Buscar

Escuta e desejo. Fragmentos de um caso clínico

Prévia do material em texto

46
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, mar. 2002
Escuta e desejo:
fragmentos de um caso clínico
Clinicando
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, 46-54
46
Christian Ingo Lenz Dunker e Fuad Kyrillos Neto
O artigo aponta fragmentos de ses-sões de uma paciente realizado em
um NAPS (Núcleo de Atenção Psicosso-
cial) abordando a especificidade da es-
cuta no tratamento da psicose. Os NAPS
são serviços substitutivos de saúde men-
tal que, em seu funcionamento, privile-
giam o acesso à cidadania por intermé-
dio da ressocialização.
Estamos em um momento de transfor-
mação da assistência à saúde mental em
nosso país. Recentemente foi aprovado
no Congresso Nacional um projeto de lei
que proíbe a abertura de novos leitos
O artigo aborda a especificidade da escuta no acolhimento a pacientes psi-cóticos por meio de fragmentos de sessões de um caso atendido em um Nú-
cleo de Atenção Psicossocial. Considera-se que o delírio coloca um enigma que
exige uma escuta que permita a produção de sentido. O analista deve ocupar o
lugar de acolhimento e testemunha da fala da paciente.
Palavras-chave: Escuta, desejo, clínica, psicose
This article is about the specific character of listening to psychotic patients, based on fragments of sessions from a case analyzed at a Center for
Psychosocial Attention. Delirium presents an enigma and demands an ability to
listen that allows the analysand to produce meaning. The analyst must take on
the role of listener and witness to the patient’s speech.
Key words: Listen, desire, clinic, psychosis
47
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, mar. 2002
psiquiátricos e a construção de hospitais
psiquiátricos no país. Dessa forma ad-
quire relevância pensarmos a efetividade
da escuta em uma clínica que valorize a
expressão e o tratamento da subjetivida-
de de pacientes psicóticos.
Sônia iniciou o tratamento no NAPS em
dezembro de 1993. Atualmente está com
38 anos e em sua ficha de primeiro
atendimento consta como motivo da bus-
ca do tratamento sintomas como insô-
nia, risos imotivados e agressividade.
Sofreu três internações psiquiátricas na
extinta “Casa de Saúde Anchieta”. Na
primeira crise, em 1985, quebrou vários
objetos em casa e teve alta após trinta
dias de internação. Em 1991, após des-
truir objetos e agredir familiares, a pa-
ciente foi levada ao hospital psiquiátrico
pela polícia. Permaneceu internada uma
semana e ficou morando na rua, pois a
família, segundo consta no prontuário,
“não suportava sua agressividade”.
Sônia começa a ser atendida por um ana-
lista em dezembro de 1998. Sua antiga
técnica de referência, alegando cansaço
e esgotamento para lidar com a pacien-
te, solicita ao analista que ele assuma o
caso. Ressalta que Sônia não usa medi-
cação, ou seja, leva a medicação para
casa mas, não a consome segundo a
prescrição médica, utilizando o medica-
mento da forma que julga melhor. A pa-
ciente se recusa a participar de um gru-
po que cultivava uma horta próxima ao
serviço. Também havia uma série de
queixas da administração do terminal ro-
doviário do município dizendo que a pa-
ciente permanecia naquele local durante
dias, importunando funcionários e usuá-
rios.
Estamos relatando um caso considerado
“difícil”, segundo expressão utilizada por
Figueiredo (2000). Os “casos difíceis”
são aqueles que ameaçam nossas reser-
vas chamando-nos para um aqui e ago-
ra alarmante em que nossa implicação
nos faz correr o risco de recorrer às re-
gras disciplinares. Uma paciente em si-
tuação social precária, sem residência
fixa, que por vezes se torna agressiva,
chega ao NAPS acompanhada por uma
irmã. Após ser atendida por uma técni-
ca e medicada pela psiquiatra, é inserida
no serviço. Sua técnica de referência,
sensibilizada com a condição social ad-
versa da paciente, propôs um contrato
no qual Sônia passaria os dias na institui-
ção, onde faria as refeições e participa-
ria das atividades na horta. Porém Sônia,
apesar das boas intenções da técnica de
referência, se recusava a participar das ati-
vidades e usar medicação. Preferia ficar
no terminal rodoviário observando a mo-
vimentação do embarque/desembarque
de passageiros, gerando uma sensação de
desânimo e impotência em sua técnica.
