Buscar

Anexos 201664 (1)

Esta é uma pré-visualização de arquivo. Entre para ver o arquivo original

PESQUISA QUALITATIVA.pdf
PESQUISA QUALITATIVA – CARACTERÍSTICAS, USOS E POSSIBILIDADES 
CADERNO DE PESQUISAS EM ADMINISTRAÇÃO, SÃO PAULO, V.1, Nº 3, 2º SEM./1996 
José Luis Neves 
Mestrando do curso de Pós Graduação em Administração de Empresas 
FEA-USP 
 
1. INTRODUÇÃO 
A pesquisa social tem sido marcada fortemente por 
estudos que valorizam o emprego de métodos 
quantitativos para descrever e explicar fenômenos. 
Hoje, porém, podemos identificar outra forma de 
abordagem que se tem afirmado como promissora 
possibilidade de investigação: trata-se da pesquisa 
identificada como "qualitativa". Surgido inicialmente 
no selo da Antropologia e da Sociologia, nos últimos 
30 anos esse tipo de pesquisa ganhou espaço em áreas 
como a Psicologia, a Educação e a Administração de 
Empresas. 
Enquanto estudos quantitativos geralmente 
procuram seguir com rigor um plano previamente 
estabelecido (baseado em hipóteses claramente 
indicadas e variáveis que são objeto de definição 
operacional), a pesquisa qualitativa costuma ser 
direcionada, ao longo de seu desenvolvimento; além 
disso, não busca enumerar ou medir eventos e, 
geralmente, não emprega instrumental estatístico para 
análise dos dados; seu foco de interesse é amplo e parte 
de uma perspectiva diferenciada da adotada pelos 
métodos quantitativos. Dela faz parte a obtenção de 
dados descritivos mediante contato direto e interativo 
do pesquisador com a situação objeto de estudo. Nas 
pesquisas qualitativas, é freqüente que o pesquisador 
procure entender os fenômenos, segundo a perspectiva 
dos participantes da situação estudada e, a partir, daí 
situe sua interpretação dos fenômenos estudados. 
2. CARACTERÍSTICAS DA PESQUISA 
QUALITATIVA 
Os estudos de pesquisa qualitativa diferem entre si 
quanto ao método, à forma e aos objetivos. GODOY 
(1995a, p.62) ressalta a diversidade existente entre os 
trabalhos qualitativos e enumera um conjunto de 
características essenciais capazes de identificar uma 
pesquisa desse tipo, a saber: 
(1) o ambiente natural como fonte direta de dados 
e o pesquisador como instrumento fundamental; 
(2) o caráter descritivo; 
(3) o significado que as pessoas dão às coisas e à 
sua vida como preocupação do investigador; 
(4) enfoque indutivo. 
A expressão "pesquisa qualitativa" assume 
diferentes significados no campo das ciências sociais. 
Compreende um conjunto de diferentes técnicas 
interpretativas que visam a descrever e a decodificar os 
componentes de um sistema complexo de significados. 
Tem por objetivo traduzir e expressar o sentido dos 
fenômenos do mundo social; trata-se de reduzir a 
distância entre indicador e indicado, entre teoria e 
dados, entre contexto e ação (MAANEN, 1979a, 
p.520). Em sua maioria, os estudos qualitativos são 
feitos no local de origem dos dados; não impedem o 
pesquisador de empregar a lógica do empirismo 
científico (adequada para fenômenos claramente 
definidos), mas partem da suposição de que seja mais 
apropriado empregar a perspectiva da analise 
fenomenológica, quando se trata de fenômenos 
singulares e dotados de certo grau de ambigüidade. 
O desenvolvimento de um estudo de pesquisa 
qualitativa supõe um corte temporal-espacial de 
determinado fenômeno por parte do pesquisador. 
Esse corte define o campo e a dimensão em que o 
trabalho desenvolver-se-á, isto é, o território a ser 
mapeado. O trabalho de descrição tem caráter 
fundamental em um estudo qualitativo, pois é por meio 
dele que os dados são coletados (MANNING, 1979, 
p.668). 
Em certa medida, os métodos qualitativos se 
assemelham a procedimentos de interpretação dos 
fenômenos que empregamos no nosso dia-a-dla, que 
têm a mesma natureza dos dados que o pesquisador 
qualitativo emprega em sua pesquisa. Tanto em um 
como em outro caso, trata-se de dados simbólicos, 
situados em determinado contexto; revelam parte da 
realidade ao mesmo tempo que escondem outra parte. 
MAANEN (1979a, p.521) comenta que, para não 
atravessar uma rua, basta que vejamos se aproximar 
um caminhão; não é necessário saber seu peso exato, a 
velocidade a que corre, de onde vem, etc. Nessa 
situação, o caminhão pode ser entendido como um 
símbolo de velocidade e força, e, para a finalidade de 
atravessar a rua, outras informações seriam 
prescindíveis. Há problemas e situações cuja análise 
pode ser feita sem quantificação de certos detalhes, 
delimitação precisa do tempo em que ocorreram, lugar, 
causas, procedência dos agentes, etc.; tais detalhes, 
embora obteníveis, seriam de pouca utilidade. 
Jose Luis Neves 
CADERNO DE PESQUISAS EM ADMINISTRAÇÃO, SÃO PAULO, V.1, Nº 3, 2º SEM./1996 2
O vínculo entre signo e significado, conhecimento e 
fenômeno, sempre depende do arcabouço de 
interpretação empregado pelo pesquisador, que lhe 
serve de visão de mundo e de referencial. Esse 
arcabouço pode servir como base para estabelecer 
caminhos de pesquisa quantitativa e delimitação do 
tema, de forma tal que os esforços de cunho qualitativo 
e quantitativo podem se complementar. Embora 
possam estar presentes, tais vínculos nem sempre são 
explicitados de forma clara nos relatórios de pesquisa. 
3. MÉTODOS QUALITATIVOS E MÉTODOS 
QUANTITATIVOS 
Os métodos qualitativos e quantitativos não se 
excluem. Embora difiram quanto à forma e à ênfase, 
os métodos qualitativos trazem como contribuição ao 
trabalho de pesquisa uma mistura de procedimentos de 
cunho racional e intuitivo capazes de contribuir para a 
melhor compreensão dos fenômenos. Pode-se 
distinguir o enfoque qualitativo do quantitativo, mas 
não seria correto afirmar que guardam relação de 
oposição (POPE & MAYS, 1995, p.42). 
Nas ciências sociais, os pesquisadores, ao 
empregarem métodos qualitativos estão mais 
preocupados com o processo social do que com a 
estrutura social; buscam visualizar o contexto e, se 
possível, ter uma integração empática com o processo 
objeto de estudo que implique melhor compreensão do 
fenômeno. Embora possamos contrastar os métodos 
quantitativos e qualitativos enquanto associados 
diferentes visões da realidade, não podemos afirmar 
que se oponham ou que se excluam mutuamente como 
instrumentos de análise. Uma pesquisa pode revelar a 
preocupação em diagnosticar um fenômeno (descrevê-
lo e interpretá-lo); o autor poderia também estar 
preocupado com explicar esse fenômeno, a partir de 
seus determinantes, isto é, as relações de nexo causal. 
Tais pontos de vista não se contrapõem; na verdade, 
complementam-se e podem contribuir, em um mesmo 
estudo, para um melhor entendimento do fenômeno 
estudado. No dizer de WILDEMUTH (1993, p. 451): 
"It is true that the positivist approach, with its goal 
of discerning the statistical regularities of behavior, 
is oriented toward counting the occurrences and 
measuring the extent of the behaviors being studied. 
By contrast, the interpretive approach, with its goal 
of understanding the social world from the view 
point of the actors within it, is oriented toward 
detailed description of the associated with 
observable behaviors." 
JICK (1979, p.602) chama a combinação de 
métodos quantitativos e qualitativos de "triangulação". 
Faz referência a outros autores, como Campbell e 
Fiske, que, em 1959, propuseram a denominação 
“validação convergente” ou multimétodo", com sentido 
semelhante. A triangulação pode estabelecer ligações 
entre descobertas obtidas por diferentes fontes, ilustrá-
las e torná-las mais compreensíveis; pode também 
conduzir a paradoxos, dando nova direção aos 
problemas a serem pesquisados. Um plano cuidadoso 
de emprego cuidadoso de métodos quantitativos e 
qualitativos deve supor que a análise dos dados se dê 
ao longo da execução do estudo, o que eventualmente 
pode provocar seu redirecionamento. MORSE (l991, 
p.120) propõe o emprego
da expressão "triangulação 
simultânea" para o uso ao mesmo tempo de métodos 
quantitativos e qualitativos. Ressalta que, na fase de 
coleta de dados, a interação entre os dois métodos é 
reduzida, mas, na fase de conclusão, eles se 
complementam. Em contraposição a essa forma de 
combinar os dois métodos, o autor sugere o que chama 
de "triangulação seqüenciada", na qual os resultados de 
um método servem de base para o planejamento do 
emprego do outro método que o segue, 
complementando-o. Combinar técnicas quantitativas e 
qualitativas torna uma pesquisa mais forte e reduz os 
problemas de adoção exclusiva de um desses grupos; 
por outro lado, a omissão no emprego de métodos 
qualitativos, num estudo em que se faz possível e útil 
empregá-los, empobrece a visão do pesquisador quanto 
ao contexto em que ocorre o fenômeno. DUFFY (1987, 
p.131) indica como benefícios do emprego conjunto 
dos métodos qualitativos e quantitativos os seguintes: 
1) possibilidade de congregar controle dos 
vieses (pelos métodos quantitativos) com 
compreensão da perspectiva dos agentes 
envolvidos no fenômeno (pelos métodos 
qualitativos); 
2) possibilidade de congregar identificação de 
variáveis específicas (pelos métodos 
quantitativos) com uma visão global do 
fenômeno (pelos métodos qualitativos); 
3) possibilidade de completar um conjunto de 
fatos e causas associados ao emprego de 
metodologia quantitativa com uma visão da 
natureza dinâmica da realidade; 
4) possibilidade de enriquecer constatações 
obtidas sob condições controladas com dados 
obtidos dentro do contexto natural de sua 
ocorrência; 
5) possibilidade de reafirmar validade e 
confiabilidade das descobertas pelo emprego 
de técnicas diferenciadas. 
No processo de construção e desenvolvimento da 
ciência, é lícito supor que as teorias venham antes dos 
fatos, sob a forma de especulação. Na pesquisa 
organizacional, é grande a tentação de formar teorias 
prematuras dada a insuficiência de dados, e na 
PESQUISA QUALITATIVA – CARACTERÍSTICAS, USOS E POSSIBILIDADES 
CADERNO DE PESQUISAS EM ADMINISTRAÇÃO, SÃO PAULO, V.1, Nº 3, 2º SEM./1996 3
expectativa de que esses venham a emergir de estudos 
exploratórios (MAANEN, 1979b, p.539). Em uma 
pesquisa, seja qualitativa ou quantitativa, o pesquisador 
não se ocupa simplesmente de acumular dados; 
coletados considerando que seu significado seja útil 
para os fins da pesquisa e dentro de um dado contexto. 
O emprego de métodos qualitativos pode conferir 
redirecionamento da investigação, com vantagens em 
relação ao planejamento integral e prévio de todos os 
passos da pesquisa (PIORE, 1979, p. 560). Na década 
de 70, Michael Piore da Cornell University 
desenvolveu estudo no campo do efeito da automação 
sobre a qualificação profissional na manufatura; uma 
vez estruturada a pesquisa com enfoque comparativo, à 
