura mas tão-somente de fenômenos físico-naturais. Por conseguinte semiótica aqui não pode ser pensada senão como disciplina para a compreensão dos sistemas de signos imersos na cultura. Um exercício de liberdade Quando a Universidade de Brasília foi inaugurada, o artista plástico Bruno Giorgi honrou o campus com uma de suas esculturas talhadas em bronze. O conjunto era composto por formas geométricas que projetavam três hastes interligadas cujas extremidades, semelhantes a lanças, apontavam para o alto. Diferentemente do trabalho que celebrizou os candangos da cidade – acomodado em frente ao Palácio do Planalto – embora mantendo o mesmo padrão de estilização, o “Monumento à Cultura” estimulou interpretações bastante diversificadas. Segundo o poeta e professor Décio Pignatari – um dos criadores da poesia concreta, um dos responsáveis pela introdução do curso de desenho industrial no país, um dos primeiros semioticistas brasileiros, além de tradutor de Os meios de comunicação como extensão do homem de Marshall McLuhan – “falou-se, naturalmente, da união entre professor, aluno e candango; falou-se da união entre ciências, artes e ensino, projetando- se para o alto, a partir de uma base comum, divergente, porém coligadas. Os estudantes, de sua parte, batizaram-no de ´árvore de morcegos´. O artista não se manifestou ”. Pignatari lançou mão de um exercício de linguagem de quem estava habituado a lidar com signos, não para decifrá-los, mas para compreender seu modo de organização. “Conhecendo-se, porém, a evolução escultórica de Bruno Giorgi e sua origem italiana, – afirma Pignatari – não é muito difícil chegar à ´etimologia icônica´ do monumento: o artista praticou um verdadeiro strip tease na deusa Minerva – signo clássico para a inteligência e a cultura – reduzindo-a à lança e ao braço, elaborando e multiplicando, por três, estes elementos...” (Pignatari 1968: 77). Em todas as interpretações, há um misto de opinião e conhecimento. A formulação de Pignatari, contudo, distingue-se por empreender um esforço no sentido de compreender 7 a linguagem do monumento como composição plástica em sua contextualização cultural. Por isso o poeta optou pelo entendimento da “etimologia icônica” da obra que não é uma mera decifração imediatista ou descodificação, mas sim uma inspeção resultante de operações na profundidade da cultura e na semiose que os sistemas de signos são capazes de produzir. Com isso, a interpretação explicita os códigos culturais que constroem o objeto. A escultura significa porque foi construída com signos da linguagem plástica – seu alfabeto visual – que deve ser entendida como a recodificação referida anteriormente. E aí está a diferença.Aquilo que foi apresentado como uma “anedota exemplar”, por quem se lançou no exercício de interpretação dos signos urbanos de uma cidade de construção arrojada, como é o caso de Brasília, introduz a discussão que tem por objetivo se aproximar da abordagem semiótica da comunicação na cultura. Se é verdade que onde houver interpretação haverá mensagens organizadas em forma de linguagem, não será menos verdadeira a noção segundo a qual onde houver mensagens haverá exercício de análise semiótica. Quer dizer, a mensagem revela sua condição sígnica ao pôr em linguagem a informação, agenciando a representação e interpretação. O signo implica sempre uma cadeia de representação ou de semiose. No caso da “anedota” a que se referiu anteriormente, é possível observar a ação de representação tanto na criação (do artista), quanto no objeto (a escultura) quanto na interpretação (dos observadores). Todas as representações manifestam-se tão somente por meio de signos. A noção de representação e de semiose corresponde, no âmbito desse estudo, àquilo que estamos chamando aqui de “exercício de liberdade”. Do ponto de vista semiótico, quando o assunto é significação, nada está definido a priori nem para sempre. Um signo é sempre construção que leva em conta processos relacionais que estão muito longe de serem apenas uma suposição ou uma decisão deliberada de interlocutores. O semioticista Ch. S. Peirce denominou tal processo relacional de interpretante1 que não pode ser confundido com interpretação. No caso da anedota, cada pessoa formulou sua interpretação. A 1 Para Charles Sanders Peirce, interpretante é uma instância que corresponde ao processo relacional que leva um signo (A) a ser traduzido por um outro signo (B), a partir da representação que o signo (A) mantém com o objeto. Resulta de um ato de significação que se manifesta por meio das diferentes classes ou variedades de signos (ícone, índice, símbolo). No interpretante está implicada uma operação tradutória de descodificação e de recodificação que refaz continuamente a relação do signo com o objeto. 