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UNIVERSIDADE FEDERAL DE LAVRAS - UFLA CENTRO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA - CEAD Linguística do Texto Guia de Estudos Rubens Vinícius Martins Guimarães Lavras/MG 2013 Linguística do Texto Ficha catalográfica preparada pela divisão de processos técnicos da biblioteca central da UFLA Guimarães, Rubens Vinícius Martins. Linguística do texto : guia de estudos / Rubens Vinícius Martins Guimarães. – Lavras : UFLA, 2013. 77 p. : il. Uma publicação do Centro de Educação a Distância da Universidade Federal de Lavras. Bibliografia. ISBN 1. Formação de professores. 2. Texto. 3. Intertextualidade. I. Universidade Federal de Lavras. II. Título. CDD – 378.175 2 Linguística do Texto Governo Federal Presidente da República: Dilma Vana Rousseff Ministro da Educação: Aloizio Mercadante Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) Universidade Aberta do Brasil (UAB) Universidade Federal de Lavras (UFLA) Reitor: José Roberto Soares Scolforo Vice-Reitora: Édila Vilela de Resende Von Pinho Pró-Reitora de Graduação: Soraya Alvarenga Botelho Centro de Educação a Distância (CEAD) Coordenador Geral: Ronei Ximenes Martins Coordenadora Pedagógica: Elaine das Graças Frade Coordenador de Projetos: Cleber Carvalho de Castro Coordenadora de Apoio Técnico: Fernanda Barbosa Ferrari Coordenador de Tecnologia de Informação: Raphael Wickler de Bettio Departamento de Ciências Humanas (DCH) Licenciatura Letras Português (Modalidade a Distância) Coordenadora do Curso: Mauricéia Silva de Paula Vieira Coordenadora de Tutoria: Débora Cristina de Carvalho Revisor Textual: Marco Antônio Villarta-Neder 3 Linguística do Texto Sumário INTRODUÇÃO.............................................................................................6 UNIDADE 1 TRAJETÓRIA DA LINGUÍSTICA DO TEXTO.............................................8 1.1 A análise transfrástica........................................................................9 1.2 As gramáticas textuais.....................................................................12 1.3 A virada pragmática.........................................................................14 1.4 A virada cognitivista.........................................................................17 1.5 Princípios de construção textual do sentido....................................21 UNIDADE 2 REFERENCIAÇÃO....................................................................................26 2.1 Referenciação: o que é?..................................................................27 2.2 A progressão referencial..................................................................30 UNIDADE 3 FORMAS DE ARTICULAÇÃO TEXTUAL – A COESÃO.........................36 3.1 Formas de articulação textual: coesão............................................37 3.1.1 Coesão referencial....................................................................41 3.1.1.1 Coesão referencial por substituição..................................41 3.1.1.2 Coesão referencial por reiteração.....................................42 3.1.2 Coesão recorrencial.................................................................46 3.1.2.1 Coesão por recorrência de termos....................................46 3.1.2.2 Coesão recorrencial por paralelismo................................47 3.1.2.3 Coesão recorrencial por paráfrase....................................47 3.1.2.4 Coesão recorrencial por recursos fonológicos segmentais e suprassegmentais......................................................................50 3.1.3 Coesão sequencial...................................................................50 3.1.3.1 Sequenciação temporal.....................................................50 3.1.3.2 Sequenciação por conexão...............................................51 UNIDADE 4 ESTRATÉGIAS TEXTUAL - DISCURSIVAS DE CONSTRUÇÃO DO SENTIDO 4.1 O que são e para que servem as estratégias textual-discursivas de construção do sentido?..........................................................................56 4.1.1 Estratégias formulativas...........................................................56 4.1.2 Inserções..................................................................................57 4.1.3 Repetições e parafraseamentos retóricos................................57 4.1.4 Deslocamentos de constituintes...............................................58 4.2 Estratégias metadiscursivas............................................................59 UNIDADE 5 INTERTEXTUALIDADE.............................................................................62 5.1 Intertextualidade: o que é?..............................................................63 5.1 A intertextualidade temática.............................................................64 5.2 A intertextualidade estilística............................................................66 5.3 A intertextualidade explícita.............................................................67 5.4 A intertextualidade implícita.............................................................69 UNIDADE 6 GÊNEROS E TIPOS TEXTUAIS...............................................................71 4 Linguística do Texto 6.1 A necessária diferenciação entre tipos e gêneros textuais.............72 6.1.1 Tipologia textual........................................................................72 6.1.2 Gêneros textuais.......................................................................72 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................77 5 Linguística do Texto INTRODUÇÃO Ao iniciarmos nossos estudos referentes à Linguística Textual, torna-se necessário esclarecer uma série de questões. A primeira delas é, certamente, definir aquilo que vem a ser o nosso objeto de estudo: o texto. Para esta disciplina, a definição de texto seguirá aquela proposta por Fávero (1999, p. 7): O texto consiste [...] em qualquer passagem falada ou escrita que forma um todo significativo independente de sua extensão. Trata-se, pois, de um contínuo comunicativo contextual caracterizado pelos fatores de textualidade: contextualização, coesão, coerência, intencionalidade, informatividade, aceitabilidade, situacionalidade, e intertextualidade. Mais adiante, no item 1.5, faremos uma breve exposição de cada um desses fatores de textualidade para, no capítulo 3, tratarmos da coesão, no capítulo 4, da coerência, e, destinarmos o capítulo 5 à intertextualidade. Feito esse primeiro esclarecimento, novas indagações acerca desta disciplina vão aparecendo. Ao ouvirem os nomes ‘Linguística do Texto’, ‘Linguística Textual’, ‘Teoria do Texto’, é natural que vocês comecem a se perguntar: “o que vem a ser isso?” “Para que serve?” “De que maneira isso poderá nos auxiliar no ensino de Língua Portuguesa?” E, por outro lado, algumas hipóteses certamente começam a se delinear: “pelo nome, deve ser um ramo da Linguística”; “deve ter relação com a produção e a interpretação do texto”; “deve servir para entender e produzir os textos de maneira mais adequada”; “se formos capazes de entender e produzir textos de maneira mais adequada, poderemos fazer o mesmo com nossos alunos”. Talvez não tenham sido exatamente os mesmos questionamentos, nem as mesmas hipóteses, mas vocês devem ter passado perto disso. Pois bem, antes de respondermos a essas perguntas, antes de determinarmos se as hipóteses aventadas se confirmam, é essencial que saibamoscomo surgiu a Linguística do Texto e como ela se desenvolveu. 6 Linguística do Texto A propósito, a primeira hipótese já pode ser confirmada: trata-se de um ramo da Linguística. Conforme Koch (1997), o termo ‘Linguística do Texto’ veio a ser empregado pela primeira vez, em 1955, pelo linguista romeno Eugenio Cosériu, mas não com o sentido que possui hoje. Vamos, portanto, considerar que foi Weinrich (1966) o primeiro a fazê-lo. Mas qual é o sentido atual de Linguística do Texto? Novamente conforme Koch (1997), esse é o ramo da Linguística que se ocupa de “investigar a constituição, o funcionamento, a produção e a compreensão dos textos”. É com ela que os textos passam a ser estudados dentro de seu contexto, investigando- se, para tanto, suas condições de produção, de recepção e de interpretação. Mas para que se chegasse a esse consenso, algumas arestas tiveram de ser aparadas ao longo de uma trajetória de quase cinquenta anos [lembrem-se de que estamos considerando ser Weinrich (1966) o nosso marco]. Apoiados em Koch (1997; 2009) e em Fávero (1999), é essa trajetória que ora passamos a apresentar. 