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PESQUISA QUALITATIVA.pdf PESQUISA QUALITATIVA – CARACTERÍSTICAS, USOS E POSSIBILIDADES CADERNO DE PESQUISAS EM ADMINISTRAÇÃO, SÃO PAULO, V.1, Nº 3, 2º SEM./1996 José Luis Neves Mestrando do curso de Pós Graduação em Administração de Empresas FEA-USP 1. INTRODUÇÃO A pesquisa social tem sido marcada fortemente por estudos que valorizam o emprego de métodos quantitativos para descrever e explicar fenômenos. Hoje, porém, podemos identificar outra forma de abordagem que se tem afirmado como promissora possibilidade de investigação: trata-se da pesquisa identificada como "qualitativa". Surgido inicialmente no selo da Antropologia e da Sociologia, nos últimos 30 anos esse tipo de pesquisa ganhou espaço em áreas como a Psicologia, a Educação e a Administração de Empresas. Enquanto estudos quantitativos geralmente procuram seguir com rigor um plano previamente estabelecido (baseado em hipóteses claramente indicadas e variáveis que são objeto de definição operacional), a pesquisa qualitativa costuma ser direcionada, ao longo de seu desenvolvimento; além disso, não busca enumerar ou medir eventos e, geralmente, não emprega instrumental estatístico para análise dos dados; seu foco de interesse é amplo e parte de uma perspectiva diferenciada da adotada pelos métodos quantitativos. Dela faz parte a obtenção de dados descritivos mediante contato direto e interativo do pesquisador com a situação objeto de estudo. Nas pesquisas qualitativas, é freqüente que o pesquisador procure entender os fenômenos, segundo a perspectiva dos participantes da situação estudada e, a partir, daí situe sua interpretação dos fenômenos estudados. 2. CARACTERÍSTICAS DA PESQUISA QUALITATIVA Os estudos de pesquisa qualitativa diferem entre si quanto ao método, à forma e aos objetivos. GODOY (1995a, p.62) ressalta a diversidade existente entre os trabalhos qualitativos e enumera um conjunto de características essenciais capazes de identificar uma pesquisa desse tipo, a saber: (1) o ambiente natural como fonte direta de dados e o pesquisador como instrumento fundamental; (2) o caráter descritivo; (3) o significado que as pessoas dão às coisas e à sua vida como preocupação do investigador; (4) enfoque indutivo. A expressão "pesquisa qualitativa" assume diferentes significados no campo das ciências sociais. Compreende um conjunto de diferentes técnicas interpretativas que visam a descrever e a decodificar os componentes de um sistema complexo de significados. Tem por objetivo traduzir e expressar o sentido dos fenômenos do mundo social; trata-se de reduzir a distância entre indicador e indicado, entre teoria e dados, entre contexto e ação (MAANEN, 1979a, p.520). Em sua maioria, os estudos qualitativos são feitos no local de origem dos dados; não impedem o pesquisador de empregar a lógica do empirismo científico (adequada para fenômenos claramente definidos), mas partem da suposição de que seja mais apropriado empregar a perspectiva da analise fenomenológica, quando se trata de fenômenos singulares e dotados de certo grau de ambigüidade. O desenvolvimento de um estudo de pesquisa qualitativa supõe um corte temporal-espacial de determinado fenômeno por parte do pesquisador. Esse corte define o campo e a dimensão em que o trabalho desenvolver-se-á, isto é, o território a ser mapeado. O trabalho de descrição tem caráter fundamental em um estudo qualitativo, pois é por meio dele que os dados são coletados (MANNING, 1979, p.668). Em certa medida, os métodos qualitativos se assemelham a procedimentos de interpretação dos fenômenos que empregamos no nosso dia-a-dla, que têm a mesma natureza dos dados que o pesquisador qualitativo emprega em sua pesquisa. Tanto em um como em outro caso, trata-se de dados simbólicos, situados em determinado contexto; revelam parte da realidade ao mesmo tempo que escondem outra parte. MAANEN (1979a, p.521) comenta que, para não atravessar uma rua, basta que vejamos se aproximar um caminhão; não é necessário saber seu peso exato, a velocidade a que corre, de onde vem, etc. Nessa situação, o caminhão pode ser entendido como um símbolo de velocidade e força, e, para a finalidade de atravessar a rua, outras informações seriam prescindíveis. Há problemas e situações cuja análise pode ser feita sem quantificação de certos detalhes, delimitação precisa do tempo em que ocorreram, lugar, causas, procedência dos agentes, etc.; tais detalhes, embora obteníveis, seriam de pouca utilidade. Jose Luis Neves CADERNO DE PESQUISAS EM ADMINISTRAÇÃO, SÃO PAULO, V.1, Nº 3, 2º SEM./1996 2 O vínculo entre signo e significado, conhecimento e fenômeno, sempre depende do arcabouço de interpretação empregado pelo pesquisador, que lhe serve de visão de mundo e de referencial. Esse arcabouço pode servir como base para estabelecer caminhos de pesquisa quantitativa e delimitação do tema, de forma tal que os esforços de cunho qualitativo e quantitativo podem se complementar. Embora possam estar presentes, tais vínculos nem sempre são explicitados de forma clara nos relatórios de pesquisa. 3. MÉTODOS QUALITATIVOS E MÉTODOS QUANTITATIVOS Os métodos qualitativos e quantitativos não se excluem. Embora difiram quanto à forma e à ênfase, os métodos qualitativos trazem como contribuição ao trabalho de pesquisa uma mistura de procedimentos de cunho racional e intuitivo capazes de contribuir para a melhor compreensão dos fenômenos. Pode-se distinguir o enfoque qualitativo do quantitativo, mas não seria correto afirmar que guardam relação de oposição (POPE & MAYS, 1995, p.42). Nas ciências sociais, os pesquisadores, ao empregarem métodos qualitativos estão mais preocupados com o processo social do que com a estrutura social; buscam visualizar o contexto e, se possível, ter uma integração empática com o processo objeto de estudo que implique melhor compreensão do fenômeno. Embora possamos contrastar os métodos quantitativos e qualitativos enquanto associados diferentes visões da realidade, não podemos afirmar que se oponham ou que se excluam mutuamente como instrumentos de análise. Uma pesquisa pode revelar a preocupação em diagnosticar um fenômeno (descrevê- lo e interpretá-lo); o autor poderia também estar preocupado com explicar esse fenômeno, a partir de seus determinantes, isto é, as relações de nexo causal. Tais pontos de vista não se contrapõem; na verdade, complementam-se e podem contribuir, em um mesmo estudo, para um melhor entendimento do fenômeno estudado. No dizer de WILDEMUTH (1993, p. 451): "It is true that the positivist approach, with its goal of discerning the statistical regularities of behavior, is oriented toward counting the occurrences and measuring the extent of the behaviors being studied. By contrast, the interpretive approach, with its goal of understanding the social world from the view point of the actors within it, is oriented toward detailed description of the associated with observable behaviors." JICK (1979, p.602) chama a combinação de métodos quantitativos e qualitativos de "triangulação". Faz referência a outros autores, como Campbell e Fiske, que, em 1959, propuseram a denominação “validação convergente” ou multimétodo", com sentido semelhante. A triangulação pode estabelecer ligações entre descobertas obtidas por diferentes fontes, ilustrá- las e torná-las mais compreensíveis; pode também conduzir a paradoxos, dando nova direção aos problemas a serem pesquisados. Um plano cuidadoso de emprego cuidadoso de métodos quantitativos e qualitativos deve supor que a análise dos dados se dê ao longo da execução do estudo, o que eventualmente pode provocar seu redirecionamento. MORSE (l991, p.120) propõe o emprego da expressão "triangulação simultânea" para o uso ao mesmo tempo de métodos quantitativos e qualitativos. Ressalta que, na fase