Ressaltamos que o caso em tela possui
significativas nuances de questões que
surgem no cotidiano do serviço. A pa-
ciente não cumpria o contrato e sua téc-
nica se queixava que suas melhoras
eram tímidas e que Sônia sempre relata-
va as mesmas queixas. Como possibili-
tar o surgimento de algo que escutamos
e reconhecemos como novo? Para que
tal fato aconteça, é necessário que tenha-
mos mudado de lugar, a partir do que
Clinicando
48
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, mar. 2002
Christian Ingo L. Dunker e Fuad Kyrillos Neto
escutamos dos nossos pacientes, tentan-
do manter distância tomando como re-
ferência uma conceitualização da expe-
riência vivida e dos erros e obstáculos
surgidos na própria experiência clínica.
Freud constrói e desenvolve sua teoria
no período em que a clínica alcança seu
ápice, na esfera da psiquiatria e neurolo-
gia. O ponto central da clínica clássica é
um olhar purificado, regulado e adminis-
trado sobre os sintomas, apontando para
uma ética disciplinar. A psicanálise sub-
verte a clínica clássica dando sentidos
novos a seus procedimentos. A escuta
torna-se o principal pilar desse novo pro-
jeto clínico. A escuta deve ser metódica,
atenta ao detalhe, à pequena incongruên-
cia, deslize ou ruptura do discurso. Flu-
tuante e aberta às interrupções, insistên-
cias e silêncios da fala, tal escuta trará
para o centro da cena aquilo que o olhar
médico colocava na sombra. A psicaná-
lise é um método de escuta e não uma
forma de olhar.
Ainda na perspectiva de descentramen-
to radical do olhar, Dunker (1999) nos
lembra que a subversão freudiana da clí-
nica clássica ao abordar a semiologia se
interessará justamente pelo caráter sin-
gular e instável da ligação entre o signi-
ficante e o significado e pelo aspecto
multifacetado e temporal da produção da
significação.
Com relação ao diagnóstico, a psicaná-
lise reintroduz a homogeneidade entre o
tratamento e o diagnóstico, perdida pela
clínica clássica. Lacan (1987), ao discu-
tir um caso de paranóia de autopunição
nos lembra que “A natureza da cura de-
monstra, quer nos parecer, a natureza da
doença”. A linguagem além de ser con-
siderada enquanto estrutura também se
constitui como mediação fundamental na
dialética com o outro. É a linguagem
como campo simbólico que submete o
sujeito, que o constrange e onde ele não
é mais senhor em sua própria morada.
Lacan fala de “sentido do delírio”, “enig-
ma que um delírio coloca”, buscando
um discernimento sobre a forma singu-
lar como a analisanda lida com o que lhe
parece alheio.
Importante ressaltar que o diagnóstico
em psicanálise é articulado com a tera-
pêutica e com a concepção etiológica
que o subsidia.
A psicanálise se apresenta como uma
cura pela fala, na qual a posição e o lu-
gar ocupados pelo analista são condições
da eficácia de suas intervenções. Lacan
(1997), em sua tese de doutorado, acom-
panha e escuta Aimée durante um ano e
meio. Recolhendo sua produção escrita,
propõe um diagnóstico de paranóia de
autopunição. O quadro de paranóia é jus-
tificado apontando para as interpretações
delirantes múltiplas e diversas, primitivas
e predominantes, a intrincação dos temas
de grandeza e perseguição e a extensão
progressiva do delírio.
