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Sextafeira, 15 de maio de 2015 Afinal, o que é um precedente? Lucas Buril de Macedo Por Lucas Buril //Colunistas Just Já falamos bastante sobre os precedentes judiciais, sobre a importância de sua presença no direito processual contemporâneo (?) e sobre as idas e vindas que o tema experimentou no trajeto legislativo do Código de Processo Civil... Tudo isso, no entanto, não passou por uma pergunta essencial: o que é um precedente judicial? Temos que entendêlo bem para que seu manejo seja adequado. A compreensão dos precedentes não é fácil, mas essas linhas devem fornecer alguns esclarecimentos essenciais – além de algumas decepções. Antes de começarmos, um alerta: precedentes judiciais obrigatórios são bons – eu diria mais, são fundamentais! Certamente, caso bem compreendidos e bem aplicados – o que é bem mais difícil –, garantirão um considerável incremento de segurança jurídica, racionalidade e coerência à prática do Direito. No entanto, equivocase (e muito!) quem vier a pensar que a ferramenta é a panaceia que extirpará todos os males vivenciados no foro. Nem de longe... No entanto, como se disse, eles são fundamentais... Por isso, vamos nos preocupar em melhor entendêlos. Perguntamos de novo: o que é um precedente? Inicialmente, cabe notar que a argumentação por precedentes não é exclusiva do Direito. Argumentar por precedentes é um tipo de argumentação prática, que pode se dar em todas as esferas da vida. O filho pode argumentar com o pai com base em uma permissão que ele concedeu antes ao seu irmão, os colegas de trabalho procurarão a ação tomada no passado para resolver um problema atual, os amigos, ao decidirem para onde irão, poderão olhar para as experiências prévias, etc. A estrutura básica de uma argumentação por precedentes é a seguinte: deve ser feito X quando se der Y, porque antes já aconteceu Y e a ação tomada foi X[1]. O passado, por si só, acaba sendo uma razão que compele o sujeito à tomada de decisão em um certo sentido. Para o Direito, os precedentes, mais propriamente os judiciais, são “resoluções em que a mesma questão jurídica, sobre a qual há que decidir novamente, já foi resolvida uma vez por um tribunal noutro caso”[2]. São, do ponto de vista prático, decisões anteriores que servem como ponto de partida ou modelo para as decisões subsequentes [3]. Nesse sentido, o precedente judicial abarca toda a decisão – relatório, fundamentos e dispositivo –, não discriminando as parcelas mais importantes para a concretização do direito. Precedente, aqui, é o mesmo que “decisão precedente” e tem um inegável aspecto relacional, na medida em que só pode ser aplicado quando existem casos análogos. Portanto, rigorosamente, e tomando um sentido amplo, aproximado ao significado de “caso” – abarcando todo o ato decisório –, precedente é fonte do direito; ou seja, é fato jurídico continente de uma norma jurídica. Podese dizer, então, que, a partir do precedente, através do trabalho dos juízes subsequentes, darseá uma norma geral. Dessa forma, precedente é continente, é forma e não se confunde com a norma que dele exsurge. Com efeito, tratase de instrumento para criação de normas mediante o exercício da jurisdição. Por outro lado, precedente é texto. Isto é, a decisão prolatada, que lançará a si mesma como fonte do direito, deve ser interpretada pelos aplicadores nos casos subsequentes. Não se pode pensar que o precedente judicial é o fim de um processo hermenêutico e que fechará qualquer caminho para a argumentação jurídica. Não. O próprio precedente, que abrange toda a decisão judicial, como visto acima, é um texto, é fonte do direito, e precisa ser interpretado por seus aplicadores para que se chegue a uma norma jurídica. Ora, se a ciência jurídica precisou caminhar para afirmar definitivamente que o texto não se confunde com a norma, especialmente com referências às leis, por que precisaríamos retrilhar todo esse caminho com os precedentes judiciais? O texto do precedente não se confunde com a sua norma. É certo que, no precedente, justamente por ser mais concreto – visto que é formado em atenção a fatos jurídicos específicos –, sua norma geralmente se apresenta mais facilmente para o intérprete, o que se dá com ainda mais força nas chamadas demandas repetitivas. O trabalho de (re)construção da norma, diante das características típicas dos precedentes judiciais, normalmente será mais simples e menos criativo do que o que se dá no processo análogo com as leis, naturalmente mais vagas e ambíguas. Falamos bastante em norma do precedente, que é construída a partir de seu texto. A referida norma nada mais é do que a conhecida ratio decidendi, ou, como preferem os americanos, holding. O termo norma do precedente é, para nós, por características históricas e culturais, mais contextualizado, isto é, aproxima do nosso pensamento uma série de ferramentas que poderiam, a princípio, parecer