7 Linguística do Texto UNIDADE 1 TRAJETÓRIA DA LINGUÍSTICA DO TEXTO 8 Linguística do Texto A Linguística do Texto desenvolveu-se a partir de quatro momentos bem definidos. São eles: a análise transfrástica, a gramática do texto, a virada pragmática e a virada cognitivista. Para efeito de organização, nossas considerações serão baseadas nesses quatro momentos. 1.1 A análise transfrástica Num primeiro momento, percebeu-se a necessidade de fossem ultrapassados os limites da frase para que fosse possível estudar e explicar determinados fenômenos. Assim, a análise transfrástica se voltou para a relação que se estabelecia entre as frases. Para que fique mais claro, analisemos o trecho abaixo: 1. “O casal chegou à cidade tarde da noite. Estavam cansados da viagem; ela, grávida, não se sentia bem. Foram procurar um lugar onde passar a noite. Hotel, hospedaria, qualquer coisa serviria, desde que não fosse muito caro.” (Moacyr Scliar) Temos quatro frases nesse trecho. Percebam que a partir da combinação entre elas, é possível depreender uma série de escolhas por parte do autor. • Da primeira frase, “O casal chegou à cidade tarde da noite.”, podem ser extraídas, dentre outras, as seguintes generalizações: a frase presta algumas informações acerca do sintagma1 ‘o casal’; 1Um sintagma é uma associação de elementos compostos num conjunto, organizados num todo, funcionando conjuntamente. (…) sintagma significa, por definição, organização e relações de dependência e de ordem à volta de um elemento essencial. 9 Linguística do Texto em relação a esse sintagma, não é possível determinar, ainda, de que se constitui o casal2; o verbo ‘chegou’ concorda com o sintagma ‘o casal’; os sintagmas ‘à cidade’ e ‘tarde da noite’ indicam, de maneira imprecisa, o local a que o casal chegou e o momento da chegada. • Da relação que se estabelece entre a segunda frase, “Estavam cansados da viagem; ela, grávida, não se sentia bem.”, e a primeira, já analisada, é possível, por exemplo, esclarecer que o casal se constitui de homem e mulher. Qual é o elemento a garantir tal determinação? Precisamente, o pronome ‘ela’. Para ser suficientemente informativo, ‘ela’ precisa ser específico, ou seja, conter indicações que não suscitem dúvidas. Assim, não se usaria o pronome ‘ela’ caso o casal se constituísse de dois homens. Caso se constituísse de duas mulheres, o pronome ‘ela’ não seria suficiente para especificar a qual delas era feita a referência. Se analisarmos as duas frases subsequentes, “Foram procurar um lugar onde passar a noite. Hotel, hospedaria, qualquer coisa serviria, desde que não fosse muito caro.”, outras informações são acrescidas ao sintagma ‘o casal’: • o casal não morava naquela cidade; • eles não dispunham de muito dinheiro naquele momento; • eles não haviam feito reserva em nenhum hotel ou hospedaria. Entenderam, por meio do exemplo, como se investigavam os fenômenos linguísticos de um texto a partir de uma análise transfrástica? Não é à toa que os linguistas dessa época definiam o texto como sendo uma “sequência pronominal ininterrupta” (HAWERG, 1968 apud Koch, 2Considerando-se a definição do Dicionário Eletrônico Houaiss referente ao verbete ‘casal’ que, em seu item 3.2, informa: “qualquer par de pessoas cuja relação é amorosa e/ou sexual”, ‘o casal’ poderia se constituir de um par heterossexual ou de um par homossexual. 10 Linguística do Texto 1997) ou, ainda, como uma “sequência coerente de enunciados” (ISENBERG, 1970 apud Koch, 1997); (BELLERT, 1970 apud Koch, 1997). É importante ressaltar que o texto não está completo. Utilizamos apenas o trecho citado com a intenção de demonstrar como se daria a análise transfrástica. O que se deve fazer é estendê-la por todo o texto. Depois de explicitar como eram feitas as primeiras análises linguísticas relacionadas ao texto, já estamos prontos para nossa primeira atividade. Após realizá-la, apresentaremos o momento que se seguiu ao das análises transfrásticas: as gramáticas textuais. Atividade 1 Pesquise em livros didáticos de Língua Portuguesa exemplos de exercícios que se voltem para a análise transfrástica do texto. Não deixe de apresentar sua análise acerca do exercício. ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ____________ 11 Linguística do Texto 1.2 As gramáticas textuais Apesar de sugerir uma evolução dos estudos do texto, a análise transfrástica mostrou-se insuficiente para dar conta da variedade de fenômenos que envolvem tal objeto. Por isso, uma nova vertente foi elaborada e surgiram, então, as chamadas ‘gramáticas textuais’. Destacam-se nesse novo campo estudiosos como Van Dijk, com seus trabalhos do início da década de 1970, Lang (1971, 1972) e Petofi (1972, 1974). Nesse período, abandonam-se os estudos da frase para o texto, como propunha a análise transfrástica e “adota-se um método que se pretende chegar, por meio da segmentação, às unidades menores, para, então, classificá-las”. (KOCH, 1997, p. 68). Sugere-se, pois, uma inversão em relação ao que era feito até aquele momento. É nesse momento que se discute a noção de competência textual, isto é, uma capacidade específica dos falantes que lhes permite, por exemplo, distinguir um texto coerente de um aglomerado aleatório de palavras e/ou sentenças, bem como parafrasear um texto, perceber se está completo ou não, resumi-lo, atribuir- lhe um título ou produzir um texto a partir de um título dado. (KOCH,1997, p. 69) Trata-se, pois, de um enfoque muito mais gerativista e, como tal, a capacidade intuitiva do falante passa a ser levada em conta. Observem que, no caso das gramáticas textuais, não se realiza uma análise meramente estrutural, mas se discute a competência textual dos falantes, dividindo-a em três aspectos essenciais: a) competência formativa: capacidade de elaborar um texto; b) competência transformativa: capacidade de parafrasear um texto; 12 Linguística do Texto c) competência qualificativa: capacidade de classificar um texto com base em determinados tipos (narrativo, descritivo, dissertativo, argumentativo e injuntivo). Dentro do projeto das gramáticas textuais, há que se considerar também a perspectiva semântica, proposta por Dressler (1970, 1972), Brinker (1973), Rieser (1973, 1978) e Viehweger (1976, 1977) entre outros. É nesse momento que se começa a diferenciar a coerência da coesão. Ocorre, contudo, que tal distinção ainda se situa no campo da coerência sintático-semântica. Charrolles (1978 apud Koch, 2009, p. 10) apresenta quatro condições de coerência textual: 1. repetição – para que um texto possa ser considerado coerente, ele deve conter, em seu desenvolvimento linear, elementos de recorrência estrita; 1. progressão – para ser coerente, deve haver no texto uma contribuição semântica permanentemente renovada, pelo contínuo acréscimo de novos conteúdos; 2. não-contradição – para que um texto seja coerente, é preciso que, no seu desenvolvimento, não se introduza nenhum elemento semântico que contradiga um conteúdo posto ou pressuposto por um ocorrência anterior, ou dedutível dela por inferência; 3. relação – um texto será coerente se todos os seus enunciados – e os fatos que denotam no mundo nele representado – estiverem, de alguma forma, relacionados entre si. Outras considerações se seguiram a essas, mas a verdade é que o projeto, com o decorrer do tempo, revelou-se muito ambicioso, mas pouco produtivo. Estabelecer regras capazes de descrever todos os textos possíveis em uma língua natural não foi algo de fato viável, pois haveria sempre a possibilidade do surgimento de um texto que não se enquadrasse nos moldes sugeridos. Por isso, as gramáticas do texto foram pouco a pouco sendo deixadas de lado haja vista sua limitada perspectiva sintático-semântica. Os linguistas perceberam que era necessário buscar uma perspectiva que considerasse também o contexto ao se estudar o texto. Tem-se, por conseguinte, a chamada ‘virada pragmática’. 