de coleta de dados, a interação entre os dois métodos é reduzida, mas, na fase de conclusão, eles se complementam. Em contraposição a essa forma de combinar os dois métodos, o autor sugere o que chama de "triangulação seqüenciada", na qual os resultados de um método servem de base para o planejamento do emprego do outro método que o segue, complementando-o. Combinar técnicas quantitativas e qualitativas torna uma pesquisa mais forte e reduz os problemas de adoção exclusiva de um desses grupos; por outro lado, a omissão no emprego de métodos qualitativos, num estudo em que se faz possível e útil empregá-los, empobrece a visão do pesquisador quanto ao contexto em que ocorre o fenômeno. DUFFY (1987, p.131) indica como benefícios do emprego conjunto dos métodos qualitativos e quantitativos os seguintes: 1) possibilidade de congregar controle dos vieses (pelos métodos quantitativos) com compreensão da perspectiva dos agentes envolvidos no fenômeno (pelos métodos qualitativos); 2) possibilidade de congregar identificação de variáveis específicas (pelos métodos quantitativos) com uma visão global do fenômeno (pelos métodos qualitativos); 3) possibilidade de completar um conjunto de fatos e causas associados ao emprego de metodologia quantitativa com uma visão da natureza dinâmica da realidade; 4) possibilidade de enriquecer constatações obtidas sob condições controladas com dados obtidos dentro do contexto natural de sua ocorrência; 5) possibilidade de reafirmar validade e confiabilidade das descobertas pelo emprego de técnicas diferenciadas. No processo de construção e desenvolvimento da ciência, é lícito supor que as teorias venham antes dos fatos, sob a forma de especulação. Na pesquisa organizacional, é grande a tentação de formar teorias prematuras dada a insuficiência de dados, e na PESQUISA QUALITATIVA – CARACTERÍSTICAS, USOS E POSSIBILIDADES CADERNO DE PESQUISAS EM ADMINISTRAÇÃO, SÃO PAULO, V.1, Nº 3, 2º SEM./1996 3 expectativa de que esses venham a emergir de estudos exploratórios (MAANEN, 1979b, p.539). Em uma pesquisa, seja qualitativa ou quantitativa, o pesquisador não se ocupa simplesmente de acumular dados; coletados considerando que seu significado seja útil para os fins da pesquisa e dentro de um dado contexto. O emprego de métodos qualitativos pode conferir redirecionamento da investigação, com vantagens em relação ao planejamento integral e prévio de todos os passos da pesquisa (PIORE, 1979, p. 560). Na década de 70, Michael Piore da Cornell University desenvolveu estudo no campo do efeito da automação sobre a qualificação profissional na manufatura; uma vez estruturada a pesquisa com enfoque comparativo, à medida que se aprofundou no tema, passou a conhecer melhor sua natureza, o que o levou a dar novos rumos à investigação. Devem-se evitar ilusões, quando nos deparamos com estudos qualitativos. Dados e métodos qualitativos são, por vezes, tidos como mais atrativos que os quantitativos (MILES, 1979, p. 590); são considerados mais ricos, completos, globais, reais. Seu valor, muitas vezes, parece, aos olhos do leitor, inquestionável; foram obtidos mediante relação direta com o objeto e conduziriam a vínculos mais visíveis de causa e efeito do que, por exemplo, tabelas de correlação estatística. Conduziriam a "insights" interessantes e reduziriam o efeito das limitações de ação do pesquisador. Uma vez expressos sob a forma de um estudo de caso, as constatações ali contidas seriam, por assim dizer, inegáveis. Tal visão é ilusória; tanto quanto preconceitos contra a pesquisa qualitativa, deve-se evitar ter preconceitos a favor dela, e cabe ressaltar que tanto a abordagem qualitativa como a quantitativa são capazes de produzir tanto estudos bons quanto ruins. Ademais, os dados qualitativos também têm suas próprias fraquezas e problemas que devem ser considerados e não, negados. Os métodos qualitativos têm um papel importante no campo dos estudos organizacionais (DOWNEY & IRELAND, 1979, p.635). Estudos de avaliação de características do ambiente organizacional são especialmente beneficiados por métodos qualitativos, embora estes não sirvam só para essa finalidade. Por outro lado, ainda segundo os autores, enfoque qualitativo presta-se menos para questões em que eliminar o viés do observador seja fundamental para a análise do fenômeno. 4. AS FORMAS DA PESQUISA QUALITATIVA GODOY (1995b, p.21) aponta a existência de, pelo menos, três diferentes possibilidades oferecidas pela abordagem qualitativa: a pesquisa documental, o estudo de caso e a etnografia. A pesquisa documental é constituída pelo exame de materiais que ainda não receberam um tratamento analítico ou que podem ser reexaminados com vistas a uma interpretação nova ou complementar. Pode oferecer base útil para outros tipos de estudos qualitativos e possibilita que a criatividade do pesquisador dirija a investigação por enfoques diferenciados. Esse tipo de pesquisa permite o estudo de pessoas a que não temos acesso físico (distantes ou mortas). Além disso, os documentos são uma fonte não-reativa e especialmente propícia para o estudo de longos períodos de tempo. O objeto do estudo de caso, por seu turno, é a análise profunda de uma unidade de estudo. No entender de GODOY (1995b, p.25) visa ao exame detalhado de um ambiente, de um sujeito ou de uma situação em particular. Amplamente usado em estudos de administração, tem se tornado a modalidade preferida daqueles que procuram saber como e por que certos fenômenos acontecem ou dos que se dedicam a analisar eventos sobre os quais a possibilidade de controle é reduzida ou quando os fenômenos analisados são atuais e só fazem sentido dentro de um contexto específico. Dentre os métodos qualitativos conhecidos, o etnográfico tem se destacado como um dos mais importantes. Oriundo da Antropologia, envolve um conjunto particular de procedimentos metodológicos e interpretativos desenvolvidos ao longo do século XX, mas, em sentido lato, pode-se afirmar (SANDAY, 1979, p.527) que, desde os antigos gregos, tem sido praticado. Esse método envolve longo período de estudo em que o pesquisador fixa residência em uma comunidade e passa a usar técnicas de observação, contato direto e participação em atividades. Usando o termo "paradigma" no sentido kuhniano (KUHN, 1962, p.79), pode-se dizer que o paradigma etnográfico pode assumir um caráter, diferenciado, na medida em que esteja mais ou menos marcado pela visão do todo, pela preocupação com o significado, e conforme o estudo penda mais para o diagnóstico ou para a explicação dos fenômenos. O que importa, nesses estudos, não é a forma de que os fatos se revestem, mas, sim, o seu sentido. A natureza do fenômeno influi na determinação da perspectiva mais adequada: se, por exemplo, pretende-se analisar os detalhes complexos de uma burocracia em funcionamento, o método interpretativo pode oferecer um bom ângulo de visão; se, por outro lado, alguém procura estudar diferenças entre aplicação de regras burocráticas, um estudo comparativo-explicativo seria mais adequado. Jose Luis Neves CADERNO DE PESQUISAS EM ADMINISTRAÇÃO, SÃO PAULO, V.1, Nº 3, 2º SEM./1996 4 5. PROBLEMAS DO MÉTODO QUALITATIVO Não se nega a existência de problemas relacionados com a essência do método qualitativo. MANNING (1979, p.668) chama a atenção para os problemas relacionados com o uso da linguagem na expressão das idéias, e para o fato de que estas devem ser decodificadas para que a análise qualitativa seja feita. Argumentos são expressos sob a forma de texto, de forma que diferenças de estilo, de contexto ou a intenção de atribuir ao signo um caráter simbólico particular podem não ser captados pelo pesquisador. O próprio texto deve ser objeto de análise e as diferenças de relação significante-significado podem afetar os resultados da análise, razão