8 legitimidade de cada pronunciamento e de outras semioses, que permitem o exercício livre e continuado de tradução do significado do monumento, diz respeito à instância do interpretante. Porque é processo, porque é construção em ato comunicativo ou enunciativo, sem nunca ser dada a priori, a semiose só pode ser pensada como um exercício de liberdade do signo na produção da significação. Esse é o ponto de partida e o ponto de honra da abordagem semiótica da comunicação. Aqui comunicação é, fundamentalmente, semiose. Compreendê-la é uma forma de adquirir a consciência de linguagem que permite ler e significar as manifestações que formam os sistemas da cultura. Diante disso, é possível dizer que uma das propriedades inalienáveis da comunicação é a capacidade de organizar informações em linguagens de diferentes codificações. Uma das características fundamentais da semiótica é a compreensão dos signos e das significações produzidos na cultura: seja nos processos interativos dos homens entre si e com o ambiente ou, ainda, em atividades mediadas por linguagens criadas especialmente para cumprir certas modalidades interativas – as linguagens secundárias (como as da arte) ou as linguagens artificiais (como a simbologia científica). Em ambos os casos, o que está no centro da discussão é a diversidade de manifestações que passou a ser considerada linguagem. Tudo isso alimenta o exercício de liberdade do signo na produção de sentido e no alargamento do campo de significação responsável pela dinâmica da semiose. Por conseguinte, a produção de sentido sintetiza a grande aventura do homem como agenciador de signos na cultura. Produção e da transmissão de sentido O estudo dos signos e das significações ocupa o centro da investigação não apenas da semiótica mas das ciências humanas em geral. O denominador comum desse entendimento é a noção de que os seres humanos são animais produtores de sentido por excelência. Como afirmou o pensador russo Mikhail Bakhtin, quando tentamos compreender o homem encontramos signos, signos por toda parte e tratamos de compreender sua significação (Bakhtin 1982). Ou, como postulara o antropólogo Clifford Geertz “o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu” (Geertz 1989: 15). Não é de se estranhar, portanto, a existência de disciplinas com 9 propósitos diferenciados no estudo do sentido. Também não causa espanto o surgimento de abordagens sempre renovadas sobre aspectos não explicitados anteriormente. As ciências da linguagem, que conheceram um desenvolvimento singular no século XX, na continuidade da antropologia e sociologia estudam o sentido contextualizado em práticas comunicacionais específicas. A abordagem semiótica apresenta a compreensão do sentido como fruto da construção da enunciação; não pode ser derivado imediato de relações sociais estabelecidas. Se coube à lingüística examinar a produção de sentido em situações sócio-culturais de interação verbal, à semiótica se reservou a tarefa de compreender outros sistemas da cultura que não necessariamente verbais mas produtores, igualmente, de linguagem. Também coube à semiótica, em sua vertente voltada para os estudos da cultura, considerar e desenvolver descobertas no campo da cibernética – particularmente pela possibilidade de considerar linguagem em sistemas de signos de ambientes tecnológicos e o próprio redimensionamento do signo como instância de controle de comportamentos sociais na cultura. Assim, se num primeiro momento, a semiótica se apresentava como disciplina para o estudo dos signos e das significações no contexto da linguagem verbal humana e de sistemas culturais consolidados, como as artes visuais (pintura), a descoberta de que sistemas semióticos organizados por códigos sonoros, cinéticos, visuais – como o “Monumento à Cultura” citado –, produzem sentido nos contextos específicos de suas transmissões, a pesquisa semiótica se encaminhou para outros domínios. No trajeto, encontrou não a linguagem da arte, mas as linguagens da comunicação mediada, ou seja, dos sistemas de signos agenciados pelos meios, pelas tecnologias da informação ou novas mídias. Os meios de comunicação redimensionaram a produção de sentido e a própria semiose, colocando no centro da investigação a ação produtiva. Se coube a Ch. S. Peirce desenvolver em sua teoria geral dos signos a semiose com base nas relações triádicas, sobretudo, na dinâmica do interpretante, coube a Algirdas Julien Greimas pensar o dimensionamento das significações na construção do sentido em enunciações específicas. O ponto de honra desse pensamento que interessa diretamente à abordagem semiótica da comunicação é a noção de efeito de sentido. As mensagens não apenas têm sentido mas são sentidas. Produzir sentido não é transmitir algo já dado, mas construir uma dimensão 10 sensível em ato de troca. ter e ser sentido são instâncias produtivas diferentes. Embora esse campo conceitual envolva uma complexidade de formulações é preciso não perdê-lo de vista, ainda que esboçado muito brevemente, sobretudo que graças a ele podemos alcançar uma outra compreensão da comunicação mediada. Se McLuhan entendeu os meios de comunicação como extensão dos sentidos, fazendo corresponder a cada sentido um meio específico, o pensamento que situa os meios como lugar de processamento da semiose permite trabalhar com a confluência de sentidos. Os meios audiovisuais, as mídias digitais, os ambientes imersivos são prova disso. Os meios são lugar de convergência de diferentesordens sensoriais, ou seja, de encontro dos sentidos. Isso altera radicalmente o ter sentido. Logo, a mensagem só tem sentido se for sentida. O redimensionamento do sentido em função do reordenamento dos sistemas de signos na cultura mostra que a abordagem semiótica não apenas construiu um instrumento teórico de compreensão dos signos como processamento dinâmico da informação, como semiose, mas submete seu próprio corpo teórico a constantes reavaliações. Por isso, uma das características fundamentais dos estudos semióticos é a indagação sobre domínios de conhecimentos já consolidados. Assim se descobriu a semiose do próprio sentido. Devemos ao semioticista Eric