13 Linguística do Texto 1.3 A virada pragmática Conforme Koch (2009), a virada pragmática ocorre a partir do momento que se começa a pensar o texto como um elemento comunicativo de uma sociedade concreta. Desse modo, deixa de ser analisado sintática ou semanticamente, e torna-se um elemento constitutivo de uma atividade complexa, como instrumentos de realização de intenções comunicativas e sociais do falante (HEINEMANN, 1982) Os textos passam a ser estudados a partir do conjunto de condições externas a eles – produção, recepção e interpretação. (KOCH, 1997) Para melhor entender o que propõe Linguística Textual, leia o texto abaixo, a letra do samba ‘Ai que saudades da Amélia’, composta por Mário Lago e Ataulfo Alves e que fez grande sucesso no carnaval de 1942. Depois, procure responder às questões que a ele se seguem. Nunca vi fazer tanta exigência Nem fazer o que você me faz Você não sabe o que é consciência Nem vê que eu sou um pobre rapaz Você só pensa em luxo e riqueza Tudo o que você vê, você quer Ai, meu Deus, que saudade da Amélia Aquilo sim é que era mulher Às vezes passava fome ao meu lado E achava bonito não ter o que comer Quando me via contrariado Dizia: "Meu filho, o que se há de fazer!" Amélia não tinha a menor vaidade Amélia é que era mulher de verdade (ALVES e LAGO, 1942) ATIVIDADE 2 1. Você já deve ter ouvido a seguinte expressão “Fulana de Tal é uma Amélia”, dita por alguém que desejava criticar a postura de uma mulher diante do marido ou companheiro. Que postura feminina seria criticada por quem usa tal expressão? ________________________________________________ ________________________________________________ 14 Linguística do Texto ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ 2. O samba composto em 1492 exaltava a figura da mulher que se dedicava ao lar e, consequentemente, ao marido. Naquela época “A que saudades da Amélia” foi adamado por homens como por mulheres. Por que a sociedade da época, sobretudo as mulheres, não repudiou a canção? Levante hipóteses. ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ 3. De 1942 para cá, muitas mudanças ocorrem com relação ao papel desempenhado pela mulher na sociedade. No contexto atual, uma canção como “Aí que saudades da Amélia” receberia a mesma adamação? Justifique sua resposta. ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ 4. É correto afirmar que conhecer o contexto em que produz um texto é determinante para que o leitor possa compreendê-lo em toda a sua inteireza? Explique ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ 15 Linguística do Texto ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ Conseguiu entender por que caminhos passa a Linguística Textual? A investigação proposta pela virada pragmática visa discutir o texto em seu contexto de realização. Assim, entender as condições (tempo, espaço, organização social e cultural) em que um texto foi produzido é essencial para compreendê-lo. Conforme Koch (2009, p. 18), Heinemann e Viehweger (1991), em sua Introdução à linguística do texto, asseveram que os pressupostos gerais que regem tal perspectiva podem ser assim resumidos: 1. Usar uma língua significa realizar ações. A ação verbal constitui umaatividade social, efetuada por indivíduos sociais, com o fim de realizar tarefas comunicativas, ligadas com a troca de representações, metas e interesses. Ela é parte de processos mais amplos de ação, pelos quais é determinada. 2. A ação verbal é sempre orientada para os parceiros da comunicação, portanto é também ação social, determinada por regras sociais. 3. A ação verbal realiza-se na forma de produção e recepção de textos. Os textos são, portanto, resultantes de ações verbais/complexos de ações verbais/estruturas ilocucionais3, que estão intimamente ligadas com a estrutura proposicional4 dos enunciados. 4. A ação verbal consciente e finalisticamente orientada origina- se de um plano/estratégia de ação. Para realizar seu objetivo, o falante utiliza-se da possibilidade de operar escolhas entre os diversos meios verbais disponíveis. A partir da meta final a ser atingida, o falante estabelece objetivos parciais, bem como suas respectivas ações parciais. Estabelece-se, pois, uma hierarquia entre os atos de fala de um texto, dos mais gerais aos mais particulares. Ao interlocutor cabe, no momento da compreensão, reconstruir essa hierarquia. 5. Os textos deixam de ser examinados como estruturas acabadas (produtos), mas passam a ser considerados no 3 Conforme Dubois et al. (1973), ilocucionário é todo ato de fala que realiza ou tende a realizar a ação nomeada. 4 As proposições são, na gramática tradicional, chamadas de orações. 16 Linguística do Texto processo de sua constituição, verbalização e tratamento pelos parceiros da comunicação. A partir desse último desdobramento, o conceito de coerência passa a incorporar o aspecto pragmático aos aspectos sintático- semânticos. Ocorre, então, um último desenvolvimento. Antes de explicá- lo, gostaríamos que você lesse o pequeno parágrafo da atividade 3, abaixo, e respondesse honestamente a pergunta que a ele se segue: ATIVIDADE 3 Um avião partiu de Vancouver, no Canadá, com destino a Nova Iorque, nos EUA. Ocorreu, durante o trajeto, uma tempestade e o aião, infelizmente, caiu. O curioso é que a queda ocorreu exatamente sobre a fronteira entre os dois países. A parte do meio até a cauda do avião ficou sobre o território canadense; a outra metade ficou sobre o território americano. Agora, responda rapidamente à pergunta, para ajudar as autoridades a resolver o problema que surgiu: Onde você acha que devem ser enterrados os sobreviventes? _____________________________________________ _____________________________________________ _____________________________________________ _____________________________________________ _____________________________________________ 1.4 A virada cognitivista É na década de 80 que começam a surgir as discussões que levarão à ‘virada cognitivista’. Conforme Koch (2009, p. 22), nessa fase, considera-se que “o texto é originado por uma multiplicidade de operações cognitivas interligadas, um documento de procedimentos de decisão, seleção e combinação”. Gostaria agora de voltar à questão proposta na atividade 3. Qual foi a sua primeira resposta? Se você disse que os americanos 17 Linguística do Texto devem se enterrados em território americano e os canadenses devem ser enterrados no Canadá, errou redondamente. Se você acredita, por outro lado, que aqueles que ocupavam assentos localizados na parte de trás do avião devem ser enterrados no Canadá e os demais, na terra do Tio Sam, posso dizer que também errou. Leia novamente a pergunta e veja o que está escrito. A verdade é que ninguém deve ser enterrado, porque não se enterram sobreviventes. Antes de entender o que ocorreu, é necessário que saibam que existem, conforme Heinemann e Viehweger (1991), alguns tipos de conhecimentos envolvidos no processamento textual. Observe o diagrama 1 de nosso guia. Diagrama - Sistemas de conhecimento envolvidos no processamento textual Os conhecimentos acima atuam no processamento de um texto. Vejamos em que consiste cada um deles: [adaptado de Koch (2009)] 18 Linguística do Texto • Conhecimento linguístico: responsável pela articulação som- sentido. Responde pela organização do material linguístico, pelo uso dos mecanismos coesivos e pela seleção lexical adequada ao tema. • Conhecimento enciclopédico: é aquele que se encontra armazenado na memória do indivíduo. Também chamado de conhecimento de mundo. • Conhecimento sociointeracional: responde pelas formas de interação através da linguagem. É por meio dele que se reconhecem os objetivos ou propósitos que um falante, em dada situação de interação pretende atingir, que se escolhe a variedade linguística à situação de interação, que se evitam ou se sanam conflitos no processo de comunicação. • Conhecimento sobre modelos textuais globais: permite o reconhecimento de textos como exemplares de determinado gênero ou tipo. Utilizando aquilo que observamos na atividade 3, vejamos como esses conhecimentos poderiam ser acessados. Para tanto, reproduziremos abaixo a atividade: Um avião partiu de Vancouver, no Canadá, com destino a Nova Iorque, nos EUA. Ocorreu, durante o trajeto, uma tempestade e a aeronave, infelizmente, caiu. O curioso é que a queda ocorreu exatamente sobre a fronteira que divide os dois países. A parte do meio até a cauda do aparelho ficou sobre o território canadense; a outra metade ficou sobre o território americano. Agora, responda rapidamente à pergunta, para ajudar as autoridades a resolver o problema que surgiu: Onde você acha que devem ser enterrados os sobreviventes? O conhecimento linguístico é necessário para a leitura da superfície do texto. É, por meio dele, por exemplo, que se percebem as 19 Linguística do Texto relações entre ‘avião’, ‘aeronave’ e ‘aparelho’. Em relação ao conhecimento sociointeracional, verifica-se, a título de ilustração, a escolha pela variedade padrão da linguagem. A leitura associada à pergunta feita na atividade sugere que o texto é uma espécie de adivinha, pertencendo, por conseguinte, a esse gênero textual. É possível que se perceba isso pela ativação do conhecimento dos modelos textuais globais. O conhecimento enciclopédico foi, propositalmente, deixado por último para que vejamos como ele interfere e confunde o leitor durante o processamento textual. Senão, vejamos: 1. Ao iniciar a leitura, o leitor possivelmente já identifica o avião como elemento central do texto e acessa imediatamente uma série de informações acerca desse aparelho. 