impertinentes à ratio decidendi ou holding. O que importa notar é que ratio decidendi não é nada mais do que a norma que se constrói a partir de um precedente judicial. Ao olharmos para esse problema com o nosso manancial teórico, já podemos excluir de sua solução uma série de teorias de base norteamericana ou inglesa, fundadas em razões já afastadas entre nós. Vejamos. No common law, há estudo empreitado por Karl Llewellyn, que aponta o impressionante número de sessenta e quatro formas de encontrar a ratio decidendi de um precedente judicial! [4] Será mesmo que precisamos importar toda essa complexidade para o direito brasileiro? Parecenos que não. É preciso aceitar que, para determinar a norma a partir de um texto normativo, não existe um único método válido ou legítimo, pelo contrário, são encontradas múltiplas formas, podendo cada uma delas ensejar resultados distintos e até contrários, não sendo possível selecionar uma delas como correta ou superior a priori. Dessa forma, chegase à conclusão de que o fetiche pelo método é pouco útil, porquanto é pouco provável que ele possibilite o controle rígido de qualquer decisão, já que há uma verdadeira abundância de formas de alcançála e de resultados possíveis. Mais adequado é o estudo dos métodos para que assim se proceda ao controle racional da fundamentação da decisão, eliminando se qualquer pretensão de se estabelecer o método como instrumento de controle a priori das decisões judiciais, que sempre dependerão das circunstâncias concretas [5]. Ora, se construímos essa solução para o texto e a norma legal, o mesmo deve ser feito para o texto e a norma do precedente. Não se deve apostar em um único método como o exclusivamente válido para a definição da ratio decidendi [6]. Assim sendo, e em síntese apertada, o precedente judicial precisa ser compreendido como fonte do direito e como texto que precisa ser interpretado; a ratio decidendi, por sua vez e em complemento a essa perspectiva, é a norma do precedente, é o comando construído a partir do seu texto que vincula o jurisdicionado. Em decorrência, obiter dictum é a parte da decisão judicial que não servirá para a construção da norma do precedente. É a parte do precedente, por características advindas da sua formação – como a ausência de pedido, contraditório quanto ao tema abordado ou fundamento determinante na votação pelo tribunal –, imprestável para construção de uma ratio decidendi. Essa perspectiva do precedente é essencial para a sua conformação ao devido processo legal. Não se pode permitir que o precedente seja uma barreira intransponível ao jurisdicionado, que precisa ter garantido o seu direito de acesso à justiça, apontando uma interpretação do precedente que lhe seja favorável, uma distinção entre sua situação jurídica e a versada no caso paradigmático ou mesmo trazendo um novo argumento que possa levar à superação da ratio decidendi. Além disso, ao se compreender o precedente judicial diferentemente – como uma vedação argumentativaabsoluta ou uma forma de garantir a segurança jurídica total, que o texto da lei, já que precisa ser interpretado, faltou em nos fornecer –, estaremos fadados ao insucesso e à decepção já experimentada antes, com a pretensão de termos segurança jurídica absoluta na lei. Enfim, em tempos de novo Código de Processo Civil, é importante que se compreenda teoria dos precedentes para que não acabemos “comprando gato por lebre”. O precedente judicial vem para resolver problemas sérios, mas não todos os problemas da prática brasileira e nunca para excluir a função do advogado ou do juiz de primeiro grau, que possuem papel importantíssimo na sua formação e aplicação. Lucas Buril de Macêdo é Advogado e Mestre em Direito pela UFPE. REFERÊNCIAS [1] SCHAUER, Frederick. Precedent. Stanford Law Review, v. 39. 1987, p. 571. Da mesma forma: DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 12. [2] LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 5. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2009, p. 611. [3] MACCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert. Interpreting precedents. Aldershot: Ashgate/Dartmouth, 1997, p. 1. [4] LLEWELLYN, Karl N. The common law tradition. Boston: Little, Brown and Company, 1960, p. 7789. [5] SALDANHA, Nelson. Da teologia à metodologia: secularização e crise no pensamento jurídico. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p. 114. [6] Nesse sentido, em crítica direta aos métodos de definição dos fatos substanciais estabelecidos por Goodhart, ver: STONE, Julius. “The ratio of the ratio decidendi”. Modern Law Review, 1959, vol 22, p. 597. Ver também, em crítica direta à ideia de necessidade da regra estabelecida, o que remete a Cross, com análise caso: EISENBERG, Melvin Aron. The nature of the common law, cit., p. 5354. APOIO: TARDELLI ZANARDO LEONE ADVOGADOS JUSTIFICANDO.COM 2015 by Salut!
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