pela qual devem elas próprias ser objeto de consideração. A tarefa de coletar e analisar os dados é extremamente trabalhosa e tradicionalmente individual. Muita energia faz-se necessária para tornar os dados sistematicamente comparáveis. Além disso, costumam ser grandes as exigências de tempo necessário para registrar os dados, organizá-los, codifica-los e fazer a análise. O problema mais sério, porém, parece residir no fato de que os métodos para análise e as convenções a empregar não são bem estabelecidos, ao contrário do que ocorre com a pesquisa quantitativa: constatações inovadoras, globais e aparentemente inegáveis podem estar, de fato, erradas. Também preocupados com essas questões, DOWNEY & IRELAND (1979, p.630) ressaltam que a coleta, a interpretação e a avaliação dos dados são problemáticos em qualquer tipo de pesquisa seja ela quantitativa ou qualitativa, de forma que a pesquisa organizacional não constitui exceção. A questão da objetividade no discurso científico coloca-se não pela existência de um mundo fora da cabeça do pesquisador e outro dentro (KIRK & MILLER, 1986, p.70), e, sim, pelo fato de os resultados da pesquisa conterem, por si próprios, um significado que independe da preferência ou da admiração do pesquisador ou dos leitores do estudo, seja ele quantitativo ou qualitativo: não é menos importante ser objetivo no exame de sociedades do que ao pesquisar fenômenos físicos. Tem-se como impossível a busca de total objetividade nos trabalhos científicos (MELLON, 1990, p.26), uma vez que os pesquisadores são seres humanos. O problema está em admitir a existência de vieses de interpretação, coisa que não é dada a um cientista sério negar. Fenômenos naturais são essencialmente diferenciados dos sociais. Ao mesmo tempo que cria o mundo, o homem é por ele transformado, em atividade contínua e num processo circular. Produto e determinantes das condições históricas que ajudam a criar, os elementos do mundo social não são elementos naturais, e não podem ser tratados como tais. PRADO (1990, p.21) qualifica as coisas que aí estão como coisas naturais-sociais, dotadas de valor e de significação para os homens dos quais dependem. Para os problemas da confiabilidade e da validação dos resultados de estudos qualitativos não há soluções simples. BRADLEY (1993, p.436) recomenda o uso de quatro critérios para os atenuar, a saber: conferir a credibilidade do material investigado, zelar pela fidelidade no processo de transcrição que antecede a análise, considerar os elementos que compõem o contexto e assegurar a possibilidade de confirmar posteriormente os dados pesquisados. KIRK & MILLER (1986, p.72), por seu turno, consideram que cumprir seqüenciada e integralmente as fases de projeto de pesquisa, coleta de dados, análise e documentação contribui para tornar mais confiáveis os resultados do estudo qualitativo. Desconhece-se, por impassível, procedimento que possa assegurar confiabilidade absoluta a um estudo qualitativo. Podemos dizer que tanto é inadequado ignorar a existência de problemas ligados à natureza dos métodos qualitativos, quanto manter uma visão simplista deles. 6. CONCLUSÃO São diversas as formas de avançar no conhecimento de um fenômeno: pela sua descrição, pela medição, pela busca de nexo causal entre seus condicionantes, pela análise de contexto, pela distinção entre forma manifesta e essência, pela indicação das funções de seus componentes, pela visão de sua estrutura, pela comparação de estados alterados de sua essência, dentre outras. Diferentes maneiras de conceber e lidar com o mundo geram formas distintas de perceber e interpretar significados e sentidos do objeto pesquisado que não se opõem nem se contradizem. A despeito das restrições quanto à sua aplicação por parte de pesquisadores acostumados ao uso exclusivo de métodos quantitativos, baseados em pressupostos positivistas, os estudos qualitativos têm hoje lugar assegurado como forma viável e promissora de investigação. As diferenças entre os dois métodos devem ser empregadas pelo pesquisador em benefício do estudo, isto é, a seu favor; nessa medida, combinar métodos distintos pode contribuir para o enriquecimento da análise. A falta de exploração de um certo tema na literatura disponível, o caráter descritivo da pesquisa que se pretende empreender ou a intenção de compreender um fenômeno complexo na sua totalidade são elementos que tornam propício o emprego de métodos qualitativos; em qualquer caso, a opção por tais métodos sempre dependerá de clara definição do problema e dos objetivos da pesquisa, assim como da PESQUISA QUALITATIVA – CARACTERÍSTICAS, USOS E POSSIBILIDADES CADERNO DE PESQUISAS EM ADMINISTRAÇÃO, SÃO PAULO, V.1, Nº 3, 2º SEM./1996 5 compreensão das forças e fraquezas de cada método disponível, consideradas as condições específicas do estudo. Compreender e interpretar fenômenos, a partir de seus significantes e contexto são tarefas sempre presentes na produção de conhecimento, o que contribui para que percebamos vantagem no emprego de métodos que auxiliam a ter uma visão mais abrangente dos problemas, supõem contato direto com o objeto de análise e fornecem um enfoque diferenciado para a compreensão da realidade. BIBLIOGRAFIA DOWNEY, H. Kirk; IRELAND, R. Duane, Quantitative versus qualitative: the case of environmental assessment in organizational In Administrative Science Quarterly, vol. 24, no. 4, December 1979, pp. 630-637. DUFFY, Mary E., Methodological triangulation: a vehicle for merging quantitative and qualitative research methods, In Journal of Nursing Scholarship, 19 (3), 1987, pp. 130-133. GODOY, Arilda S., Introdução à pesquisa qualitativa e suas possibilidades, In Revista de Administração de Empresas, v.35, n.2, Mar./Abr. 1995a, p. 57-63. 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MILES, Matthew B., Qualitative data as an attractive nuisance: the problem of analysis, In Administrative Science Quarterly, vol. 24, no. 4, December 1979, pp. 590-601. MELLON, Constance A., Naturalistic inquiry for library science: methods and applications for research, evaluation, and teaching, New York: Greenwood, 1990. MORSE, J., Approaches to qualitative-quantitative methodological triangulation, Nursing Research, 40 (1), 1991, p. 120-132. PIORE, Michael J., Qualitative research techniques in economics, In Administrative Science Quarterly, vol. 24, nº 4, December 1979, pp. 560 - 569. POPE, Catherine; MAYS, Nick., Reaching the parts other methods cannot reach: an introduction to qualitative methods in health and health service research, In British Medical Journal, nº 311, 1995, pp.42-45. PRADO, Eleutério F. S., Um estudo sobre a compreensão da economia como ciência, Tese de livre-docência. Universidade de São Paulo, Junho de 1990. SANDAY, Peggy Reeves., The ethnographic paradigm(s). In Administrative Science Quarterly, vol. 24, nº 4, December 1979, pp. 527-538. WILDEMUTH, Barbara M., Post-positivist research: two examples of methodological pluralism, In Library Quarterly, nº 63, 1993, pp. 450-468 O ATO DE CRIAÇÃO.pdf Gilles Deleuze O ato de criação 2 Eu gostaria também de formular algumas perguntas. Formulá-las a vocês e formulá-las a mim mesmo. Seria algo como: o que exatamente vocês fazem, vocês, homens do cinema? E eu, o que exatamente eu faço, quando faço ou espero fazer filosofia? Poderia formular a pergunta de outra maneira: o que é ter uma idéia em cinema? Se fazemos ou queremos fazer cinema, o que significa ter uma idéia? O que acontece quando dizemos: “Ei, tive uma idéia”? Porque, de um lado, todo mundo sabe muito bem que ter uma idéia é algo que acontece raramente, é uma espécie de festa, pouco corrente. E depois, de outro lado, ter uma idéia não é algo genérico. Não temos uma idéia em geral. Uma idéia, assim como aquele que tem a idéia, já está