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Os teólogos protagonistas do Concílio
Perseguidos e reabilitados
António Marujo
	
O jovem teólogo Joseph Ratzinger com Yves Congar 
Sinais dos tempos, Igreja povo de Deus, sacerdócio comum dos fiéis, teologia do laicado, diálogo ecuménico, liberdade religiosa. Estas e outras ideias, hoje banais no catolicismo, devem-se a homens (e algumas mulheres) que criaram novos conceitos teológicos, elaboraram sínteses admiráveis, lutaram pelas suas convicções, por vezes com grande sofrimento. Foram esses teólogos alguns dos principais protagonistas do Concílio Vaticano II, que decorreu entre 1962 e 1965. 
Sem os seus nomes, a história da Igreja Católica nas últimas cinco décadas teria sido radicalmente diferente. Vale a pena, por isso, recordar alguns, que porventura nos soam mais familiares: Karl Rahner, Yves Congar, Marie-Dominique Chenu, Henri de Lubac, Jean Daniélou, Edward Schillebeeckx, Joseph Ratzinger, Hans Küng, Johann Baptist Metz, Bernard Häring, Hans Urs von Balthasar...
Naquele tempo, a teologia era ainda, e sobretudo, europeia. Centrava-se em três escolas importantes: a escola dominicana de Saulchoir (na altura, próxima de Évry e, desde 1971, em Paris), os jesuítas de Fourvière e a escola alemã (de Tubinga, Münster e Munique, entre outros centros de investigação). Era a “nouvelle théologie”, assim chamada depreciativamente no início, com vários dos seus autores a serem marginalizados (ou mesmo forçados ao exílio). Mais tarde, esses mesmos autores seriam reabilitados, ao ponto de se tornarem nos protagonistas, enquanto peritos e redactores, de vários dos documentos centrais e de algumas das teses mais importantes do Concílio. 
Rosino Gibellini, autor de “A teologia do século XX” (ed. Loyola, Brasil), recordava, há poucos meses, que o pensamento conciliar deve muito a um artigo fundador de Yves Congar (1904-1995), intitulado “Uma conclusão teológica para a Investigação sobre as Razões Actuais da Incredulidade”, publicado em 1935 na revista “La Vie Intellectuelle”. O artigo seguia-se a um inquérito da mesma revista, publicado durante os dois anos anteriores, sobre as razões da descrença na sociedade francesa do tempo. 
No texto de Gibellini (acessível na internet, em http://www.ihu.unisinos.br/noticias/517231-o-papel-da-teologia-no-concilio-e-o-estatuto-os-teologos-e-teologas-hoje), o teólogo cita a ideia de “fé desencarnada” do dominicano de Saulchoir: “A fé, por assim dizer, desencarnou-se, esvaziada do seu sangue humano”. Para o teólogo (que mais tarde recusaria ser cardeal por ter que ser ordenado bispo, só aceitando o título no final da vida, quando João Paulo II o dispensou da ordenação episcopal), era necessária uma linguagem de encarnação da fé para superar o “divórcio” entre a Igreja e o mundo. 
Trinta anos antes do Concílio, esta era uma ideia percursora do mesmo. Essa preocupação ficaria aliás plasmada em documentos como a “Gaudium et Spes”, a Constituição sobre a Igreja no mundo actual. Ao reflectir sobre o ateísmo, por exemplo, a GS propõe que uma das formas de contrariar esse fenómeno é “a vida íntegra da Igreja e dos seus membros”...
Nas décadas anteriores ao Vaticano II, vários movimentos importantes, alguns deles vindos do século XIX, confluíram para um ambiente que tornou quase inevitável a convocação de um concílio que encetasse a reforma da Igreja. A catequese e a liturgia renovaram-se e ganharam novo impulso, tal como a missionação – vêm daí muitas das congregações missionárias, bem como a ideia da catequese alargada, primeiro às crianças e, depois, a todas as faixas etárias. O movimento bíblico dinamiza-se, através da utilização das várias ciências, abrindo caminho ao acesso de todos ao texto, ao contrário da proibição que subsistira durante séculos; a acção pastoral e social da Igreja alarga-va-se, através de movimentos como a Acção Católica e a criação de instituições de solidariedade; a arte sacra procurava novas linguagens na arquitectura, pintura ou artes decorativas. 