Landowski, parceiro intelectual de A. J. Greimas, a formulação desse redimensionamento. Segundo Landowski, a palavra sentido “parece ter sido inventada para dar lugar aos mais variados jogos e problemas semânticos” (Landowski 1996: 30). De fato, em português, o termo “sentido” “quando aparece como substantivo, ele toma aproximadamente o valor de sinônimo da palavra ‘significação’. Em compensação, quando se utiliza na sua função verbal de particípio – por exemplo, quando se relata o que ‘foi sentido’ por alguém em tal circunstância - , ele passa a designar quase o oposto: não mais o que o sujeito entendeu, mas o que ele sentiu, grosso modo, sua ‘sensação’. Até que, no limite, será possível ‘ter sentido’ positivamente que, no que se sentiu, não ‘havia sentido’ nenhum...” (Landowski 1996: 31). Ser sentido não é o mesmo que ter sentido, ainda que nos dois casos o sentido emerge de situações específicas. Não é demasiada a insistência: trata-se de diferentes semioses. Ser sentido e ter sentido evoca toda uma discussão quando se trata de compreender a produção e transmissão de sentido na comunicação mediada. Vejamos um exemplo. 11 Em 1929 o cineasta russo Dziga Viértov produziu um filme que não apenas instituía um dos gêneros mais instigantes da história do cinema – o documentário – como também deixou intrigas semióticas inimagináveis para gerações posteriores. O homem da câmera (Chelovek s kinoapparatom) resulta de uma radicalização de seu projeto Kino-Glaz, uma proposta de cinema centrado na qualidade do olho da câmera e sua capacidade de apreender as coisas visíveis e oferecê-las num encadeamento, numa montagem. Esse projeto nasceu da necessidade de reverter a prática do registro de acontecimentos que desfilavam diante da câmera nos documentários oficiais. Em vez de posicionar e fixar a câmera para a captação de eventos, via de regra envolvendo personalidades políticas e governamentais em seu ambiente palaciano, a câmera cine-olho saiu às ruas e tomou as estradas em busca de retratos da vida de pessoas comuns em seus movimentos cotidianos, para transformá-los em flagrantes, criando, assim, flashes, instantâneos dentro da dinâmica do contínuo da vida. A seqüência acabou unindo o descontínuo inserindo-o num mesmo percurso de fluição. Esse tipo de montagem se caracteriza, sobretudo, pela valorização do ritmo e foi batizada como montagem dos intervalos. O estopim dessa linguagem foi, sem dúvida alguma, o mundo sensorial que se revelou capaz de dar evidência àquilo que o olho humano não vê, não somente imagens mas também sons e movimentos. Assim, O homem da câmera resulta de uma montagem das imagens segundo um princípio musical. Trata-se, portanto, de um cinema audiovisual. Contudo, o cinema, naquela época, não dispunha de tecnologia para o registro óptico do áudio na película. Além da justaposição das cenas em flashes, optou-se também pelo registro de cenas musicais e dançantes: orquestra, danças, balé, muitos objetos ruidosos. Diferentes emissões sonoras impregnavam a linguagem visual. Isso sem falar que era comum, na época, o filme receber acompanhamento musical no momento da exibição. O que se quer ressaltar é que as diversas ambiências sonoras foram traduzidas visualmente, particularmente, pela reprodução sonora daquilo que a câmera registra em seus vários deslocamentos. Embora o filme seja uma realização magistral do cinema mudo dos anos 20, do ponto de vista sonoro, seu interpretante imediato é o programa de rádio. Na década de 90 o professor e compositor Iuri Tsivian, da Universidade de Chicago acrescentou música ao filme que pôde, assim, ser visto tal como uma sinfonia musical e 12 como uma semiose audiovisual. Um filme que tocasse olhos e ouvidos; que representasse aquilo de mais ousado do cinema construtivista mas não deixasse de ser rádio. Até onde é lícito supor, a idéia de Viértov era construir um cinema cujo sentido objetivo era ser sentido. Para seu projeto revolucionário, o cinema era um veículo fundamental da consciência de linguagem sem a qual os cidadãos não seriam capazes de edificar a sociedade socialista. Daí a necessidade de convocar todos os sentidos numa sessão de cinema: eram eles que iriam despertar a percepção para as coisas do mundo. As novas gerações assistem às modernas reproduções desse filme em DVD, já com trilha musical de Tsivian. Diante do frenesi das cenas, da montagem em flashes e cortes rápidos, da música conduzindo e decidindo, ritmicamente, o andamento de tudo, o filme que foi um dos primeiros documentários da história do cinema, se transformou num videoclipe. Deixou de ser rádio. Sem dúvida alguma, a transmutação do gênero altera as relações entre ser sentido e ter sentido. O homem da câmera tinha um sentido panfletário: era um documentário revolucionário a serviço da construção da vida urbana dentro da nova sociedade socialista e industrial. Para isso também o cinema de Viértov acalentava sua vocação para ser rádio cujas enunciações alcançavam amplas faixas da população russa (na época, soviética). Visto como videoclipe, passa a ser sentido como uma narrativa fragmentária para as músicas reproduzidas como trilha sonora. Não se trata de forjar interpretações, mas de valorizar o papel do interpretante, da recodificação ou, se quisermos, da modelização semiótica entre meios e processos enunciativos no redimensionamento das significações, o ter sentido e o ser sentido. Não se trata de um jogo de perdas e ganhos, muito pelo