medida que se aprofundou no tema, passou a conhecer 
melhor sua natureza, o que o levou a dar novos rumos à 
investigação. 
Devem-se evitar ilusões, quando nos deparamos 
com estudos qualitativos. Dados e métodos qualitativos 
são, por vezes, tidos como mais atrativos que os 
quantitativos (MILES, 1979, p. 590); são considerados 
mais ricos, completos, globais, reais. Seu valor, muitas 
vezes, parece, aos olhos do leitor, inquestionável; 
foram obtidos mediante relação direta com o objeto e 
conduziriam a vínculos mais visíveis de causa e efeito 
do que, por exemplo, tabelas de correlação estatística. 
Conduziriam a "insights" interessantes e reduziriam o 
efeito das limitações de ação do pesquisador. Uma vez 
expressos sob a forma de um estudo de caso, as 
constatações ali contidas seriam, por assim dizer, 
inegáveis. Tal visão é ilusória; tanto quanto 
preconceitos contra a pesquisa qualitativa, deve-se 
evitar ter preconceitos a favor dela, e cabe ressaltar que 
tanto a abordagem qualitativa como a quantitativa são 
capazes de produzir tanto estudos bons quanto ruins. 
Ademais, os dados qualitativos também têm suas 
próprias fraquezas e problemas que devem ser 
considerados e não, negados. 
Os métodos qualitativos têm um papel importante 
no campo dos estudos organizacionais (DOWNEY & 
IRELAND, 1979, p.635). Estudos de avaliação de 
características do ambiente organizacional são 
especialmente beneficiados por métodos qualitativos, 
embora estes não sirvam só para essa finalidade. Por 
outro lado, ainda segundo os autores, enfoque 
qualitativo presta-se menos para questões em que 
eliminar o viés do observador seja fundamental para a 
análise do fenômeno. 
4. AS FORMAS DA PESQUISA QUALITATIVA 
GODOY (1995b, p.21) aponta a existência de, pelo 
menos, três diferentes possibilidades oferecidas pela 
abordagem qualitativa: a pesquisa documental, o 
estudo de caso e a etnografia. 
A pesquisa documental é constituída pelo exame de 
materiais que ainda não receberam um tratamento 
analítico ou que podem ser reexaminados com vistas a 
uma interpretação nova ou complementar. Pode 
oferecer base útil para outros tipos de estudos 
qualitativos e possibilita que a criatividade do 
pesquisador dirija a investigação por enfoques 
diferenciados. Esse tipo de pesquisa permite o estudo 
de pessoas a que não temos acesso físico (distantes ou 
mortas). Além disso, os documentos são uma fonte 
não-reativa e especialmente propícia para o estudo de 
longos períodos de tempo. 
O objeto do estudo de caso, por seu turno, é a 
análise profunda de uma unidade de estudo. No 
entender de GODOY (1995b, p.25) visa ao exame 
detalhado de um ambiente, de um sujeito ou de uma 
situação em particular. Amplamente usado em estudos 
de administração, tem se tornado a modalidade 
preferida daqueles que procuram saber como e por que 
certos fenômenos acontecem ou dos que se dedicam a 
analisar eventos sobre os quais a possibilidade de 
controle é reduzida ou quando os fenômenos 
analisados são atuais e só fazem sentido dentro de um 
contexto específico. 
Dentre os métodos qualitativos conhecidos, o 
etnográfico tem se destacado como um dos mais 
importantes. Oriundo da Antropologia, envolve um 
conjunto particular de procedimentos metodológicos e 
interpretativos desenvolvidos ao longo do século XX, 
mas, em sentido lato, pode-se afirmar (SANDAY, 
1979, p.527) que, desde os antigos gregos, tem sido 
praticado. Esse método envolve longo período de 
estudo em que o pesquisador fixa residência em uma 
comunidade e passa a usar técnicas de observação, 
contato direto e participação em atividades. Usando o 
termo "paradigma" no sentido kuhniano (KUHN, 1962, 
p.79), pode-se dizer que o paradigma etnográfico pode 
assumir um caráter, diferenciado, na medida em que 
esteja mais ou menos marcado pela visão do todo, pela 
preocupação com o significado, e conforme o estudo 
penda mais para o diagnóstico ou para a explicação dos 
fenômenos. O que importa, nesses estudos, não é a 
forma de que os fatos se revestem, mas, sim, o seu 
sentido. A natureza do fenômeno influi na 
determinação da perspectiva mais adequada: se, por 
exemplo, pretende-se analisar os detalhes complexos 
de uma burocracia em funcionamento, o método 
interpretativo pode oferecer um bom ângulo de visão; 
se, por outro lado, alguém procura estudar diferenças 
entre aplicação de regras burocráticas, um estudo 
comparativo-explicativo seria mais adequado. 
Jose Luis Neves 
CADERNO DE PESQUISAS EM ADMINISTRAÇÃO, SÃO PAULO, V.1, Nº 3, 2º SEM./1996 4
5. PROBLEMAS DO MÉTODO QUALITATIVO 
Não se nega a existência de problemas relacionados 
com a essência do método qualitativo. MANNING 
(1979, p.668) chama a atenção para os problemas 
relacionados com o uso da linguagem na expressão das 
idéias, e para o fato de que estas devem ser 
decodificadas para que a análise qualitativa seja feita. 
Argumentos são expressos sob a forma
de texto, de 
forma que diferenças de estilo, de contexto ou a 
intenção de atribuir ao signo um caráter simbólico 
particular podem não ser captados pelo pesquisador. O 
próprio texto deve ser objeto de análise e as diferenças 
de relação significante-significado podem afetar os 
resultados da análise, razão pela qual devem elas 
próprias ser objeto de consideração. 
A tarefa de coletar e analisar os dados é 
extremamente trabalhosa e tradicionalmente individual. 
Muita energia faz-se necessária para tornar os dados 
sistematicamente comparáveis. Além disso, costumam 
ser grandes as exigências de tempo necessário para 
registrar os dados, organizá-los, codifica-los e fazer a 
análise. O problema mais sério, porém, parece residir 
no fato de que os métodos para análise e as convenções 
a empregar não são bem estabelecidos, ao contrário do 
que ocorre com a pesquisa quantitativa: constatações 
inovadoras, globais e aparentemente inegáveis podem 
estar, de fato, erradas. Também preocupados com essas 
questões, DOWNEY & IRELAND (1979, p.630) 
ressaltam que a coleta, a interpretação e a avaliação dos 
dados são problemáticos em qualquer tipo de pesquisa 
seja ela quantitativa ou qualitativa, de forma que a 
pesquisa organizacional não constitui exceção. 
A questão da objetividade no discurso científico 
coloca-se não pela existência de um mundo fora da 
cabeça do pesquisador e outro dentro (KIRK & 
MILLER, 1986, p.70), e, sim, pelo fato de os 
resultados da pesquisa conterem, por si próprios, um 
significado que independe da preferência ou da 
admiração do pesquisador ou dos leitores do estudo, 
seja ele quantitativo ou qualitativo: não é menos 
importante ser objetivo no exame de sociedades do que 
ao pesquisar fenômenos físicos. Tem-se como 
impossível a busca de total objetividade nos trabalhos 
científicos (MELLON, 1990, p.26), uma vez que os 
pesquisadores são seres humanos. O problema está em 
admitir a existência de vieses de interpretação, coisa 
que não é dada a um cientista sério negar. 
Fenômenos naturais são essencialmente 
diferenciados dos sociais. Ao mesmo tempo que cria o 
mundo, o homem é por ele transformado, em atividade 
contínua e num processo circular. Produto e 
determinantes das condições históricas que ajudam a 
criar, os elementos do mundo social não são elementos 
naturais, e não podem ser tratados como tais. PRADO 
(1990, p.21) qualifica as coisas que aí estão como 
coisas naturais-sociais, dotadas de valor e de 
significação para os homens dos quais dependem. 
Para os problemas da confiabilidade e da validação 
dos resultados de estudos qualitativos não há soluções 
simples. BRADLEY (1993, p.436) recomenda o uso de 
quatro critérios para os atenuar, a saber: conferir a 
credibilidade do material investigado, zelar pela 
fidelidade no processo de transcrição que antecede a 
análise, considerar os elementos que compõem o 
contexto e assegurar a possibilidade de confirmar 
posteriormente os dados pesquisados. KIRK & 
MILLER (1986, p.72), por seu turno, consideram que 
cumprir seqüenciada e integralmente as fases de 
projeto de pesquisa, coleta de dados, análise e 
documentação contribui para tornar mais confiáveis os 
resultados do estudo qualitativo. Desconhece-se, por 
impassível, procedimento que possa assegurar 
confiabilidade absoluta a um estudo qualitativo. 
Podemos dizer que tanto é inadequado ignorar a 
existência de problemas ligados à natureza dos 
métodos qualitativos, quanto manter uma visão 
simplista deles. 
6. CONCLUSÃO 
São diversas as formas de avançar no conhecimento 
de um fenômeno: pela sua descrição, pela medição, 
pela busca de nexo causal entre seus condicionantes, 
pela análise de contexto, pela distinção entre forma 
manifesta e essência, pela indicação das funções de 
seus componentes, pela visão de sua estrutura, pela 
comparação de estados alterados de sua essência, 
dentre outras. Diferentes maneiras de conceber e lidar 
com o mundo geram formas distintas de perceber e 
interpretar significados e sentidos do objeto pesquisado 
que não se opõem nem se contradizem. 
A despeito das restrições quanto à sua aplicação por 
parte de pesquisadores acostumados ao uso exclusivo 
de métodos quantitativos, baseados em pressupostos 
positivistas, os estudos qualitativos têm hoje lugar 
assegurado como forma viável e promissora de 
investigação. As diferenças entre os dois métodos 
devem ser empregadas pelo pesquisador em benefício 
do estudo, isto é, a seu favor; nessa medida, combinar 
métodos distintos pode contribuir para o 
enriquecimento da análise. 
A falta de exploração de um certo tema na literatura 
disponível, o caráter descritivo da pesquisa que se 
pretende empreender ou a intenção de compreender um 
fenômeno complexo na sua totalidade são elementos 
que tornam propício o emprego de métodos 
qualitativos; em qualquer caso, a opção por tais 
métodos sempre dependerá de clara definição do 
problema e dos objetivos da pesquisa, assim como da 
PESQUISA QUALITATIVA – CARACTERÍSTICAS, USOS E POSSIBILIDADES 
CADERNO DE PESQUISAS EM ADMINISTRAÇÃO, SÃO PAULO, V.1, Nº 3, 2º SEM./1996 5
compreensão das forças e fraquezas de cada método 
disponível, consideradas as condições específicas do 
estudo. Compreender e interpretar fenômenos, a partir 
de seus significantes e contexto são tarefas sempre 
presentes na produção de conhecimento, o que 
contribui para que percebamos vantagem no emprego 
de métodos que auxiliam a ter uma visão mais 
abrangente dos problemas, supõem contato direto com 
o objeto de análise e fornecem um enfoque 
diferenciado para a compreensão da realidade. 
BIBLIOGRAFIA 
DOWNEY, H. Kirk; IRELAND, R. Duane, 
Quantitative versus qualitative: the case of 
environmental assessment in organizational In 
Administrative Science Quarterly, vol. 24, no. 4, 
December 1979, pp. 630-637. 
 
