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15.IInagein,Inetáfora, síinbolo, Inito Quando paramos de classificar os poemas pelo seu tema ou temas e passamos a perguntar que tipo de discurso é a poe- sia e quando, em vez de parafrasear em prosa, identificamos o "significado" de um poema com todo o seu complexo de estru- turas, encontramos, então, como estrutura poética central, a se- qüência representada pelos quatro termos do nosso título. Os dois principais princípios organizadores da poesia, disse um dos nossos contemporâneos, são o metro e a metáfora; além disso, o metro e a metáfora "estão juntos", e a nossa definição de poe- sia terá de ser geral o suficiente para incluir ambos e explicar por que se acompanham1• A teoria geral de poesia implícita nessa declaração foi ex- posta brilhantemente por Coleridge na Biographia Literaria. Temos, nesses quatro termos, um único referente? Seman- ticamente, os termos sobrepõem-se; eles apontam claramente para a mesma área de interesse. Talvez se possa dizer que a nossa seqüência - imagem, metáfora, símbolo e mito - repre- senta a convergência de duas linhas, ambas importantes para a teoria da poesia. Uma é a particularidade sensorial, ou o contí- nuo sensorial e estético, que vincula a poesia à música e à pin- tura e a desvincula da filosofia e da ciência; a outra é a "figu- ração" ou "tropologia" - o discurso "oblíquo" que fala em meto- 1. Max Eastman, The Literary Mind in an Age of Science, Nova York, 1931 , p. 165. O ESTUDO INTRÍNSECO DA LITERATURA 245 nímias e metáforas, comparando parcialmente os mundos, pre- cisando os seus temas ao dar-lhes traduções em outras expres- sões2. Ambas são características, differentiae, da literatura, em contraste com o discurso científico. Em vez de almejar um sis- tema de abstrações coerentemente expresso por um sistema de monossignos, a poesia organiza um padrão único, irrepetível de palavras, cada uma um objeto bem como um signo, e usado de maneira imprevisível por qualquer sistema fora do poema3• As dificuldades semânticas do nosso tópico são proble- máticas e nenhum alívio imediato parece possível além da atenção vigilante a como os termos são usados nos seus con- textos, especialmente nas suas oposições polares. A imagística é um tópico que pertence à psicologia e ao estudo literário. Na psicologia, a palavra "imagem" significa uma reprodução mental, uma memória, uma experiência sensa- cional ou perceptual passada, não necessariamente visual. As investigações pioneiras de Francis Galton, em 1880, que pes- quisavam até que ponto os homens podiam reproduzir visual- mente o passado, descobriram que os homens diferiam gran- demente no seu grau de visualização. Mas as imagens não são apenas visuais. As classificações dos psicólogos e dos estetas são numerosas. Há não apenas imagens "gustativas" e "olfati- vas", mas também há imagens térmicas e imagens de pressão ("cinestésicas", "hápticas'', "empáticas"). Há a importante dis- tinção entre as imagens estáticas e as cinésicas (ou "dinâmi- cas"). O uso das imagens cromáticas pode ou não ser tradicio- nalmente ou privadamente simbólico. As imagens sinestésicas 2. Sobre "Tipos de discurso'', ver Charles Morris, Signs, Languages, and Behavior, Nova York, 1946, pp. 123 ss. Morris distingue doze tipos de "discurso", dos quais os relevantes para o nosso capítulo - e nossos quatro termos - são o "fictivo" (o mundo do romance), o "mitológico" e o "poético". 3. Monossigno e plurissigno são usados por Philip Wheelwright, em "The Semantics of Poetry", Kennyon Review, li (1940), pp. 263-83. O plu- rissigno é "semanticamente reflexivo no sentido de que é uma parte do que significa. Isto é, o plurissigno, o símbolo poético, não é meramente emprega- do mas fruído; o seu valor não é inteiramente instrumental mas, em boa par- te, estético, intrinseco." 246 TEORIA DA LITERATURA (sejam elas resultado da constituição psicológica anormal do poeta, sejam da convenção literária) traduzem de um sentido para outro, por exemplo, som em cor. Finalmente, há a distin- ção, útil para o leitor de poesia, entre imagens "presas" e "li- vres": as primeiras, imagens auditivas e musculares, suscitadas necessariamente, apesar de lermos para nós mesmos, e quase as mesmas para todos os leitores adequados; as segundas, vi- suais e outras, variando muito de pessoa para pessoa ou de tipo para tipo4• As conclusões gerais de 1. A. Richards, apresentadas nos seus Principies, de 1924, ainda parecem corretas: que sempre se deu muita importância às qualidades sensoriais das imagens. O que dá eficácia a uma imagem é menos a sua vivi- dez como imagem do que o seu caráter como acontecimento mental ligado peculiarmente à sensação. A sua eficácia provém de ser "uma sobrevivente" e uma "representação" da sensação5• Das imagens como representantes vestigiais das sensa- ções, passamos com facilidade esclarecedora para a segunda linha, que atravessa toda a nossa área - a da analogia e da com- paração. Mesmo as imagens visuais não devem ser procuradas exclusivamente na poesia descritiva, e poucos que tentaram es- crever poesia "imagista" ou "física" conseguiram restringir-se a imagens do mundo externo. Na verdade, raramente deseja- ram fazê-lo. Ezra Pound, teórico de muitos movimentos poéti- cos, definiu a "imagem" não como uma representação pictóri- ca, mas como "aquilo que apresenta um complexo intelectual e emocional em um instante do tempo", uma "unificação de idéias díspares". O credo imagista afirmava: "Cremos que a poesia 4. Ver E. G. Boring, Sensation and Perception in the History of Experi- mental Psychology, Nova York, 1942; June Downey, Creative lmagination: Studies in the Psychology of Literature, Nova York, 1929; Jean-Paul Sartre, L 'imagination, Paris, 1936. 5.1. A. Richards, Principies of Literary Criticism, Londres, 1924, capí- tulo XVI, "The Analysis of a Poem". O ESTUDO INTRÍNSECO DA LITERATURA 247 deve representar as particularidades exatamente e não tratar de generalidades vagas, por mais que [ ... ] sonoras". No elogio de Dante e nos ataques a Milton, Eliot parece ater-se mais dogma- ticamente à ênfase na Bildlichkeit. A imaginação de Dante, ele diz, "é uma imaginação visual". Ele é um alegorista e, "para um poeta competente, alegoria significa 'imagens visuais cla- ras"'. Por outro lado, a imaginação de Milton, infelizmente, é uma "imaginação auditiva". As imagens visuais em "r..:Allegro" e "II Penseroso" são todas gerais [ ... ]não são um lavrador, uma ordenhadeira e um pastor específicos que Milton vê [ ... ] o efeito sensorial desses versos está inteiramente no ouvido e é associado aos conceitos de lavrador, ordenhadeira e pastor6• Em todos esses pronunciamentos, a ênfase está antes na particularidade e na união das palavras (analogia, por exem- plo, alegoria; "unificação de idéias díspares") do que no senso- rial. A imagem visual é uma sensação ou uma percepção mas também "representa", refere-se a algo invisível, algo "interior". Pode ser, ao mesmo tempo, tanto apresentação como represen- tação ("o negro morcego da noite voou". "Ali, diante de nós, estendem-se Desertos de vasta eternidade"). A imagem pode existir como "descrição" ou (como nos nossos exemplos) como metáfora. Mas podem as imagens não oferecidas como metá- fora, como vistas pelo "olho da mente", ser também simbólicas? Nem toda percepção é seletiva?7 Assim, Middleton Murray, para quem "símile" e "metáfo- ra" estão associados com a "classificação formal" da retórica, 6. Ezra Pound, Pavannes and Divisions, Nova York, 1918; T. S. Eliot, "Dante", Selected Essays, Nova York, 1932, p. 204; Eliot, "A Note on the Verse of John Milton", Essays and Studies by Members of the English Asso- ciation, XXI, Oxford, 1936, p. 34. 7. "A psicologia moderna ensinou-nos que esses dois sentidos do termo ' imagem' se sobrepõem.Podemos dizer que toda imagem mental espontânea é, em certa medida, simbólica." Charles Baudouin, Psychoanalysis and Aes- thetics, Nova York, 1924, p. 28. 248 TEORIA DA LITERATURA aconselha-nos o uso de "imagem" como um termo para incluir ambos, mas previne-nos de que devemos "excluir resolutamen- te das nossas mentes a sugestão de que a imagem é única ou mesmo predominantemente visual". A imagem "pode ser vi- sual, pode ser auditiva" ou "pode ser inteiramente psicológica"8• Em escritores tão diferentes como Shakespeare, Emily Bronte e Poe, podemos ver que o cenário (um sistema de "proprieda- de·s") é, muitas vezes, uma metáfora ou símbolo: o mar furio- so, a tempestade, a charneca selvagem, o castelo em ruínas ao lado do frio e sombrio lago na montanha. Como a "imagem", o "símbolo" deu o seu nome a um mo- vimento literário específico9• Como a "imagem", ele continua a surgir em contextos amplamente diferentes e com fins muito diversos. Surge como um termo na lógica, na matemática, na semântica, na semiótica e na epistemologia; também teve uma longa história nos mundos da teologia ("símbolo" é um sinôni- mo de "credo"), da liturgia, das belas-artes e da poesia. O ele- mento comum em todos esses usos correntes é provavelmente o de algo que significa, que representa outra coisa. Mas o ver- bo grego, que significa juntar, comparar, sugere que a idéia de analogia entre signo e significado esteve presente na origem. Ainda sobrevive em alguns dos usos modernos do termo. Os símbolos algébricos e lógicos são signos de convenção, de acordo, mas os símbolos religiosos baseiam-se em alguma re- lação intrinseca entre o "signo" e a coisa "significada'', metoní- mica ou metafórica: a Cruz, o Cordeiro, o Bom Pastor. Na teoria literária, parece desejável que a palavra seja usada neste senti- do: como um objeto que se refere a outro objeto mas que exige atenção por direito próprio, como uma apresentação1º. 8. J. M. Murry, "Metaphor'', Countries of the Mind, segunda série, Lon- dres, 1931, pp. 1-16; L. MacNeice, Modern Poetry, Nova York, 1938, p. 113. 