2. Na segunda frase do texto, o leitor toma conhecimento de que o avião caiu e isso faz com que ele acesse outra quantidade enorme de informações. Uma dessas informações gera expectativa: é comum que haja vítimas fatais em acidentes com aviões. O uso da palavra ‘infelizmente’ ajuda a sugestionar o leitor nesse sentido. 3. A terceira frase acrescenta uma informação que será essencial para o problema a ser proposto, mas mantém a expectativa com relação às condições dos passageiros. 4. A última frase especifica a frase anterior. A expectativa se mantém. 5. Vem, então, a pergunta e ela aponta para um desfecho ruim, confirmando a expectativa. A palavra ‘enterrados’ parece confirmar que houve vítimas fatais e é aí que ocorre a confusão no processamento: o leitor simplesmente não “enxerga” a 20 Linguística do Texto palavra ‘sobreviventes’, porque os elementos de que dispõejá fizeram com que ele deduzisse o resultado. Possivelmente, você já observou que “brincar” com a linguagem é uma maneira bastante eficaz para se construir ‘pegadinhas’ como a que vimos acima. É claro que, depois de discutida interferência do conhecimento enciclopédico, fica mais clara a atuação do conhecimento sociointeracional, isto é, há uma previsão daquele que constrói a ‘pegadinha’ e isso se verifica por meio da escolha lexical. Antes de encerrarmos este capítulo, gostaríamos de retomar, na próxima seção, os fatores de construção textual do sentido. Ressaltamos que a coesão, a coerência e a intertextualidade serão também retomadas no capítulo 2 de maneira mais detalhada. 1.5 Princípios de construção textual do sentido Após tantos desdobramentos, foram apresentados sete critérios ou fatores de textualidade para determinar o que caracterizaria um texto. Conforme Beaugrande e Dressler (1981) apud Koch (2009), dois deles (coerência e coesão) são “centrados no texto” e cinco (situacionalidade, informatividade, intencionalidade, aceitabilidade e intertextualidade) são “centrados no usuário”. Observe o diagrama 2 com as funções de cada um deles. 21 Linguística do Texto Diagrama - Princípios de construção textual do sentido Para que você tente determinar cada um dos fatores de textualidade relacionados, selecionamos um texto de 1986, de Affonso Romano de Sant’Anna e que trata de situações pertinentes ao contexto atual e outras que já parecem um tanto distantes. Faça, portanto, a atividade 5 que se segue. ATIVIDADE 4 Leia, agora, o texto de Affondo Romano de Sant'Anna que se segue e procure determinar cada um dos fatores de textualidade nele presentes. 22 Linguística do Texto O Vestibular da Vida Um enduro sem moto, um rali sem carro, uma maratona onde, ao invés de atletas, correm paraplégicos, cegos, presidiários, grávidas e doentes em suas macas, esta é a imagem que nos deixa este vestibular realizado esta semana, mobilizando centenas de milhares de jovens em todo o país. Várias fotos mostram jovens correndo desabalados dentro de seus jeans justos e camisetas palavrosas em direção ao portão da universidade, como se fossem dar um salto tríplice. Como se fossem dar um salto sem vara. Como se fossem dar um salto na vida. Ao lado, aparecem parentes incentivando o corredor-saltador, aparecem colegas gritando em torcida. Correi, jovens, correi, que estreita é a porta que vos conduzirá à salvação! E ali está, como São Pedro, um porteiro ou guarda, que vai bater a porta na cara do retardatário, que chorará, implorará, arrancará os cabelos num ranger de dentes, enquanto, saltitantes, os mais espertos pulam (ocultamente) um muro e penetram o paraíso (ou inferno da múltipla escolha). A Telerj declarou que teve que acordar mais de 10 mil jovens pelo despertador telefônico. Carlinhos Gordo, o maior ladrão de carros do país, estava entre os 39 presidiários que, no Rio, fizeram, mesmo na cadeia, o exame. Mais de trinta deficientes visuais tiveram que tatear as 51 folhas em braile. Maria Alice Nunes teve um filho e saiu da maternidade com o recém-nascido no colo para enfrentar o unificado. Um índio cego — o guarani José Oado, 24 anos — disputa uma vaga em História (ou na história?). Andréa Paula Machado, 17 anos, teve que interromper o exame escrito várias vezes, para o prazer oral do bebê que, entre uma mamada e outra, voltava ao colo da avó. Dois fiscais que transportavam as provas no caminho de Petrópolis morreram num acidente. Um estudante com rubéola fez, num posto médico, prova ao lado de outro com catapora. Todas as idades ali estavam representadas: Márcia Cristina da Silva, 13 anos, vejam só!, já começou a treinar para o vestibular de Medicina em 88, e neste só achou difícil a prova de 23 Linguística do Texto literatura. Mas lá estava também Edgar Carvalho, 73 anos, advogado, trocando as delícias da aposentadoria pela ideia de se tornar médico e ainda ser útil aos outros. Por isto, discordo da jovem que o interpelou acusando-o de estar tirando a vaga de outro. Socialmente é melhor um velho de 73 anos que qualquer dos jovens que faltaram à prova porque dormiam, que não foram classificados porque achavam que vestibular era loto e vivem a ociosidade daninha à custa de seus pais. Mas, de todos os casos, impressiona mais o de Maria Regina Gonçalves, uma enfermeira de 38 anos. Vejam que estória mirabolante. Lá vai a nossa Maria Regina. Mas não vai simplesmente. Vai grávida. Vai grávida, mas não é uma grávida amparada pelo seu marido, mas uma grávida solteira, enfrentando o mundo com sua barriga e coragem. No entanto, hora e meia antes do exame, em São Cristóvão, é assaltada por três marmanjos covardes, que tomam dela os documentos, 200 mil cruzeiros, e o pior: lhe dão uma porção de safanões, num exercício de sadismo matinal. Maria Regina poderia depois disto voltar chorando para casa e ficar lamuriando o resto da vida. Fez o contrário: foi em frente, embora, ao chegar no local, soubesse que uma outra colega, também assaltada, desistira do exame. Maria Regina deu um jeito, arranjou até cópia xerox de sua carteira de identidade, fez a prova, comprometendo-se a mostrar os outros documentos mais tarde. Mas, de noite, teve uma hemorragia. Pena que os ladrões não pudessem ver a cena, pois ficariam mais felizes. O médico lhe ordena "repouso absoluto". Ela ali "repousando", mas agoniada, porque a burocracia lhe exigia comprovações de documentos para validar os exames. Como desgraça pouca é bobagem, quatro dias depois morre o pai de seu namorado, daí a uns dias ela aborta e teve que ficar mesmo internada. E vede agora, ó filhinhos e filhinhas do papai, que esbanjais vossos corpinhos sem destino nas praias da irresponsabilidade! Maria Regina foi a primeira colocada (nota 96) no concurso para Enfermagem e Sanitarismo. Tirou primeiro lugar e seu nome não apareceu na lista. Ainda 24 Linguística do Texto vai ter que provar que existe. Mas já impetrou mandado de segurança. É claro que vai ganhar. 12.01.86 SANT’ANNA. A. R. O vestibular da vida. In: ________. A Mulher Madura. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. p. 111. Disponível em: <http://www.releituras.com/ arsant_vestibular.asp>. Acesso em: 30 jan. 2013. Uma vez apresentados os fatores de textualidade propostos por Beaugrande e Dressler, passemos ao capítulo 2, no qual estudaremos a questão da referenciação. Mais adiante, no capítulo 3, retomaremos a coesão, a coerência e a intertextualidade. 25 Linguística do Texto UNIDADE 2 REFERENCIAÇÃO 26 Linguística do Texto 2.1 Referenciação: o que é? Não há como falar de referenciação sem que antes conheçamos as noções de referência e de referente. Conforme Dubois et al. (1998, p. 511), “referência é a função pela qual um signo linguístico se refere a um objeto do mundo extralinguístico, real ou imaginário”. O referente seria, pois, esse objeto do mundo extralinguístico, mas não se pode tomá-lo como um dado imediato do real. Blikstein (1995) apud Koch (2009, p. 53) pondera que “a percepção/cognição transforma o ‘real’ em referente, ou seja, a realidade se transforma em referente por meio da percepção/cognição humana”. O que isso quer dizer? Basicamente, nosso cérebro fotografa o mundo. Nossa maneira de ver o real não coincide com o real. Osdados sensoriais são reelaborados por meio do discurso5 para que sejam apreendidos e compreendidos. É por isso que Saussure (1975, p. 23) apud Koch (2009, p. 53) postulava que “bem longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista, diríamos que é o ponto de vista que cria o objeto”. É daí, portanto, que surge a referenciação. Conforme Verceze (2009, p. 371) A referenciação consiste em um processo de negociação realizado no discurso, resultando da construção de referentes de modo diferente do uso atribuído pela literatura da semântica geral. A noção de referência ou a categoria de referir não é mais uma atividade de "etiquetar", um mundo existente e inicialmente designado e sim, uma atividade discursiva através da qual os referentes passam a ser objetos-de-discurso. Isto não significa negar a existência do mundo extramental, uma vez que ele continua sendo a base para a designação. Para que fique mais claro, tomemos emprestada uma pintura do belga René Magritte (1898-1967), intitulada ‘Ceci n’est pas une pipe’ (Isto não é um cachimbo). Observe: 5O termo ‘discurso’ possui várias acepções. Aqui, consideraremos discurso como sendo um enunciado oral ou escrito que supõe, numa situação de comunicação, um locutor e um interlocutor. 