DUFFY, Mary E., Methodological triangulation: a 
vehicle for merging quantitative and qualitative 
research methods, In Journal of Nursing 
Scholarship, 19 (3), 1987, pp. 130-133. 
 
GODOY, Arilda S., Introdução à pesquisa qualitativa 
e suas possibilidades, In Revista de Administração 
de Empresas, v.35, n.2, Mar./Abr. 1995a, p. 57-63. 
Pesquisa qualitativa.- tipos fundamentais, In Revista 
de Administração de Empresas, v.35, n.3, 
Mai./Jun. 1995b, p. 20-29. 
 
JICK, Todd. D., Mixing qualitative and quantitative 
methods: triangulation in action, In Administrative 
Science Quarterly, vol. 24, no. 4, December 1979, 
pp. 602-611. 
 
KIRK, Jerome; MILLER, Marc L., Reliability and 
validity in qualitative research, Beverly Hills: 
Sage, 1986. 
 
KUHN, Thomas., The structure of scientific 
revolutions., Chicago: University Press, 1962. 
 
MAANEN, John, Van. Reclaiming qualitative methods 
for organizational research: a preface, In 
Administrative Science Quarterly, vol. 24, no. 4, 
December 1979 a, pp 520-526. 
The fact of fiction in organizational ethnography, In 
Administrative Science Quarterly, vol. 24, no. 4, 
December 1979b, pp. 539-550. 
 
MANNING, Peter K., Metaphors of the field: varieties 
of organizational discourse, In Administrative 
Science Quarterly, vol. 24, no. 4, December 1979, 
pp. 660-671. 
 
MILES, Matthew B., Qualitative data as an attractive 
nuisance: the problem of analysis, In 
Administrative Science Quarterly, vol. 24, no. 4, 
December 1979, pp. 590-601. 
 
MELLON, Constance A., Naturalistic inquiry for 
library science: methods and applications for 
research, evaluation, and teaching, New York: 
Greenwood, 1990. 
 
MORSE, J., Approaches to qualitative-quantitative 
methodological triangulation, Nursing Research, 
40 (1), 1991, p. 120-132. 
 
PIORE, Michael J., Qualitative research techniques in 
economics, In Administrative
Science Quarterly, 
vol. 24, nº 4, December 1979, pp. 560 - 569. 
 
POPE, Catherine; MAYS, Nick., Reaching the parts 
other methods cannot reach: an introduction to 
qualitative methods in health and health service 
research, In British Medical Journal, nº 311, 1995, 
pp.42-45. 
 
PRADO, Eleutério F. S., Um estudo sobre a 
compreensão da economia como ciência, Tese de 
livre-docência. Universidade de São Paulo, Junho 
de 1990. 
 
SANDAY, Peggy Reeves., The ethnographic 
paradigm(s). In Administrative Science Quarterly, 
vol. 24, nº 4, December 1979, pp. 527-538. 
 
WILDEMUTH, Barbara M., Post-positivist research: 
two examples of methodological pluralism, In 
Library Quarterly, nº 63, 1993, pp. 450-468 
O ATO DE CRIAÇÃO.pdf
Gilles Deleuze 
 