9. Um estudo admirável de um movimento literário e da sua influência sobre outro é René Taupin, L 'injluence du symbolisme français sur la poésie américaine .. ., Paris, 1929. 1 O. Para a terminologia que se segue aqui, ver Craig la Driére, The Ame- rican Bookman, 1 (1944), pp. 103-4. O ESTUDO INTRÍNSECO DA LITERATURA 249 Há um tipo de mente que fala de "mero simbolismo", re- duzindo a religião e a poesia a imagens sensoriais ordenadas ritualisticamente, ou esvaziando os "signos" ou "imagens" apre- sentados em nome das realidades transcendentais, morais ou filosóficas, que se encontram para além deles. Outro tipo de mente pensa em simbolismo como algo calculado e desejado, uma tradução mental deliberada de conceitos em termos ilus- trativos, pedagógicos, sensoriais. Mas, diz Coleridge, enquanto a alegoria é meramente "uma tradução de noções abstratas em uma linguagem pictórica, que nada mais é que uma abstração a partir de objetos dos sentidos[ ... ]'', o símbolo é caracterizado por uma translucidez do especial [a espécie] no individual ou do geral [gênero] no especial [ ... ] acima de tudo, pela translucidez do eterno através do temporal e no tem- poral" . Há algum sentido importante em que "símbolo" seja di- ferente de "imagem" e "metáfora"? Primeiramente, pensamos na recorrência e persistência do "símbolo". Uma "imagem" pode ser invocada uma vez como metáfora, mas, se ocorrer com persistência, como apresentação e representação, torna- se um símbolo, pode até tornar-se parte de um sistema sim- bólico (ou mítico). Sobre os poemas líricos de Blake, as Can- ções da inocência e da experiência , J. H. Wicksteed escreve: "Há relativamente pouco simbolismo real, mas existe um uso constante e abundante da metáfora simbólica." Yeats tem um ensaio inicial sobre os "Símbolos dominantes" na poesia de Shelley. Encontramos na sua poesia, além de inúmeras imagens que não têm a definição [fixidez?] dos símbolos, muitas imagens 11. S. T. Coleridge, The Statesman 's Manual: Complete Works (org. Shedd), Nova York, 1853, vol. I, pp. 437-8. Essa distinção entre símbolo e alegoria foi traçada com clareza pela primeira vez por Goethe. Ver Curt Ri- chard Müller, Die geschichtlichen Voraussetzungen des Symbolbegriffa in Goethes Kunstanschauung, Leipzig, 1937. 250 TEORIA DA LITERATURA que certamente são símbolos, e, com o passar dos anos, ele co- meçou a usar estes com um propósito simbólico cada vez mais deliberado - imagens como cavernas e torres 12 • O que acontece com freqüência impressionante é a trans- formação daquilo que é "propriedade'', na obra inicial de um escritor, no "símbolo" do seu trabalho posterior. Assim, nos seus primeiros romances, Henry James esforça-se para visuali- zar pessoas e lugares, ao passo que, nos romances posteriores, todas as imagens tornaram-se metafóricas ou simbólicas. Sempre que se discute o simbolismo poético, tende-se a fa- zer distinção entre o "simbolismo privado" do poeta moderno e o simbolismo amplamente inteligível dos poetas passados. A ex- pressão era, de início, pelo menos, uma acusação, mas os nossos sentimentos e postura para com o simbolismo poético permane- cem altamente ambivalentes. É dificil encontrar expressão alter- nativa a "privado": se usamos "convencional" ou "tradicional'', chocamo-nos com o nosso desejo de que a poesia seja nova e sur- preendente. "Simbolismo privado" implica um sistema, e um es- tudante cuidadoso pode interpretar um "simbolismo privado" do mesmo modo que um criptógrafo pode decodificar uma mensa- gem estranha. Muitos sistemas privados (por exemplo, os de Bla- ke e Yeats) apresentam grandes imbricações com tradições simbó- licas, embora não com as de aceitação mais ampla ou corrente13• 12. J. H. Wicksteed, Blake's Innocence and Experience ... , Londres, 1928, p. 23; W. B. Yeats, Essays, Londres, 1924, pp. 95 ss., sobre os "Símbo- los Dominantes" de Shelley. Quando as metáforas se tomam símbolos? (a) Quando o "veículo" da metáfora é concreto-sensual, como o cordeiro. A cruz não é uma metáfora, mas um símbolo metonímico que representa Aquele que morreu nela, como a grelha de São Lourenço e a roda de Santa Catarina, ou que representa o so- frimento, caso em que o instrumento significa aquilo que ele faz, o efeito da sua ação. (b) Quando a metáfora é recorrente e central, como em Crashaw, Y eats e Eliot. O processo normal é a transformação de imagens em metáforas e de metáforas em símbolos, como em Henry James. 13. A "heterodoxia blakeana", diz M. O. Percival (Blake's Circle of Destiny, Nova York, 1938, p. 1), "foi igualmente tradicional como a ortodo- O ESTUDO INTRÍNSECO DA LITERATURA 251 Quando ultrapassamos o "simbolismo privado" e o "sim- bolismo tradicional", encontramos, no outro pólo, um tipo de simbolismo "natural" público que oferece as suas próprias difi- culdades. Os poemas de Frost, alguns dos melhores dele, usam símbolos naturais cuja referência achamos dificil controlar: pen- samos em ''A estrada não trilhada", "Muros", "A montanha". Em "Parando nas florestas", "milhas a percorrer antes de dormir" é li- teralmente verdadeiro a respeito do viajante, supomos; mas, na linguagem do simbolismo natural, "dormir" é "morrer", e, se, por contraste, juntamos "as florestas são adoráveis, escuras e profun- das" (panegíricos todos os três adjetivos) com a restrição moral e social de "promessas a manter", não podemos rejeitar inteiramen- te a equação passageira, não enfatizada, da contemplação estética com uma espécie de renúncia a ser uma pessoa responsável. Pre- sumivelmente, nenhum leitor assíduo de poesia se enganará com Frost; mas, em parte por causa do seu simbolismo natural, Frost atraiu um amplo público, parte do qual, ao captar a possibilidadedos símbolos, irá concentrar-se excessivamente no simbolismo natural e seus acompanhantes, dando aos seus plurissignos uma fixidez e uma rigidez alheias à natureza do enunciado poético, es- pecialmente do enunciado poético contemporâneo14 • O quarto dos nossos termos é "mito", que surge na Poética de Aristóteles como a palavra para enredo, estrutura narrativa, "fábu- la". Seu antônimo e contraponto é logos. O "mito" é narrativa, his- tória, em contraposição a discurso dialético, exposição; também é o irracional ou intuitivo em contraposição ao sistematicamente fi- losófico: é a tragédia de Ésquilo contra a dialética de Sócrates15 • "Mito", um termo favorito da crítica moderna, aponta e paira sobre uma importante área do significado, compartilhada pela religião, pelo folclore, pela antropologia, pela sociologia, xia de Dante". Diz Mark Schorer (William Blake, Nova York, 1946, p. 23): "Blake, como Y eats, encontrou sustentação metafórica para a sua visão dialé- tica no [ ... ] sistema de correspondência de Swedenborg e Boehme, nos estu- dos analógicos dos cabalistas e na alquimia de Paracelso e Agripa." 14. Ver os comentários sobre Frost de Cleanth Brooks, Modern Póetry and the Tradition, Chapei Hill, 1939, pp. 110 ss. 15. Ver Nietzsche, Die Geburt der Tragodie< Leipzig, 1872. 252 TEORIA DA LITERATURA pela psicanálise e pelas belas-artes. Em algumas das suas opo- sições habituais, é contraposto a "história", "ciência", "filoso- fia", "alegoria" ou "verdade"16• Nos séculos XVII e XVIII, a Era do Iluminismo, o termo tinha uma conotação pejorativa: um mito era uma ficção - cien- tífica - ou historicamente falso. Contudo, já na Scienza nuova, de Vico, a ênfase deslocou-se para o que, desde os românticos alemães, Coleridge, Emerson e Nietzsche, tornou-se gradual- mente dominante - a concepção de "mito" como um tipo ou equivalente da verdade, tal qual a poesia-, não um competidor pela verdade histórica ou científica, mas um suplemento11 • Historicamente, o mito segue o ritual e é correlativo a ele; é "a parte falada do ritual, a história que o ritual representa". O ritual é executado para uma sociedade pelo seu representante sacerdotal, com o intuito de afastar ou obter algo, é um agen- dum recorrente e permanentemente necessário, como as co- lheitas e a fertilidade humana, como a iniciação dos jovens na cultura da sua sociedade, sendo uma providência adequada para o futuro dos mortos. Mas, em um sentido mais amplo, o mito vem a significar qualquer relato de composição anônima, falando sobre origens e destinos: a explicação que a sociedade oferece aos seus jovens de por que o mundo existe e por que fazemos o que fazemos, suas imagens pedagógicas da nature- za e do destino do homem18 • Para a teoria literária, os motivos importantes são prova- velmente a imagem ou quadro, o social, o sobrenatural (ou não naturalista ou irracional), a narrativa ou relato, o arquetípico ou universal, a representação simbólica como acontecimentos no tempo de nossos ideais atemporais, o programático ou esca- tológico, o místico. No pensamento contemporâneo, o recurso 16. Para um grupo representativo de definições, ver Lord Raglan, The Hero ... , Londres, 1937. 17. Ver Fritz Strich, Die Mythologie in der deutschen Literatur von Klopstock bis Wagner, 2 vols. , Berlim, 1910. 