27 Linguística do Texto Figura - René Magritte (1898-1967) Fazendo uma analogia, da mesma forma que a arte não é uma cópia do real, mas uma representação do real, isto é, a imagem de um cachimbo não é ‘realmente’ um cachimbo, a referenciação de um objeto- no-mundo por meio do discurso não é o objeto-no-mundo, mas um objeto- de-discurso. É por isso que Koch (2009, p. 61) esclarece que A referenciação constitui [...] uma atividade discursiva. [...] Os processos de referenciação são escolhas do sujeito em função de um querer-dizer. Os objetos-de-discurso não se confundem com a realidade extralinguística, mas (re)constroem-na no próprio processo de interação. Ou seja: a realidade é construída, mantida e alterada não somente pela forma como nomeamos o mundo, mas, acima de tudo, pela forma como, sociocognitivamente, interagimos como ele: interpretamos e construímos nossos mundos por meio da interação com o entorno físico, social e cultural. Assim, algumas estratégias de referenciação são utilizadas na constituição da memória discursiva6. Vejamos, resumidamente, como Koch (2009) as apresenta: 1. Construção/ativação: pela qual um “objeto” textual até então não mencionado é introduzido, passando a preencher um nódulo (“endereço” cognitivo, locação). 6A memória discursiva deve ser, aqui, entendida como o “espaço” em que são armazenados os objetos textuais que já foram mencionados. 28 Linguística do Texto 2. Reconstrução/reativação: um nódulo já presente na memória discursiva é reintroduzido na memória operacional, por meio de uma forma referencial. 3. Desfocalização/desativação: ocorre quando um novo objeto- de-discurso é introduzido, passando a ocupar a posição focal. O objeto retirado do foco, contudo, permanece em estado de ativação parcial, podendo voltar à posição focal a qualquer momento. Vejamos o exemplo de Koch (2009, p. 63) em que isso ocorre: Com a perigosa progressão da demência bélica de Bush 2.º (construção) cabe uma indagação: para que serve a ONU? Criada logo após a 2ª Guerra Mundial, como substituta da Liga das Nações, representou uma grande esperança de paz e conseguiu cumprir seu papel durante algum tempo, amparando deslocados de guerra, mediando conflitos, agindo pela independência das colônias. (...) É. Sem guerra não dá. Num mundo de paz, como iriam ganhar seu honrado dinheirinho os industriais de armas que pagaram a duvidosa eleição de Bush 2º, o Aloprado? (nova construção a partir de uma reativação) Sem guerra, coitadinhas da Lookheed, da Raytheon (escândalo da Sivan lembram?). Com guerra à vista, estão faturando firme. A ONU ainda não abençoou essa nova edição de guerra santa, do terrorismo do bem contra o terrorismo do mal (reconstrução por recategorização) (...) O Caubói Aloprado (reconstrução por recategorização) já nem disfarça mais. (...) (Juracy Andrade, “Delinquência internacional”, Jornal do Commercio, Recife, 8 de fev.2003). Acompanhe, agora, como as estratégias de referenciação constituem a memória discursiva: 1. Ao utilizar ‘a demência bélica de Bush 2.º’ depreende-se que à época em que o texto foi produzido, assim como Bush era presidente dos Estados Unidos, seu pai também já havia sido (daí a ironia no uso do numeral ordinal) e que, a guerra proposta por ele, parecia uma invencionice sem sentido. Veja, 29 Linguística do Texto que não se trata apenas de ler, mas de compartilhar um determinado conhecimento prévio. 2. Em ‘a duvidosa eleição de Bush 2.º, o Aloprado, é necessário que o leitor compartilhe outro conhecimento prévio: em que condições se deu a eleição de Bush para o segundo mandato. Além disso, verifica-se a presença de um epíteto comum a soberanos ou dominadores. Bush permanece como foco. 3. No sintagma ‘essa nova edição de guerra santa, do terrorismo do bem contra o terrorismo do mal’ o aspecto da guerra é retomado demonstrando que os dois lados são terroristas. Nesse caso, cumpre saber o que foram as guerras santas. 4. Por último, a utilização de ‘Caubói Aloprado’ determina que o leitor tenha conhecimento do estado em que nasceu o presidente Bush e o seu modo de vida antes de se tornar um político. Além disso, é importante perceber que o autor faz uma ironia, utilizando-se de um estereótipo baseado num elemento formador da identidade norte-americana, que é a conquista do Oeste. 2.2 A progressão referencial É por meio da reconstrução que se mantém o foco de objetos previamente introduzidos no discurso, dando origem às cadeias referenciais ou coesivas, responsáveis pela progressão referencial do texto. 30 Linguística do Texto Podem-se distinguir as seguintes estratégias de referenciação textual: a) uso de pronomes; a) uso de expressões nominais definidas; b) uso de expressões nominais indefinidas. A primeira delas, o uso de pronomes, também chamada de pronominalização, pode realizar-se por meio de pronomes propriamente ditos, numerais ou advérbios pronominais. Tal operação pode ocorrer tanto com a utilização de um referente explícito como, no caso da fala, sem ele. Observe o exemplo abaixo: (1) Antônio foi demitido ontem, mas eles não justificaram o motivo da demissão. Perceba que o pronome destacado não possui um referente cotextual7 explícito. É possível, contudo, inferir que se trata dos empregadores de Antônio. A segunda estratégia de referenciação textual, isto é, o uso de expressões nominais definidas, ocorre por meio de formas linguísticas constituídas, minimamente, de um determinante8 seguido de um nome. Existem dois tipos distintos dessas formas: as descrições definidas e as formas nominalizadas (nominalizações). Estas se estabelecem como rotulações de predicações antecedentes ou subsequentes. Assim, podem ser retrospectivas ou prospectivas. Vejam os exemplos que, respectivamente, relacionam-se a uma e a outro: 7O referente cotextual seria um elemento que já teria sido explicitado no texto e que foi retomado por outro termo. Observe que na situação apresentada, o referente do pronome ‘eles’ não foi explicitado no texto. 8Os determinantes, conforme Dubois(1973), são os constituintes do sintagma nominal que dependem do substantivo, constituinte principal do sintagma nominal. 31 Linguística do Texto (2) Aviões de guerra franceses bombardearam acampamentos de rebeldes islamistas no extremo norte do Mali, neste domingo, disseram fontes militares, um dia depois de o presidente francês, François Hollande, ter sido recebido como um salvador durante uma visita ao país, situado no oeste africano. O porta-voz do Exército da França em Paris, Thierry Burkhard, disse que os ataques noturnos tiveram como alvo bases logísticas e campos de treinamento usados pelos rebeldes ligados à rede Al Qaeda, nos arredores da cidade de Tessalit, perto da fronteira com a Argélia. (os ataques noturnos nominaliza Aviões de guerra franceses bombardearam acampamentos de rebeldes islamitas no extremo norte do Mali, neste domingo). (3) Após muito conversar, os policiais perceberam que só haveria uma solução: prender o marido bêbado para que ele não continuasse a insultar a esposa. (uma solução nominaliza prender o marido bêbado) As descrições definidas, por sua vez, caracterizam-se por operar uma seleção, dentre as diversas propriedades para retratar um referente. A escolha de determinada descrição pode revelar as crenças, opiniões e atitudes do produtor do texto. Observe: (4) Com 85 anos, Bento XVI justificou que a idade avançada o motivou a deixar o cargo ao "não ter mais forças" para comandar o Vaticano." Por isso, bem consciente da gravidade deste ato, com plena liberdade, declaro que renuncio ao ministério de Bispo de Roma, Sucessor de São Pedro, que me foi confiado pela mão dos Cardeais em 19 de Abril de 2005, pelo que, a partir de 28 de fevereiro de 2013, às 20h horas, a sede de Roma, a sede de São Pedro, ficará vaga