 
O ato de criação 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 2
Eu gostaria também de formular algumas perguntas. Formulá-las a 
vocês e formulá-las a mim mesmo. Seria algo como: o que exatamente 
vocês fazem, vocês, homens do cinema? E eu, o que exatamente eu faço, 
quando faço ou espero fazer filosofia? 
Poderia formular a pergunta de outra maneira: o que é ter uma idéia 
em cinema? Se fazemos ou queremos fazer cinema, o que significa ter uma 
idéia? O que acontece quando dizemos: “Ei, tive uma idéia”? Porque, de 
um lado, todo mundo sabe muito bem que ter uma idéia é algo que 
acontece raramente, é uma espécie de festa, pouco corrente. E depois, de 
outro lado, ter uma idéia não é algo genérico. Não temos uma idéia em 
geral. Uma idéia, assim como aquele que tem a idéia, já está destinada a 
este ou àquele domínio. 
Trata-se ou de uma idéia em pintura, ou de uma idéia em romance, 
ou de uma idéia em filosofia, ou de uma idéia em ciência. E obviamente 
nunca é a mesma pessoa que pode ter todas elas. As idéias, devemos tratá-
las como potenciais já empenhados nesse ou naquele modo de expressão, 
de sorte que eu não posso dizer que tenho uma idéia em geral. Em função 
das técnicas que conheço, posso ter uma idéia em tal ou tal domínio, uma 
idéia em cinema ou uma idéia em filosofia. 
O que é ter uma idéia em alguma coisa? 
Parto do princípio de que eu faço filosofia e vocês fazem cinema. 
Admitido isso, seria muito fácil dizer que a filosofia, estando pronta para 
refletir sobre qualquer coisa, por que não refletiria sobre o cinema? Um 
verdadeiro absurdo. A filosofia não é feita para refletir sobre qualquer 
coisa. Ao tratar a filosofia como uma capacidade de “refletir-sobre”, parece 
que lhe damos muito, mas na verdade lhe retiramos tudo. Isso porque 
ninguém precisa da filosofia para refletir. As únicas pessoas capazes de 
refletir efetivamente sobre o cinema são os cineastas, ou os críticos de 
cinema, ou então aqueles que gostam de cinema. Essas pessoas não 
 3
precisam da filosofia para refletir sobre o cinema. A idéia de que os 
matemáticos precisariam da filosofia para refletir sobre a matemática é uma 
idéia cômica. Se a filosofia deve servir para refletir sobre algo, ela não teria 
nenhuma razão para existir. Se a filosofia existe, é porque ela tem seu 
próprio conteúdo. 
Qual é o conteúdo da filosofia? 
Muito simples: a filosofia é uma disciplina tão criativa, tão 
inventiva quanto qualquer outra disciplina, e ela consiste em criar ou 
inventar conceitos. E os conceitos não existem prontos e acabados numa 
espécie de céu em que aguardariam que uma filosofia os apanhasse. Os 
conceitos, é preciso fabricá-los. É claro que os conceitos não se fabricam 
assim, num piscar de olhos. Não nos dizemos, um belo dia: “Ei, vou 
inventar um conceito!”, assim como um pintor não se diz: “Ei, vou pintar 
um quadro!”, ou um cineasta: “Ei, vou fazer um filme!”. 
É preciso que haja uma necessidade, tanto em filosofia quanto nas 
outras áreas, do contrário não há nada. Um criador não é um ser que 
trabalha pelo prazer. Um criador só faz aquilo de que tem absoluta 
necessidade. Essa necessidade — que é uma coisa bastante complexa, caso 
ela exista — faz com que um filósofo (aqui pelo menos eu sei do que ele se 
ocupa) se proponha a inventar, a criar conceitos, e não a ocupar-se em 
refletir, mesmo sobre o cinema. 
Eu digo que faço filosofia, ou seja, que tento inventar conceitos. E 
vocês que fazem cinema, o que vocês fazem? 
O que vocês inventam não são conceitos — isso não é de sua alçada 
—, mas blocos de movimento/ duração. Se fabricamos um bloco de 
movimento/duração, é possível que façamos cinema. Não se trata de 
invocar uma história ou de recusá-la. Tudo tem uma história. A filosofia 
também conta histórias. Histórias com conceitos. O cinema conta histórias 
com blocos de movimento/duração. A pintura inventa um tipo totalmente 
 4
diverso de bloco. Não são nem blocos de conceitos, nem blocos de 
movimento/duração, mas blocos de linhas/cores. A música inventa um 
outro tipo de bloco, também todo peculiar. Ao lado de tudo isso, a ciência 
não é menos criadora. Eu não vejo tantas oposições entre as ciências e as 
artes. 
Se pergunto a um erudito o que ele faz, também ele inventa. Ele não 
descobre - a descoberta existe, porém não é por meio dela que definimos 
uma atividade científica como tal —, mas cria como se fosse um artista. 
Um erudito, coisa bem simples, é alguém que inventa ou cria funções. E ele 
está sozinho nessa empreitada. Um erudito, na condição de erudito, nada 
tem a ver com conceitos. É justamente para isso — e felizmente- que 
existe a filosofia. Em compensação, existe uma coisa que só o erudito sabe 
fazer: inventar e criar funções. O que é uma função? Existe uma função 
sempre que há correspondência uniforme de pelo menos dois conjuntos. A 
noção de base da ciência — e não desde ontem, mas desde muito tempo — 
é a noção de conjunto. Um conjunto não tem nada a ver com um conceito. 
Sempre que você puser conjuntos em correlação uniforme, você obterá 
conjuntos e poderá dizer: “Eu faço ciência”. 
Se uma pessoa qualquer pode falar com outra qualquer, se um 
cineasta pode falar com um homem de ciência, se um homem de ciência 
pode ter algo a dizer a um filósofo e vice-versa, é na medida e em função 
das atividades criativas de cada um. Não que haja espaço para falar da 
criação — a criação é antes algo bastante solitário —, mas é em nome de 
minha criação que tenho algo a dizer para alguém. Se eu alinhasse todas 
essas disciplinas que se definem pela sua atividade criadora, diria que há 
um limite que lhes é comum. O limite que é comum a todas essas séries de 
invenções, invenções de funções, invenções de blocos de 
duração/movimento, invenção de conceitos, é o espaço-tempo. Se todas as 
disciplinas se comunicam entre si, isso se dá no plano daquilo que nunca se 
 5
destaca por si mesmo, mas que está como que entranhado em toda a 
disciplina criadora, a saber, a constituição dos espaços-tempos. 
Em Robert Bresson (diretor francês, 1907), caso bastante 
conhecido, raramente existem espaços inteiros. São espaços que podemos 
chamar desconexos. Há, por exemplo, um canto, um canto de um quarto. 
Depois vemos um outro canto, ou então um pedaço da parede. Tudo ocorre 
como se o espaço bressoniano se apresentasse como uma série de pequenos 
fragmentos cuja conexão não está predeterminada. Existem grandes 
cineastas que empregam, ao contrário, espaços de conjunto. 
Não digo que seja mais fácil manejar um espaço de conjunto. Mas o 
espaço de Bresson constitui um tipo de espaço particular. Sem dúvida, ele 
foi retomado mais tarde, serviu de modo bastante criativo para outros, que 
o renovaram. Mas Bresson foi um dos primeiros a construir o espaço com 
pequenos fragmentos desconexos, ou seja, pequenos fragmentos cuja 
conexão não é predeterminada. E eu diria o seguinte: no limite de todas as 
tentativas de criação, existem espaços-tempos.
É só isso que existe. Os 
blocos de duração/movimento de Bresson tenderão a esse tipo de espaço, 
entre outros. 
A pergunta então é essa: esses pequenos fragmentos de espaço 
visual cuja conexão não é dada previamente são conectados por meio de 
quê? Pela mão. Não se trata de teoria nem de filosofia. Não é um processo 
dedutivo. O que quero dizer é que o espaço de Bresson é a valorização 
cinematográfica da mão no seio da imagem. A junção de pequenos trechos 
de espaço bressoniano pelo fato mesmo de serem trechos, pedaços 
desconexos do espaço, pode ser exclusivamente uma junção manual. Daí a 
exaustão da mão em todo o seu cinema. 
Desse modo, o bloco de extensão/movimento de Bresson recebe 
como característica própria desse criador, desse espaço, o papel da mão, 
que irrompe em seus limites. Somente a mão é capaz de operar 
 6
efetivamente as conexões de uma parte a outra do espaço. E Bresson é sem 
dúvida o mais importante cineasta a ter reintroduzido no cinema os valores 
táteis. Não só porque ele sabe captar as mãos em imagens admiráveis. Se 
ele sabe captar admiravelmente as mãos em imagens é porque ele precisa 
delas. Um criador não é um ser que trabalha pelo prazer. Um criador só faz 
aquilo de que tem absoluta necessidade. 
Mais uma vez, ter uma idéia em cinema não é a mesma coisa que 
ter uma idéia em outro assunto. Contudo há idéias em cinema que também 
poderiam valer em outras disciplinas, que poderiam ser excelentes em 
romances, por exemplo. Mas elas não teriam, absolutamente, os mesmos 
ares. Além disso, existem idéias no cinema que só podem ser 
cinematográficas. Não importa. Mesmo quando se trata de idéias em 
cinema que poderiam valer em romances, elas já estão empenhadas num 
processo cinematográfico que faz com que elas estejam predestinadas. Esse 
é um modo de formular uma pergunta que me interessa: o que faz com que 
um cineasta tenha vontade de adaptar, por exemplo, um romance? Parece-
me evidente que é porque ele tem idéias em cinema que fazem eco àquilo 
que o romance apresenta como idéias em romance. E com isso se dão 
grandes encontros. 
Não cogito do problema do cineasta que adapta um romance 
notoriamente medíocre. Ele pode precisar do romance medíocre, e isso não 
impede que o filme seja genial; seria interessante abordar essa questão. 
Mas proponho uma questão diferente: o que acontece quando o romance é 
um grande romance e revela-se essa afinidade pela qual alguém em cinema 
tem uma idéia que corresponde àquilo que era uma idéia em romance? 
Um dos casos mais belos é o de Akira Kurosawa (diretor japonês, 
1910-1998). Por que ele tem essa familiaridade com Shakespeare e 
Dostoiévski? Por que é preciso um japonês para entrar em familiaridade 
com esses autores? 
 7
Eu sugiro uma resposta que creio tocar um pouco à filosofia. Nos 
personagens de Dostoiévski, produz-se muitas vezes algo bastante curioso, 
que pode dizer respeito a um pequeno detalhe. Geralmente, eles são muito 
agitados. Um personagem sai de casa, desce até a rua e diz: “Tânia, a 
mulher que amo, me pede ajuda. Vou correndo, ela morrerá se eu não for”. 
Ele desce a escada e encontra um amigo, ou vê um cão atropelado, e 
esquece, esquece completamente que Tânia o espera, à beira da morte. Ele 
se põe a falar, cruza com outro camarada, vai até sua casa tomar chá e, de 
súbito, diz novamente: “Tânia me espera, é preciso que eu vá”. 
O que significa tudo isso? Em Dostoiévski, os personagens são 
perpetuamente vítimas da urgência e, ao mesmo tempo em que eles são 
vítimas dessas urgências, que são questões de vida ou morte, eles sabem 
que há uma questão ainda mais urgente, embora não saibam qual. E é isso 
que os paralisa. Tudo se passa como se, na maior urgência — “É um 
incêndio, é preciso que eu vá” —, eles se dissessem: “Não, existe algo 
ainda mais urgente. Não moverei um dedo até saber do que se trata”. É “O 
Idiota” (romance de Dostoiévski filmado por Kurosawa). É a fórmula de 
“O Idiota”: “Veja, há um problema mais profundo. Qual problema, não 
saberia dizer ao certo. Mas me deixe. Tudo pode arder... É preciso 
encontrar esse problema mais urgente”. 
Isso Kurosawa não aprendeu de Dostoiévski. Todos os personagens 
de Kurosawa são assim. Eis um belo encontro. Se Kurosawa pode adaptar 
Dostoiévski, é pelo menos porque pode dizer: “Temos um assunto em 
comum, um problema em comum”. Os personagens de Kurosawa metem-
se em situações impossíveis, mas atenção: há um problema mais urgente. E 
é preciso que eles saibam qual é esse problema. 
“Viver” é talvez o filme de Kurosawa que vá mais longe nesse 
sentido. Mas todos os seus filmes vão nesse sentido. “Os Sete Samurais”, 
por exemplo: todo o espaço de Kurosawa depende dele, é necessariamente 
 8
um espaço oval, castigado pela chuva. Em “Os Sete Samurais”, os 
personagens são pegos numa situação de urgência: eles aceitaram defender 
o vilarejo e do começo ao final do filme eles são afligidos por uma questão 
mais profunda, que será proferida no final, pelos chefes dos samurais, 
quando eles partem: “O que é um samurai? O que é um samurai, não em 
sentido genérico, mas naquela época?”. Alguém que não serve mais para 
nada. 
Os senhores não precisam mais deles, e os camponeses logo 
saberão defender-se sozinhos. Durante todo o filme, em que pese a 
urgência da situação, os samurais são atormentados por essa questão, digna 
de “O Idiota”: nós, samurais, o que somos nós? 
Uma idéia em cinema é desse tipo tão logo se ache empenhada num 
processo cinematográfico. Então você poderá dizer: “Tive uma idéia”, 
mesmo se você a toma emprestada de Dostoiévski. 