destinada a este ou àquele domínio. Trata-se ou de uma idéia em pintura, ou de uma idéia em romance, ou de uma idéia em filosofia, ou de uma idéia em ciência. E obviamente nunca é a mesma pessoa que pode ter todas elas. As idéias, devemos tratá- las como potenciais já empenhados nesse ou naquele modo de expressão, de sorte que eu não posso dizer que tenho uma idéia em geral. Em função das técnicas que conheço, posso ter uma idéia em tal ou tal domínio, uma idéia em cinema ou uma idéia em filosofia. O que é ter uma idéia em alguma coisa? Parto do princípio de que eu faço filosofia e vocês fazem cinema. Admitido isso, seria muito fácil dizer que a filosofia, estando pronta para refletir sobre qualquer coisa, por que não refletiria sobre o cinema? Um verdadeiro absurdo. A filosofia não é feita para refletir sobre qualquer coisa. Ao tratar a filosofia como uma capacidade de “refletir-sobre”, parece que lhe damos muito, mas na verdade lhe retiramos tudo. Isso porque ninguém precisa da filosofia para refletir. As únicas pessoas capazes de refletir efetivamente sobre o cinema são os cineastas, ou os críticos de cinema, ou então aqueles que gostam de cinema. Essas pessoas não 3 precisam da filosofia para refletir sobre o cinema. A idéia de que os matemáticos precisariam da filosofia para refletir sobre a matemática é uma idéia cômica. Se a filosofia deve servir para refletir sobre algo, ela não teria nenhuma razão para existir. Se a filosofia existe, é porque ela tem seu próprio conteúdo. Qual é o conteúdo da filosofia? Muito simples: a filosofia é uma disciplina tão criativa, tão inventiva quanto qualquer outra disciplina, e ela consiste em criar ou inventar conceitos. E os conceitos não existem prontos e acabados numa espécie de céu em que aguardariam que uma filosofia os apanhasse. Os conceitos, é preciso fabricá-los. É claro que os conceitos não se fabricam assim, num piscar de olhos. Não nos dizemos, um belo dia: “Ei, vou inventar um conceito!”, assim como um pintor não se diz: “Ei, vou pintar um quadro!”, ou um cineasta: “Ei, vou fazer um filme!”. É preciso que haja uma necessidade, tanto em filosofia quanto nas outras áreas, do contrário não há nada. Um criador não é um ser que trabalha pelo prazer. Um criador só faz aquilo de que tem absoluta necessidade. Essa necessidade — que é uma coisa bastante complexa, caso ela exista — faz com que um filósofo (aqui pelo menos eu sei do que ele se ocupa) se proponha a inventar, a criar conceitos, e não a ocupar-se em refletir, mesmo sobre o cinema. Eu digo que faço filosofia, ou seja, que tento inventar conceitos. E vocês que fazem cinema, o que vocês fazem? O que vocês inventam não são conceitos — isso não é de sua alçada —, mas blocos de movimento/ duração. Se fabricamos um bloco de movimento/duração, é possível que façamos cinema. Não se trata de invocar uma história ou de recusá-la. Tudo tem uma história. A filosofia também conta histórias. Histórias com conceitos. O cinema conta histórias com blocos de movimento/duração. A pintura inventa um tipo totalmente 4 diverso de bloco. Não são nem blocos de conceitos, nem blocos de movimento/duração, mas blocos de linhas/cores. A música inventa um outro tipo de bloco, também todo peculiar. Ao lado de tudo isso, a ciência não é menos criadora. Eu não vejo tantas oposições entre as ciências e as artes. Se pergunto a um erudito o que ele faz, também ele inventa. Ele não descobre - a descoberta existe, porém não é por meio dela que definimos uma atividade científica como tal —, mas cria como se fosse um artista. Um erudito, coisa bem simples, é alguém que inventa ou cria funções. E ele está sozinho nessa empreitada. Um erudito, na condição de erudito, nada tem a ver com conceitos. É justamente para isso — e felizmente- que existe a filosofia. Em compensação, existe uma coisa que só o erudito sabe fazer: inventar e criar funções. O que é uma função? Existe uma função sempre que há correspondência uniforme de pelo menos dois conjuntos. A noção de base da ciência — e não desde ontem, mas desde muito tempo — é a noção de conjunto. Um conjunto não tem nada a ver com um conceito. Sempre que você puser conjuntos em correlação uniforme, você obterá conjuntos e poderá dizer: “Eu faço ciência”. Se uma pessoa qualquer pode falar com outra qualquer, se um cineasta pode falar com um homem de ciência, se um homem de ciência pode ter algo a dizer a um filósofo e vice-versa, é na medida e em função das atividades criativas de cada um. Não que haja espaço para falar da criação — a criação é antes algo bastante solitário —, mas é em nome de minha criação que tenho algo a dizer para alguém. Se eu alinhasse todas essas disciplinas que se definem pela sua atividade criadora, diria que há um limite que lhes é comum. O limite que é comum a todas essas séries de invenções, invenções de funções, invenções de blocos de duração/movimento, invenção de conceitos, é o espaço-tempo. Se todas as disciplinas se comunicam entre si, isso se dá no plano daquilo que nunca se 5 destaca por si mesmo, mas que está como que entranhado em toda a disciplina criadora, a saber, a constituição dos espaços-tempos. Em Robert Bresson (diretor francês, 1907), caso bastante conhecido, raramente existem espaços inteiros. São espaços que podemos chamar desconexos. Há, por exemplo, um canto, um canto de um quarto. Depois vemos um outro canto, ou então um pedaço da parede. Tudo ocorre como se o espaço bressoniano se apresentasse como uma série de pequenos fragmentos cuja conexão não está predeterminada. Existem grandes cineastas que empregam, ao contrário, espaços de conjunto. Não digo que seja mais fácil manejar um espaço de conjunto. Mas o espaço de Bresson constitui um tipo de espaço particular. Sem dúvida, ele foi retomado mais tarde, serviu de modo bastante criativo para outros, que o renovaram. Mas Bresson foi um dos primeiros a construir o espaço com pequenos fragmentos desconexos, ou seja, pequenos fragmentos cuja conexão não é predeterminada. E eu diria o seguinte: no limite de todas as tentativas de criação, existem espaços-tempos. É só isso que existe. Os blocos de duração/movimento de Bresson tenderão a esse tipo de espaço, entre outros. A pergunta então é essa: esses pequenos fragmentos de espaço visual cuja conexão não é dada previamente são conectados por meio de quê? Pela mão. Não se trata de teoria nem de filosofia. Não é um processo dedutivo. O que quero dizer é que o espaço de Bresson é a valorização cinematográfica da mão no seio da imagem. A junção de pequenos trechos de espaço bressoniano pelo fato mesmo de serem trechos, pedaços desconexos do espaço, pode ser exclusivamente uma junção manual. Daí a exaustão da mão em todo o seu cinema. Desse modo, o bloco de extensão/movimento de Bresson recebe como característica própria desse criador, desse espaço, o papel da mão, que irrompe em seus limites. Somente a mão é capaz de operar 6 efetivamente as conexões de uma parte a outra do espaço. E Bresson é sem dúvida o mais importante cineasta a ter reintroduzido no cinema os valores táteis. Não só porque ele sabe captar as mãos em imagens admiráveis. Se ele sabe captar admiravelmente as mãos em imagens é porque ele precisa delas. Um criador não é um ser que trabalha pelo prazer. Um criador só faz aquilo de que tem absoluta necessidade. Mais uma vez, ter uma idéia em cinema não é a mesma coisa que ter uma idéia em outro assunto. Contudo há idéias em cinema que também poderiam valer em outras disciplinas, que poderiam ser excelentes em romances, por exemplo. Mas elas não teriam, absolutamente, os mesmos ares. Além disso, existem idéias no cinema que só podem ser cinematográficas. Não importa. Mesmo quando se trata de idéias em cinema que poderiam valer em romances, elas já estão empenhadas num processo cinematográfico que faz com que elas estejam predestinadas. Esse é um modo de formular uma pergunta que me interessa: o que faz com que um cineasta tenha vontade de adaptar, por exemplo, um romance? Parece- me evidente que é porque ele tem idéias em cinema que fazem eco àquilo que o romance apresenta como idéias em romance. E com isso se dão grandes encontros. Não cogito do problema do cineasta que adapta um romance notoriamente medíocre. Ele pode precisar do romance medíocre, e isso não impede que o filme seja genial; seria interessante abordar essa questão. Mas proponho uma questão diferente: o que acontece quando o romance é um grande romance e revela-se essa afinidade pela qual alguém em cinema tem uma idéia que corresponde àquilo que era uma idéia em romance? Um dos casos mais belos é o de Akira Kurosawa (diretor japonês, 1910-1998). Por que ele tem essa familiaridade com Shakespeare e Dostoiévski? Por que é preciso um japonês para entrar em familiaridade com esses autores? 