O caso em apresentação possui sintomas
semelhantes. Sônia se considera uma
descendente dos Kennedy, tradicional
família de políticos americanos, julga-se
perseguida por suas irmãs promíscuas e
sente-se atraída sexualmente por uma
atriz brasileira de telenovelas. Constrói
um delírio com temas grandiosos acen-
49
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155,mar. 2002
Clinicando
tuando sua origem nobre e famosa,
como se verá a seguir. Na relação com
o saber, a paciente sente-se totalmente
presa nas malhas do Outro, um objeto.
O Outro sabe a seu respeito e isso para
ela é coisa certa. Os Kennedy tramam
sua exclusão da família e a fazem sofrer.
Isso constitui uma certeza que Sônia co-
munica ao analista. Desta forma, seu ana-
lista propõe um diagnóstico de psicose
paranóica com delírios erotomaníacos.
Lacan (1988) propõe a expressão “se-
cretários do alienado” para assinalar a
posição do analista frente ao psicótico.
O autor rechaça a idéia de impotência do
analista, nos aconselhando a “tomar ao
pé da letra” o que o paciente nos conta.
Em uma crítica à tentativa dos psiquia-
tras determinarem os tipos de alucina-
ção, ou seja, utilizar a fala como fundo
para uma mera classificação psiquiátrica,
o autor propõe a escuta do sujeito enfa-
tizando que a experiência delirante “se
situa ao nível do fenômeno significante
-significado” (p. 236).
Discutindo as memórias de Schreber,
Lacan (1988, p. 237) nos ensina que:
O delírio das psicoses alucinatórias crôni-
cas manifesta uma relação muito especí-
fica do sujeito em relação ao conjunto do
sistema da linguagem em suas diferen-
tes ordens. Só o doente pode testemu-
nhar isso, e ele o testemunha com a maior
energia.
Escutando o psicótico percebemos uma
mudança do sujeito na relação com a lin-
guagem que o autor nomeia de erotiza-
ção ou apassivação. A maneira que o su-
jeito sofre em conjunto com o fenôme-
no do discurso nos mostra sua dimensão
constitutiva.
Partimos do princípio que a fala-escuta
é o centro de referência do tratamento da
psicose. O analista, para permanecer no
lugar de acolhimento e testemunha do
psicótico, deve renunciar a aparecer
como aquele que sabe mais sobre o ou-
tro que ele mesmo. Este lugar do analista
mostra-se incompatível com um discur-
so que prevê a ontologia social da psico-
se, apostando na cura por meio do “res-
gate” da dignidade do usuário-cidadão, o
que nos parece ingênuo e insuficiente.
A palavra “resgate” nos remete às idéias
de exílio e refém. No Dicionário Sacconi
(1996) encontramos uma curiosa defini-
ção para aquele verbete: “salvar pagando
com sacrifício pessoal”.
No caso apresentado não há equívocos,
e sim certezas por parte da técnica de
referência: a usuária, seguindo os câno-
nes da psiquiatria democrática italiana,
deve trabalhar, usar a medicação pres-
crita e permanecer na unidade até sua
família ser convencida a aceitá-la nova-
mente em casa. Desta forma, o trata-
mento da psicose prescrito pelo NAPS,
ao propor um reencontro do usuário
com sua cidadania, intermediado pelo
técnico de referência, coloca este pro-
fissional em uma posição de salvador.
Salvar um usuário do exílio de sua cida-
dania, muitas vezes exige um sacrifício
pessoal do técnico de referência que, no
seio da luta antimanicomial, é visto
como dedicação à causa.
Sônia se recusa a aceitar os benefícios
50
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, mar. 2002
ofertados pelo NAPS e cumprir um con-
trato que, segundo a visão institucional,
lhe restituiria a cidadania. A profissional
ao se deparar com uma paciente que es-
capa da esfera subjetiva de mero indiví-
duo no momento que ingressa na insti-
tuição, sente-se cansada e desestimulada.
O discurso institucional que opera aliado
ao sacrifício de cada técnico dedicado à
causa antimanicomial, mostra-se insufi-
ciente. Os profissionais do serviço fren-
te a essa situação situam-se em uma es-
fera subjetiva de pessoa julgando a usuá-
ria apontando sua ingratidão e maldade.