Uma idéia é algo bem simples. Não é um conceito, não é filosofia. 
Mesmo que de toda idéia se possa tirar, talvez, um conceito. Penso em 
Vincente Minnelli (diretor norte-americano, 1902-1986), que tem uma 
idéia extraordinária sobre o sonho. Ela é bem simples, podemos verbalizá-
la, e está empenhada num processo cinematográfico que é a obra de 
Minnelli. 
A grande idéia de Minnelli sobre o sonho é que ele diz respeito 
sobretudo àqueles que não sonham. O sonho daqueles que sonham diz 
respeito àqueles que não sonham. Por que isso lhes diz respeito? Porque 
sempre que há o sonho do outro, há perigo. O sonho das pessoas é sempre 
um sonho devorador, que ameaça nos engolir. Que os outros sonhem é algo 
perigoso. O sonho é uma terrível vontade de potência. Cada um de nós é 
mais ou menos vítima do sonho dos outros. Mesmo quando se trata da 
jovem mais graciosa, ela é uma terrível devoradora, não por sua alma, mas 
por seus sonhos. Desconfiem do sonho do outro, porque se vocês forem 
 9
apanhados no sonho do outro, estarão em maus lençóis. 
Uma idéia cinematográfica é, por exemplo, a famosa dissociação 
entre o ver e o falar no cinema relativamente recente, quer seja - tomo os 
casos mais conhecidos — Hans Juergen Syberberg (diretor alemão), os 
Straub (os diretores franceses Jean-Marie Straub e sua mulher Danièle 
Huillet), Marguerite Duras (escritora e diretora francesa, 1914-1997). O 
que há de comum e por que é uma idéia propriamente cinematográfica 
fazer uma disjunção entre o visual e o sonoro? Por que isso não pode ser 
feito no teatro? Poder, pode, mas então, salvo se o teatro dispuser de meios, 
se dirá que ele a tomou de empréstimo ao cinema. O que não é 
necessariamente ruim, mas assegurar a disjunção entre ver e falar, entre o 
visual e o sonoro, é uma idéia tão cinematográfica que isso responderia à 
questão de saber em que consiste, por exemplo, uma idéia em cinema. 
Uma voz fala de alguma coisa. Fala-se de alguma coisa. Ao mesmo 
tempo, nos fazem ver outra coisa. E enfim, aquilo de que nos falam está 
sob aquilo que nos fazem ver. Esse terceiro ponto é importantíssimo. Logo 
se vê que o teatro não teria acesso a tal expediente. O teatro poderia adotar
as duas primeiras proposições: nos falam de alguma coisa e nos fazem ver 
outra. Mas que aquilo de que nos falam põe-se ao mesmo tempo sob aquilo 
que nos fazem ver — e isso é imprescindível, se não as duas primeiras 
operações não teriam nenhum sentido ou interesse — podemos dizê-lo de 
outro modo: a palavra se ergue no ar, ao mesmo tempo em que a terra que 
vemos afunda-se cada vez mais. Ou ainda: ao mesmo tempo que essa 
palavra se ergue no ar, aquilo de que ela nos falava afunda-se na terra. 
O que é isso senão aquilo que somente o cinema pode fazer? 
Não digo que ele o deva fazer, mas que o cinema o fez duas ou três 
vezes, que foram grandes cineastas que tiveram essa idéia. Eis uma idéia 
cinematográfica. Ela é prodigiosa porque assegura ao âmbito do cinema 
uma verdadeira transformação dos elementos, um ciclo que, de um golpe, 
 10
capacita o cinema a fazer eco a uma física qualitativa dos elementos. Isso 
produz uma espécie de transformação, uma grande circulação de elementos 
no cinema a partir do ar, da terra, da água e do fogo. Em tudo o que eu 
digo, a história não é suprimida. 
A história está sempre presente, mas o que nos espanta é o fato de a 
história ser tão interessante pela própria razão de ter tudo isso atrás dela e 
com ela. Nesse ciclo que acabo de definir tão rapidamente — a voz se 
ergue ao mesmo tempo que aquilo de que nos fala, voz afunda-se na terra 
— vocês reconheceram a maioria dos filmes dos Straub, o grande ciclo dos 
elementos dos Straub. O que vemos não é mais do que a terra deserta, mas 
essa terra deserta é como grávida daquilo que ela tem debaixo. E vocês me 
dirão: mas o que sabemos daquilo que ela tem debaixo? Ora, justamente 
aquilo de que nos fala a voz. Como se a terra se arqueasse em razão daquilo 
que a voz nos diz, e que vem tomar assento sob a terra em seu tempo e em 
seu lugar. E, se a voz nos fala de cadáveres, de toda a linhagem de 
cadáveres que vem tomar assento sob a terra, nesse momento, o menor 
frêmito de vento sobre a terra deserta, sobre o espaço vazio que vocês têm 
sob os olhos, o menor sulco nessa terra adquire todo o seu sentido. 
Costumo dizer, em todo caso, que ter uma idéia não é da natureza 
da comunicação. É nesse ponto que gostaria de chegar. Tudo de que se fala 
é irredutível a toda comunicação. Mas não se aflijam. O que isso quer 
dizer? Num primeiro sentido, a comunicação é a transmissão e a 
propagação de uma informação. 
Ora, o que é uma informação? 
Não é nada complicado, todos o sabem: uma informação é um 
conjunto de palavras de ordem. Quando nos informam, nos dizem o que 
julgam que devemos crer. Em outros termos, informar é fazer circular uma 
palavra de ordem. 
As declarações da polícia são chamadas, a justo título, 
 11
comunicados. Elas nos comunicam informações, nos dizem aquilo que 
julgam que somos capazes ou devemos ou temos a obrigação de crer. Ou 
nem mesmo crer, mas fazer como se acreditássemos. Não nos pedem para 
crer, mas para nos comportar como se crêssemos. Isso é informação, isso é 
comunicação; à parte essas palavras de ordem e sua transmissão, não existe 
comunicação. O que equivale a dizer que a informação é exatamente o 
sistema do controle. Isso é evidente, e nos toca de perto hoje em dia. 
É verdade que entramos numa sociedade que podemos chamar 
sociedade de controle. Um pensador como Michel Foucault analisara dois 
tipo de sociedades bastante próximas de nós: as sociedades de soberania e 
as sociedades disciplinares. A passagem típica de uma sociedade de 
soberania para uma sociedade disciplinar coincidiu, segundo ele, com 
Napoleão. A sociedade disciplinar definia-se — as análises de Foucault, 
com todo mérito, por causa disso tornaram-se famosas — pela constituição 
de meios de enclausuramento: prisões, escolas, oficinas, hospitais. As 
sociedades disciplinares tinham necessidade disso. 
Essa análise engendrou ambiguidades em certos leitores de 
Foucault, pois se pensou que essa era sua última palavra. Evidentemente 
que não. Foucault jamais pensou, e ele o disse com bastante clareza, que as 
sociedades disciplinares fossem eternas. Antes, ele pensava que 
entraríamos num tipo de sociedade nova. É claro que existe todo tipo de 
resquício de sociedades disciplinares, que persistirão por anos a fio, mas já 
sabemos que nossa vida se desenrola numa sociedade de outro tipo, que 
deveria chamar-se, segundo o termo proposto por William Burroughs — e 
Foucault tinha por ele uma viva admiração —, de sociedades de controle. 
Entramos então em sociedades de controle que diferem em muito 
das sociedades de disciplina. Aqueles que velam por nosso bem não têm ou 
não terão mais necessidade de meios de enclausuramento. Hoje todos eles, 
as prisões, as escolas, os hospitais, são temas de discussão permanente. Não 
 12
seria melhor estender o tratamento aos domicílios? Sim, esse é sem dúvida 
o futuro. As oficinas, as fábricas não comportam mais empregados. Não 
seria melhor regimes de empreitada e de trabalho a domicílio? Não existem 
outros meios de punir os infratores senão a prisão? As sociedades de 
controle não adotarão mais os meios de enclausuramento. Nem mesmo a 
escola. 
Vale a pena investigar os temas que nascem, que se desenvolverão 
em 40 ou 50 anos e que nos explicam que o espantoso seria conjugar escola 
e profissão. Seria interessante saber qual será a identidade da escola e da 
profissão ao longo da formação permanente, que é o nosso futuro e que não 
implicará necessariamente o reagrupamento de alunos num local de 
clausura. Um controle não é uma disciplina. Com uma estrada não se 
enclausuram pessoas, mas, ao fazer estradas, multiplicam-se os meios de 
controle. Não digo que esse seja o único objetivo das estradas, mas as 
pessoas podem trafegar até o infinito e “livremente”, sem a mínima 
clausura, e serem perfeitamente controladas. Esse é o nosso futuro. 
Suponhamos que a informação seja isso, o sistema controlado das 
palavras de ordem que têm curso numa dada sociedade. 
O que a obra de arte pode ter a ver com isso? 
Não falemos de obra de arte, mas digamos ao menos que existe a 
contra-informação. Em países sob ditadura cerrada, em condições 
particularmente duras e cruéis, existe a contra-informação. No tempo de 
Hitler, os judeus que chegavam da Alemanha e que foram os primeiros a 
nos contar sobre os campos de extermínio faziam a contra-informação. O 
que é preciso constatar é que a contra-informação nunca foi suficiente para 
fazer o que quer que fosse. Nenhuma contra-informação foi capaz de 
perturbar Hitler. Salvo num caso. Que caso? Isso é de vital importância. A 
única resposta seria que a contra-informação só se torna eficaz quando ela é 
— e ela o é por natureza — ou se torna um ato de resistência. E o ato de 
 13
resistência não é nem informação nem contra-informação. A contra-
informação só é efetiva quando se torna um ato de resistência. 
Qual a relação entre a obra de arte e a comunicação? 
Nenhuma. A obra de arte não é um instrumento de comunicação. A 
obra de arte não tem nada a ver com a comunicação. A obra de arte não 
contém, estritamente, a mínima informação. Em compensação, existe uma 
afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. Isto sim. 
Ela tem algo a ver com a informação e a comunicação a título de ato de 
resistência. 
Qual a relação misteriosa entre uma obra de arte e um ato de 
resistência, uma vez que os homens que resistem não têm nem o tempo 
nem talvez a cultura necessários para relacionar-se minimamente com a 
arte? 
Não sei. André Malraux (escritor e diretor francês, 1901-1976) 
desenvolve um belo conceito filosófico: ele diz uma coisa bem simples 
sobre a arte, diz que ela é a única coisa que resiste à morte. Voltemos ao 
começo: o que fazemos quando fazemos
filosofia? Inventamos conceitos. 
Eu considero esta a base de um belo conceito filosófico. Reflitamos... O 
que resiste à morte? Basta contemplar uma estatueta de 3.000 anos antes de 
Cristo para descobrir que a resposta de Malraux é uma boa resposta. 
Poderíamos dizer então, de forma mais tosca, do ponto de vista que nos 
interessa, que a arte é aquilo que resiste, mesmo que não seja a única coisa 
que resiste. Daí a relação tão estreita entre o ato de resistência e a obra de 
arte. Todo ato de resistência não é uma obra de arte, embora de uma certa 
maneira ela faça parte dele. Toda obra de arte não é um ato de resistência, e 
no entanto, de uma certa maneira, ela acaba sendo. 
O que é ter uma idéia em cinema? 
Tomem o caso, por exemplo, dos Straub quando operam essa 
disjunção entre voz sonora e imagem visual, que eles tomam da seguinte 
 14
maneira: a voz se ergue, se ergue mais e mais, e aquilo de que ela nos fala 
baixa sob a terra nua, deserta, que a imagem visual estava nos mostrando, 
imagem visual que não tinha nenhuma relação direta com a imagem 
sonora. Ora, qual é esse ato de fala que se ergue no ar enquanto seu objeto 
afunda na terra? Resistência. Ato de resistência. E em toda a obra dos 
Straub, o ato de fala é um ato de resistência. De “Moisés e Aarão” ao 
último Kafka (“América”, romance filmado por Straub), passando por — 
não cito pela ordem — “Não Reconciliados” ou Bach (“Crônica de Anna 
Magdalena Bach”). O ato de fala de Bach é sua música, que é um ato de 
resistência, luta ativa contra a repartição do profano e do sagrado. 
Esse ato de resistência na música culmina num grito. Assim como 
há um grito no “Woyzeck” (peça do alemão Georg Büchner de 1836), há 
um grito em Bach: “Fora! Fora! Ide embora, não vos quero ver!”. Quando 
os Straub o põem em relevo, esse grito, o de Bach ou o da velha 
esquizofrênica de “Não Reconciliados”, tudo isso há de testemunhar um 
duplo aspecto. O ato de resistência possui duas faces. Ele é humano e é 
também um ato de arte. Somente o ato de resistência resiste à morte, seja 
sob a forma de uma obra de arte, seja sob a forma de uma luta entre os 
homens. 
Qual a relação entre a luta entre os homens e a obra de arte? 
A relação mais estreita possível e, para mim, a mais misteriosa. 
Exatamente o que Paul Klee queria dizer quando afirmava: “Pois bem, falta 
o povo”. O povo falta e ao mesmo tempo não falta. “Falta o povo” quer 
dizer que essa afinidade fundamental entre a obra de arte e um povo que 
ainda não existe nunca será clara. Não existe obra de arte que não faça 
apelo a um povo que ainda não existe. 
 