e deverá ser convocado, por aqueles a quem tal compete, o Conclave para 32 Linguística do Texto a eleição do novo Sumo Pontífice", informou o papa por meio de uma carta. [...] Considerado uma eminência parda durante o papado de João Paulo II, o então cardeal Joseph Alois Ratzinger defendeu que seu antecessor deixasse o cargo ao não ter mais condições para comandar o Vaticano. [...] A "idade avançada" e a necessidade de "vigor" para o cargo levaram Bento XVI à decisão de renunciar. A explicação foi dada pelo próprio pontífice em carta distribuída nesta segunda-feira pela Rádio Vaticano. "Cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idôneas para exercer adequadamente o ministério". No texto, ele afirma estar "incapacitado" para o cargo. (Disponível em: <http://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2013/02/11/int erna_internacional,349791/bento-xvi-anuncia-que-renunciara- em-28-de-fevereiro.shtml> Conforme Koch (2009, p. 68), as expressões referenciais definidas podem assumir as seguintes configurações em português: Determinante + Nome Determinante + Modificador(es) + Nome + Modificador(es) Determinante = Artigo definido / Demonstrativo Modificador = Adjetivo / SP9 / Oração relativa As expressões nominais indefinidas são normalmente utilizadas para introduzir referentes. É essa a função que elas cumprem no exemplo (5) abaixo. Observe: 9SP é a sigla utilizada para se referir ao ‘sintagma preposicional’. O sintagma preposicional é aquele que se inicia por preposição e que, no caso em questão, liga-se ao núcleo do sintagma nominal. Assim, em ‘A porta da cozinha foi fechada’, ‘da cozinha’ é um SP que se liga ao núcleo ‘porta’. 33 Linguística do Texto (5) “Um enduro sem moto, um rali sem carro, uma maratona onde, ao invés de atletas, correm paraplégicos, cegos, presidiários, grávidas e doentes em suas macas, esta é a imagem que nos deixa este vestibular realizado esta semana, mobilizando centenas de milhares de jovens em todo o país. (SANT’ANNA. A. R. O vestibular da vida. In: ________. A Mulher Madura. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. p. 111.) Observe como o referente ‘este vestibular realizado esta semana’, expressão nominal definida, foi introduzido pelas expressões nominais indefinidas ‘um enduro sem moto’, ‘um rali sem carro’, ‘uma maratona’. No exemplo que se segue, o uso da expressão nominal indefinida tem caráter anafórico10. Veja: (6) O engraxate era gordo e estava com calor — o que me pareceu óbvio. [...] Meio careca, o suor encharcou-lhe a testa e a calva. Pegou aquele paninho que dá brilho final nos sapatos e com ele enxugou o próprio suor, que era abundante. Com o mesmo pano, executou com maestria aqueles movimentos rápidos em torno da biqueira, mas a todo instante o usava para enxugar-se — caso contrário, o suor inundaria o meu cromo italiano. [...] Que diabo, meus sapatos não estavam tão sujos assim, por míseros tostões, fizera um filho do povo suar para ganhar seu pão. Olhei meus sapatos e tive vergonha daquele brilho humano, salgado como lágrima. (Carlos Heitor Cony – O suor e a lágrima) No fragmento de Carlos Heitor Cony, verifica-se que ao escolher a expressão ‘um filho do povo’ para retomar o referente ‘o engraxate’, o autor exprime uma versão do mundo a partir de um ponto de 10É importante ter em mente duas possibilidades de referenciação, a saber: anáfora (processo pelo qual um termo gramatical retoma a referência de um sintagma anteriormente us. na mesma frase ou no mesmo discurso); e catáfora (uso de um termo ou locução ao final de uma frase para especificar o sentido de outro termo ou locução anteriormente expresso). 34 Linguística do Texto vista intersubjetivo, isto é, contaminado pela subjetividade de outrem, e adequado à finalidade de seu texto que, entre outras possibilidades, tem a intenção de provocar uma reflexão. Mondada (2001) apud Koch (2009, p. 61) considera que A referenciação não privilegia a relação entre as palavras e as coisas, mas a relação intersubjetiva e social no seio da qual as versões do mundo são publicamente elaboradas, avaliadas em termos de adequação às finalidades práticas e às ações em curso dos enunciadores. Como se pode ver, a referenciação cumpre a importante tarefa não só de retomada, mas de posicionamento em relação ao objeto-no- mundo. A progressão referencial nada mais é do que uma das formas de articulação textual, também chamada de coesão referencial. Como existem outros tipos de coesão que não só a referencial, dedicaremos o próximo capítulo a esse tão importante fator de textualidade. 35 Linguística do Texto UNIDADE 3 FORMAS DE ARTICULAÇÃO TEXTUAL – A COESÃO 36 Linguística do Texto 3.1 Formas de articulação textual: coesão As formas de articulação ou de progressão textual têm sido uma das preocupações desde o início dos estudos voltados para a Linguística Textual. Várias são as propostas e as discussões relacionadas a esse aspecto do estudo do texto. Diante das muitas possibilidades, inicialmente adotaremos aqui, para efeito de clareza, as considerações de Fávero (1999) acerca das formas de coesão textual. Posteriormente, serão consideradas também aquelas situações não contempladas pela autora. Embora sempre ligada à coerência11, uma vez que ao se tratar das condições para que um texto seja bem escrito é comum que se diga que um texto precisa ter coeso e coerente, a coesão tem um papel bem determinado na construção textual. É ela a responsável pelas ligações que se estabelecem no interior de um texto. Para definirmos o que significa coesão,tomamos emprestada a colocação de Fávero (1999, p. 10), segundo a qual “a coesão, manifestada no nível microestrutural12, refere-se aos modos como os componentes do universo textual, isto é, as palavras que ouvimos ou vemos, estão ligados entre si dentro de uma sequência”. Para que fique mais claro, observe a tirinha abaixo: Figura - Gonsalez, F. Níquel Náusea. Disponível em: <http://www2.uol.com.br/niquel/>. Acesso em: 20 jan. 2013. 11 De maneira bem sucinta a coerência refere-se às relações de sentido produzidas a partir de um texto em sua interação com o leitor. 12 Dá-se o nome de microestruturas a certos subsistemas que, no interior de uma estrutura maior [no caso, o texto] apresentam regularidades específicas e uma organização que lhes garantem uma relativa autonomia de funcionamento. (DUBOIS et al, 1998, p. 412) 37 Linguística do Texto Observem que, no primeiro quadrinho, o passarinho faz referência a ‘um ninho’. Já no segundo quadrinho, ele retoma o termo ‘um ninho’ por meio da palavra ‘dele’. Percebe-se, então, uma ligação entre os dois elementos uma vez que ambos tratam do mesmo referente. Agora, faça o que é solicitado na atividade 5. ATIVIDADE 5 Antes de continuarmos, considerando a informação que demos no início deste item, uma questão se coloca: é possível que coesão e coerência andem separadas, isto é, pode haver um texto que apresente coesão, mas não seja coerente? Para resolver tal dúvida, leia o texto abaixo, extraído de Koch e Travaglia (2003), e teça suas considerações sobre a pergunta. João Carlos vivia em uma pequena casa construída no alto de uma colina, cuja frente dava para leste. Desde o pé da colina se espalhava em todas as direções, até o horizonte, uma planície coberta de areia. Na noite em que contemplava trinta anos, João, sentado nos degraus da escada colocada à frente de sua casa, olhava o sol poente e observava como a sua sombra ia diminuindo no caminho coberto de grama. De repente, viu um cavalo que descia para sua casa. As árvores e as folhagens não o permitiram ver distintamente; entretanto, observou que o cavalo era manco. Ao olhar de mais perto verificou que o visitante era seu filho Guilherme que a vinte anos tinha partido para alistar-se no exército, e, em todo esse tempo, não havia dado sinal de vida. Guilherme, ao ver seu pai, desmontou imediatamente, correu até ele, lançando-se nos seus braços e começando a chorar. ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ 38 Linguística do Texto ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ___________________________________________- ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ Como se pôde verificar a partir do texto da atividade 4, é possível haver um texto que apresenta relações coesivas bem determinadas, mas com sérios problemas em relação à produção do sentido. Para entendermos um pouco mais sobre a coesão, vejamos sob que formas a coesão se manifesta no interior de um texto. Conforme Fávero (1999), há mais de uma proposta de classificação para os tipos de coesão. A autora, por sua vez, considera possível resumir em três tipos de coesão que se desdobrariam em situações mais específicas. O diagrama 3 ilustra os tipos e seus desdobramentos. 