18. S. H. Hooke, Myth and Ritual, Oxford, 1933; J. A. Stewart, The Myths of Plato, Londres, 1905; Ernst Cassirer, Philosophie der symbolischen Formen, vol. II, "Das mytische Denken", Berlim, 1925, pp. 271 ss. (trad. in- glesa, New Haven, 1955). O ESTUDO INTRÍNSECO DA LITERATURA 253 ao mito pode concentrar-se em qualquer um destes, espalhan- do-se sobre outros. Assim, Sorel fala da "Greve Geral" de to- dos os trabalhadores do mundo como um "mito", querendo di- zer que, embora tal ideal nunca venha a se tomar fato histórico, ele deve, para motivar e dinamizar os trabalhadores, ser apre- sentado como um acontecimento histórico futuro; o mito é pro- grama. Assim, Niebuhr fala da escatologia cristã como mítica: a imagem da Segunda Vinda e do Juízo Final como história fu- tura de avaliações presentes, permanentes, morais e espirituais19• Se o mítico tem como seu contrário a ciência ou a filosofia, ele opõe o concreto intuitivo retratável ao abstrato racional. De modo geral, também nisso, na oposição que é central para os teóricos literários e apologistas, o mito é social, anônimo, co- munal. Nos tempos modernos, podemos identificar os criado- res - ou alguns dos criadores - de um mito, mas ele ainda pode ter a condição qualitativa de mito se sua autoria for esquecida, não conhecida pelas pessoas em geral ou, em todo caso, não importante para a sua validação - se ele foi aceito pela comu- nidade, recebeu o "consentimento dos fiéis". O termo não é fácil de fixar: ele aponta hoje para uma "área de significado". Ouvimos falar de pintores e poetas em busca de uma mitologia; ouvimos falar do "mito" do progresso ou da democracia. Ouvimos falar do "Retomo do mito na lite- ratura mundial". Não obstante, ouvimos também que não po- demos criar um mito ou escolher acreditar em um ou desejar que um venha a ser: o livro sucedeu ao mito, e a cidade cosmo- polita à sociedade homogênea da cidade-Estado2º. O homem moderno carece de mito - ou de uma mitologia, de um sistema de mitos interligados? Essa seria a visão de Nietzsche: que Sócrates e os sofistas, os "intelectuais", haviam destruído a vida da "cultura" grega. Similarmente, argumen- tar-se-ia que o Iluminismo destruiu - ou começou a destruir - 19. Georges Sorel, Reflexions on Violence (tr. T. E. Hulme), Nova York, 1914; Reinhold Niebuhr, "The Truth Value ofMyths", The Nature of Religious Experience .. ., Nova York, 1937. 20. Ver especialmente R. M. Guastalla, Le mythe et !e livre: essai sur !'origine de la littérature, Paris, 1940. 254 TEORIA DA LITERATURA a "mitologia" cristã. Outros autores, porém, acham que o ho- mem moderno possui mitos rasos, inadequados ou talvez até "falsos'', como o inito do "progresso", da "igualdade", da edu- cação universal ou do bem-estar higiênico e elegante ao qual convidam os anúncios de propaganda. O denominador comum entre as duas concepções parece ser o julgamento (verdadeiro, provavelmente) de que, quando estilos de vida antigos, viven- ciàdos por muito tempo, coerentes em si mesmos (os rituais, com os mitos que os acompanham) são rompidos pelo "moder- nismo", a maioria dos homens (ou todos) são empobrecidos: como não conseguem viver apenas de abstrações, os homens têm de preencher os seus vácuos com mitos rudes, improvisa- dos, fragmentários (imagens do que podia ou devia ser). Falar da necessidade do mito, no caso do escritor imaginativo, é um sinal da necessidade que ele sente de comunhão com a sua so- ciedade, de uma posição reconhecida como artista que funcio- na dentro da sociedade. Os simbolistas franceses existiram em isolamento auto-reconhecido, foram especialistas herméticos, que acreditavam que o poeta devia escolher entre a prostitui- ção comercial da sua arte e a pureza e frieza estéticas. Yeats, porém, apesar de toda a sua veneração por Mallarmé, sentiu a necessidade de união com a Irlanda; então, compôs a mitologia céltica tradicional com a sua própria versão mitificadora da Ir- landa dos últimos tempos, na qual os anglo-irlandeses da épo- ca neoclássica (Swift, Berkeley e Burke) são tão livremente in- terpretados quanto os heróis americanos da imaginação de Va- chel Lindsay21• Para muitos autores, o mito é o denominador comum en- tre a poesia e a religião. Há uma visão moderna, naturalmente (representada por Matthew Arnold e por 1. A. Richards em sua fase inicial), de que a poesia assumirá cada vez mais o lugar da religião sobrenatural, na qual os intelectuais modernos não po- dem mais acreditar. É provávelque se possa desenvolver um 21. Ver Donald Davidson, "Yeats and the Centaur'', Southern Review, VII (1941), pp. 510-16 . O ESTUDO INTRÍNSECO DA LITERATURA 255 argumento mais impressionante a favor da opinião de que a poesia não pode assumir o lugar da religião por muito tempo, já que não consegue sobreviver a ela por muito tempo. A religião é o mistério maior; a poesia, o menor. O mito religioso é a auto- rização em larga escala da metáfora poética. Assim, Thuns Phi- lip Wheelwright, ao protestar que, pelos positivistas, "a verda- ' de réligiosa e a verdade poética são rejeitadas como ficções", afirma que a "perspectiva necess~ria é [ ... ] uma perspectiva mítico-religiosa". Um representante mais antigo dessa visão é John Dennis; um relativamente recente é Arthur Machen22 • Podemos acusar o estudo literário mais antigo de tratar toda a série (imagem, metáfora, símbolo, mito) de maneira ex- terna e superficial. Vistos, na maioria das vezes, como decora- ç9es, ornamentos retóricos, foram estudados, portanto, como partes destacáveis das obras em que surgem. Em nossa opi- nião, por outro lado, o significado e a função da literatura têm presença central na metáfora e no mito. Há atividades como o pensamento metafórico e mítico, o pensamento por meio de metáforas, o pensamento em narrativa ou visão poética. Todos esses termos chamam a nossa atenção para os aspectos de uma obra literária que transpõem e unem com exatidão velhos com- ponentes divisores, "forma" e "matéria". Esses termos olham em ambas as direções, isto é, indicam a atração da poesia, por um lado, pela "imagem" e pelo "mundo" e, por outro, pela re- ligião ou pela Weltanschauung. Podemos sentir essa tensão quando investigamos os métodos modernos de estudá-los. Como os métodos mais antigos consideravam-nos como recur- sos estéticos (concebidos, não obstante, como meramente de- corativos), o risco reacionário hoje em dia talvez seja a ênfase demasiado pesada na Weltanschauung. O retórico escocês, es- crevendo no fim do período neoclássico, pensava, muito natu- 22. Arthur Machen, Hyeroglyphics, Londres, 1923, defende habilmente (ainda que não de maneira técnica e em uma versão altamente romântica) a visão de que a religião (isto é, o mito e o ritual) constitui o clima maior den- tro do qual apenas a poesia (isto é, o simbolismo, a contemplação estética) pode respirar e se desenvolver. 256 TEORIA DA LITERATURA ralmente, que os símiles e as metáforas eram calculados, esco- lhidos; os analistas de hoje, trabalhando após Freud, inclinam- se a ver todas as imagens como reveladoras do inconsciente. É necessário um bom equilíbrio para evitar, por um lado, o inte- resse retórico e, por outro lado, a biografia psicológica e a "caça de mensagens". Nos últimos vinte e cinco anos de estudo literário, empe- nhamo-nos com afinco na teoria e prática. Isto é, tentamos ti- pologias da figuração ou, mais especificamente, das imagens poéticas, e também dedicamos monografias e ensaios às ima- gens de poetas ou obras específicas (com Shakespeare como tema favorito). A "crítica prática" tendo continuado com parti- cular ardor, começamos a ter algumas dissertações teóricas e metodológicas perspicazes, examinando os pressupostos, às ve- zes simples demais, dos praticantes. Foram muitas as tentativas de reduzir todas as figuras mi- nuciosamente subdivididas - cercada de duzentos e cinqüenta nas listas ambiciosas - em duas ou três categorias. Uma delas é a de "esquemas" e "tropos": uma divisão em "figuras sonoras" e "figuras sensoriais". Outra tentativa separa figuras de "dis- curso" ou "figuras verbais" de "figuras de pensamento". Am- bas as dicotomias têm o defeito, porém, de sugerir uma estrutu- ra exterior, ou mais exterior, que carece de função expressiva. Assim, sob qualquer sistema tradicional, a rima e a aliteração são, ambas, "esquemas" fonéticos, ornamentos acústicos; contu- do, tanto a rima inicial como a rima final podem servir, como sabemos, como vinculadores de sentido, como conectivos se- mânticos. O século XIX considerava o trocadilho uma "brinca- deira com palavras", a "forma mais baixa de espirituosidade"; o século XVIII já o classificara, com Addison, como uma espécie de "falsa presença de espírito". Mas os poetas barrocos e moder- nos usam-no seriamente como um duplicador de idéias, um "ho- mófono" ou "homônimo", uma "ambigüidade" propositada23• 23 . A classificação padrão antiga dos esquemas e tropos é Instituto da Oratória, de Quintiliano. Para o tratamento isabelino mais elaborado, ver Put- tenharn, Art of English Poesie ( org. Wil!cock and Walker), Cambridge, 1936. O ESTUDO INTRÍNSECO DA LITERATURA 257 Deixando os esquemas de lado, podemos dividir, de ma- neira mais relevante, os trapos da poesia em figuras de conti- güidade e figuras d~ similaridade. As figuras de contigüidade tradicionais são a metonímia e a sinédoque. As relações que elas expressam são analisáveis lógica ou quantitativamente: a causa pelo efeito ou o contrário; o continente pelo conteúdo, o adjunto pelo seu sujeito ("a pro- fundidade salgada" =o mar). Na sinédoque, dizemos que as relações entre as figuras e o seu referente são internas. Ofere- cem-nos uma amostra de algo, uma parte pretendida como re- presentação do todo, uma espécie representando um gênero, matéria significando a forma e o uso que lhe são dados. Na conhecida passagem de Shirley que ilustra o uso tradi- cional da metonímia, apetrechos convencionais - instrumentos ou ferramentas - representam as classes sociais: Sceptre and crown must tumble down And in the dust be equal made Wifh the poor crqoked scythe and spade. [Cetro e ç01;oa devem cair E no pó igualar-se Às pobres e recurvadas foice e pá.] Mais notável é o "adjetivo transferido" metonímico, um traço estilístico de Virgílio, Spenser, Milton, Gray, poetas ar- tísticos clássicos: "o dote morto de Sansfoys" muda o epíteto . do possuidor para a coisa possuída. Nos "tintilares sonolento~" de Gray e nos "alegres sinos" de Milton, os epítetos referem-se aos que usam e aos que fazem soar os sinos, respectivamente. Quando o moscardo de Milton está "soprando a sua trompa mo- dorrenta", o epíteto invoca a quente noite de verão, ligada por ;issociação ao som do moscardo. Em todos os casos do tipo, ci- tados fora do seu contexto, outro tipo de leitura, animista, pa- rece possível. O que estabeleceu a distinção é o que está em operação: se a lógica associativa ou, em vez disso, uma perso- nalização persistente. 