Palestra de 1987 
Edição brasileira: Folha de São Paulo, 27/06/1999 
 15
trad: José Marcos Macedo 
EDUCAR NA ERA PLANETÁRIA - MORIN.pdf
Edgar Morin • Emilio-Roger Ciurana •
Raúl Domingo Motta
EDUCAR NA ERA PLANETÁRIA
O pensamento complexo como Método de
aprendizagem no erro e na incerteza humana
Tradução
Sandra Trabucco Valenzuela
Revisão técnica da tradução
Edgard de Assis Carvalho
Título original: Éduquer Pour L’ Ère Planétaire. La pensée complexe comme Méthode
d’apprentissage dans l’erreur et l’incertitude humaines.
Edgard Morin, Emilio-Roger Ciurana e Raúl Motta
Capa: Edson Fogaça
Preparação de originais: Silvana Cobucci Leite
Revisão: Maria de Lourdes de Almeida
Composição: Dany Editora Ltda.
Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales
Apoio: Unesco-Brasil
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização expressa da
Cortez Editora.
© Editions Balland, 2003
Direitos para esta edição
CORTEZ EDITORA
Rua Bartira, 317 — Perdizes
05009-000 — São Paulo-SP
Tel.: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290
e-mail: cortez@cortezeditora.com.br
www.cortezeditora.com.br
Impresso no Brasil — setembro de 2003
ISBN:85-249-0937-4 
5
SUMÁRIO
Apresentação .................................................................. 7
Prefácio ........................................................................... 11
Capítulo 1 — O Método
(Estratégias para o conhecimento e ação num caminho
que se pensa) .................................................................. 15
Introdução ................................................................... 17
A relação entre experiência, método e ensaio .............. 18
O método como viagem e transfiguração .................... 21
A relação entre o método e a teoria ............................. 23
A errância e o erro....................................................... 24
O método como estratégia........................................... 29
Os princípios gerativos e estratégicos do método ......... 31
O método e sua experiência trágica ............................. 39
Capítulo 2 — A complexidade do pensamento
complexo
(O pensamento complexo da complexidade) ................... 41
Introdução ................................................................... 42
A confusão entre caos, complexidade e determinismo ... 45
6 MORIN • CIURANA • MOTTA
Características do pensamento complexo .................... 51
Capítulo 3 — Os desafios da era planetária
(O possível despertar de uma sociedade-mundo) ............ 61
Introdução ................................................................... 63
O nascimento da era planetária ................................... 65
A idade de ferro planetária .......................................... 70
Da ilusão do desenvolvimento à mundialização
econômica ............................................................... 81
O avesso do cenário .................................................... 84
A possível emergência da sociedade-mundo ................ 86
Epílogo — A missão da educação para a era
planetária ..................................................................... 97
7
APRESENTAÇÃO
O crescente interesse dos educadores brasileiros, como
também de diversos outros países pelas idéias de Edgar Morin
deve-se em grande parte à profundidade da dimensão da crise
educacional que estamos vivendo. Não é uma crise que se possa
explicar somente pela falta de recursos financeiros que impede
a existência de padrões mínimos de funcionamento escolar e
da própria qualidade do ensino oferecido. Há uma crise de
sentido que se amplia em função da crescente complexidade e
incerteza que dominam os horizontes da vida contemporânea.
O notável avanço da ciência e da tecnologia não foi nem
está sendo seguido de avanços no plano existencial e ético. As
guerras continuam e a violência se alastra e se instaura em
ambientes que, há alguns anos, não poderíamos imaginar. Tal
é o caso das violências escolares, cujas implicações no proces-
so pedagógico as pesquisas da UNESCO têm procurado mos-
trar e esclarecer. Ao tradicional quadro de repetências e eva-
sões, acrescentou-se as violências físicas e simbólicas, as dro-
gas e o hiv-aids. Ao meio dessas incertezas, a escola sente-se
cada vez mais impotente para o exercício pleno de sua missão
de educar e de formar pessoas.
Em plano mais amplo, assiste-se hoje um verdadeiro cul-
to ao mercado, onde a capacidade de competir sobressai como
virtude e competência, ocultando e deixando à margem ne-
8 MORIN • CIURANA • MOTTA
cessidades humanas básicas, universais e essenciais à constru-
ção da dignidade. Mais do que isso. O culto ao mercado que
está se tornando uma condição de sobrevivência, de pessoas e
países, influencia de forma crescente a educação, começando
mesmo a determinar-lhe os fins e, por conseqüência, subtrain-
do ao indivíduo uma das mais caras conquistas do homem
ocidental que é a liberdade de ser e de fazer opções e escolhas.
É nesse quadro de perplexidades que o pensamento com-
plexo de Edgar Morin adquire forças e se insere com lucidez
por entre veredas e caminhos tortuosos, lançando por uma
nova ótica, rotas alternativas restauradoras do sentido.
Quando a UNESCO Brasil tomou conhecimento de suas
profundas reflexões sobre os saberes necessários à educação
do futuro, imediatamente, em co-edição com a Cortez Editora,
editou-os em língua portuguesa. O sucesso esperado concreti-
zou-se por sucessivas edições desse livro histórico. As razões
do êxito não são tão difíceis de explicar, pois Morin nesse pe-
queno grande livro coloca o ato pedagógico em seu sentido
mais elevado de conduzir a uma educação no contexto da con-
dição humana planetária, onde, ao meio das incertezas, im-
põe-se a ética e a antropo-ética, numa visão de totalidade, do
ser e do conhecimento.
Todavia, o pensamento complexo de Morin aplicado à
pedagogia, precisava de maior clareza, precisava de um méto-
do. Dessa necessidade nasceu o livro escrito por Edgar Morin
com a colaboração de Emilio Roger Ciurana e Raúl Domingo
Motta. Este livro representa mais um passo importante no pro-
cesso de construção de uma nova escola para o século XXI,
iniciado pelo Relatório Delors em meados da Década de 1990
do século passado.
Para finalizar, é oportuno advertir. Não esperem os leito-
res um roteiro metodológico. Os autores trabalham o método
como estratégia, uma estratégia aberta, evolutiva, afrontando
EDUCAR NA ERA PLANETÁRIA 9
o imprevisto e o novo. Uma estratégia que tira proveito dos
erros. Como dizem os autores, se o caminho é uma trajetória
em espiral, o método, agora consciente de si, descobre e nos
descobre diferentes. Um retorno ao início da travessia é preci-
samente, ao mesmo tempo, a evidência da distância do início.
É a revolução da aprendizagem.
Em suma, o pensamento pedagógico de Morin propor-
ciona à educação a possibilidade de trabalhar novos enredos,
cujos atores — professores, alunos, pais, mães, responsáveis,
líderes comunitários... possam visualizar numa tela do projeto
escolar e do processo educativo, interações e interdependên-
cias, sentidos, convergências e a necessidade de uma constru-
ção coletiva, sem a qual dificilmente se poderá perceber e en-
tender a dimensão holística do processo educativo.
Jorge Werthein
Representante da UNESCO no Brasil
11
PREFÁCIO
A era planetária começa entre o final do século XV e o
início do XVI com a descoberta da América por Colombo, a
circunavegação ao redor do globo por Magellan, a descoberta
copernicana de que a terra é um planeta que gira ao redor do
sol. A era planetária desenvolveu-se através da colonização,
na escravidão, da ocidentalização e, também da multiplicação
das relações e interações entre as diferentes partes do globo.
Iniciada em 1990, a época denominada de globalização esta-
beleceu um mercado mundial e uma rede de comunicações
que se ramificou intensamente por todo o planeta. Os desen-
volvimentos científicos, técnicos, econômicos propiciam um
devir comum para toda a humanidade. Ameaças de morte
nuclear e ecológica conferem à humanidade planetária uma
característica de comunidade de destino. Tornou-se vital co-
nhecer o destino planetário em que vivemos, tentar perceber o
caos dos acontecimentos, interações e retroações nos quais se
misturam os proessos econômicos, políticos, sociais, étnicos,
religiosos, mitológicos que tecem esse destino. Tornou-se igual-
mente vital saber quem somos, o que nos atinge, o que nos
determina, o que nos ameaça, nos esclarece, nos previne e o
que talvez possa nos salvar. No momento em que o planeta
tem cada vez mais necessidades de espíritos aptos a apreender
seus problemas fundamentais e globais, a compreender sua
12 MORIN • CIURANA • MOTTA
complexidade, os sistemas de ensino continuam a dividir e frag-
mentar os conhecimentos que precisam ser religados, a formar
mentes unidimensionais e redutoras, que privilegiam apenas
uma dimensão dos problemas e ocultam as outras. Isso ocorre
principalmente na ciência econômica, transformada em rainha
e guia dos políticos, que não consegue entender nada que es-
cape ao cálculo, ou seja, as emoções, paixões, alegrias, infelici-
dades, crenças, esperanças que constituem a essência da exis-
tência humana. Nossa formação escolar, universitária, profis-
sional nos transforma a todos em cegos políticos, assim como
nos impede de assumir, de uma vez por todas, nossa necessá-
ria condição de cidadãos da Terra. A urgência vital de “educar