Importante notar que uma escuta do su-
jeito balizada pela psicanálise não se lo-
caliza na ética disciplinar, pois não é anô-
nima, nem coercitiva pois não assujeita
o paciente ao gozo do analista.
Mas para começar a falar, ninguém pre-
cisa estar num divã, no consultório de
um psicanalista. Podemos praticar a psi-
canálise escutando o desejo presente no
discurso onde quer que este se faça ou-
vir, estando atento às conseqüências ló-
gicas e éticas desse ato.
E Sônia falou... Após um primeiro en-
contro, foi proposto com seu analista
atendimento semanal, sem abordar as-
suntos relacionados a sua situação social.
Na semana seguinte, ela comparece ao
atendimento trazendo uma antiga revis-
ta Veja com Jacqueline Kennedy estam-
pada na capa. Pede que leia a matéria
com atenção, ressaltando que sua vida
está ali. Pediu cuidado com o exemplar
e avisou que voltaria na semana seguin-
te para buscá-lo. A reportagem foi lida
com atenção e abordava o casamento de
Jacqueline Kennedy com o milionário
Aristóteles Onassis e trazia fatos de vá-
rios integrantes da família americana. O
que um casamento de personalidades
notáveis teria a ver com a história des-
sa paciente?
Privilegiando a escuta, o analista parte do
princípio que o paciente tem razão sobre
o que o faz sofrer, buscando, assim, não
mais relações causais, mas de significa-
ção e sentido na história construída do
sujeito. Assim, a psicanálise não se inte-
ressa pelo sujeito da verdade, mas pela
verdade do sujeito, indagando o sujeito
do desejo.
Na sessão seguinte, Sônia indaga se o
analista leu a revista. Ao ser informada
que sim, a paciente entrega-lhe um escri-
to com uma árvore genealógica. Explica
que é uma descendente da família Ken-
nedy. É filha de Jacqueline Kennedy
com seu pai biológico (um migrante nor-
destino). Insere seu nome entre os filhos
de Jacqueline e comunica que existe uma
trama para mantê-la em Santos. Não
explicita os motivos de sua exclusão,
mas acusa as “irmãs” de serem vaga-
bundas e promíscuas. Sua fala é marca-
da pela mágoa e vem repleta de palavras
de baixo calão. A intervenção do analis-
ta nesse atendimento se resumiu a inda-
gar por que justamente ela havia perma-
necido em Santos.
Nas sessões posteriores foram incluídos
outros personagens em sua árvore ge-
nealógica, como, por exemplo, uma prin-
cesa espanhola. Também surgiu uma
súbita paixão por um atriz de televisão
que nos exigiu algumas intervenções
Christian Ingo L. Dunker e Fuad Kyrillos Neto
51
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, mar. 2002
mais diretivas. Essa atriz é loira, branca
e promíscua como suas irmãs da famí-
lia Kennedy. Sônia se diz apaixonada e
revela o desejo de praticar sexo anal
com ela. Começa a freqüentar cinemas
que exibem filmes pornográficos no cen-
tro da cidade, escolhendo filmes que te-
nham essa temática. Gasta todo seu di-
nheiro comprando revistas, pôsteres e
publicações relativas às novelas que a
atriz participou.
Existe uma intensa fantasia relacionada
com a prática de sexo anal. Sônia faz
comparações entre os ânus das atrizes
dos filmes assistidos com o da atriz de-
sejada, ressaltando sua aparência após o
ato sexual. Dessa forma constrói uma
oposição entre loiras e morenas associan-
do o significante loira a promiscuidade e
o significante morena a virtude. As pro-
míscuas fazem sexo anal e ficam “ar-
rombadas” e “arregaçadas”. Sônia é con-
sumida, tragada pelas idéias de deprava-
ção e prostituição. Deseja intensamente
mulheres loiras que considera nessa si-
tuação. Por esse viés associa o nome da
atriz com a família Kennedy.