Uma germinação longa
“O Concílio teve uma germinação longa”, diz frei Bento Domingues (cuja colaboração para a pesquisa para este texto foi fundamental). Em entrevista ao Mensageiro, o teólogo e frade dominicano recorda a ideia de Chenu: “A teologia do Vaticano II preparou-se com uma ruptura solidificada”.Neste processo, a teologia teve também o seu papel, procurando reler as novas dinâmicas do catolicismo como motivação e consequência de uma nova forma de a Igreja se relacionar com o mundo. Mas este processo não foi linear. Muitos teólogos insistiam na repetição de fórmulas estafadas, de uma neoescolástica sem consequência, que Congar apelidava de “teologia barroca”, pelo superlativo da linguagem que apenas se ficava pela exterioridade. 
Durante anos, esta linha parecia ainda dominar. Mas sucessivamente, o aparecimento de diversas obras de alguns dos teólogos acima referidos, não isento de polémicas, foi lançando as bases da “nova teologia”. Algumas das obras significativas deste movimento foram “Verdadeira e falsa reforma na Igreja” (1950) e “Pontos chave para uma teologia do laicado” (1953), ambas de Congar, “Meditações sobre a Igreja” (1953), de Henri de Lubac, “Ensaio sobre o mistério da história” (1953), de Daniélou, “Escritos sobre a Teologia” (1954), de Rahner, “Por Uma Teologia do Trabalho” (1955), de Chenu, ou “A Justificação” (1957), de Hans Küng, que abriu várias portas ao diálogo ecuménico.
Também as obras do jesuíta Teilhard de Chardin, que começaram a ser publicadas postumamente a partir de 1955, ainda envoltas na polémica que já se verificara durante a sua vida, contribuem, decisivamente, para a mudança de paradigma na relação da Igreja com o mundo. 
Este movimento seria fortemente contrariado ao nível mais elevado pela encíclica “Humani generis”, do Papa Pio XII, que pretendia tratar das “opiniões falsas que ameaçam a doutrina católica”, como diz o próprio cabeçalho do documento. Embora afirmando que a fé católica era compatível com a ciência, condenava os “erros” daqueles que se deixavam influenciar por “conjecturas opináveis” das ciências positivas, que se opõem à “doutrina que Deus revelou”. No seu parágrafo 30, diz o texto: “Qualquer verdade que a mente humana, procurando com rectidão, descobre não pode estar em contradição com outra verdade já alcançada, pois Deus, verdade suprema, criou e rege a humana inteligência, de tal modo que não opõe cada dia novas verdades às já adquiridas (...) Por esse motivo o cristão, seja filósofo, seja teólogo, não abraça apressada e levianamente qualquer novidade que no decurso do tempo se proponha, mas deve sopesá-la com suma diligência e submetê-la a justo exame a fim de que não venha a perder a verdade já adquirida ou a corrompa, com grave perigo e detrimento da mesma fé”.
Sinais dos tempos, lugares teológicos
Apesar deste documento, logo depois da convocação do Concílio, em 1959, o Papa João XXIII chamou para as comissões de preparação ou como peritos teológicos da assembleia vários dos teólogos que, até aí, tinham sido proscritos ou condenados. No início dos trabalhos conciliares, escreve Rosino Gibellini no texto já citado, havia 210 peritos; mas as actas do Concílio registam, no final da assembleia, um total de 480 nomes. E a estes devem acrescentar-se os nomes de 23 mulheres que, chamadas como auditoras pelo Papa Paulo VI, acabaram também por ter um papel decisivo em vários documentos, conforme se pode ler no livro “As 23 Mulheres do Concílio” (ed. Paulinas).