para a era planetária” é decorrência disso, e requer três refor-
mas inteiramente interdependentes: uma reforma do modo de
conhecimento, uma reforma do pensamento e uma reforma
do ensino. Abordei esses problemas primeiramente em Cabe-
ça bem-feita, fruto do resultado de uma missão sem resulta-
dos, efetivada junto ao ministério da educação nacional da
França, depois em Os sete saberes necessários à educação do
futuro, texto ecumênico redigido por solicitação de Gustavo
Lopes Ospina, da UNESCO, diretor do projeto transdisciplinar
“educar para um futuro sustentável”. Após a difusão dessa obra
e das atividades da cátedra itinerante Edgar Morin na América
Latina, Raúl Motta, Emilio Roger e eu mesmo nos envolvemos
em experiências extremamente ricas e múltiplas na Colômbia,
México, Brasil, Bolívia, Argentina e Chile. A partir delas nos
convencemos acerca da necessidade de um outro trabalho que
tivesse por objetivos:
1. Considerar problemas de método. Freqüentemente,
esse termo é confundido com metodologia, o que
enrijece seu caráter programador; método aqui é en-
tendido como uma disciplina do pensamento, algo que
deve ajudar a qualquer um a elaborar sua estratégia
cognitiva, situando e contextualizando suas informa-
EDUCAR NA ERA PLANETÁRIA 13
ções, conhecimentos e decisões, tornando-o apto para
enfrentar o desafio onipresente da complexidade. Muito
concretamente, trata-se de um “método de aprendiza-
gem na errância e na incerteza humanas”;
2. Conferir sentido à noção de complexidade. Este ter-
mo é cada vez mais utilizado, mas o que ele exprime
não é uma elucidação, e sim uma incapacidade de des-
crever, uma confusão da mente. Para evitar explicar,
afirma-se cada vez mais “isto é complexo”. Torna-se
necessário proceder a uma verdadeira reviravolta e
mostrar que a complexidade constitui um desafio que
a mente deve e pode ultrapassar, apelando a alguns
princípios que permitem o exercício de um pensamen-
to complexo;
3. Esclarecer, enfim, a própria noção de era planetária
em sua perspectiva histórica e em sua complexidade
multidimensional e, além disso, indicar que, mesmo
diante da crise generalizada do século que ora se ini-
cia, configura-se a emergência de uma infra-estrutura
de sociedade-mundo que não chegou ainda a nascer.
E.M.
15
Capítulo 1
O MÉTODO
(Estratégias para o conhecimento e
a ação num caminho que se pensa)
O método se aplica sempre a uma idéia. E não há um
método para caçar idéias. Ou, o que dá na mesma, com as
idéias tudo é válido: a analogia, o plágio, a inspiração, o se-
qüestro, o contraste, a contradição, a especulação, o sonho, o
absurdo... Um plano para a aquisição de idéias só é bom se
nos tenta continuamente a abandoná-lo, se nos convida a nos
desviar dele, a farejar à direita e à esquerda, a nos distanciar,
a girar em círculos, a divagar, a nos deixar levar pela obten-
ção e pelo tratamento de idéias. Aferrar-se com rigor a um
plano de busca de idéias é anestesiar a intuição.
Jorge Wagensberg
O grande caminho não tem portas,
Milhares de caminhos levam a ele.
Quando atravessamos esse umbral sem porta,
Caminhamos livremente entre o céu e a terra.
MUMON (sábio Zen)
16 MORIN • CIURANA • MOTTA
Nem eu nem ninguém mais pode caminhar esse ca-
minho por você. Você deve caminhá-lo por si mesmo. Não
está longe, está ao alcance.
Talvez você esteja nele desde
que nasceu e não saiba. Talvez esteja em todas as partes,
sobre a água e sobre a terra.
Walt Whitman
Temia meu regresso tanto como temera minha parti-
da; as duas coisas faziam parte do desconhecido e do ines-
perado. O que me fora familiar agora era desconhecido; o
único que mudara era eu... Regressei com “nada” para ensi-
nar de minha experiência. Através da compreensão de mi-
nha viagem, obtive a confiança para fazer as necessárias —
e difíceis — separações de minhas antigas estruturas de vida,
que já não tinham sentido... Regressei da viagem para co-
meçar outra.
Gilgamesh
Toda descoberta real determina um método novo, por-
tanto deve arruinar um método anterior.
Gaston Bachelard
17
Introdução
Nada mais distante de nossa concepção do método do
que aquela visão composta por um conjunto de receitas efica-
zes para chegar a um resultado previsto. Essa idéia de método
pressupõe o resultado desde o início; nessa acepção, método e
programa são equivalentes. É possível que, em certas situa-
ções, não seja necessário ultrapassar a execução de um pro-
grama, cujo êxito não poderá estar isento de um relativo con-
dicionamento do contexto em que se desenvolve. Na realida-
de, as coisas não são tão simples, nem mesmo quando se pro-
cura seguir uma receita culinária, mais próxima de um esforço
de recriação que da aplicação mecânica de misturas de ingre-
dientes e formas de cocção.
É certo também que alguns dicionários especializados re-
metem a idéia de método à filosofia de Descartes, que, ao lon-
go de toda a sua obra, enfatiza a necessidade de proceder, em
qualquer pesquisa ou estudo, a partir de certezas estabelecidas
de maneira ordenada e nunca pelo acaso.
Entendido dessa forma, o método é um programa aplica-
do a uma natureza e a uma sociedade consideradas como algo
trivial e determinista. Pressupõe que se pode partir de um con-
junto de regras certas e permanentes, passíveis de serem segui-
das mecanicamente. Entretanto, se temos certeza de que a rea-
lidade muda e se transforma, então uma concepção do méto-
18 MORIN • CIURANA • MOTTA
do como programa é mais do que insuficiente, porque, diante
de situações mutáveis e incertas, os programas de pouco ser-
vem e, em contrapartida, faz-se necessária a presença de um
sujeito pensante e estrategista. Podemos afirmar o seguinte:
em situações complexas, nas quais, num mesmo espaço e tem-
po, não há apenas ordem, mas também desordem; não há
apenas determinismos, mas também acasos; em situações nas
quais emerge a incerteza, é preciso a atitude estratégica do
sujeito ante a ignorância, a desarmonia, a perplexidade e a
lucidez.
É possível, contudo, outra concepção do método: o méto-
do como caminho, ensaio gerativo e estratégia “para” e “do”
pensamento. O método como atividade pensante do sujeito
vivente, não-abstrato. Um sujeito capaz de aprender, inventar
e criar “em” e “durante” o seu caminho.
A relação entre experiência, método e ensaio
Em sua concepção, o pensamento complexo engloba a
experiência do ensaio. O ensaio como expressão escrita da ati-
vidade pensante e da reflexão é a forma mais adequada para a
forma moderna de pensar.
Pensar uma obra como ensaio e caminho é empreender
uma travessia que se desdobra em meio à tensão entre a fixa-
ção e a vertigem. Tensão que, por um lado, permite resistir ao
fragmento e, por outro, a seu contrário: o sistema filosófico,
entendido como totalidade e escrita acabada1. É preciso so-
bretudo resistir, porque, como afirma o sábio Hadj Garum O’rin,
“o homem e seu herdeiro permanecerá pascaliano, ou seja,
1. No primeiro caso, o exemplo é Friedrich Nietzsche e, no segundo, o projeto de um
sistema absoluto de G. W. F. Hegel.
EDUCAR NA ERA PLANETÁRIA 19
atormentado pelos dois infinitos, kantiano, porque se choca
com as antinomias de seu espírito e os limites do mundo dos
fenômenos, hegeliano, porque se encontra em perpétuo devir,
em contínuas contradições, em busca da totalidade que lhe
escapa”2.
Desde Montaigne, que emprega o termo ensaio em seus
escritos de Bordeaux e que se confessava incapaz de definir o
ser, mas apenas “pintar sua passagem”, até Baudelaire, que
afirmava que o ensaio é a melhor forma de expressão para
captar o espírito da época, por eqüidistar entre a poesia e o
tratado, o ensaio é também um método. Entre a pincelada e a
palavra, o ensaio não é um caminho improvisado ou arbitrá-
rio, mas a estratégia de um demarche aberta que não dissimu-
la sua própria errância, mas que não renuncia a captar a ver-
dade fugaz de sua experiência.
O sentido e o valor do ensaio decorrem da proximidade
do vivente, do caráter genuíno “morno, imperfeito e provisó-
rio” da própria vida. Essa condição lhe confere sua forma úni-
ca e torna manifesta sua especificidade, assim como o princí-
pio que o fundamenta.
Após as experiências realizadas pelas ciências e pela filo-
sofia no século XX, ninguém pode basear um projeto de apren-
dizagem e conhecimento num saber definitivamente verifica-
do e edificado sobre a certeza. Tampouco se pode ter a preten-
são de criar um sistema absoluto de proposições possíveis ou o
sonho de escrever o último livro em que esteja contida a tota-
lidade da experiência humana.
Assumir essas experiências exige a construção de um pro-
cesso de aprendizagem e conhecimento construído sobre um
solo frágil, caracterizado pela ausência de fundamento. Não se
trata de uma experiência do nada, mas de algo muito mais
2. Manuscrito inédito, traduzido para o espanhol por Hermes Clavería.
20 MORIN • CIURANA • MOTTA
profundo e paradoxal. Não se pode conhecer a imensa pleni-
tude que nos rodeia, envolve e desafia a partir de um funda-
mento que assegure a transmissão e o resultado de um simples
esforço: talvez essa plenitude seja a única coisa que nos dirige
ao esforço de aprender. O fundamento de nosso método resi-
de na ausência de qualquer fundamento.
Há uma relação entre o método como caminho e a expe-
riência de pesquisa do conhecimento, entendida como traves-
sia geradora de conhecimento e sabedoria. Em Notas de um
método, María Zambrano3 refere-se a uma metafísica para a
experiência, assinalando a peculiaridade de um método-cami-