Durante as sessões, Sônia enfatiza que
não se considera “vagabunda” como as
irmãs. É morena, filha de migrante e re-
jeitada pela família. A intervenção do ana-
lista se dá no sentido de limitar o gozo da
paciente, a partir do movimento do de-
lírio. A partir da fala de Sônia a respeito
da precariedade de sua condição social,
pois é discriminada pelos Kennedy, o
analista marca a contradição da pacien-
te: freqüentar cinemas pornográficos,
comprar revistas com a atriz, gastando
seu escasso dinheiro.
Ocupamos inicialmente o lugar de teste-
munha que reconhece e legitima um dra-
ma em que o paciente tem necessidade
de partilhar com alguém,que possa
escutá-lo. Onde seu desejo clama por
encontrar uma palavra.
Insistimos que a verdade do sujeito não
é da ordem da objetividade, mas da inter-
subjetividade e da transubjetividade, o
que pressupõe uma relação, uma identi-
ficação com outros semelhantes e signi-
ficativos para o sujeito em questão.
Sônia continua comparecendo regular-
mente nos atendimentos por mais de
dois anos. Traz papéis com escritos so-
bre suas origens nos quais freqüente-
mente inclui princesas e rainhas. Inicia
uma busca por trabalho. Arranjou um
aliado para seu confronto com as irmãs.
Bob Kennedy, tio de Sônia, virá a San-
tos buscá-la. Ele conhece toda a história
e providenciará sua inclusão na família.
Sônia produz um sentido para os longos
períodos que permanece no terminal
rodoviário.
Figueiredo (1994, p. 155) nos diz sobre
a produção de sentidos:
Há, portanto, dois momentos em cada
acontecimento: um de quebra de sentido –
com a conversão do homem em signo va-
zio de sentido, como na expressão de Höl-
derlin tão trabalhada por Heidegger – e a
reemergência de sentido que, em seguida –
com intervalos mais ou menos longos –,
(re) constitui passado e descortina um
novo futuro; é a temporalidade do aconte-
cimento que faz, verdadeiramente, história,
é dela que provém a luz retrospectiva e
Clinicando
52
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, mar. 2002
prospectiva que realiza passado, presente
e futuro; nesta medida, cada acontecimen-
to é em si mesmo um só depois de outros
acontecimentos que, por ele, são ressigni-
ficados; pela mesma razão, cada aconteci-
mento servirá de apoio para acontecimentos
futuros que lhe “descobrirão” sentidos.
Esta citação nos auxilia a refletir a res-
peito da trajetória de Sônia. Após cons-
truir uma significação de suas origens e
montar uma explicação de sua permanên-
cia na rodoviária, Sônia consegue um tra-
balho como doméstica em uma residên-
cia na orla da praia. A construção da che-
gada de Bob Kennedy preencheu um va-
zio de sentido, tranqüilizando a paciente.
Esse significado, construído a posterio-
ri, esta descoberta de um novo sentido,
permitiu a saída da paciente da rodoviá-
ria abrindo possibilidades para a conquis-
ta do trabalho. Neste percurso, os aten-
dimentos serviram de apoio na constru-
ção de uma precária “ancoragem” que
lhe possibilitasse a construção de algu-
mas respostas sobre sua vivência.
Sônia começa a trabalhar e solicita que
nossos atendimentos aconteçam quinze-
nalmente. Consegue desempenhar suas
tarefas com competência e a dona da
casa onde Sônia trabalha está informada
que ela utiliza uma unidade de saúde,
quinzenalmente, para apanhar medica-
mentos. No começo dos atendimentos
com o analista, além de medicação inje-
tável, a paciente consumia medicação
neuroléptica. No decorrer dos atendi-
mento, ela passa a utilizar cada vez me-
nos medicação. Sua medicação tende ao
mínimo e Sônia exerce suas atividades
de trabalho satisfatoriamente. Sônia diz
que agora só fala esses assuntos com
seu analista.