7 Eu sugiro uma resposta que creio tocar um pouco à filosofia. Nos personagens de Dostoiévski, produz-se muitas vezes algo bastante curioso, que pode dizer respeito a um pequeno detalhe. Geralmente, eles são muito agitados. Um personagem sai de casa, desce até a rua e diz: “Tânia, a mulher que amo, me pede ajuda. Vou correndo, ela morrerá se eu não for”. Ele desce a escada e encontra um amigo, ou vê um cão atropelado, e esquece, esquece completamente que Tânia o espera, à beira da morte. Ele se põe a falar, cruza com outro camarada, vai até sua casa tomar chá e, de súbito, diz novamente: “Tânia me espera, é preciso que eu vá”. O que significa tudo isso? Em Dostoiévski, os personagens são perpetuamente vítimas da urgência e, ao mesmo tempo em que eles são vítimas dessas urgências, que são questões de vida ou morte, eles sabem que há uma questão ainda mais urgente, embora não saibam qual. E é isso que os paralisa. Tudo se passa como se, na maior urgência — “É um incêndio, é preciso que eu vá” —, eles se dissessem: “Não, existe algo ainda mais urgente. Não moverei um dedo até saber do que se trata”. É “O Idiota” (romance de Dostoiévski filmado por Kurosawa). É a fórmula de “O Idiota”: “Veja, há um problema mais profundo. Qual problema, não saberia dizer ao certo. Mas me deixe. Tudo pode arder... É preciso encontrar esse problema mais urgente”. Isso Kurosawa não aprendeu de Dostoiévski. Todos os personagens de Kurosawa são assim. Eis um belo encontro. Se Kurosawa pode adaptar Dostoiévski, é pelo menos porque pode dizer: “Temos um assunto em comum, um problema em comum”. Os personagens de Kurosawa metem- se em situações impossíveis, mas atenção: há um problema mais urgente. E é preciso que eles saibam qual é esse problema. “Viver” é talvez o filme de Kurosawa que vá mais longe nesse sentido. Mas todos os seus filmes vão nesse sentido. “Os Sete Samurais”, por exemplo: todo o espaço de Kurosawa depende dele, é necessariamente 8 um espaço oval, castigado pela chuva. Em “Os Sete Samurais”, os personagens são pegos numa situação de urgência: eles aceitaram defender o vilarejo e do começo ao final do filme eles são afligidos por uma questão mais profunda, que será proferida no final, pelos chefes dos samurais, quando eles partem: “O que é um samurai? O que é um samurai, não em sentido genérico, mas naquela época?”. Alguém que não serve mais para nada. Os senhores não precisam mais deles, e os camponeses logo saberão defender-se sozinhos. Durante todo o filme, em que pese a urgência da situação, os samurais são atormentados por essa questão, digna de “O Idiota”: nós, samurais, o que somos nós? Uma idéia em cinema é desse tipo tão logo se ache empenhada num processo cinematográfico. Então você poderá dizer: “Tive uma idéia”, mesmo se você a toma emprestada de Dostoiévski. Uma idéia é algo bem simples. Não é um conceito, não é filosofia. Mesmo que de toda idéia se possa tirar, talvez, um conceito. Penso em Vincente Minnelli (diretor norte-americano, 1902-1986), que tem uma idéia extraordinária sobre o sonho. Ela é bem simples, podemos verbalizá- la, e está empenhada num processo cinematográfico que é a obra de Minnelli. A grande idéia de Minnelli sobre o sonho é que ele diz respeito sobretudo àqueles que não sonham. O sonho daqueles que sonham diz respeito àqueles que não sonham. Por que isso lhes diz respeito? Porque sempre que há o sonho do outro, há perigo. O sonho das pessoas é sempre um sonho devorador, que ameaça nos engolir. Que os outros sonhem é algo perigoso. O sonho é uma terrível vontade de potência. Cada um de nós é mais ou menos vítima do sonho dos outros. Mesmo quando se trata da jovem mais graciosa, ela é uma terrível devoradora, não por sua alma, mas por seus sonhos. Desconfiem do sonho do outro, porque se vocês forem 9 apanhados no sonho do outro, estarão em maus lençóis. Uma idéia cinematográfica é, por exemplo, a famosa dissociação entre o ver e o falar no cinema relativamente recente, quer seja - tomo os casos mais conhecidos — Hans Juergen Syberberg (diretor alemão), os Straub (os diretores franceses Jean-Marie Straub e sua mulher Danièle Huillet), Marguerite Duras (escritora e diretora francesa, 1914-1997). O que há de comum e por que é uma idéia propriamente cinematográfica fazer uma disjunção entre o visual e o sonoro? Por que isso não pode ser feito no teatro? Poder, pode, mas então, salvo se o teatro dispuser de meios, se dirá que ele a tomou de empréstimo ao cinema. O que não é necessariamente ruim, mas assegurar a disjunção entre ver e falar, entre o visual e o sonoro, é uma idéia tão cinematográfica que isso responderia à questão de saber em que consiste, por exemplo, uma idéia em cinema. Uma voz fala de alguma coisa. Fala-se de alguma coisa. Ao mesmo tempo, nos fazem ver outra coisa. E enfim, aquilo de que nos falam está sob aquilo que nos fazem ver. Esse terceiro ponto é importantíssimo. Logo se vê que o teatro não teria acesso a tal expediente. O teatro poderia adotar as duas primeiras proposições: nos falam de alguma coisa e nos fazem ver outra. Mas que aquilo de que nos falam põe-se ao mesmo tempo sob aquilo que nos fazem ver — e isso é imprescindível, se não as duas primeiras operações não teriam nenhum sentido ou interesse — podemos dizê-lo de outro modo: a palavra se ergue no ar, ao mesmo tempo em que a terra que vemos afunda-se cada vez mais. Ou ainda: ao mesmo tempo que essa palavra se ergue no ar, aquilo de que ela nos falava afunda-se na terra. O que é isso senão aquilo que somente o cinema pode fazer? Não digo que ele o deva fazer, mas que o cinema o fez duas ou três vezes, que foram grandes cineastas que tiveram essa idéia. Eis uma idéia cinematográfica. Ela é prodigiosa porque assegura ao âmbito do cinema uma verdadeira transformação dos elementos, um ciclo que, de um golpe, 10 capacita o cinema a fazer eco a uma física qualitativa dos elementos. Isso produz uma espécie de transformação, uma grande circulação de elementos no cinema a partir do ar, da terra, da água e do fogo. Em tudo o que eu digo, a história não é suprimida. A história está sempre presente, mas o que nos espanta é o fato de a história ser tão interessante pela própria razão de ter tudo isso atrás dela e com ela. Nesse ciclo que acabo de definir tão rapidamente — a voz se ergue ao mesmo tempo que aquilo de que nos fala, voz afunda-se na terra — vocês reconheceram a maioria dos filmes dos Straub, o grande ciclo dos elementos dos Straub. O que vemos não é mais do que a terra deserta, mas essa terra deserta é como grávida daquilo que ela tem debaixo. E vocês me dirão: mas o que sabemos daquilo que ela tem debaixo? Ora, justamente aquilo de que nos fala a voz. Como se a terra se arqueasse em razão daquilo que a voz nos diz, e que vem tomar assento sob a terra em seu tempo e em seu lugar. E, se a