Um dos conceitos que foi introduzido pelos mentores da nova teologia foi o de sinais dos tempos. Retirada do evangelho, a expressão tornar-se-ia uma das chaves na convocação da assembleia conciliar e em vários dos seus documentos. Marie-Dominique Chenu (1895-1990) vira o seu livro “Le Saulchoir: uma escola de teologia” (1937) ser incluído no Index por traduzir uma “nova teologia” inclinada para o semimodernismo, o relativismo e o subjectvismo, como criticava o teólogo Pietro Parente no “L’Osservatore Romano”. 
Era precisamente nessaobra que Chenu falava dos “‘lugares’ teológicos em acto, para a doutrina da graça, da encarnação, da redenção”. Mais tarde, diria ele, que ainda não utilizava a expressão “sinais dos tempos”, que só lhe ocorreu na altura do Concílio, mas era “evidente que o conceito estava já presente”. 
No seu livro “A Teologia do século XX”, Rosino Gibellini cita Chenu, quando ele definia a tarefa contemporânea da teologia, entrando no debate com a encíclica de Pio XII: “Temos hoje um problema muito grave, o de introduzir as ciências humanas na teologia. São Tomás introduziu, como Alberto Magno, as ciências da natureza. Seria uma operação maravilhosa fazer a mesma coisa com as ciências humanas: psicologia, psicanálise, história, sociologia, etnologia, linguística. Mas é um trabalho enorme”.
Em entrevista a Jacques Duquesne, em 1975, Chenu diria que estava “ávido de experiências concretas”. Uma delas foi a sua participação, enquanto conselheiro e teólogo, no movimento dos padres operários em França, que seria proibido pelo Vaticano, em 1954. A defesa que Chenu fez do grupo de padres operários (cuja proibição foi motivo de um pedido de desculpas do episcopado francês, em 2004, meio século depois da decisão) obrigou-o a deixar Paris e a ser transferido para Rouen, na Normandia. Em 1959, depois de João XXIII anunciar o Concílio, Chenu regressou ao convento de Saint-Jacques, em Paris. E poucos anos depois, o Papa Paulo VI citaria passagens da obra da Chenu na encíclica “Populorum Progressio”. 
 Gibellini resume que, para Chenu, “a história do mundo é reveladora do desígnio de Deus, os eventos são sinal de uma implicação evangélica, os novos valores que emergem do caminho da humanidade são matéria para o Evangelho, a verdadeira Tradição é fermentação da Palavra de Deus”.
A história e o regresso às fontes
A história concreta foi também a matéria prima do labor de Jean Daniélou (1905-1974). Historiador da Antiguidade cristã, o teólogo – que viria a ser cardeal a partir de 1969 – defendia o retorno da teologia às fontes do cristianismo primitivo e o confronto com o pensamento contemporâneo, como recorda Gibellini. O seu artigo “As tendências actuais do pensamento religioso”, publicado em 1946 pela revista “Études”, dos jesuítas franceses, é considerado como o “manifesto” da nova teologia, como também recorda o autor de “A teologia do século XX”.
Dois dos títulos importantes de Daniélou são “O Escândalo da Verdade” (1961), que se tornaria a sua obra mais lida, e “Ensaio Sobre o Mistério da História” (1953). Neste último, o futuro cardeal propõe que o cristianismo traduz a entrada da história profana na história sagrada, na medida em que dela recebe sentido e justificação, como caracteriza Gibellini. 
Outro título importante, “A Oração, Problema Político” (1965), lido por De Gaulle, seria também objecto de debate e discordância entre os companheiros de Daniélou. Enquanto ele propunha uma nova cristandade, outros, como Rahner, falavam da “diáspora” da cultura ocidental contemporânea ou, como Chenu, do fim da era constantinana. 