contrário. Tenho tido experiências com esse filme que mostram que a abordagem semiótica leva não só a uma sintonização da semiose como também a uma ampliação da capacidade produtiva do próprio cinema e do exercício de metacriticismo de sua linguagem. Isso precisa ser dito senão o significado cultural se perde e a semiose jamais será alcançada. É possível estender esse encaminhamento para outras realizações. Que dimensões de sentido podem ser atualizadas num filme produzido em película para ser exibido em cinemascope e reproduzido por um sistema estereofônico, quando exibido em cópia videográfica ou mesmo na televisão? Evidentemente a narrativa será a mesma, os personagens serão os mesmos, os locais serão os mesmos mas o sentido será diferente. Não 13 o sentido vivencial, mas aquilo que é sentido sensorialmente em função da natureza do meio e da enunciação. As produções são sentidas de modo diferente. Por um lado, aquilo que é possível ver, ouvir e dizer numa mídia não é válido para todas as mídias. O que está em jogo, então, na produção de sentido na comunicação mediada, tem a ver não apenas com aquilo que é da natureza da mídia mas também com as relações que os diferentes sistemas semióticos travam entre si. Esse é um dos temas relevantes dos estudos semióticos sobretudo porque envolve um conhecimento de linguagem que está muito longe de encarar a transmissão como aquilo que se processa entre uma fonte e um pólo de recepção a partir da unicidade do código. O que está em jogo aqui é a recodificaçãoou seja os diferentes processos de codificação e de significação que as diferentes mídias realizam e atualizam. A produção de sentido se situa na esfera do ter ao passo que a transmissão ativa o domínio do ser sentido. Trata-se de uma instância de transformação das significações e de produção de semiose. Estamos longe de uma formulação que toma o sentido como metabolismo do conteúdo; para ser manifestação da semiose, o sentido metaboliza linguagens e sistemas de codificações. Do ponto de vista semiótico isso quer dizer o seguinte: nem os sentidos são projeções de um lugar do corpo (os órgãos dos sentidos) nem o sentido pode ser pensado como conteúdo intelectual. Há interconexões que transformam as mensagens em zonas de contato, de confluências, de atualizações. Isso é o que se tornou explícito com a semiose das novas mídias eletrônico-digitais. Contudo não se pode avançar rumo a essa análise sem antes reposicionar a tradição de pensamento que explicitou os algoritmos fundamentais da semiose. Repensando os algoritmos fundamentais da semiose O pressuposto que situa a comunicação no centro da abordagem semiótica não é novo. Trata-se de uma das mais antigas tentativas de compreensão do processo comunicativo. Está no pensamento dos antigos como Santo Agostinho, Platão, Aristóteles, Cícero e Quintilhano. Cada um a seu modo ocupou-se da significação das mensagens e, conseqüentemente, da comunicação. Desde que a linguagem se tornou o elo da interação dos indivíduos entre si e com o ambiente que os cerca, a informação passou a ser entendida 14 como aquilo que torna possível a significação; contudo ela não se efetiva fora do ato comunicativo. Nesse caso, os algoritmos primordiais da semiose da comunicação não são apenas significante e significado, a exemplo do signo lingüístico como o entendeu Ferdinand Saussure, mas informação e significação. Por isso, na base do pensamento semiótico, comunicação e informação são consideradas duas faces de um mesmo fenômeno: a significação – tornada assim um dos problemas fundamentais de todas as ciências do ciclo semiótico. O que significa “possuir uma significação”? Para o semioticista Roman Jakobson questões como essas reivindicam respostas genuinamente semióticas. Para ele, a significação resulta de um processo relacional em que se revela a potencialidade do signo e não a propriedade da coisa. Seu exemplo é pontual: nunca provamos o néctar ou a ambrosia servidos nos banquetes dos deuses e, no entanto, isso não impediu que nos deixássemos envolver pelas descrições das festas homéricas, a ponto de tomá-las como metáforas vigorosas para nossa própria cultura (Jakobson 1971: 63). Por conseguinte, é no dinamismo das interações culturais – no ter sentido como ser sentido – que a significação se constitui semioticamente. Nada é dado a priori. Não se pode pensar significação fora da lei geral do movimento e da passagem de uma dimensão a outra da linguagem. É na interação comunicativa que a informação se torna significação. Estamos considerando informação / significação como os algoritmos fundamentais da semiose na comunicação exatamente porque a significação envolve o modo como a informação é codificada, recodificada, enunciada. Nesse caso, a noção de propriedade deve ser compreendida em função do processo semiótico dentro de um conjunto de probabilidades. A partir do momento em que a comunicação passou a definir o modelo da civilização contemporânea, como afirma Thomas Sebeok, ⎯ “devido à modelação social intensa da tecnologia e interesses comerciais e de governo”, nossa era passa a ser caracterizada como “a sociedade da informação” (Sebeok 1997: 63) ⎯ cada uma das esferas opera sínteses conceituais menos difusas. Entre comunicação-informação-significação é preciso distinguir entre propriedade, princípios, processos, organizações. Assim: • Informação: propriedade das mensagens definida pela variação e atualização e agenciadora potencial da semiose. 