Nesse movimento notamos que Sônia
coloca tanto Bob Kennedy quanto o ana-
lista na posição de aliados, de supostos
protetores que entendem o que se passa
com ela. Durante o tratamento, o analista
acompanhou o sujeito na construção de
um procedimento de suplência da metá-
fora paterna, possibilitando que se pro-
duzisse laço social. Acolhendo o delírio
de Sônia, em uma posição de testemu-
nha, intervindo no foco de gozo da pa-
ciente a partir da movimentação do de-
lírio, exercemos uma função paterna
ocupando um lugar de pai imaginário. A
metáfora paterna instaura uma lei simbó-
lica que regula a economia subjetiva. La-
can (1988, p. 243) nos lembra que:
... porém, curiosamente, no delírio, é função
real do pai na geração que vemos surgir
sob uma forma imaginária, se ao menos ad-
mitimos a identificação que fazem os ana-
listas entre os homenzinhos e os esperma-
tozóides. Há aí um movimento girando en-
tre as três funções que definem a proble-
mática da função paterna.
Sônia continua trazendo escritos sobre a
família Kennedy. Porém, a intensidade e
o interesse pelo assunto vêm decrescen-
do. Às vezes acha graça de sua curiosi-
dade sobre tal assunto e diz que só fala
essas coisas quando não está bem.
O analista, ao afastar-se do discurso
prescrito pela instituição nos atendimen-
tos com Sônia e oferecer-lhe um espa-
ço de escuta e tratamento da subjetivida-
Christian Ingo L. Dunker e Fuad Kyrillos Neto
53
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, mar. 2002
de, abriu a possibilidade para o surgimen-
to da fala acontecimental. Sônia perma-
nece na rodoviária e incomoda a admi-
nistração do terminal. O NAPS é comu-
nicado do caso e recebe a paciente que
não se interessa pelas propostas de tra-
tamento oferecidas na instituição. Ao ter
sua fala acolhida por um analista, a pa-
ciente produz uma explicação sobre suas
origens, descobre aliados nomeando o
enigma de seu desejo de permanecer na
rodoviária. Esta fala surgiu quando abri-
mos o lugar para o imprevisto, para a
possibilidade de uma relação intersubje-
tiva. Figueiredo (1994, p. 165) nos en-
sina que “Esta é a fala que acontece ao
falante e o coloca à escuta, a que nomeia
o enigma e o coloca à justa distância, à dis-
tância justa, para ver algo”.
Consideramos a presença de Sônia na
rodoviária um acontecimento inacabado.
Interessante notar que ao atribuir senti-
do para suas longas permanências na
rodoviária (aguardar a chegada do tio
Bob Kennedy que iria buscá-la), ela não
mais fica horas no terminal rodoviário.
Já que foi construído um saber sobre
sua presença na rodoviária, não foi mais
necessária, sua permanência naquele lo-
cal. A relação da paciente com o NAPS
também muda. Sônia vem ao NAPS com
mais freqüência, sempre solicitando
atendimento, e torna-se assídua nas con-
sultas psiquiátricas.
Consideramos a permanência de Sônia
no terminal rodoviário um acontecimen-
to inconcluso, pois não se consuma, não
transita, e sua temporalidade intrínseca
está comprometida. É um acontecimento
que se caracteriza por não acabar de
acontecer, não constituir história, eterni-
zando e bloqueando a possibilidade de
novos acontecimentos. Sônia queria fi-
car na rodoviária, não queria permanecer
no NAPS, tomar medicação ou trabalhar
em uma horta. Estava sem um solo de
ancoragem para assentar sua existência.
Sua fala foi proferida na tentação de
seus enigmas e na demanda de conclu-
são. Esta fala brotou de um angustiante
acontecimento inacabado. Nesse caso, a
escuta permitiu uma conclusão provisó-
ria do acontecimento pela simbolização e
pela elaboração representativa. Interes-
sante notar que essa fala fez história e li-
bertou Sônia para outras possibilidades
por meio da construção de uma história.