39 Linguística do Texto Diagrama - Tipos de coesão textual Vejamos então, como são aplicados cada um desses tipos. 40 Linguística do Texto 3.1.1 Coesão referencial A coesão referencial se estabelece por meio de certos itens linguísticos que referenciam alguma coisa necessária à sua interpretação. Assim, alguns desses itens não querem dizer exatamente nada, a menos que se liguem ao seu referente. É como se tivessem uma placa que disse, procure lá atrás (anáfora) ou lá na frente (catáfora). Conforme o diagrama, a coesão referencial pode se estabelecer por substituição ou por reiteração. 3.1.1.1 Coesão referencial por substituição Conforme Fávero (1999, p. 19), a coesão referencial por substituição ocorre quando “um componente é retomado ou substituído por uma pro-forma. [...] As pro-formas podem ser pronominais, verbais, adverbiais, numerais e exercem função (substituem) pro-sintagma, pro- constituinte ou pro-oração”. Vejam, a seguir, como se manifestam tais situações: Diagrama - Exemplos de coesão referencial por substituição 41 Linguística do Texto Fávero (1999) determina ainda a existência de mais um tipo de coesão referencial por substituição - a utilização de elipse (ø) - que passamos a expor agora. A substituição por elipse é uma forma de coesão referencial em que um elemento qualquer (pro-sintagma, pro-oração, pro-constituinte) é substituído por uma elipse. Observe o exemplo abaixo, reproduzido de Fávero (1999, p. 23): (1)– Aonde você foi ontem? – À casa de Paulo. – ø Sozinha? – Não, ø com amigos. Perceba que, nesse exemplo, o ø se dá pela ausência da repetição de ‘ir à casa de Paulo’. 3.1.1.2 Coesão referencial por reiteração A coesão referencial por reiteração é uma espécie de repetição de expressões que apresentam a mesma referência. Vejamos de que maneiras ela ocorre: Diagrama - Exemplos de coesão referencial por reiteração 42 Linguística do Texto Uma vez ilustradas a coesão referencial por substituição e a coesão referencial por reiteração, propomos que se faça agora a atividade 6, como forma de fixação do conteúdo estudado. ATIVIDADE 6 Leia o texto abaixo e procure apresentar, ao menos, dois exemplos de coesão referencial por substituição e dois exemplos de coesão referencial por reiteração. Como nasce uma história Fernando Sabino Quando cheguei ao edifício, tomei o elevador que serve do primeiro ao décimo quarto andar. Era pelo menos o que dizia a tabuleta no alto da porta. — Sétimo — pedi. Eu estava sendo aguardado no auditório, onde faria uma palestra. Eram as secretárias daquela companhia que celebravam o Dia da Secretária e que, desvanecedoramente para mim, haviam-me incluído entre as celebrações. A porta se fechou e começamos a subir. Minha atenção se fixou num aviso que dizia: É expressamente proibido os funcionários, no ato dasubida, utilizarem os elevadores para descerem. Desde o meu tempo de ginásio sei que se trata de problema complicado, este do infinito pessoal. Prevaleciam então duas regras mestras que deveriam ser rigorosamente obedecidas, quando se tratava do uso deste traiçoeiro tempo de verbo. O diabo é que as duas não se complementavam: ao contrário, em certos casos francamente se contradiziam. Uma afirmava que o sujeito, sendo o mesmo, impedia que o verbo se flexionasse. Da outra infelizmente já não me lembrava. Bastava a primeira para me assegurar de que, no caso, havia um clamoroso erro de concordância. 43 Linguística do Texto Mas não foi o emprego pouco castiço do infinito pessoal que me intrigou no tal aviso: foi estar ele concebido de maneira chocante aos delicados ouvidos de um escritor que se preza. Ah, aquela cozinheira a que se refere García Márquez, que tinha redação própria! Quantas vezes clamei, como ele, por alguém que me pudesse valer nos momentos de aperto, qual seja o de redigir um telegrama de felicitações. Ou um simples aviso como este: É expressamente proibido os funcionários... Eu já começaria por tropeçar na regência, teria de consultar o dicionário de verbos e regimes: não seria aos funcionários? E nem chegaria a contestar a validade de uma proibição cujo aviso se localizava dentro do elevador e não do lado de fora: só seria lido pelos funcionários que já houvessem entrado e portanto incorrido na proibição de pretender descer quando o elevador estivesse subindo. Contestaria antes a maneira ambígua pela qual isto era expresso: ... no ato da subida, utilizarem os elevadores para descerem. Qualquer um, não sendo irremediavelmente burro, entenderia o que se pretende dizer neste aviso. Pois um tijolo de burrice me baixou na compreensão, fazendo com que eu ficasse revirando a frase na cabeça: descerem, no ato da subida? Que quer dizer isto? E buscava uma forma simples e correta de formular a proibição: É proibido subir para depois descer. É proibido subir no elevador com intenção de descer. É proibido ficar no elevador com intenção de descer, quando ele estiver subindo. Descer quando estiver subindo! Que coisa difícil, meu Deus. Quem quiser que experimente, para ver só. Tem de ser bem simples: Se quiser descer, não torne o elevador que esteja subindo. Mais simples ainda: Se quiser descer, só tome o elevador que estiver descendo. De tanta simplicidade, atingi a síntese perfeita do que Nelson Rodrigues chamava de óbvio ululante, ou seja, a enunciação de algo que não quer dizer absolutamente nada: 44 Linguística do Texto Se quiser descer, não suba. Tinha de me reconhecer derrotado, o que era vergonhoso para um escritor. Foi quando me dei conta de que o elevador havia passado do sétimo andar, a que me destinava, já estávamos pelas alturas do décimo terceiro. — Pedi o sétimo, o senhor não parou! — reclamei. O ascensorista protestou: — Fiquei parado um tempão, o senhor não desceu. Os outros passageiros riram: — Ele parou sim. Você estava aí distraído. — Falei três vezes, sétimo! sétimo! sétimo!, e o senhor nem se mexeu — reafirmou o ascensorista. — Estava lendo isto aqui — respondi idiotamente, apontando o aviso. Ele abriu a porta do décimo quarto, os demais passageiros saíram. — Convém o senhor sair também e descer noutro elevador. A não ser que queira ir até o último andar e na volta descer parando até o sétimo. — Não é proibido descer no que está subindo? Ele riu: — Então desce num que está descendo. — Este vai subir mais? — protestei: — Lá embaixo está escrito que este elevador vem só até o décimo quarto. — Para subir. Para descer, sobe até o último. — Para descer sobe? Eu me sentia um completo mentecapto. Saltei ali mesmo, como ele sugeria. Seguindo seu conselho, pressionei o botão, passando a aguardar um elevador que estivesse descendo. Que tardou, e muito. Quando finalmente chegou, só reparei que era o mesmo pela cara do ascensorista, recebendo-me a rir: — O senhor ainda está por aqui? 45 Linguística do Texto E fomos descendo, com parada em andar por andar. Cheguei ao auditório com 15 minutos de atraso. Ao fim da palestra, as moças me fizeram perguntas, e uma delas quis saber como nascem as minhas histórias. Comecei a contar: — Quando cheguei ao edifício, tomei o elevador que serve do primeiro ao décimo quarto andar. Era pelo menos o que dizia a tabuleta no alto da porta. SABINO, F. Como nasce uma história. In.: __________. A volta por cima. Rio de Janeiro: Record, 1990. p. 137. 3.1.2 Coesão recorrencial Embora seja uma espécie de retomada de estruturas, itens ou sentenças, na coesão recorrencial o fluxo informacional progride. Tal forma de coesão tem, por conseguinte, a função de levar adiante o discurso. Conforme Fávero (1999, p. 26), “não se dever confundir recorrência com reiteração”. A coesão recorrencial pode se dar a partir dos seguintes casos: por recorrência de termos; por paralelismo (= recorrência de estruturas); por paráfrase (= recorrência semântica); por recursos fonológicos segmentais e suprassegmentais. 