15 • Comunicação: princípio organizador da troca interativa entre moléculas, células, organismos, seres humanos, máquinas, capaz de impedir a entropia. • Significação: processo gerado pelo modo como a informação é codificada; diz respeito à descodificação e à recodificação em contextos enunciativos. • Mensagem: configuração organizada a partir de uma determinada codificação ou linguagem de um critério de significação produtor da enunciação e, conseqüentemente, do sentido. Procede da cibernética e da teoria dos sistemas a noção de que comunicação e significação constituem um processo interativo amplo não restrito ao homem, mas com capacidade de abranger sínteses mecânicas de “interação entre dois sistemas; isto é, a troca de informação entre sistemas dinâmicos capazes de receber, armazenar ou transmitir informação”. Quem formula esse pensamento é o semioticista americano e discípulo de Jakobson, Thomas Sebeok. Para ele “a comunicação é aquele critério de vida que retarda os efeitos desorganizadores da Segunda Lei da Termodinâmica, ou seja, a comunicação tende a diminuir a entropia localmente. Num sentido mais amplo, a comunicação pode ser vista como a transmissão de qualquer influência de uma parte do sistema vivente para outra, produzindo mudança. (...) O processo de intercâmbio de mensagens, ou semiosis, é uma característica indispensável para todas as formas de vida terrestre. ... o estudo dos processos gêmeos de comunicação e significação podem ser encarados como um ramo da ciência da vida, ou como pertencentes em grande parte à natureza, e de alguma forma à cultura, que naturalmente também é parte da natureza” (Sebeok 1997: 50-1). Se a significação é condição do signo e se o signo é sempre representação, o que pressupõe a transformação da informação em linguagem por meio da codificação? Como situar a significação tendo em vista o código? É no código que a comunicação passa a ser considerada um problema semiótico, uma vez que no processo de codificação- descodificação-recodificação a informação se transforma em linguagem tornando possível as mensagens. É também graças ao código que as culturas organizam sistemas semióticos que podem ser assim entendidos como produtores de linguagem. Pôr a informação em linguagem é um processo de significação. Nesse sentido, é preciso esclarecer o conceito semiótico de código. 16 Trama semiótica do conceito de código No prefácio que escreveu para o livro de Roman Jakobson sobre o desenvolvimento da semiótica, U. Eco afirma que a revolução da semiótica enquanto disciplina se origina de causas de ordem antropológica e histórica: “a pressão e o desenvolvimento tecnológico das mídias fez da comunicação o problema central de nossa civilização e agora é compreensível porque muitas disciplinas se interessam pelo estudo conjunto das leis gerais das significações humanas e naturais” (Eco 1978: 10). Para Eco, Jakobson foi o grande catalisador da razão que procurou entender a comunicação como problema semiótico não só porque viu nela o objeto mesmo da teoria geral dos signos, mas porque conseguiu alcançar seus dispositivos fundamentais: o código e a mensagem, aplicados assim a todos os sistemas comunicativos e não apenas às mensagens verbais. Daí porque o código tenha recebido de Jakobson atenção particular. Mas não se trata do processo descritivo do código que devemos usar, mas do código que usamos. Se devemos a Saussure o conceito de código como sistema de regras que geram mensagens na língua, devemos a Jakobson a inserção do código e da mensagem num processo dinâmico em que a comunicação é assegurada não pelas regras, mas pelas possibilidades de usar asconvenções e transformá-las numa intervenção significativa. Código e mensagem, para Jakobson, não configuram uma dicotomia que simplesmente substitui o par langue/parole. Pelo contrário, o código não apenas organiza como atualiza as mensagens; nesse caso, a mensagem representa uma certa atualização em termos de código (basta voltar ao que dissemos a propósito do filme de Viértov). Segundo Jakobson, “no que respeita ao tratamento dos problemas de codificação na teoria da comunicação, a dicotomia saussuriana entre langue e parole pode ser reformulada de maneira muito mais precisa, o que lhe dá um novo valor operacional" (Jakobson 1971: 77; 21-22). À luz do conceito de código e mensagem surgem novos problemas que podem sem examinados como: as trocas, a possibilidade de interpretação da mensagem pelo descodificador, a mudança constante do código ou recodificação, a tarefa de decifração como dos criptanalistas, o bilingüismo, a mudança e a expansão de código, isso sem falar do cada vez mais crescente fenômeno de contaminação. Não se trata sequer de considerar o código 17 único que envolve interlocutores, mas de considerar que o código da codificação não é exatamente o mesmo do código da descodificação. Nada escapa ao código, segundo Jakobson. Qualquer sistema semiótico está sujeito às leis semióticas gerais e opera com códigos; mas tais códigos estão vinculados à comunidade específica assim como uma linguagem gera seus subcódigos vinculados a profissões ou atividades determinadas. O estudo do código é, assim, estudo de suas leis sincrônicas da formação e transformação diacrônica destas leis. Em vez de limitar o código àquilo que os engenheiros da comunicação chamam de "conteúdo puramente cognitivo" do discurso, Jakobson formula seu conceito de código no vértice entre a teoria da comunicação