258 TEORIA DA LITERATURA A poesia devocional, católica ou evangélica, pareceria de início inevitavelmente metafórica - e, de fato, o é, na maior parte das vezes. Mas dr. Watts, o escritor neoclássico, conse- gue um efeito impressionante, comovente além de solene, a partir da metonímia: When I survey the wondrous cross On which the Prince of Glory died, My richest gain I count but loss And pour contempt on ali my pride. See, from his head, his hands, his side Sorrow and /ove flow mingled down; Did e' er such /ove and sorrow meet Or thorns compose so rich a crown? [Quando examino a cruz maravilhosa Na qual o Príncipe da Glória morreu, Meu mais rico ganho conto como perda E verto desprezo sobre meu orgulho. Vê, da cabeça, das mãos, do flanco, Dor e amor escorrem misturados; Já se encontraram tal amor e tal dor Ou compuseram os espinhos tão rica coroa?] Um leitor treinado em outro estilo temporal poderia ouvir este hino sem perceber que "dor" e "amor" igualam-se a "água" e "sangue". Ele morreu por amor: o seu amor é a causa; o san- gue, o efeito. No Quarles do século XVII, "verter desprezo" su- geriria a metáfora visualizável, mas, então, a figura seria desen- volvida - talvez com o fogo do orgulho apagado por um balde de desprezo; mas "verter", no caso, é um intensivosemântico: desprezo o meu orgulho de maneira vigorosa, superlativa. Estes são, afinal, usos restritos da palavra. Recentemente, algumas concepções mais audazes da metonímia como modo literário foram sugeridas, até mesmo a noção de que a metoní- mia e a metáfora podem ser as estruturas caracterizadoras de dois tipos poéticos - a poesia de associação pór contigüidade, O ESTUDO INTRÍNSECO DA LITERATURA 259 de movimento dentro de um mundo único do discurso, e poe- sia de associação por comparação, unindo uma pluralidade de mundos, misturando, na notável expressão de Bühler, um "co- quetel de esferas"24 • Em uma brilhante discussão crítica de Whitman, D. S. Mirsky diz: As imagens fracionais separadas da "Song of the Broad Axe" são intermináveis imagens metonímicas, exemplos, espé- cimes dos elementos que compreendem a construtividade de- mocrática25. Poderíamos caracterizar o método poético usual de Whit- man como um desdobramento analítico, um desenrolar item por item de certas grandes categorias paralelas. Nos seus cân- ticos paralelísticos, como "Song of Myself'', ele é dominado pelo desejo de apresentar detalhes, indivíduos, partes como partes de um todo. Apesar de todo o seu amor por listas, ele não é realmente um pluralista ou personalista, mas um monis- ta panteísta; e o efeito total dos seus catálogos não é complexi- dade, mas simplicidade. Primeiro, ele expõe as suas categorias e, então, as ilustra copiosamente. A metáfora, que teve a atenção dos teóricos da poesia e dos retóricos desde Aristóteles, que era ambas as coisas, tam- bém conquistou a atenção dos teóricos da lingüística em anos recentes. Richards protestou com veemência contra o trata- mento da metáfora como desvio da prática lingüística normal em detrimento do seu recurso característico e indispensável. A "perna" da cadeira, o "pé" do monte e o "braço" da poltrona, to- dos aplicam, por analogia, partes do corpo humano a partes de objetos inanimados. Essas extensões, porém, foram assimila- das pela língua e já não são comumente sentidas como metafó- 24. Karl Bühler, Sprachtheorie, Jena, 1934, p. 343; Stephen J. Brown, The World of Imagery, pp. 149 ss.; Roman Jakobson, "Randbemerkungen zur Prosa des Dichters Pastemak", Slavische Rundschau, VII (1935), pp. 357-73. 25. D. S. Mirsky, "Walt Whitman: Poet of American Democracy'', Cri- tics Group Dialectics, n? 1, 1937, pp. 11-29. 260 TEORIA DA LITERATURA ricas, mesmo pelos que têm sensibilidade literária e lingüísti- ca. Eles são metáfora "desbotada", "gasta" ou "morta"26 • Devemos distinguir a metáfora como o "princípio onipre- sente da língua" (Richards) da metáfora especificamente poé- tica. George Campbell atribui o primeiro ao "gramático", o se- gundo ao "retórico". O gramático julga as palavras por etimo- logias; o retórico, conforme tenham ou não o "efeito de metá- fora sobre o ouvinte". Wundt negaria o termo "metáfora" a tais "transposições" lingüísticas como a "perna" da mesa e o "pé" do monte, tornando critério do metaforismo verdadeiro a in- tenção calculada, deliberada do usuário de criar um efeito emo- tivo. H. Konrad contrasta a metáfora "lingüística" com a metá- fora "estética", assinalando que a primeira (por exemplo, a "perna" da mesa) sublinha a característica dominante do obje- to, ao passo que a segunda é concebida para dar uma nova im- pressão do objeto, para "banhá-lo em uma nova atmosfera"21 • Dos casos mais dificeis de classificar, o mais importante, provavelmente, é o das metáforas comuns a uma escola ou ge- ração poética, as metáforas compartilhadas. Exemplos seriam "casa de ossos", "estrada do cisne", "tesouro de palavras" e ou- tros kennings* dos poetas do inglês antigo; as "metáforas fixas" de Homero, como a "aurora de dedos róseos" (usada vinte e se- te vezes no primeiro livro da Ilíada); os "dentes de pérola", "lá- bios de rubi", "pescoços de marfim" e "cabelos de fio de metal dourado" dos isabelinos; ou a "planície aquosa", as "correntes prateadas" e os "prados esmaltados" dos neoclássicos28 • Para os 26. G. Campbell, Philosophy of Rhetoric, Londres, 1776, pp. 321, 326. 27. I. A. Richards, Philosophy of Rhetoric, Londres, 1936, p. 117, cha- ma o primeiro tipo de Campbell de "metáfora verbal", pois sustenta que a me- táfora literária não é uma ligação verbal mas uma transação entre contextos, uma analogia entre objetos. * Expressões poéticas convencionais empregadas no lugar dos nomes de coisas e pessoas (por vezes acrescentando-se a eles), particularmente na poesia irlandesa e anglo-saxônica da Alta Idade Média. (N. do R. T.) 28. Ver Milman Parry, "The Traditional Metaphor in Homer", Classi- cal Philology, XXVIII (1933), pp. 30-43. Parry deixa clara a identificação não histórica que Aristóteles faz do metaforismo \ie Homero com o de poetas O ESTUDO INTRÍNSECO DA LITERATURA 261 leitores modernos, algumas delas (especialmente as do anglo- saxão) são audazes e "poéticas", ao passo que a maioria das ou- tras é desbotada e antiquada. A ignorância, com certeza, pode conferir uma originalidade ilegítima aos primeiros exemplos de uma convenção desconhecida. Na verdade, as metáforas eti- mológicas de uma lingua, não "percebidas" pelos falantes da língua em que se encontram, são constantemente consideradas, por estrangeiros com sensibilidade analítica, como conquistas poéticas individuais29 • Temos de conhecer intimamente tanto a língua como a convenção literária para podermos sentir e me- dir a intenção metafórica de um poeta específico. Na poesia do inglês antigo, "casa de ossos" e "tesouro de palavras" são, sem dúvida, do mesmo tipo que as "palavras aladas" de Homero. São uma parte da educação do poeta e dão prazer aos ouvintes pelo seu tradicionalismo, por pertencerem à linguagem profis- sional, ritual da poesia. O metafórico nelas não é nem inteira- mente percebido nem inteiramente perdido: como grande par- te do simbolismo eclesiástico, pode-se dizer que são rituais30 • Na nossa época, geneticamente orientada, deu-se muita atenção às origens da metáfora como princípio lingüístico e como modo literário de visão e operação. "A ontogenia repete a filogenia", e, inversamente, acreditamos que podemos re- construir a cultura pré-histórica por meio da observação analí- tica das sociedades primitivas e das crianças. Segundo Heinz Wemer, a metáfora toma-se ativa apenas entre povos primiti- vos que possuem tabus, objetos cujos nomes "próprios" não podem ser ditos. 31 Refletimos imediatamente sobre o rico ta- posteriores, compara as "metáforas fixas" de Homero com as dos poetas an- glo-saxões e (mais restritamente) com os dos neoclássicos do século XVIII. 29. Ver C. Bally, Traité de stylistiquefrançaise, Heidelberg, 1909, vol. I, pp. 184 ss.: "Le langage figuré''. Nas pp. 194-5, Bally, falando não como teóri- co literário, mas como lingüista, classifica as metáforas como: "Images concre- tes, saisies par l'imagination, images affectives, saisies par une opération in- tellectuelle. [ ... ]" Eu chamaria de suas três categorias ( 1) metáfora poética, (2) metáfora ritual ("fixa") e (3) metáfora lingüística (etimológica, ou enterrada). 30. Para uma defesa da metáfora ritual e de imagens de guilda no estilo de Milton, ver C. S. Lewis, Preface to Paradise Lost, Londres, 1942, pp. 39 ss. 31. Ver Heinz Werner, Die Ursprünge der Metapher, Leipzig, 1919. 