voz nos fala de cadáveres, de toda a linhagem de cadáveres que vem tomar assento sob a terra, nesse momento, o menor frêmito de vento sobre a terra deserta, sobre o espaço vazio que vocês têm sob os olhos, o menor sulco nessa terra adquire todo o seu sentido. Costumo dizer, em todo caso, que ter uma idéia não é da natureza da comunicação. É nesse ponto que gostaria de chegar. Tudo de que se fala é irredutível a toda comunicação. Mas não se aflijam. O que isso quer dizer? Num primeiro sentido, a comunicação é a transmissão e a propagação de uma informação. Ora, o que é uma informação? Não é nada complicado, todos o sabem: uma informação é um conjunto de palavras de ordem. Quando nos informam, nos dizem o que julgam que devemos crer. Em outros termos, informar é fazer circular uma palavra de ordem. As declarações da polícia são chamadas, a justo título, 11 comunicados. Elas nos comunicam informações, nos dizem aquilo que julgam que somos capazes ou devemos ou temos a obrigação de crer. Ou nem mesmo crer, mas fazer como se acreditássemos. Não nos pedem para crer, mas para nos comportar como se crêssemos. Isso é informação, isso é comunicação; à parte essas palavras de ordem e sua transmissão, não existe comunicação. O que equivale a dizer que a informação é exatamente o sistema do controle. Isso é evidente, e nos toca de perto hoje em dia. É verdade que entramos numa sociedade que podemos chamar sociedade de controle. Um pensador como Michel Foucault analisara dois tipo de sociedades bastante próximas de nós: as sociedades de soberania e as sociedades disciplinares. A passagem típica de uma sociedade de soberania para uma sociedade disciplinar coincidiu, segundo ele, com Napoleão. A sociedade disciplinar definia-se — as análises de Foucault, com todo mérito, por causa disso tornaram-se famosas — pela constituição de meios de enclausuramento: prisões, escolas, oficinas, hospitais. As sociedades disciplinares tinham necessidade disso. Essa análise engendrou ambiguidades em certos leitores de Foucault, pois se pensou que essa era sua última palavra. Evidentemente que não. Foucault jamais pensou, e ele o disse com bastante clareza, que as sociedades disciplinares fossem eternas. Antes, ele pensava que entraríamos num tipo de sociedade nova. É claro que existe todo tipo de resquício de sociedades disciplinares, que persistirão por anos a fio, mas já sabemos que nossa vida se desenrola numa sociedade de outro tipo, que deveria chamar-se, segundo o termo proposto por William Burroughs — e Foucault tinha por ele uma viva admiração —, de sociedades de controle. Entramos então em sociedades de controle que diferem em muito das sociedades de disciplina. Aqueles que velam por nosso bem não têm ou não terão mais necessidade de meios de enclausuramento. Hoje todos eles, as prisões, as escolas, os hospitais, são temas de discussão permanente. Não 12 seria melhor estender o tratamento aos domicílios? Sim, esse é sem dúvida o futuro. As oficinas, as fábricas não comportam mais empregados. Não seria melhor regimes de empreitada e de trabalho a domicílio? Não existem outros meios de punir os infratores senão a prisão? As sociedades de controle não adotarão mais os meios de enclausuramento. Nem mesmo a escola. Vale a pena investigar os temas que nascem, que se desenvolverão em 40 ou 50 anos e que nos explicam que o espantoso seria conjugar escola e profissão. Seria interessante saber qual será a identidade da escola e da profissão ao longo da formação permanente, que é o nosso futuro e que não implicará necessariamente o reagrupamento de alunos num local de clausura. Um controle não é uma disciplina. Com uma estrada não se enclausuram pessoas, mas, ao fazer estradas, multiplicam-se os meios de controle. Não digo que esse seja o único objetivo das estradas, mas as pessoas podem trafegar até o infinito e “livremente”, sem a mínima clausura, e serem perfeitamente controladas. Esse é o nosso futuro. Suponhamos que a informação seja isso, o sistema controlado das palavras de ordem que têm curso numa dada sociedade. O que a obra de arte pode ter a ver com isso? Não falemos de obra de arte, mas digamos ao menos que existe a contra-informação. Em países sob ditadura cerrada, em condições particularmente duras e cruéis, existe a contra-informação. No tempo de Hitler, os judeus que chegavam da Alemanha e que foram os primeiros a nos contar sobre os campos de extermínio faziam a contra-informação. O que é preciso constatar é que a contra-informação nunca foi suficiente para fazer o que quer que fosse. Nenhuma contra-informação foi capaz de perturbar Hitler. Salvo num caso. Que caso? Isso é de vital importância. A única resposta seria que a contra-informação só se torna eficaz quando ela é — e ela o é por natureza — ou se torna um ato de resistência. E o ato de 13 resistência não é nem informação nem contra-informação. A contra- informação só é efetiva quando se torna um ato de resistência. Qual a relação entre a obra de arte e a comunicação? Nenhuma. A obra de arte não é um instrumento de comunicação. A obra de arte não tem nada a ver com a comunicação. A obra de arte não contém, estritamente, a mínima informação. Em compensação, existe uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. Isto sim. Ela tem algo a ver com a informação e a comunicação a título de ato de resistência. Qual a relação misteriosa entre uma obra de arte e um ato de resistência, uma vez que os homens que resistem não têm nem o tempo nem talvez a cultura necessários para relacionar-se minimamente com a arte? Não sei. André Malraux (escritor e diretor francês, 1901-1976) desenvolve um belo conceito filosófico: ele diz uma coisa bem simples sobre a arte, diz que ela é a única coisa que resiste à morte. Voltemos ao começo: o que fazemos quando fazemos filosofia? Inventamos conceitos. Eu considero esta a base de um belo conceito filosófico. Reflitamos... O que resiste à morte? Basta contemplar uma estatueta de 3.000 anos antes de Cristo para descobrir que a resposta de Malraux é uma boa resposta. Poderíamos dizer então, de forma mais tosca, do ponto de vista que nos interessa, que a arte é aquilo que resiste, mesmo que não seja a única coisa que resiste. Daí a relação tão estreita entre o ato de resistência e a obra de arte. Todo ato de resistência não é uma obra de arte, embora de uma certa maneira ela faça parte dele. Toda obra de arte não é um ato de resistência, e no entanto, de uma certa maneira, ela acaba sendo. O que é ter uma idéia em cinema? Tomem o caso, por exemplo, dos Straub quando operam essa disjunção entre voz sonora e imagem visual, que eles tomam da seguinte 14 maneira: a voz se ergue, se ergue mais e mais, e aquilo de que ela nos fala baixa sob a terra nua, deserta, que a imagem visual estava nos mostrando, imagem visual que não tinha nenhuma relação direta com a imagem sonora. Ora, qual é esse ato de fala que se ergue no ar enquanto seu objeto afunda na terra? Resistência. Ato de resistência. E em toda a obra dos Straub, o ato de fala é um ato de resistência. De “Moisés e Aarão” ao último Kafka (“América”, romance filmado por Straub), passando por — não cito pela ordem — “Não Reconciliados” ou Bach (“Crônica de Anna Magdalena Bach”). O ato de fala de Bach é sua música, que é um ato de resistência, luta ativa contra a repartição do profano e do sagrado. Esse ato de resistência na música culmina num grito. Assim como há um grito no “Woyzeck” (peça do alemão Georg Büchner de 1836), há um grito em Bach: “Fora! Fora! Ide embora, não vos quero ver!”