e a teoria geral dos signos. Parte da noção de que "todo signo convencional é um legi-signo": trata-se de uma lei que tem valor de signo, quer dizer, uma lei cujo diferencial é garantir a representação. O código define-se como uma organização de caráter genérico e convencional, uma potencialidade geradora dos signos. No conceito de código como legi-signo encontram-se asseguradas duas operações básicas: uma diz respeito ao caráter normativo, outra, ao processo correlacional (Nöth 1995: 207 e segs.). Por caráter normativo entendemos o código como conjunto de regras, normas, instruções. Já o caráter correlacional diz respeito à transformação; surge quando aplicado ao universo da linguagem: o código é uma convenção a partir da qual surgem outras representações. Para Jakobson, “a linguagem nunca é monolítica; seu código total inclui um conjunto de subcódigos: questões como a das regras de transformação do código central, plenamente satisfatório e explícito, em subcódigos elípticos, e a da comparação quanto ao teor de informação veiculada, exigem ser tratadas ao mesmo tempo pelos lingüistas e pelos engenheiros” (Jakobson 1971: 79). Para Jakobson, nada escapa ao código, por isso até mesmo a elipse é regida por leis codificadas; contudo, existe, segundo o lingüista, um grau ascendente de liberdade no uso do código lingüístico: no campo fonológico, todas as possibilidades já foram previstas, ao passo que no campo da enunciação o grau da liberdade cresce incomparavelmente. É aqui que o conceito revela sua matriz cibernética. O código vincula-se à informação e a determina ou modeliza porque nele há uma esfera reservada à previsibilidade. Assim, no conceito semiótico de código coexistem as seguintes noções: 18 Código como conjunto de regras Provém do direito romano a noção de código como conjunto de leis. O codex romano reunia as coleções de legis, isto é, de decisões imperiais compiladas entre os séculos III e IV. Trata-se de um conjunto sistemático de dispositivos legais cujo fim é a organização de mensagens de natureza diversa no sentido de evitar incongruências. Dentro dessa acepção se evidencia o rigor da convencionalidade do código. Código como representação A invenção do alfabeto consagra a noção de código como instância de organização das mensagens escritas. Os sinais gráficos da escrita alfabética tornam-se a convenção que permite a representação das informações nas trocas comunicativas. Contudo, na teoria da comunicação e da informação, a representação implica um processo de conversão: o código é uma transformação convencionada, ou conjunto de regras não-ambígüas por meio das quais as mensagens são convertidas de uma para outra representação. Tal processo não é uma mera transposição mecânica, mas um processo de criação de significação. Apesar de o código ter um “um uso estritamente técnico”, como quer Colin Cherry, não se pode esquecer de que, na comunicação, o código se constitui enquanto sistema a partir de outro. Pense-se, por exemplo, na escrita: as mensagens escritas são codificações que se valem de um outro código pré-existente, as notações gráficas do alfabeto. Nesse sentido, um código é uma “transformação concertada, convencionada, geralmente de elemento a elemento, e reversível, por via da qual se podem converter mensagens de um conjunto de signos em outro” (Cherry 1971: 29). Quando se trata de código no processo comunicativo é preciso considerar essa duplicidade operacional, o dualismo da representação. Por isso, na teoria da comunicação, o código é sistema de signos verbais ou semiológicos destinados a representar e a transmitir a informação entre a fonte (ou emissor-codificador) dos signos e o ponto de destino (ou receptor-decodificador). A inserção do código no processo comunicativo nos leva a olhar com mais atenção para esse transporte ou conversão. Surge, assim, a necessidade de se pensar no código como um sistema de probabilidades. Código como sistema de probabilidades Exatamente porque o processo de codificação é uma atividade que ocorre a partir de um código pré-existente, é preciso pensar o código como sistema desordenado, entrópico, que abriga muitas possibilidades. Claude Shannon discute a noção de código como entropia: a função do código é combater o ruído. Para isso, a codificação/decodificação implica um poder de seleção e, conseqüentemente, de combinação. Desse processo resulta o conteúdo de informação de enunciados. Como conjunto de probabilidades, o conceito de código na linguagem de máquina é um conjunto de instruções que entram para a constituição do programa. O código é assim um conjunto de regras para a comunicação geral ou específica. São operadores seletivos que não utilizam todas as combinações possíveis por seu repertório. 