262 TEORIA DA LITERATURA lento judaico para metaforizar o inominável Javé como uma Rocha, um Sol, um Leão e assim por diante e, então, sobre os eufemismos da nossa sociedade. Mas, obviamente, a necessi- dade temerosa não é a única mãe da invenção. Metaforizamos também o que amamos, aquilo em que queremos nos deter e que queremos contemplar, para ser visto de todos os ângulos e sob todas as luzes, refletido em foco especializado por todos os tipos de coisas semelhantes.Se passamos da motivação da metáfora lingüística e ritual para a teleologia da metáfora poética, temos de invocar algo mui- to mais abrangente - toda a função da literatura imaginativa. Os quatro elementos básicos em toda a nossa concepção de metá- fora pareceriam ser a analogia, a visão dupla, a imagem senso- rial, reveladora do imperceptível, a projeção animista. Os quatro nunca estão presentes em igual medida: as posturas variam dt; nação para nação e de um período estético a outro. Segundo um teórico, a metáfora greco-romana quase se restringe à analogia (um paralelismo qu,ase jurídico), ao passo que das Bild (o sím- bolo-imagem) é uma figura tipicamente teutônica32• Tal contraste cultural, porém, não dá conta da poesia italiana e da poesia fran- cesa, especialmente de Baudelaire e Rimbaud a Valéry. Um ar- gumento mais plausível poderia ser apresentado a favor de um contraste entre períodos e entre filosofias de vida dominantes. Cada estilo de período tem as suas próprias figuras carac- terísticas, expressivas da sua Weltanschauung; no caso das fi- guras básicas como a metáfora, cada período tem o seu tipo ca- racterístico de método metafórico. A poesia neoclássica, por exemplo, é caracterizada pelo símile, pela perífrase, pelo epíte- to ornamental, pelo epigrama, pelo equilíbrio, pela antítese. As posições intelectuais possíveis reduzem-se a duas ou três, não a pluralidades. Freqüentemente, a terceira posição é uma posição de centro e mediação entre duas heresias polares nomeadas: 32. Hermann Pongs, Das Bild in der Dichtung. I: Versuch einer Mor- phologie der rnetaphorischen Forrnen, Marburgo, 1927. II: Voruntersuchun- gen zurn Syrnbol, Marburgo, 1939. O ESTUDO INTRÍNSECO DA LITERATURA Some foreign writers, some our own despise, The ancients only, or the modems, prize. [Alguns desprezam os escritores estrangeiros, alguns desprezam os nossos, Os antigos apenas, ou os modernos, valorizam.] 263 No período barroco, as figuras características são o para- doxo, o oxímoro, a catacrese. Estas são figuras cristãs, místi- cas, pluralistas. A verdade é complexa. Há muitos modos de conhecer, cada um com a sua própria legitimidade. Alguns ti- pos de verdade têm de ser afirmados por negação ou distorção calculada. Pode-se falar de Deus antropomorficamente pois ele fez o homem à sua imagem, mas ele é também o Outro trans- cendental. Portanto, na religião barroca, a verdade a respeito de Deus pode ser expressada através de imagens analógicas (o Cordeiro, o Noivo). Também pode ser expressada por conjuga- ções de contraditórios ou contrários, como na "profunda mas ofuscante escuridão" de Vaughan. A mente neoclássica gosta de distinções claras e progressões racionais: os movimentos me- tonímicos do gênero para a espécie, ou do particular para a es- pécie. Mas a mente barroca invoca um universo simultanea- mente de muitos mundos e de mundos, todos eles, ligados de maneiras imprevisíveis. Do ponto de vista da teoria poética neoclássica, as figuras barrocas características são, naturalmente, de mau gosto, são "falsa presença de espírito" - perversões deliberadas do natu- ral e racional ou acrobacias insinceras, ao passo que, historica- mente, são expressões retórico-poéticas de uma epistemologia pluralista e de uma ontologia sobrenaturalista. A "catacrese" oferece um exemplo interessante. Em 1599, John Hoskyns anglicizou o termo como "abuso" e deplora que ele "agora tenha se tomado moda .. . ". Ele a considera uma ex- pressão forçada, "mais desesperada do que uma metáfora", e cita "uma voz bela aos seus ouvidos" da Arcadia de Sidney como exemplo de um termo visual perversamente aplicado à audição. Pope (Art of Sinking, 1728) cita "desbastar uma bar- ba" e "barbear a grama" como catacréticos. George Campbell 264 TEORIA DA LITERATURA (Philosophy of Rhetoric, 1776) cita "bela voz" e "melodioso ao olho" como um par catacrético, embora admita que "doce, originalmente do paladar, agora pode ser aplicado a um per- fume, uma melodia, uma perspectiva" . Crendo que a metáfora adequada usa os "objetos da sensação" para denotar os "obje- tos da intelecção pura", Campbell deplora que se analogizem o~jetos dos sentidos com outros objetos dos sentidos. Por ou- tro lado, um retórico católico recente (de gosto barroco-ro- mântico) define catacrese como a metáfora extraída da simila- ridade entre dois objetos materiais, insta para que os méritos do tropo sejam estudados e ilustra-o com figuras como "les perles de la rosée" e "il neige des feuilles" 33 • Outro tipo de metáfora aceitável para a sensibilidade bar- roca, de mau gosto para a neoclássica, traduz o mais elevado no mais humilde; podemos chamá-la metáfora diminuidora ou domesticadora. As "esferas" mais caracteristicamente mistura- das pela poesia barroca são o mundo natural e o mundo de ofi- cios e artificios do homem. Sabendo porém que a Arte é uma imitação da Natureza, o neoclassicismo julga mórbida e per- versa a assimilação da Natureza à Arte. Thomas Gibbons, por exemplo, em 1767, previne contra tropos preciosistas e "fan- tásticos" e cita como exemplos as seguintes descrições de várias partes da Criação: as bossas das montanhas, o esmalte dos mares menores, o rendilhado do vasto oceano e o arabesco das rochas34• Com certeza, restam algumas metáforas natureza > arte no verso neoclássico, mas sob a condição de que a metáfora surja como epíteto ocioso. Pastorais e Windsor Forest, de Pope, oferecem amostras: "Frescos rubores que sobem pintam o vi- dro aquoso"; "lá, a ruborizada Flora pinta o chão esmaltado". 33 . L. B. Osborn (org.), The .. . Writings of John Hoskyns, New Haven, 1937, p. 125; George Campbell, Philosophy of Rhetoric, pp. 335-7; A. Pope, The Art of Sinking; A. Dion, L 'art d 'écrire, Quebec, 1911 , pp. 111-12. 34. Thomas Gibbons, Rhetoric ... , Londres, 1767, pp . 15-16. O ESTUDO INTRÍNSECO DA LITERATURA 265 Mas o verso em geral era claro, e Dryden, escrevendo em 1681, não se envergonhou de confessar que, quando era criança, pen- sava como cnança: Lembro-me de quando [ ... ] julguei o inimitável Spenser um poeta medíocre em comparação com o Du Bartas de Sylvester e fui tomado de êxtase quando li estes versos: Now when the winter's keen breath began To chrystallize the Baltic ocean, To glaze the lakes, to bridle up the Floods, And periwig with snow the baldpate woods. 35 [Ora, quando o hálito penetrante do inverno começou A cristalizar o oceano Báltico, A vitrificar os lagos, a frear as torrentes, E a emperucar com neve as florestas carecas.] O jovem Milton, outro leitor de Du Bartas, termina a sua Nativity Od~ com um conceito no mesmo estilo. Eliot reinicia a tradição na celebrada abertura de "Prufrock" When the evening is spread out against the sky Like a patient etherized upon a table ... [Quando se estende a noite contra o céu Como um paciente eterizado sobre uma mesa ... ] Os motivos por trás da prática barroca não são tão pronta- mente redutíveis a um como protestam os clássicos, a menos que simplesmente recorramos a sua abrangência mais ampla, ao seu gosto pela riqueza em vez da pureza, da polifonia em vez da monofonia. Motivos mais específicos são o apetite pela surpresa e pelo choque, o encarnacionismo cristão, a domesti- cação pedagógica do remoto pela analogia doméstica. 35. John Dryden, Essays (org. W. P. Ker) , Oxford, 1900, vol. I, p. 247 ("Dedication of The Spanish Friar"). 266 TEORIA DA LITERATURA Até aqui, consideramos a natureza da figuração, com ênfa- se especial sobre a metonímia e a metáfora, e sugerimos o pos- sível caráter periódico-estilístico dessas figuras. Voltamo-nos ago- ra para os estudos das imagens metafóricas, que são mais criti- co-literárias que histórico-literárias. Dois estudos gerais das imagens metafóricas, um norte-americano e o outro alemão, parecem merecer apresentação específica. Em 1934, Henry Wells publicou o estudo Poetic lmagery, que tenta construir uma tipologia, os tipos induzidos ilustrados principalmente a partir da literatura isabelina. Rico em discer- nimentos sensíveis e generalizações sugestivas, o livro tem me- nos sucesso na construção sistemática. Wells pensa no seu es- quema como acrônico, aplicável a todos os períodos, não ape- nas ao isabelino, e acredita ser descritivo, não avaliativo, no seu trabalho. Diz-se que a base da sua investigação é a ordenação de grupos de figuras "tal como surgem na escala que ascende do mais inferior, ou mais próximo do literal, ao mais imagina- tivo, ou impressionista", mas afirma-se que a escala, a do "cará- ter e grau da atividade imaginativa", não tem nenhuma influên- cia direta sobre a avaliação delas. Seus sete tipos de imagens, dispostas na ordem que ele lhes atribui, são: as decorativas, as rebaixadas, as violentas (ou fustianas ), as radicais, as intensivas, as expansivas e as exuberantes. Elas podem ser reordenadas com vantagem segundo as pistas históricas e avaliatórias oferecidas porWells. As formas mais cruas esteticamente são as violentas e as decorativas, ou a "metáfora das massas" e a metáfora do artifi- cio. A imagem decorativa, abundante na Arcadia de Sidney, é tida como "tipicamente isabelina". A imagem violenta, ilustra- da com Kyd e outros isabelinos, é característica de um período inicial da cultura mas, como a maioria dos homens permane- ce em um nível subliterário, ela pertence, nas formas subliterá- rias, a "qualquer período"; sociologicamente, o "fustiano" constitui "um corpo de metáforas grande e socialmente impor- tante". O julgamento avaliativo de ambos os tipos é o de que O ESTUDO INTRÍNSECO DA LITERATURA 267 são "deficientes no elemento subjetivo exigido"; de que, mui- tas vezes, ligam uma