. Quando os Straub o põem em relevo, esse grito, o de Bach ou o da velha esquizofrênica de “Não Reconciliados”, tudo isso há de testemunhar um duplo aspecto. O ato de resistência possui duas faces. Ele é humano e é também um ato de arte. Somente o ato de resistência resiste à morte, seja sob a forma de uma obra de arte, seja sob a forma de uma luta entre os homens. Qual a relação entre a luta entre os homens e a obra de arte? A relação mais estreita possível e, para mim, a mais misteriosa. Exatamente o que Paul Klee queria dizer quando afirmava: “Pois bem, falta o povo”. O povo falta e ao mesmo tempo não falta. “Falta o povo” quer dizer que essa afinidade fundamental entre a obra de arte e um povo que ainda não existe nunca será clara. Não existe obra de arte que não faça apelo a um povo que ainda não existe. Palestra de 1987 Edição brasileira: Folha de São Paulo, 27/06/1999 15 trad: José Marcos Macedo EDUCAR NA ERA PLANETÁRIA - MORIN.pdf Edgar Morin • Emilio-Roger Ciurana • Raúl Domingo Motta EDUCAR NA ERA PLANETÁRIA O pensamento complexo como Método de aprendizagem no erro e na incerteza humana Tradução Sandra Trabucco Valenzuela Revisão técnica da tradução Edgard de Assis Carvalho Título original: Éduquer Pour L’ Ère Planétaire. La pensée complexe comme Méthode d’apprentissage dans l’erreur et l’incertitude humaines. Edgard Morin, Emilio-Roger Ciurana e Raúl Motta Capa: Edson Fogaça Preparação de originais: Silvana Cobucci Leite Revisão: Maria de Lourdes de Almeida Composição: Dany Editora Ltda. Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales Apoio: Unesco-Brasil Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização expressa da Cortez Editora. © Editions Balland, 2003 Direitos para esta edição CORTEZ EDITORA Rua Bartira, 317 — Perdizes 05009-000 — São Paulo-SP Tel.: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290 e-mail: cortez@cortezeditora.com.br www.cortezeditora.com.br Impresso no Brasil — setembro de 2003 ISBN:85-249-0937-4 5 SUMÁRIO Apresentação .................................................................. 7 Prefácio ........................................................................... 11 Capítulo 1 — O Método (Estratégias para o conhecimento e ação num caminho que se pensa) .................................................................. 15 Introdução ................................................................... 17 A relação entre experiência, método e ensaio .............. 18 O método como viagem e transfiguração .................... 21 A relação entre o método e a teoria ............................. 23 A errância e o erro....................................................... 24 O método como estratégia........................................... 29 Os princípios gerativos e estratégicos do método ......... 31 O método e sua experiência trágica ............................. 39 Capítulo 2 — A complexidade do pensamento complexo (O pensamento complexo da complexidade) ................... 41 Introdução ................................................................... 42 A confusão entre caos, complexidade e determinismo ... 45 6 MORIN • CIURANA • MOTTA Características do pensamento complexo .................... 51 Capítulo 3 — Os desafios da era planetária (O possível despertar de uma sociedade-mundo) ............ 61 Introdução ................................................................... 63 O nascimento da era planetária ................................... 65 A idade de ferro planetária .......................................... 70 Da ilusão do desenvolvimento à mundialização econômica ............................................................... 81 O avesso do cenário .................................................... 84 A possível emergência da sociedade-mundo ................ 86 Epílogo — A missão da educação para a era planetária ..................................................................... 97 7 APRESENTAÇÃO O crescente interesse dos educadores brasileiros, como também de diversos outros países pelas idéias de Edgar Morin deve-se em grande parte à profundidade da dimensão da crise educacional que estamos vivendo. Não é uma crise que se possa explicar somente pela falta de recursos financeiros que impede a existência de padrões mínimos de funcionamento escolar e da própria qualidade do ensino oferecido. Há uma crise de sentido que se amplia em função da crescente complexidade e incerteza que dominam os horizontes da vida contemporânea. O notável avanço da ciência e da tecnologia não foi nem está sendo seguido de avanços no plano existencial e ético. As guerras continuam e a violência se alastra e se instaura em ambientes que, há alguns anos, não poderíamos imaginar. Tal é o caso das violências escolares, cujas implicações no proces- so pedagógico as pesquisas da UNESCO têm procurado mos- trar e esclarecer. Ao tradicional quadro de repetências e eva- sões, acrescentou-se as violências físicas e simbólicas, as dro- gas e o hiv-aids. Ao meio dessas incertezas, a escola sente-se cada vez mais impotente para o exercício pleno de sua missão de educar e de formar pessoas. Em plano mais amplo, assiste-se hoje um verdadeiro cul- to ao mercado, onde a capacidade de competir sobressai como virtude e competência, ocultando e deixando à margem ne- 8 MORIN • CIURANA • MOTTA cessidades humanas básicas, universais e essenciais à constru- ção da dignidade. Mais do que isso. O culto ao mercado que está se tornando uma condição de sobrevivência, de pessoas e países, influencia de forma crescente a educação, começando mesmo a determinar-lhe os fins e, por conseqüência, subtrain- do ao indivíduo uma das mais caras conquistas do homem ocidental que é a liberdade de ser e de fazer opções e escolhas. É nesse quadro de perplexidades que o pensamento com- plexo de Edgar Morin adquire forças e se insere com lucidez por entre veredas e caminhos tortuosos, lançando por uma nova ótica, rotas alternativas restauradoras do sentido. Quando a UNESCO Brasil tomou conhecimento de suas profundas reflexões sobre os saberes necessários à educação do futuro, imediatamente, em co-edição com a Cortez Editora, editou-os em língua portuguesa. O sucesso esperado concreti- zou-se por sucessivas edições desse livro histórico. As razões do êxito não são tão difíceis de explicar, pois Morin nesse pe- queno grande livro coloca o ato pedagógico em seu sentido mais elevado de conduzir a uma educação no contexto da con- dição humana planetária, onde, ao meio das incertezas, im- põe-se a ética e a antropo-ética, numa visão de totalidade, do ser e do conhecimento. Todavia, o pensamento complexo de Morin aplicado à pedagogia, precisava de maior clareza, precisava de um méto- do. Dessa necessidade nasceu o livro escrito por Edgar Morin com a colaboração de Emilio Roger Ciurana e Raúl Domingo Motta. Este livro representa mais um passo importante no pro- cesso de construção de uma nova escola para o século XXI, iniciado pelo Relatório Delors em meados da Década de 1990 do século passado. Para finalizar, é oportuno advertir. Não esperem os leito- res um roteiro metodológico. Os autores trabalham o método como estratégia, uma estratégia aberta, evolutiva, afrontando EDUCAR NA ERA PLANETÁRIA 9 o imprevisto e o novo. Uma estratégia que tira proveito dos erros. Como dizem os autores, se o caminho é uma trajetória em espiral, o método, agora consciente de si, descobre e nos descobre diferentes. Um retorno ao início da travessia é preci- samente, ao mesmo tempo, a evidência da distância do início. É a revolução da aprendizagem. Em suma, o pensamento pedagógico de Morin propor- ciona à educação a possibilidade de trabalhar novos enredos, cujos atores — professores, alunos, pais, mães, responsáveis, líderes comunitários... possam visualizar numa tela do projeto escolar e do processo educativo, interações e interdependên- cias, sentidos, convergências e a necessidade de uma constru- ção coletiva, sem a qual dificilmente se poderá perceber e en- tender a dimensão holística do processo educativo. Jorge