19 Código como explicitação O caráter de reversibilidade do código de um sistema a outro nos leva a McLuhan. Os códigos entendidos enquanto meio, tal como as palavras, constituem uma “tecnologia de explicitação”: através deles é possível traduzir experiências. Nenhum meio tem sua existência ou significação por si só, estando na dependência constante de interrelação com outros meios (McLuhan 1971: 42). Código como modelação das relações culturais Se é verdade, como o semioticista Thomas Sebeok afirma, que na história ou pré- história da espécie humana, “nos primórdios dos hominídeos, a linguagem não era usada para a comunicação, mas para 'moldar', ou seja, fazer uma análise refinada de seu ambiente”' uma vez que “as vantagens dos antecessores da linguagem não eram primariamente sociais, mas eram vantagens individuais de sobrevivência, porque as condições de vida parecem ter sido bastante críticas naquela época”(Sebeok 1995: 62), o código, desde então, revela ser um sistema modelizante. Modelar, aqui, é uma forma de controle: trata-se de uma necessidade vital para o registro, armazenamento e divulgaçãoda informação. É aqui que o conceito de cultura como informação revela-se não só como um problema semiótico, mas um problema semiótico de caráter cibernético. A noção de código como modelização de relações remete diretamente para o centro da abordagem da semiose da comunicação. Infossemiose e modelização Espero ter deixado claro que, apesar de grande parte das teorias semióticas da comunicação terem derivado do modelo desenvolvido pela teoria matemática, cujo objetivo era a descrição da transmissão de mensagens entre de uma fonte para um pólo de recepção, não é bem essa a base a partir da qual se consolidou a análise semiótica que empreendeu uma revisão crítica de algumas crenças, como por exemplo, a de código único e, conseqüentemente, de que uma vez codificada a mensagem emitida pela fonte pode ser imediatamente descodificada, numa total indiferença do contexto e das relações dialógicas e, portanto, intercambiáveis, entre fonte e recepção. Uma vez que estamos considerando que “semiótica é a ciência dos sistemas de signos transmissores de informação no interior de grupos sociais” e, portanto, “ciência dos 20 signos comunicativos” (Lekoncev 1977: 39), a informação é processo semiótico por excelência. Quando entra para o sistema dialógico da cultura, toda informação é codificada, no mínimo, duas vezes: o código de emissão e o código de recepção em interação. Isso sem falar que toda informação é suscetível de ser modelizada por diferentes linguagens. Nesse sentido, o processo que considera a semiose da informação ou infossemiose pode ser considerado o centro nervoso da recodificação. O termo infossemiose deriva do contexto das tecnologias da informação (ver Trivinho 1998). Contudo, entendida como processo dialógico deacodificação, vamos considerar infossemiose toda semiose com vistas à transformação da informação em linguagem graças à interação de sistemas de signos e de suas codificações. Nesse sentido, a infossemiose desencadeia a modelização da linguagem e sua expansão em sistemas semióticos variados. Aqui a semiose não acontece no interior de um sistema mas entre sistemas. Por conseguinte, é nesse contexto que é possível situar os aspectos fundamentais da abordagem semiótica da comunicação como semiose da própria cultura, que os semioticistas russos formalizaram conceptualmente em seus estudos sobre os sistemas modelizantes. O termo modelização foi igualmente forjado no coração da pesquisa informática e nele está pressuposto que toda informação encontra-se codificada em algum sistema cultural, vale dizer, em uma linguagem. Na análise da modelização é possível concordar que no início era o verbo, contudo, não se pode perpetuar o poder centralizador da palavra e dos sistemas de signos que gravitam em torno dela. Por isso, os semioticistas se perguntavam como a comunicação humana desenvolveu mecanismos criadores de outros sistemas semióticos fundados em codificações como as formações visuais, sonoras, audiovisuais, cinéticas, táteis, digitais etc que não conservam nenhum aspecto da interação verbal mas se constituem como linguagem. Para o conceito de linguagem se dirigem as primeiras investidas dos semioticistas russos. Não se trata de negar o papel da linguagem natural (da língua) na cultura mas de reconhecer a existência de uma necessidade da cultura de desenvolver linguagens artificiais (da ciência, dos sinais) e linguagens secundárias (da arte, da religião, dos meios de comunicação) (Lotman 1976: 37). Assim, a legitimidade do conceito de linguagem para sistemas da cultura não agenciados pela codificação verbal é assegurada pela modelização tornada, assim, princípio dinâmico da semiose da informação. 21 O semioticista estoniano Iúri Lótman, um dos formuladores da modelização como base da abordagem semiótica da cultura, entendia que, em tempos de desenvolvimento e expansão comunicativa, cada vez mais a informação é traduzida por uma variedade de linguagens naturais e artificiais que formam o tecido da cultura. Numa cultura com alto grau de modelização, sábio é, antes de mais nada, o leitor poliglota, porque é assim que a cultura se define. Afinal, qualquer forma de conhecimento se exprime num modo particular de comunicação (Lotman e Uspenskij 1973: XII; XXV). Para Lótman, “a humanidade reclama um mecanismo particular ⎯ gerador de 'linguagens' sempre novas que poderiam servir a sua necessidade de saber. Além disso, parece que não se trata somente do fato da criação de uma hierarquia de linguagens ser um processo de conservação da informação mais rico do que o aumento até ao infinito das comunicações numa única linguagem. Determinados aspectos da informação podem ser conservados e transmitidos unicamente com a ajuda de linguagens especialmente organizadas ⎯ assim, as informações química ou algébrica exigem as suas próprias linguagens que devem ser especialmente adaptadas a um dado tipo de modelização e de comunicação'” (Lotman 1976: 29-30). Fora da linguagem não há, portanto, a menor possibilidade de organizar a informação. O conceito de modelização está fundado em