imagem fisica a outra (como na catacrese ), em vez de relacionar o "mundo exterior da natureza ao mundo interior do homem". Novamente, nas metáforas decorativas e violentas, os termos da relação permanecem separados, fixos, não invadidos um pelo outro. Mas, nas formas mais elevadas de metáfora, segundo Wells, cada termo age sobre o outro e o altera, de modo que a relação cria um terceiro termo, uma nova compreensão. Em seguida, à medida que subimos na escala, vêm a ima- gem exuberante e a intensiva, a primeira uma versão mais sutil da violenta, a segunda uma versão mais sutil da decorativa. Dei- xamos para trás formas óbvias de exibição, quer de energia, quer de engenho. Na imagem exuberante, chegamos historicamente a Marlowe, o primeiro dos grandes isabelinos, e a Burns e Smart, os pré-românticos; esta imagem, diz Wells, é "especialmente proeminente em boa parte da poesia inicial". Ela justapõe "dois termos amplos e imaginativamente valiosos", duas su- perficies amplas, lisas, em contato face a face. Em outras pala- vras, essa categoria abrange comparações frouxas, relações ba- seadas em simples categorias avaliativas. Burns escreve: My lave is like a red, red rose .. . My lave is like a melady That 's sweetly played in tune. [Meu amor é como uma rosa vermelha, vermelha ... Meu amor é como uma melodia Que é docemente tocada no tom.] O terreno comum entre uma bela mulher, uma rosa ver- melha fresca e uma melodia bem tocada é a sua beleza e dese- jabilidade; todas são, no seu tipo, as melhores. Não é a face ro- sada que torna a mulher semelhante a uma rosa nem a sua voz doce que a torna semelhante a uma melodia (analogias que pro- 268 TEORIA DA LITERATURA <luziriam imagens decorativas); sua semelhança com uma rosa não está na cor, na textura ou na estrutura, mas no valor36• A imagem intensificadora de Wells é uma imagem que pode ser visualizada com precisão, do tipo associado aos ma- nuscritos com iluminuras e aos cortejos da Idade Média. Na poesia, é a imagem de Dante e, especialmente, na poesia ingle- sa, a imagem de Spenser. A imagem é não apenas clara mas - talvez por conseqüência - diminutiva, diagramática: o Inferno de Dante, não o de Milton. "Tais metáforas são oferecidas, mais do que as outras, como emblemas ou símbolos." As figuras de cortejo em "Lícidas" - Camo, com seu manto peludo e chapéu de junça, e São Pedro, com sua mitra e duas chaves - também são imagens intensivas. São imagens de "guilda": o "pastoral" e a "elegia" tinham, na época de Milton, um estoque de moti- vos e imagens. Pode haver imagens estereotipadas, assim como uma "dicção poética" estereotipada. Seu caráter tradicional, institucional, e a sua relação íntima com as artes visuais e a ce- rimônia simbólica fazem Wells, pensando em termos de histó- ria cultural, vincular a imagem intensiva à religião conserva- dora, ao medieval, ao sacerdotal, ao católico. As três categorias mais elevadas são a rebaixada, a radical e a expansiva (consideradas, seria de pensar, em ordem ascen- dente). Brevemente, a imagem decaída é a imagem de uma poesia clássica; a radical, a imagem dos metafisicos, principal- mente Donne; e a expansiva, a imagem predominantemente de Shakespeare, assim como as de Bacon, Browne e Burke. As de- nominações comuns das três, as suas marcas de altitude compar- tilhada, são o caráter especificamente literário (sua recalcitrân- cia à visualização pictórica), o seu caráter interno (o pensamen- to metafórico), a interpenetração dos termos (seu casamento fértil, procriador). 36. Ver I. A. Richards, Philosophy of Rhetoric, Londres, 1936, pp. 117- 18: "Pode-se fazer uma divisão muito ampla entre metáforas que funcionam através de alguma semelhança direta entre as duas coisas, o conteúdo e o veí- culo, e as que funcionam através de alguma postura comum que podemos [ ... ] assumir para com ambas." O ESTUDO INTRÍNSECO DA LITERATURA 269 A imagem rebaixada, a não ser confundida com a desbota- da ou pobre, mantém-se "abaixo da visibilidade plena", sugere o concreto sensual sem projetá-lo nem esclarecê-lo definitiva- mente. A falta de tons harmônicos a toma adequada à escrita contemplativa: seu exemplar isabelino é Samuel Daniel, que escreveu, em versos admirados por Wordsworth e Thoreau: .unless above himself he can Erect himself, how poor a thing is man! [A menos que acima de si mesmo possa se erguer, que coisa pobre é o homem!] Mas Shakespeare é um mestre nela. Em Lear, Edgar diz: Men must endure Their going hence, even as their coming hither; Ripeness is ali. [Os homens devem aceitar que daqui se vão, assim como vêm; A maturidade é tudo.] "Maturidade" é uma imagem rebaixada, presumivelmente dos pomares e campos. Há uma analogia sugerida entre a ine- vitabilidade dos ciclos naturais da vegetação e dos ciclos da vida. Uma geração neoclássica poderia citar como "mistas" al- gumas das imagens rebaixadas de Shakespeare: O how can summer 's honey breath hold out Against the wreckful siege ofbattering days. [Oh, como pode o hálito de mel do verão resistir Ao assédio arrasador dos aríetes dos dias.] Esta sentença exigiria expansão analítica elaborada pois coloca figura sobre figura: "dias" é metonímia de tempo, época, que então é metaforizada como sitiando uma cidade e tentando tomá-la com aríetes. O que está tentando - como uma cidade, 270 TEORIA DA LITERATURA ou como governante de uma cidade - "resistir" aos assaltos? E a juventude, metaforizada como o verão ou, mais exatamente, como a doce fragrância do verão: a fragrância das flores deve- rão está para a terra como o hálito doce está para o corpo hu- mano, uma parte ou adjunto do todo. Se tentamos ajustar com precisão, em uma imagem, o assédio com aríetes e o hálito, não saímos do lugar. O movimento figurativo é rápido e, por- . tanto, elíptico37 • A imagem radical - assim chamada porque os seus termos se encontramapenas nas raízes, em um terreno lógico invisível, como causa final, em vez de por meio de evidentes superficies justapostas - é a imagem cujo termo menor parece "apoético'', seja porque é muito doméstico e utilitário, seja porque é muito técnico, científico, erudito. Isto é, a imagem radical toma como veículo metafórico algo que não possui nenhuma associação emotiva evidente, que pertence ao discurso prosaico, abstrato ou prático. Assim, Donne, na sua poesia religiosa, usa muitas figuras de "le géometre enjlammé". Novamente, em "First An- niversary", ele usa uma imagem pseudomédica que, exceto pela sobreposição especificada dos seus termos, parece per- versamente orientada na direção errada (isto é, pejorativa): But as some serpents 'poison hurteth not Except it be from the tive serpent shot, So doth her virtue need her here, to fit That unto us; she working more than it. [Mas como o veneno de certas serpentes Não fere se não for da serpente viva expelido, A virtude dela precisa dela aqui, para ajustar Esta a nós; ela funcionando mais do que esta.] 37. O Shakespeare posterior é abundante em figuras rapidamente mutá- veis, o que os pedagogos mais velhos chamariam de "metáforas mistas". Sha- kespeare pensa mais rápido do que fala, por assim dizer, diz Wolfgang Cle- men, Shakespeares Bilder ... , Bonn, 1936, p. 144 (tràd. inglesa, The Develop- ment of Shakespeare's lmagery, Cambridge, Mass., 1951). O ESTUDO INTRÍNSECO DA LITERATURA 271 Esse é provavelmente o tipo característico da imagem ra- dical: o exemplo mais óbvio e menos perverso seria a figura da bússola em "Valediction Forbidding Mourning' ', de Donne. Mas, como Wells sutilmente observa, as imagens radicais po- dem ser derivadas de áreas de imagem romanticamente suges- tivas como montanhas, rios e mares, se adotamos um "estilo analítico"38 . Por último, há a imagem expansiva, cujo nome a liga, por oposição, à intensiva. Se a intensiva é a figura medieval e ecle- siástica, a expansiva é a do pensamento profético e progressis- ta, da "paixão forte e da meditação original", que culmina nas metáforas abrangentes da filosofia e da religião representadas em Burke, Bacon, Browne e, de maneira proeminente, em Sha- kespeare. Por definição, a imagem expansiva é uma imagem em que cada termo abre um vasto panorama à imaginação e mo- difica vigorosamente o outro: a "interação" e a "interpenetra- ção" que, segundo a moderna teoria poética, são formas centrais de ação poética, ocorrem com mais riqueza na metáfora ex- pansiva. Podemos tirar exemplos de Romeu e Julieta: Yet, wert thou as far As that vast shore washt with the farthest sea, I should adventure for such merchandise. [Contudo, se fosses tão distante Como aquele vasto litoral, banhado pelo mar mais longínquo, Eu me aventuraria por tal mercadoria.] E de Macbeth : 38. H. W. Wells, Poetic Jmagery, Nova York, 1924, p. 127. A passagem citada é de Donne, The First Anniversary: An Anatomy of lhe World ... , versos 409-12. Como usuários característicos da imagem radical, Wells (op. cit., pp. 13 6-7) cita Donne, W ebster, Marston, Chapman, T ourneur e Shakespeare e, de fins do século XIX, George Meredith (cujo Modem Lave ele declara ser "um corpo incomumente condensado e interessante de pensamento simbóli- co") e Francis Thompson. 