3.1.2.1 Coesão por recorrência de termos Conforme Dressler (1982, p. 34-35) apud Fávero (1999, p. 27), a recorrência é uma maneira, dentre outras, de enfatizar, de intensificar, além de um meio para deixar fluir o texto. Veja exemplos dessa forma de coesão: (1) “Irene preta Irene boa Irene sempre de bom humor [...]” (Manuel Bandeira) 46 Linguística do Texto No exemplo (2), verifica-se que a cada recorrência de Irene, uma nova informação é acrescentada. Já no exemplo (3), abaixo, observe como na recorrência da oração ‘que já vem’ tem-se a ideia de que o trem se aproxima, demonstrando que, a cada recorrência, a distância diminui e, portanto, assim como em (2), nova informação é acrescentada. (2)“Pedro pedreiro, pedreiro esperando o trem que já vem, que já vem, que já vem, que já vem...” (Chico Buarque) 3.1.2.2 Coesão recorrencial por paralelismo Diz-se que há coesão recorrencial por paralelismo quando algumas estruturas são mantidas, mas são os conteúdos são diferentes. Veja o exemplo (4), que se segue: (3) Não existe outra pessoa igual a você. Não existe outro espaço igual a esse. Muito menos outra oportunidade igual a essa. (Veja, 31/10/2001, Gávea Village – apartamentos) 3.1.2.3 Coesão recorrencial por paráfrase Na paráfrase, ocorre uma reformulação de conteúdo, mas de forma tal que é possível perceber as marcas do texto original naquele que foi reformulado. Conforme Fávero e Urbano (1988) apud Fávero (1999, p. 28) todo e qualquer texto tem uma multivocidade inerente (=muitas leituras); o enunciador faz sempre uma interpretação do texto- fonte e, assim, não só o restaura de modo diferente, mas também faz uma interpretação do texto-derivado no momento em que o produz como paráfrase”. 47 Linguística do Texto O fato de estabelecer uma relação entre informações antigas e novas é o que auxilia num tipo de coesão que se diria semântica, uma vez que se dá por recorrência de estruturas. Vejamos a seguir um exemplo de coesão por paráfrase: O LEÃO E O RATO (Esopo) O leão era orgulhoso e forte, o rei da selva. Um dia, enquanto dormia, um minúsculo rato correu pelo seu rosto. O grande leão despertou com um rugido. Pegou o ratinho por uma de suas fortes patas e levantou a outra para esmagar a débil criaturaque o incomodara. - Ó, por favor, poderoso leão – pediu o rato. Não me mate, por favor. Peço-lhe que me deixe ir. Se o fizer, um dia eu poderei ajudá-lo de alguma maneira. Isso foi para o felino uma grande diversão. A idéia de que uma criatura tão pequena e assustada como um rato pudesse ser capaz de ajudar o rei da selva era tão engraçada que ele não teve coragem de matar o rato. - Vá-se embora – grunhiu ele – antes que eu mude de ideia. Dias depois, um grupo de caçadores entrou na selva. Decidiram tentar capturar o leão. Os homens subiram em suas duas árvores, uma de cada lado do caminho, e seguraram uma rede lá encima. Mais tarde, o leão passou despreocupadamente pelo lugar. Ato contínuo, os homens jogaram a rede sobre o grande animal. O leão rugiu e lutou muito, mas não conseguiu escapar. Os caçadores foram comer e deixaram o leão preso à rede, incapaz de se mover. O leão rugiu por ajuda, mas a única criatura na selva que se atreveu a aproximar-se dele foi o ratinho. - Oh, é você? – disse o leão. Não há nada que possa fazer para me ajudar. Você é tão pequeno! - Posso ser pequeno – disse o rato, mas tenho os dentes afiados e estou em dívida com você. 48 Linguística do Texto E o ratinho começou a roer a rede. Dentro de pouco tempo, ele fizera um furo grande o bastante para que o leão saísse da rede e fosse se refugiar no meio da selva. Às vezes o fraco pode ser de ajuda ao forte. Observe agora como Jean de La Fontaine parafraseia a fábula de Esopo: O leão e o rato (La Fontaine) Certo dia, estava um Leão a dormir a sesta quando um ratinho começou a correr por cima dele. O Leão acordou, pôs-lhe a pata em cima, abriu a bocarra e preparou-se para o engolir. - Perdoa-me! - gritou o ratinho - Perdoa-me desta vez e eu nunca o esquecerei. Quem sabe se um dia não precisarás de mim? O Leão ficou tão divertido com esta ideia que levantou a pata e o deixou partir. Dias depois o Leão caiu numa armadilha. Como os caçadores o queriam oferecer vivo ao Rei, amarraram-no a uma árvore e partiram à procura de um meio para o transportarem. Nisto, apareceu o ratinho. Vendo a triste situação em que o Leão se encontrava, roeu as cordas que o prendiam. E foi assim que um ratinho pequenino salvou o Rei dos Animais. Não devemos subestimar os outros. Perceba como se estabelece entre as duas fábulas uma recorrência temática, uma espécie de dizer a mesma coisa com outras palavras. 49 Linguística do Texto 3.1.2.4 Coesão recorrencial por recursos fonológicos segmentais e suprassegmentais A recorrência de recursos fonológicos verifica-se quando há igualdade de metro, de ritmo, de rima, de assonâncias, de aliterações, etc. Como exemplo, utilizamos uma estrofe do célebre poema ‘Violões que choram’, de Cruz e Souza: (4)Vozes veladas, veludosas vozes, Volúpias dos violões, vozes veladas, Vagam nos velhos vórtices velozes Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas. A invariância dos versos decassílabos e das assonâncias de /ɔ/ e de /e/ associados à representação do som do violão que se esvai por meio da aliteração de /v/ permitem o estabelecimento da coesão. 3.1.3 Coesão sequencial Conforme Fávero (1999, p. 33), “os mecanismos de coesão sequencial stricto sensu são os que têm por função, da mesma forma que os de recorrência, fazer progredir o texto [...], mas diferem destes por não haver neles a retomada de itens, sentenças ou estruturas”. Vejamos, pois, como a coesão sequencial se estabelece. 3.1.3.1 Sequenciação temporal A coesão por sequenciação temporal cumpre a tarefa de indicar o tempo de “mundo real”. Observe as maneiras de se obter isso: 50 Linguística do Texto Diagrama - Exemplos de coesão sequencial temporal As sequências temporais apresentadas acima indicam uma preocupação em fazer com que o fluxo informacional de desenvolva, indicando de maneira clara o momento em que cada situação se estabelece. 3.1.3.2 Sequenciação por conexão A sequenciação por conexão ocorre quando são utilizados conectores dos mais diversos tipos. Os conectores podem ser conjunções, locuções conjuntivas, locuções prepositivas e locuções adverbiais que cumprem a função de interconectar enunciados. Dada a grande quantidade de possibilidades e para efeito de maior clareza, adotaremos aqui os exemplos sugeridos por Koch (2009). São os seguintes os tipos de coesão sequencial por conexão: • Causalidade (causa e consequência / consequência e causa) (1) Nosso candidato foi derrotado porque houve infidelidade partidária. (5) Nosso time lutou tanto que acabou vencendo o jogo. • Mediação (causalidade intencional) 51 Linguística do Texto (1) Farei o que estiver ao meu alcance para que nosso plano logre êxito. • Condicionalidade (1) Caso realizemos um bom trabalho, seremos fartamente recompensados. • Conformidade (1) As atividades deverão ser realizadas de acordo com o cronograma estabelecido pelo professor. • Disjunção (apenas um) (1) Flávio ou Luiz, um dos dois cruzará a linha de chegada em primeiro. • Conjunção (todos os elementos) (1) A equipe brasileira deverá vencer a competição. Não só possui os melhores atletas, como também um dos técnicos mais competentes. Além disso, tem treinado bastante e está sendo apontada pela imprensa como a favorita. • Disjunção argumentativa (provocação) (1) Acho que você reivindicar o que lhe é devido. Ou vai continuar se omitindo? • Justificação ou explicação (1) Vá já para casa, porque vai chover! • Comparação (1) Acho que não há necessidade de convocar o Plínio. O Mário é tão competente quanto ele. • Conclusão (1) Já fizemos todo o trabalho que foi estipulado para a semana. Portanto, podemos ir para nossas casas até que chegue uma nova remessa. • Comprovação (1) O espetáculo foi impressionante. Tanto que, ao final da apresentação, a plateia aplaudiu de pé os bailarinos. • Generalização 52 Linguística do Texto (1) Lúcia ainda não sabe que carreira pretende seguir. Aliás, é o que está acontecendo com grande número de jovens na fase pré-vestibular. • Modalização da força ilocucionária (1) Vou entregar hoje os resultados da perícia. Ou melhor, vou fazer o possível. • Correção (1) O professor não me parece muito compreensivo. Na verdade, acho que deve ser rigorosíssimo. • Reparação (1) Irei ao seu casamento. Isto é, desde que eu seja convidado. • Especificação ou exemplificação (1) Muitos de nossos alunos têm desenvolvido pesquisas bastante interessantes. A Mariana e o Carlos, por exemplo, deverão apresentar trabalhos em congressos internacionais. • Contrajunção (1) Lutou arduamente durante toda a vida. Entretanto, não conseguiu realizar o seu projeto. É indiscutível a importância dos estudos relacionados à coesão, haja vista a sua contribuição para melhor compreensão do funcionamento textual. Antes de finalizarmos este capítulo, solicitamos a sua atenção para uma última atividade. Atividade 7 Escolha 5 (cinco) tipos de coesão sequencial por conexão e, com base nos exemplos apresentados, conceitue cada uma delas. ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ 53 Linguística do Texto ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________ ____________________________________________
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