alguns pressupostos básicos: um diz respeito à idéia de que a transformação dos sinais em informação é um processo genuinamente semiótico uma vez que envolve a tradução de sinais em signos; o outro, à noção de que nenhum sistema semiótico é dado ao pesquisador mas sim construído (Zalizniák, Ivanov, Toporov 1979: 84) daí a centralidade da linguagem na construção do sistema. Tais pressupostos definem modelização como semiose. Do ponto de vista conceitual, são correlativos. A possibilidade de tornar a língua natural um ''manancial de estruturalidade'', como queria Lótman, faz do processo de modelização um mecanismo cujo funcionamento é comparável ao de um dispositivo central codificador, capaz de atribuir estruturas a sistemas carentes desse tipo de organização. Falamos, por exemplo, de linguagem do cinema, da televisão, da moda, das festas, dos ritos e, no entanto, nenhum desses sistemas semióticos são dotados de estrutura de linguagem tal como o sistema verbal. Para os semioticistas comprometidos com tal investigação, trata-se de firmar um posicionamento que garanta à 22 linguagem o lugar de ponto de partida para a compreensão da cultura, uma vez que, “no seu funcionamento histórico real, as línguas e as culturas são indivisíveis: não é admissível a existência de uma língua (no sentido amplo do termo) que não esteja imersa num contexto cultural, nem de uma cultura que não possua no seu próprio centro uma estrutura do tipo da duma língua natural” (Lotman e Uspenski 1981: 38). Nesse sentido, cultura é um conjunto de toda informação não-hereditária e dos meios para sua organização e conservação. A grande implicação desse conceito é que a cultura torna-se inevitável para o homem. “A informação não é um traço facultativo, mas uma das condições essenciais para a existência da humanidade. A luta pela sobrevivência biológica e social é uma luta pela informação. (...) A cultura não é todavia um depósito de informação. É um mecanismo organizado de modo extremamente complexo, que conserva a informação elaborando continuamente suas metas e procedimentos mais úteis e compatíveis, dele recebe o novo, codifica e decodifica a mensagem, traduz de um sistema de signo a outro” (Lotman e Uspenski 1973: 28). Diremos, então, que a modelização traduz o mecanismo semiótico da comunicação mediada em que os meios não são apenas extensões dos sentidos mas verdadeiros ambientes que, assim entendidos, redimensionam a enunciação como espaço primordial de dialogia. Foi Marshall McLuhan quem definiu os meios como ambientes. Para ele os veículos constituemambientes no interior dos quais a informação se movimenta na era da eletricidade (McLuhan 1971:108). A noção de ambiente apresentada implica relações de mobilidade, mudança, mutações de percepção e de comportamento. Existe, portanto, um medium agenciador de relações. O meio é, portanto, ambiente de mutação ou de transdução se quisermos manter a coerência com a metalinguagem da análise semiótica. Num ambiente diferentes ordens sensoriais se interrelacionam. Não temos outra alternativa senão continuar o diálogo com McLuhan para melhor situar o redirecionamento que a ambiência midiática apresenta a suas proposições. Para o guru da comunicação mediada, os meios foram concebidos como extensões do homem: cada meio explicitava um órgão dos sentidos. Da mesma forma como os sentidos se situavam num lugar no corpo, os meios se reportavam a uma única codificação. Os meios eram, portanto, tradutores de informações sensoriais que se exprimiam pelo código. 23 As geniais formulações de McLuhan passam a perder o rigor da proposição original quando a idéia de rede começa a ganhar projeção: em vez de uma matriz sensorial (os órgãos dos sentidos) os meios surgem como possibilidades de entrelaçamento de sensações e, conseqüentemente, de modelização de linguagens. Isso porque neles se opera não apenas a tradução de que se falava não era transposição entre códigos iguais (como no caso a tradução lingüística); os códigos sensoriais foram traduzidos em termos de ondas magnéticas, linhas, pixel, pontos, processo fotoquímico. Quer dizer, estamos muito longe de uma extensão no sentido mais estreito do termo. Também é preciso reconhecer que os meios deixam de ser tradutores e se transformam em transdutores. Na verdade, trata-se de mediações que regem tanto o sensório quanto os meios de comunicação que passam a ser pensados como rede criadora de ambientes. As relações entre os sentidos chegam a ser subversivas: um sentido esbarra no outro, contamina o outro e não está sediado num lugar específico mas num ambiente ecológico. Uma autêntica redescoberta do sensório como afirmei em outra ocasião (Machado 2000). São essas relações que têm afirmado a noção de cultura das mídias em que os sistemas semióticos desfrutam de relações solidárias. Por isso que o ponto de vista semiótico que apenas esboçamos nesse artigo aponta um redirecionamento dos estudos da comunicação para o contexto de uma abordagem ecológica. Bibliografia consultada BAKHTIN, Mikhail M. (1982). Estética de la creación verbal (trad. Tatiana Bubnova). Mexico: Siglo Veintiuno. BRAIT, Beth (org.) (2001). Estudos enunciativos no Brasil. Histórias e perspectivas. São Paulo: Fapesp; Campinas: Pontes. CHERRY, Colin (1971). A comunicação humana (trad. José Paulo Paes). São Paulo: Cultrix. COBLEY, Paul & JANSZ, Litza (1999). Introducing Semiotics. New York: Icon Books. 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