272 Light thickens, and the crow Makes wing to the rooky wood: TEORIA DA LITERATURA Good things of day begin to droop and drowse. [A luz se adensa, e a gralha Voa para a floresta que abriga: As boas coisas do dia começam a se vergar e dormitar.] Nestas últimas linhas, Shakespeare nos oferece um "cená- rio metafisico para o crime", que se transforma em uma metáfo- ra expansiva que faz um paralelo entre a noite e o mal demonía- co, a luz e a bondade, não porém de maneira tão óbvia e alegóri- ca, mas com particularidade sugestiva e concretude sensorial: "a luz se adensa", as coisas "se vergam e dormitam". O poeticamen- te vago e o poeticamente específico encontram-se no verso "As coisas boas do dia começam a se vergar e dormitar. O sujeito e o predicado trabalham um sobre o outro, avançando e recuando, enquanto prestamos atenção: começando com o verbo, pergun- tamos que tipo de coisas - pássaros, animais, pessoas, flores - vergam-se ou dormitam; então, ao notarmos o nomear abstrato do sujeito, perguntamo-nos se os verbos são metáfora de "deixar de estar vigilante", "tremer de medo diante do poder do mal"39• Retóricos como Quintiliano dão muita importância à dis- tinção entre a metáfora que anima o inanimado e a que torna inanimado o animado, mas apresentam-na como uma distinção entre recursos retóricos. Com Pongs, nosso segundo tipologis- ta, a distinção torna-se um contraste grandioso entre posturas polares - a da imaginação mítica, que projeta a personalidade sobre o mundo exterior das coisas, que animiza e anima a na- tureza, e o tipo contrário de imaginação, que procura o seu ca- minho no estranho, que se desanimiza ou se dessubjetiva. To- das as possibilidades da expressão figurativa esgotam-se nes- ses dois pólos, o subjetivo e o objetivo40 • 39. As imagens de Macbeth são brilhantemente examinadas por Cleanth Brooks em "The Naked Babe and the Cloak ofManliness", The Well Wrought Urn, Nova York, 1947, pp. 21-46. 40. Já desde Quintiliano (Institutos, livro VIII, cap. 6) percebe-se que uma distinção básica entre tipos de metáforas equaciona a distinção entre or- O ESTUDO INTRÍNSECO DA LITERATURA 273 A primeira forma foi chamada por Ruskin de "falácia pa- tética"; se pensamos que ela se aplica ascendentemente até Deus e descendentemente até a árvore e a pedra, podemos chamá-la de imaginação antropomórfica41 • Um estudante do simbolismo místico observa que há três tipos gerais de união terrena dispo- níveis à expressão simbólica da experiência mística mais ele- vada: (1) a união entre objetos inanimados (misturas tisicas e uniões químicas: o espírito no fogo de Deus como centelha, ma- deira, cera, ferro; Deus como água para o solo do espírito ou como o oceano para o qual flui o rio do espírito); (2) uniões fi- guradas segundo a maneira como o corpo se apropria dos ele- mentos essenciais da sua vida: Nas Escrituras, Deus é representado por essas coisas particula- res das quais não podemos afastar-nos completamente - a luz e o ar, que entram em cada fenda, e a água, que, em uma forma ou outra, todos recebemos diariamente42 ; então, para místicos de todo o mundo, Deus é o alimento e a bebida do espírito, o seu pão, peixe, água, leite, vinho; (3) as re- lações humanas - a de filho com pai, esposa com marido. A primeira destas seria atribuída por Pongs ao segundo tipo final de intuição metafórica, ao da Einfühlung, ela própria subdividida no "místico" e no "mágico". A metáfora mística ilustramos mais com os místicos do que com os poetas. Os ele- gânico e inorgânico. Os quatro tipos de Quintiliano são: uma espécie de coisa vivente por outra; uma coisa inanimada por outra; o inanimado pelo animado e o animado pelo inanimado. Pongs chama o primeiro dos seus tipos de Beseeltypus e o segundo de Erfiihltypus. O primeiro animiza ou antropomorfiza, o segundo enfatiza. 41. Sobre Ruskin a respeito da "Falácia patética", ver Modern Painters, Londres, 1856, vol. III, pt. 4. Os exemplos citados eximem a símile da acusa- ção porque ela mantém o fato natural separado da avaliação emocional. Sobre as heresias polares do antropomorfismo e do simbolismo, ver o brilhante livro de M. T.-L. Penido, Le rôle de l'analogie en théologie dogma- tique, Paris, 1931, pp. 197 ss. 42. M. A. Ewer, Survey of Mystical Symbolism, Londres, 1933, p. 164-6. 274 TEORIA DA LITERATURA mentos inorgânicos são tratados simbolicamente, não como me- ros conceitos ou analogias conceituais, mas como representações que tambémsão apresentações. A metáfora mágica é interpretada à maneira do historia- dor da arte Worringer, como uma "abstração" do mundo da na- tureza. Worringer estudou as artes do Egito, Bizâncio e Pérsia, artes que reduzem a natureza orgânica, incluindo o homem, a formas geo- métrico-lineares e com freqüência abandonam totalmente o mun- do orgânico por um mundo de linhas, formas e cores puras. [ ... ] O ornamento destaca-se agora[ ... ] como algo que não se- gue a corrente da vida mas que a confronta rigidamente. [ ... ]A intenção não é mais fingir mas conjurar. [ ... ] O ornamento[ ... ] é algo tirado do Tempo; é a sua extensão pura, estabelecida e estável43 • Os antropólogos encontram animismo e magia nas cultu- ras primitivas. O primeiro busca alcançar, propiciar, persuadir, unir-se a espíritos personalizados - os mortos, os deuses. O se- gundo, pré-ciência, estuda as leis do poder exercido pelas coi- sas: palavras sagradas, amuletos, bastões e varas, imagens, re- líquias. Existe a magia branca - a dos cabalistas cristãos, como Comélio Agripa e Paracelso, e existe a magia negra, a dos ho- mens maus. Fundamental para ambas, porém, é a crença no po- der das coisas. A magia toca a arte através da feitura de ima- gens. A tradição ocidental associa o pintor e o escultor à perícia do artesão, a Hefesto e Dédalo, a Pigmalião, que conseguem trazer a imagem à vida. Na estética do folclore, o fazedor de imagens é um feiticeiro ou mágico, ao passo que o poeta é o 43. Vossler, Spengler, T. E. Hulme (Speculations, Londres, 1924), e Y eats, assim como Pongs, foram estimulados por Abstraktion und Einfah- lung, de Wilhelm Worringer, Berlim, 1908 (trad. inglesa, Abstraction and Empathy, Nova York, 1953). Nossa primeira citação vem do admirável estudo de Joseph Frank, "Spatial Form in Modem Literature", Sewanee Review, LIII (1945), p. 645; a segunda vem de Spengler, que cita Worringer na sua discussão da cultura dos magos, Decline of the West, Nova York, 1926, vol. 1, pp. 183 ss., 192. O ESTUDO INTRÍNSECO DA LITERATURA 275 inspirado, o possuído, o produtivamente louco44• Contudo, o poe- ta primitivo pode compor feitiços e encantos, e o poeta moder- no pode, como Yeats, adotar o uso mágico das imagens, ima- gens literais, como um meio de usar as imagens mágico-sim- bólicas em sua poesia45 • O misticismo toma a linha contrária: a imagem é um símbolo efetuado por um estado espiritual, é uma imagem expressiva, não uma imagem causadora, e não é neces- sária ao estado: o mesmo estado espiritual pode se expressar em outros símbolos46• A metáfora mística e a magia são ambas desanimizadoras: elas se chocam com a projeção de si mesmo do homem no mun- do não humano; elas invocam o "outro" - o mundo impessoal das coisas, a arte monumental, a lei tisica. O "Tigre" de Blake é uma metáfora mística: Deus, ou um aspecto de Deus, é um tigre (menos que o homem, mais que o homem); o tigre, por sua vez (e, pelo tigre, o seu criador), é interpretado como metal forjado sob grande calor. O tigre não é um animal do mundo natural do jardim zoológico, um tigre que Blake possa ter visto na Torre de Londres, mas uma criatura visionária, símbolo e também coisa. A metáfora mágica carece dessa translucidez. É a másca- ra da Medusa, que transforma os viventes em pedra. Pongs cita Stefan George como representante dessa postura mágica, des- se desejo de petrificar o que vive: Não é a partir do impulso natural da psique humana de se projetar que opera a espiritualização doadora de forma de Geor- ge; ela se origina de uma poderosa destruição da vida biológica, de um "estranhamento" ("alienação") voluntário como base da preparação do mundo interior, mágico47• 44. Ver Ernest Kris, "Approaches to Art", em Psychoanalysis Today (org. S. Lorand), Nova York, 1944, pp. 360-2. 45. W. B. Yeats, Autobiography, Nova York, 1938, pp. 161, 219-25. 46. K. Vossler, Spirit of Language in Civilization (trad. Londres, 1932), p. 4. Karl Vossler observa bem que os magos e místicos são tipos permanentes e opostos. "Há luta constante entre a magia, que usa a linguagem como ferra- menta e, com isso, busca trazer tanto quanto possível, até Deus, sob o seu con- trole, e o rnísticismo, que rompe, torna sem valor e rejeita todas as formas." 47. H. Pongs, Das Bild, vol. 1, p. 296. 276 TEORIA DA LITERATURA Na poesia inglesa, Dickinson e Yeats buscam de maneiras diferentes essa desanimização, essa metáfora antimística. Emily Dickinson, quando quer traduzir a percepção da morte e a expe- riência da ressurreição, gosta de invocar a experiência da morte, do enrijecimento, da petrificação. "Não era a morte", mas era As if my life were shaven And fitted to a frame, And could not breathe without a key .. . How many times these low feet staggered, Only the soldered mouth can tell; Try! can you stir the awful rivet? Try! can you lifi the hasps of steel?48 [Como se a minha vida fosse raspada E colocada em uma moldura, E não pudesse respirar sem uma chave ... Quantas vezes estes pés baixos cambalearam, Apenas a boca soldada pode dizer; Tente! Consegue sacudir o horrível cravo? Tente! Consegue erguer os cadeados de aço?] Yeats chega ao máximo da poesia como magia em "Bi- zâncio" (1930). Em "Navegando para Bizâncio'', ele já estabe- leceu a oposição entre o mundo da vida biológica- "Os jovens nos braços um do outro [ ... ] os mares cheios de cavalas" - e o mundo da arte bizantina, onde tudo é fixo, rígido, não natural, o mundo do "mosaico dourado" e do "esmalte dourado". Bio- logicamente, o homem é um "animal moribundo"; sua esperan- ça de sobrevivência é ser "colhido no artificio da eternidade", não para outra vez assumir "a forma corporal de qualquer coisa natural", mas para ser uma obra de arte, um pássaro dourado sobre um ramo dourado. "Bizâncio", de certo ponto de vista, 48. Emily Dickinson, Collected Poems, Boston, 1937, pp. 