Estes atendimentos ocorreram no NAPS
e foram possíveis quando o analista se
afastou das prescrições e condutas ins-
titucionais e passou à escuta da pacien-
te. Sua escuta propiciou a expressão do
desejo em uma produção significante or-
ganizada pela regulação do gozo da pa-
ciente. Nesses termos o analista ocupa o
lugar de pai imaginário. Freud ensinou
que não se pode pedir ao paciente aqui-
lo que ele não pode dar. É uma exigên-
cia ética da psicanálise nutrir ambições
terapêuticas limitadas, longe da posse do
saber absoluto e onipotente sobre a vida,
a morte e os outros.
Fascinados pela desconstrução de sabe-
res e pelo modelo de cidadania propos-
to pela Psiquiatria Democrática Italiana,
desfazemo-nos da demanda de escuta
dirigida a nós, reduzindo-a a uma con-
cessão de benefícios visando a compen-
Clinicando
54
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, mar. 2002
sação de uma condição social precária.
Lacan, ao tratar da epistemologia da fal-
ta, diferencia necessidade, demanda e
desejo. O autor considera como mítica a
referência a uma primeira satisfaçãoe
aponta a perda do biológico no desejo. O
desejo se define, de fato, epistemologi-
camente em sua relação com a ordem
biológica das necessidades e com a or-
dem linguajeira da demanda de amor. O
homem deseja porque a satisfação de
suas necessidades vitais passa por um
apelo dirigido a um Outro, o que, de ime-
diato, altera a satisfação transformada
em demanda de amor. Em razão desse
ultrapassamento da ordem biológica, que
não basta a si mesma, o amor como re-
lação com o outro em que o sujeito se
aliena permanece marcado por uma exi-
gência do absoluto que é equivalente ao
que se perde com essa transposição. O
amor é aqui, ao mesmo tempo, apelo ao
outro, tendo em vista uma satisfação
que, seja como for, não se dará no modo
como é demandada, e o terreno estrutu-
rado pela relação do sujeito com a lin-
guagem. Temos assim que, ao tomar as
solicitações dos pacientes em sua con-
cretude (condição social precária), os
técnicos do serviço ignoram a inesgotá-
vel demanda de amor.
A psicanálise nos ensina que a experiên-
cia psicótica é carregada de sofrimento.
Visando alcançarmos um tratamento
adequado para os portadores desse sofri-
mento devemos estimular discussões
com os trabalhadores dos serviços de
saúde mental para refletirmos a eficácia
clínica de nossas intervenções. Diversas
vezes aprendemos à custa de fracassos,
e nunca se aprende melhor do que quan-
do se pode fracassar, uma vez que se
abre a possibilidade para identificar o
erro e o mal-estar. O fracasso revela es-
paços até então não reconhecidos pelo
psicanalista e seu paciente, à espera de
uma palavra iluminadora. „
REFERÊNCIAS
BENETTI, Antônio. Interpretação na psicose
ou Manobras da transferência. Opção
Lacaniana. Rio de Janeiro, n. 15, p. 89-
95, abr./1996.
DUNKER, Christian Ingo Lenz. Clínica, lin-
guagem e subjetividade. Mimeo. Univer-
sidade São Marcos, 1999.
FIGUEIREDO, Luiz Cláudio. Modos de subje-
tivação no Brasil e outros escritos. São
Paulo: Escuta/EDUC, 1995.
____ Escutar, recordar, dizer. Encontros
heiddegerianos com a clínica psicana-
lítica. São Paulo: Escuta/EDUC, 1994.
____ & COELHO JUNIOR, Nelson. Ética e
técnica em psicanálise. São Paulo: Es-
cuta, 2000.
LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 3. As
psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
____ Da psicose paranóica em suas re-
lações com a personalidade. Rio de Ja-
neiro: Forense Universitária, 1987.
QUINET, Antônio. Teoria e clínica da psi-
cose. Rio de Janeiro: Forense Universi-
tária, 1997.
SACCONI, Luiz Antônio. Minidicionário
Sacconi da Língua Portuguesa. São
Paulo: Atual, 1996.
Christian Ingo L. Dunker e Fuad Kyrillos Neto
Artigo recebido em setembro/2001
Aprovado em janeiro/2002

Continue navegando