nho que transite entre a experiência da pluralidade e da incer-
teza, experiência que hoje a educação deve encorajar, estabe-
lecendo uma relação direta com a revelação da multiculturali-
dade das sociedades no âmago da planetarização.
María Zambrano postula um método-caminho não só do
espírito (já que nunca é possível separar o espírito do corpo),
mas de toda o ser, e não apenas para realizar o que é possível,
mas também para pressentir o que é impossível, para o desejo
do que não se pode alcançar e para a esperança do que não se
pode esperar4.
Por essa razão, o método não precede a experiência, o
método emerge durante a experiência e se apresenta ao final,
talvez para uma nova viagem.
A experiência — afirma Zambrano — precede qualquer
método. Poder-se-ia afirmar que a experiência constitui um a
priori e o método, um a posteriori. Isso só é verdadeiro como
uma indicação, já que a verdadeira experiência não pode ocor-
rer sem a intervenção de uma espécie de método. Desde o
3. Zambrano, M. Notas de un método. Madrid, Mondadori, 1989.
4. Retornaremos à noção de esperança.
EDUCAR NA ERA PLANETÁRIA 21
início, o método deve conter dada experiência bem precisa que,
graças a ele, adquire forma e sentido. Foi indispensável uma
dose de aventura e até mesmo uma certa perdição na expe-
riência; foi necessário que o sujeito se perdesse em sua própria
experiência. Esse modo de perdição transformar-se-á em se-
guida em liberdade.
O método como viagem e transfiguração
Longe da improvisação, mas também buscando a verda-
de, o método como
caminho que se experimenta seguir é um
método que se dissolve no caminhar. Isso explica a atualidade
e o valor dos versos de Antonio Machado, que sempre nos
acompanha e nos dá força: “Caminante no hay camino, se
hace camino al andar” [Caminhante não há caminho, o cami-
nho faz-se caminho ao andar]. Esse verso é muito conhecido,
mas talvez não tenha sido totalmente compreendido. A simpli-
cidade expressiva de Antonio Machado esconde a experiência
de uma dolorosa e lúcida percepção da complexidade da vida
e do humano; sem dúvida, a função essencial da verdadeira
literatura se resuma a isso: mostrar a experiência anônima da
humanidade traduzida em forma de saber e de conhecimento,
tantas vezes deixada de lado pela atividade acadêmica e inte-
lectual, e hoje tão necessária para educar e educar-nos5.
5. Antonio Machado relata com singela humildade um conhecimento apreendido em
sua viagem singular e irrepetível, que, por sua vez, reflete sobre seu próprio caminhar. Não
são outra coisa os cinqüenta e três versos do poema intitulado “Proverbios y cantares”, em
que se diz, por exemplo: “nuestras horas son minutos / cuando esperamos saber,/ y siglos
cuando sabemos / lo que se puede aprender” [nossas horas são minutos / quando espera-
mos saber, / e séculos quando sabemos / o que se pode aprender] — Estrofe IV; ou aquela
que sempre cantamos: “Caminante, son tus huellas / el camino, y nada más; / caminante,
no hay camino, / se hace camino al andar. / Al andar se hace caminho, / y al volver la vista
atrás / se ve la senda que nunca / se ha de volver a pisar. / Caminante, no hay camino, / sino
estelas en la mar” [Caminhante, são tuas pegadas / o caminho, e nada mais; / caminhante,
não há caminho,/ faz-se caminho ao andar. / Ao andar se faz o caminho, / e ao voltar o olhar
22 MORIN • CIURANA • MOTTA
Filósofo e poeta, Machado sabe que, se existe um méto-
do, este só poderá nascer durante a pesquisa; talvez no final
poderá ser formulado, e até em alguns casos formalizar-se.
Como tantos outros já afirmaram: “o método vem no final”
(Nietzsche), “chamamos caminhos os nossos titubeios” (Kafka).
É possível o regresso, a volta ao início do caminho? Para
Antonio Machado, “ninguém voltou ainda”. Em todo o caso, o
retorno não poderá ser um círculo completo, pois isso é impos-
sível, uma vez que, para o homem, qualquer método traz con-
sigo a antiqüíssima experiência da viagem. Esse retorno nos
ensina a sabedoria que se depreende dos mitos, das tradições
e das religiões, mas sempre retornamos modificados; quem
retorna é outro. Essa aprendizagem acarreta uma transfigura-
ção. Se o caminho é uma trajetória em espiral, o método, ago-
ra consciente de si, descobre e nos descobre diferentes. Um
retorno ao início da travessia também revela precisamente o
quanto esse início encontra-se longínquo no presente. Essa é a
revolução da aprendizagem6.
Aquele que quer chegar — afirma Nietzsche — à liberdade
da razão só tem direito (ao menos por certo tempo) a se sentir
na terra como um viajante sem direção fixa. Terá de se deslocar
com os olhos muito abertos e conservar as imagens que o mun-
do oferece; por isso não pode ligar fortemente seu coração a
nada em especial; é preciso que haja sempre nele algo do via-
jante que encontra seu prazer na mudança e em sua paisagem.
O viajante passará noites ruins e se sentirá cansado, encontrará
fechada a porta da cidade, ouvirá rugir as feras do deserto en-
quanto um vento gelado castigará seu corpo.
para trás / vê-se a estrada que nunca / se há de tornar a pisar. / Caminhante, não há cami-
nho, / apenas trilhas sobre o mar]. In: Obras, poesías y prosa. Buenos Aires, Losada, 1964,
estrofe XXIX.
6. Utilizamos aqui o antigo significado de revolução, empregado para a descrição as-
tronômica do percurso dos planetas, e não só no sentido linear e progressivo ou de ruptura
de uma linearidade, postulada pelas teorias do desenvolvimento e pela idéia moderna de
revolução.
EDUCAR NA ERA PLANETÁRIA 23
É impossível reduzir o método/caminho/ensaio/travessia/
pesquisa/estratégia a um programa e ele tampouco pode ser
reduzido à constatação de uma vivência individual. Na verda-
de, o método define-se pela possibilidade de encontrar nos
detalhes da vida concreta e individual, fraturada e dissolvida
no mundo, a totalidade de seu significado aberto e fugaz.
Para Baudelaire, o problema do método consistia em sua
possível aptidão para capturar o efêmero, o contingente, a novi-
dade, a multiplicidade, enfim, a complexidade. “O problema do
método não se restringe às artes plásticas, pois também o escri-
tor e o ensaísta se defrontam constantemente com ele, e isso
requer uma habilidade especial.” O nome, diz Baudelaire, desse
hábil sujeito é o de menos, pois o essencial é sua observação
apaixonada, o exercício de uma “paixão crítica” (Octavio Paz).
Chame-se de filósofo, espectador, intelectual, flâneur, pensador,
ou como se queira, o essencial, o que requerem estes tempos é a
capacidade de se situar em meio à multiplicidade e complexida-
de da vida para capturar, destilar o “eterno do transitório”.
Apenas uma visão deficiente e irrefletida pode reduzir a
dimensão múltipla do método a uma atividade programática e
a uma técnica de produção de conhecimento. Para elucidar as
circunstâncias, para compreender a complexidade humana e o
devir do mundo requer-se um pensar que transcenda a ordem
dos saberes constituídos e da trivialidade do discurso acadêmi-
co. Uma escrita e um pensar que incorporem a errância e o
risco da reflexão. É impossível hoje enquadrar a busca do co-
nhecimento nos estereótipos dos discursos e dos gêneros lite-
rários herdados.
A relação entre o método e a teoria
O caminho certamente se inicia a partir de algo e tam-
bém prefigura um fim. É importante compreender aqui o lugar
24 MORIN • CIURANA • MOTTA
ocupado pela teoria e como ela se relaciona com o método.
Uma teoria não é o conhecimento, ela permite o conhecimen-
to. Uma teoria não é uma chegada, é a possibilidade de uma
partida. Uma teoria não é uma solução, é a possibilidade de
tratar um problema. Uma teoria só cumpre seu papel cogniti-
vo, só adquire vida, com o pleno emprego da atividade mental
do sujeito. E é essa intervenção do sujeito o que confere ao
termo método seu papel indispensável.
Na perspectiva complexa, a teoria, como um engrama, é
composta de traços permanentes, e o método, para ser posto
em funcionamento, precisa de estratégia, iniciativa, invenção,
arte. Estabelece-se uma relação recursiva entre método e teo-
ria. O método, gerado pela teoria, regenera a própria teoria.
Toda teoria dotada de alguma complexidade só pode con-
servar sua complexidade à custa de uma recriação intelectual
permanente. Corre incessantemente o risco de se degradar, ou
seja, de se simplificar. Toda teoria abandonada à sua própria
densidade tende a se aplainar, a se unidimensionalizar e a se
reificar.
Na perspectiva complexa, a teoria não é nada sem o mé-
todo, a teoria quase se confunde com o método, ou melhor,
teoria e método são os dois componentes indispensáveis do
conhecimento complexo.
A errância e o erro
O método inclui também a precariedade do pensar e a
falta de fundamento do conhecer. O exercício desse método, a
tentativa desse caminho requer a incorporação do erro e uma
visão diferente da verdade.
Apesar do que já foi dito e escrito, o erro é um problema
prioritário e original, e ainda tem-se que pensar muito sobre
EDUCAR NA ERA PLANETÁRIA 25
ele. No livro Os sete saberes necessários para a educação do
futuro, desde o início, enfatiza-se amplamente a importância
deste problema para a educação: o maior erro seria subesti-
mar o problema do erro7.
Cosntatamos que a vida comporta inúmeros processos de
detecção e repressão do erro, e o extraordinário é que a vida
também comporta processos

Teste o Premium para desbloquear

Aproveite todos os benefícios por 3 dias sem pagar! 😉
Já tem cadastro?

Continue navegando