192, 161; ver também p. 38 ("I laughed a wooden laugh" [Ri uma risada de madeira] e p. 215 ("A clock stopped- not the mantel's" [Um relógio parou-não o da lareira]. O ESTCDO INTRÍNSECO DA LITERATURA 277 ilustração densamente escrita do "sistema" de Yeats, um ma doutrinal, é, a partir de outro ponto de vista, especifica- ::;:iente literário, uma estrutura de imagens não naturais que rea- gem intimamente entre si, o todo compondo uma espécie de ri- trml ou liturgia prescritos49• As categorias de Pongs, que apresentamos com certa li- 3erdade, têm o caráter especial de relacionar estilo poético com ·isào de vida50• Embora se considere que cada estilo de perío- . possui suas próprias versões diferenciadas dessas catego- ria , estas são essencialmente atemporais, maneiras altemati- as de encarar a vida e reagir a ela. Todas as três, porém, estão o ra das linhas gerais do que muitas vezes se caracteriza como pensamento moderno, isto é, racionalismo, positivismo, ciên- cia. Tal classificação de metáforas, portanto, sugere que a poe- sia permanece leal aos modos pré-científicos de pensamento. O poeta conserva a visão animista da criança e do homem pri- mitivo, o arquétipo da criança51• Em anos recentes, houve muitos estudos de poetas especí- ficos, ou mesmo de poemas ou peças específicas, em torno das suas imagens simbólicas. Em tal "crítica prática'', as suposições do crítico tomam-se importantes. O que ele está procurando? Está analisando o poeta ou o poema? Devemos fazer distinção entre o estudo das esferas de on- de são extraídas as imagens (as quais, como diz MacNeice, "ain- da pertencem mais adequadamente ao estudo do tema" 52) e o estudo das "maneiras como as imagens podem ser usadas", o caráter da relação entre o "conteúdo" e o "veículo" (a metáfora). A maior parte das monografias sobre as imagens de um poeta específico (por exemplo, Donne s Imagery, de Rugofi) perten- ce à primeiraclasse. Elas mapeiam e pesam os interesses de 49. Para a significação de Bizâncio, ver Yeats, A Vision, Londres, 1938, pp. 279-81. 50. Herman Nohl, Stil und Weltanschauung, Jena, 1920. 51 . Ver Émile Cailliet, Symbolisme et âmes primitives, Paris, 1936, para uma aceitação notavelmente despudorada e acrítica da equivalência entre a mente pré-lógica dos povos primitivos e os propósitos dos poetas simbolistas. 52. MacNeice, op. cit., p. 111. 278 TEORIA DA LITERATURA um poeta reunindo e distribuindo as suas metáforas entre a na- tureza, a arte, a indústria, as ciências fisicas, as humanidades, a cidade e o campo. Mas podemos também classificar os temas ou objetos que impelem o poeta à metáfora como, por exem- plo, mulheres, religião, morte, aviões. Mais significativa do que a classificação, porém, é a descoberta de equivalentes de gran- de escala, correlatos psíquicos. Pode-se supor que as duas esfe- ras invoquem repetidamente uma a outra para exibir a sua in- terpenetração real na psique criativa do poeta. Assim, nas "Can- ções e sonetos" de Donne, nos seus poemas de amor profano, a glosa metafórica é constantemente extraída do mundo católico do amor sagrado: ao amor sexual ele aplica os conceitos de êx- tase, canonização, martírio, relíquias, ao passo que, em alguns dos seus "Sonetos sacros", ele se dirige a Deus com violentas figuras eróticas: Yet dearly 1 !ove you, and would be lovédfain But am betrothed unto your enemy. Divorce me, untie, or break that knot again, Take me to you, imprison me, for 1 Except you enthrall me, never shall be free, Nor ever chaste, except you ravish me. [Contudo, amo-te muito e queria ser amado Mas estou prometido ao teu inimigo. Divorcia-me, desfaz ou parte esse nó outra vez, Toma-me para ti, aprisiona-me, pois eu, A não ser que me aprisiones, nunca serei livre Nem casto, a não ser que me violentes.] O intercâmbio entre as esferas do sexo e da religião reco- nhece que o sexo é uma religião e a religião é um amor. Um tipo de estudo enfatiza a auto-expressão, a revelação da psique do poeta através das imagens que ele usa. Supõe que as imagens do poeta são como as imagens de um sonho, isto é, sem a censura da discrição ou da vergonha: não suas decla- rações patentes, mas oferecidas à guisa de ilustração, podería- mos esperar que traíssem os seus reais centros de interesse. Mas O ESTUDO INTRÍNSECO DA LITERA.TURA 279 pode-se questionar se um poeta já foi tão acrítico quanto a suas imagens53• Outra suposição, com certeza errada, é a de que o poeta deve ter percebido literalmente qualquer coisa que puder ima- ginar (com base nisso, Gladys 1. Wade, no seu estudo de Tra- heme, reconstrói o início da vida dele )54. Segundo Dr. Johnson, uma admiradora dos poemas de Thomson achava que conhecia os gostos do poeta por meio das suas obras. A partir de suas obras, ela conseguiu concluir três aspectos do seu caráter: que ele era um grande amante, um grande nada- dor e rigorosamente abstinente; mas, disse Savage (seu íntimo), ele não conhece nenhum amor que não o do sexo, talvez nunca tenha estado em água fria na vida, e se entrega a todo luxo que está ao seu alcance. Sua concepção das características e hábitos pessoais do poeta era ridiculamente inexata. Tampouco podemos argumen- tar que a ausência de imagens metafóricas é equivalente à au- sência de interesse. Na vida de Donne, de Walton, não há uma imagem de pescaria entre as suas onze figuras. A poesia do compositor Machaut, do século XIV, não usa nenhum tropo ex- traído da música55• A suposição de que as imagens de um poeta são a contri- buição central do seu inconsciente e que, portanto, o poeta fala como um homem, não como um artista, parece, por sua vez, remontar às suposições flutuantes, não muito coerentes, sobre como reconhecer a "sinceridade". Por um lado, supõe-se popu- 53. Ver Harold Rosenberg, "Myth and Poem", Symposium, II (1931), pp. 179 ss. 54. Gladys Wade, Thomas Traherne, Princeton, 1944, pp. 26-37. Ver a resenha crítica do livro por E. N. S. Thompson, Philological Quarterly, XXIII (1944), pp. 383-4. 55. Dr. Johnson, Lives of the Poets, "Thomson''. Sobre o argumento do silêncio imagístico, inclusive os exemplos que citamos, ver o penetrante "Analysis oflmagery", de L. H. Homstein, PMLA, LVTI (1 942), pp. 638-53. 280 TEORIA DA LITERATURA larmente que as imagens impressionantes devem ser elabora- das e, portanto, insinceras: um homem realmente comovido fa- laria em linguagem simples, sem figuras, ou utilizando figuras banais e desbotadas. Mas há uma idéia rival, de que a figura ba- nal, que evoca a resposta pronta, é um sinal de insinceridade, de aceitar uma aproximação tosca do sentimento no lugar de uma formulação escrupulosa dele. Aqui, confundimos os homens em geral com os homens literários, homens que falam com ou- tros homens escrevendo ou, melhor, homens que falam com poe- mas. A franqueza pessoal comum e as imagens banais são emi- nentemente compatíveis. Quanto à "sinceridade" em um poe- ma, o termo parece quase sem sentido. Uma expressão sincera do quê? Do suposto estado emocional do qual provém? Ou do estado em que o poema foi escrito? Ou uma expressão sincera do poema, isto é, do construto lingüístico que assume forma na mente do autor quando ele escreve? Com certeza, tem de ser a última: o poema é uma expressão sincera do poema. As imagens de um poeta são reveladoras do seu eu. Como esse eu é definido? Mario Praz e Lillian H. Hornstein riram-se à custa do Shakespeare de Caroline Spurgeon, o inglês universal do século XX. Pode-se supor que o grande poeta compartilhava a nossa "humanidade comum"56• Não precisamos de nenhuma chave imagística das escrituras para descobrir isso. Se o valor do estudo da imagem encontra-se em descobrir algo recôndito, presumivelmente será possível lermos algumas assinaturas pri- vadas, destrancar o segredo do coração de Shakespeare. Em vez de descobrir nas imagens de Shakespeare a sua humanidade universal, podemos encontrar uma espécie de re- lato hieroglífico da sua saúde psíquica no momento em que 56. Mario Praz, English Studies, XVIII (1936), pp. 177-81, faz uma re- senha espirituosa de Shakespeare's lmagery and What it Tells Us, de Caroli- ne Spurgeon (Cambridge, 1935), especialmente da primeira parte, "The Re- velation ofthe Man", com a sua "falácia de tentar ler[ ... ] nas imagens de Sha- kespeare os seus sentidos, gostos e interesses" e com razão elogia Clemen (cujo livro apareceu em 1936) por pensar que "o uso e a escolha de imagens por Shakespeare não é tão condicionado pelos seus gostos pessoais como pelo que são, em cada caso, as suas intenções artísticas [ .. .]". O ESTUDO INTRÍNSECO DA LITERATURA 281 está compondo uma peça específica. Assim, Caroline Spurgeon diz de Troilo e Hamlet: Se não o soubéssemos por outras razões, poderíamos ter certeza, pela similaridade e pela continuidade do simbolismo nas duas peças, que foram escritas quase juntas e em uma época em que o autor sofria alguma desilusão, revés ou perturbação de tal natureza que não sentimos em nenhuma outra parte com a mes- ma intensidade. Aqui, Caroline Spurgeon supõe não que a causa específi- ca da desilusão de Shakespeare possa ser localizada, mas que Hamlet expressa desilusão e que esta deve ser do próprio Sha- kespeare57. Ele não poderia ter escrito uma peça tão excelente se não fosse sincero, isto é, se não expressasse o seu próprio estado de espírito. Tal doutrina choca-se com a visão de Sha- kespeare defendida por E. E. Stoll e outros, que enfatizam a sua arte, a sua dramaturgia, a sua habilidosa produção de peças novas e melhores dentro do padrão de sucessos precedentes: por exemplo, Hamlet como um prosseguimento d'A tragédia espanhola; O conto de inverno e A tempestade como equiva- lentes,
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