Karl Rahner (1904-1984), o jesuíta de Friburgo que viria a tornar-se professor em Innsbruck e Munique, depois da II Guerra Mundial, foi outro dos gigantes da teologia do século XX e do pensamento conciliar. Fundador da revista “Concilium”, Rahner acabaria por criar uma escola de teologia, “baseada no estudo aprofundado do pensamento filosófico contemporâneo e numa revisão crítica dos dados dogmáticos”, como diz o “Dicionário Enciclopédico das Religiões” (ed. Vozes). Em 1964, quando completou 60 anos, a sua bibliografia contava já com 890 títulos e artigos. Entre eles, estava a direcção do grande “Lexikon für Theologie und Kirche” (Enciclopédia de Teologia e da Igreja) ou “A Trindade”. 
Noções como a consciência de Deus nos seres humanos, a graça divina como transformação da natureza humana numa existência sobrenatural ou do cristianismo anónimo (segundo o qual pessoas que nunca ouviram falar do evangelho podem também ser salvas por Jesus Cristo) são importantes na obra de Rahner. Estas ideias ficariam consagradas na constituição conciliar “Lumen gentium”, sobre a Igreja: “Aqueles que, ignorando sem culpa o Evangelho de Cristo, e a Sua Igreja, procuram, contudo, a Deus com coração sincero, e se esforçam, sob o influxo da graça, por cumprir a Sua vontade, manifestada pelo ditame da consciência, também eles podem alcançar a salvação eterna”, diz o parágrafo 16 do documento. 
Regressar às fontes
O regresso às fontes e aos textos fundacionais do cristianismo era uma das ideias comuns a muitos destes teólogos do Concílio. O jesuíta Henri de Lubac (1896-1991), por exemplo, iniciou com Daniélou a colecção “Sources Chrétiennes” (Fontes Cristãs), que ainda hoje se publica nas edições Du Cerf e inclui já 560 títulos. Para Lubac, aliás, a teologia escolástica perdera o contacto com as fontes e fechava-se ao pensamento contemporâneo e esse era um dos seus problemas principais. 
Urs von Balthasar, que viria a ser um dos teólogos favoritos de João Paulo II, diria, em 1976, que Lubac seria um bode expiatório da reacção da velha contra a nova teologia. Entre 1950, depois da publicação da encíclica de Pio XII, e 1960, Lubac viveu “um calvário”, escrevia Balthasar. Foi exonerado do ensino, empurrado de um lado para o outro e os seus escritos difamados e suprimidos das bibliotecas jesuítas e retirados do mercado. Só quando João XXIII nomeou Lubac como consultor da comissão teológica preparatória do Concílio esse calvário terminou.
Defensor de um catolicismo social (mas não adepto da tese da Igreja como povo de Deus, que será consagrada no Concílio), Lubac escrevia que “a catolicidade perfeita é um concerto, cujas vozes mais diferentes se completam e, em caso de necessidade, se corrigem reciprocamente”. 
Deve fazer-se ainda uma referência final ao ecumenismo, um dos principais frutos do Vaticano II. Yves Congar (1904-1995) e Hans Küng foram alguns dos seus principais impulsionadores. “Cristãos Desunidos” (1937) foi uma das obras de Congar que marcou a reflexão católica sobre o processo de aproximação ecuménica, que começara antes no protestantismo e desembocaria na criação do Conselho Mundial de Igrejas em 1948. Mas Congar desenvolve também “Pontos Fundamentais para uma Teologia do Laicado” (1953), pouco antes de ser exilado por causa do seu envolvimento com os padres operários. 
Jean-Pierre Jossua, seu discípulo, diz que Congar era um “servo doutrinal do povo de Deus” e que foi ele a redescobrir a noção de Igreja como povo de Deus, uma categoria central na sua eclesiologia – que viria a ficar consagrada no capítulo II da “Lumen gentium”. 
Em 1965, já enquanto perito do Concílio, o padre Chenu foi felicitado pelo cardeal Feltin, de Paris, pelos seus seus 70 anos,: “Faço questão de prestar homenagem à obediência que o senhor manifestou nas dificuldades encontradas”, disse o cardeal. O padre Chenu respondeu: “Não foi propriamente a obediência (...). É porque eu tinha fé na Palavra de Deus, diante da qual os obstáculos e os acidentes de percurso nada são”.

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