Werthein Representante da UNESCO no Brasil 11 PREFÁCIO A era planetária começa entre o final do século XV e o início do XVI com a descoberta da América por Colombo, a circunavegação ao redor do globo por Magellan, a descoberta copernicana de que a terra é um planeta que gira ao redor do sol. A era planetária desenvolveu-se através da colonização, na escravidão, da ocidentalização e, também da multiplicação das relações e interações entre as diferentes partes do globo. Iniciada em 1990, a época denominada de globalização esta- beleceu um mercado mundial e uma rede de comunicações que se ramificou intensamente por todo o planeta. Os desen- volvimentos científicos, técnicos, econômicos propiciam um devir comum para toda a humanidade. Ameaças de morte nuclear e ecológica conferem à humanidade planetária uma característica de comunidade de destino. Tornou-se vital co- nhecer o destino planetário em que vivemos, tentar perceber o caos dos acontecimentos, interações e retroações nos quais se misturam os proessos econômicos, políticos, sociais, étnicos, religiosos, mitológicos que tecem esse destino. Tornou-se igual- mente vital saber quem somos, o que nos atinge, o que nos determina, o que nos ameaça, nos esclarece, nos previne e o que talvez possa nos salvar. No momento em que o planeta tem cada vez mais necessidades de espíritos aptos a apreender seus problemas fundamentais e globais, a compreender sua 12 MORIN • CIURANA • MOTTA complexidade, os sistemas de ensino continuam a dividir e frag- mentar os conhecimentos que precisam ser religados, a formar mentes unidimensionais e redutoras, que privilegiam apenas uma dimensão dos problemas e ocultam as outras. Isso ocorre principalmente na ciência econômica, transformada em rainha e guia dos políticos, que não consegue entender nada que es- cape ao cálculo, ou seja, as emoções, paixões, alegrias, infelici- dades, crenças, esperanças que constituem a essência da exis- tência humana. Nossa formação escolar, universitária, profis- sional nos transforma a todos em cegos políticos, assim como nos impede de assumir, de uma vez por todas, nossa necessá- ria condição de cidadãos da Terra. A urgência vital de “educar para a era planetária” é decorrência disso, e requer três refor- mas inteiramente interdependentes: uma reforma do modo de conhecimento, uma reforma do pensamento e uma reforma do ensino. Abordei esses problemas primeiramente em Cabe- ça bem-feita, fruto do resultado de uma missão sem resulta- dos, efetivada junto ao ministério da educação nacional da França, depois em Os sete saberes necessários à educação do futuro, texto ecumênico redigido por solicitação de Gustavo Lopes Ospina, da UNESCO, diretor do projeto transdisciplinar “educar para um futuro sustentável”. Após a difusão dessa obra e das atividades da cátedra itinerante Edgar Morin na América Latina, Raúl Motta, Emilio Roger e eu mesmo nos envolvemos em experiências extremamente ricas e múltiplas na Colômbia, México, Brasil, Bolívia, Argentina e Chile. A partir delas nos convencemos acerca da necessidade de um outro trabalho que tivesse por objetivos: 1. Considerar problemas de método. Freqüentemente, esse termo é confundido com metodologia, o que enrijece seu caráter programador; método aqui é en- tendido como uma disciplina do pensamento, algo que deve ajudar a qualquer um a elaborar sua estratégia cognitiva, situando e contextualizando suas informa- EDUCAR NA ERA PLANETÁRIA 13 ções, conhecimentos e decisões, tornando-o apto para enfrentar o desafio onipresente da complexidade. Muito concretamente, trata-se de um “método de aprendiza- gem na errância e na incerteza humanas”; 2. Conferir sentido à noção de complexidade. Este ter- mo é cada vez mais utilizado, mas o que ele exprime não é uma elucidação, e sim uma incapacidade de des- crever, uma confusão da mente. Para evitar explicar, afirma-se cada vez mais “isto é complexo”. Torna-se necessário proceder a uma verdadeira reviravolta e mostrar que a complexidade constitui um desafio que a mente deve e pode ultrapassar, apelando a alguns princípios que permitem o exercício de um pensamen- to complexo; 3. Esclarecer, enfim, a própria noção de era planetária em sua perspectiva histórica e em sua complexidade multidimensional e, além disso, indicar que, mesmo diante da crise generalizada do século que ora se ini- cia, configura-se a emergência de uma infra-estrutura de sociedade-mundo que não chegou ainda a nascer. E.M. 15 Capítulo 1 O MÉTODO (Estratégias para o conhecimento e a ação num caminho que se pensa) O método se aplica sempre a uma idéia. E não há um método para caçar idéias. Ou, o que dá na mesma, com as idéias tudo é válido: a analogia, o plágio, a inspiração, o se- qüestro, o contraste, a contradição, a especulação, o sonho, o absurdo... Um plano para a aquisição de idéias só é bom se nos tenta continuamente a abandoná-lo, se nos convida a nos desviar dele, a farejar à direita e à esquerda, a nos distanciar, a girar em círculos, a divagar, a nos deixar levar pela obten- ção e pelo tratamento de idéias. Aferrar-se com rigor a um plano de busca de idéias é anestesiar a intuição. Jorge Wagensberg O grande caminho não tem portas, Milhares de caminhos levam a ele. Quando atravessamos esse umbral sem porta, Caminhamos livremente entre o céu e a terra. MUMON (sábio Zen) 16 MORIN • CIURANA • MOTTA Nem eu nem ninguém mais pode caminhar esse ca- minho por você. Você deve caminhá-lo por si mesmo. Não está longe, está ao alcance. Talvez você esteja nele desde que nasceu e não saiba. Talvez esteja em todas as partes, sobre a água e sobre a terra. Walt Whitman Temia meu regresso tanto como temera minha parti- da; as duas coisas faziam parte do desconhecido e do ines- perado. O que me fora familiar agora era desconhecido; o único que mudara era eu... Regressei com “nada” para ensi- nar de minha experiência. Através da compreensão de mi- nha viagem, obtive a confiança para fazer as necessárias — e difíceis — separações de minhas antigas estruturas de vida, que já não tinham sentido... Regressei da viagem para co- meçar outra. Gilgamesh Toda descoberta real determina um método novo, por- tanto deve arruinar um método anterior. Gaston Bachelard 17 Introdução Nada mais distante de nossa concepção do método do que aquela visão composta por um conjunto de receitas efica- zes para chegar a um resultado previsto. Essa idéia de método pressupõe o resultado desde o início; nessa acepção, método e programa são equivalentes. É possível que, em certas situa- ções, não seja necessário ultrapassar a execução de um pro- grama, cujo êxito não poderá estar isento de um relativo con- dicionamento do contexto em que se desenvolve. Na realida- de, as coisas não são tão simples, nem mesmo quando se pro- cura seguir uma receita culinária, mais próxima de um esforço de recriação que da aplicação mecânica de misturas de ingre- dientes e formas de cocção. É certo também que alguns dicionários especializados re- metem a idéia de método à filosofia de Descartes, que, ao lon- go de toda a sua obra, enfatiza a necessidade de proceder, em qualquer pesquisa ou estudo, a partir de certezas estabelecidas de maneira ordenada e nunca pelo acaso. Entendido dessa forma, o método é um programa aplica- do a uma natureza e a uma sociedade consideradas como algo trivial e determinista. Pressupõe que se pode partir de um con- junto de regras certas e permanentes, passíveis de serem segui- das mecanicamente. Entretanto, se temos certeza de que a rea- lidade muda e se transforma, então uma concepção do méto- 18 MORIN • CIURANA • MOTTA do como programa é mais do que insuficiente, porque, diante de situações mutáveis e incertas, os programas de pouco ser- vem e, em contrapartida, faz-se necessária a presença de um sujeito pensante e estrategista. Podemos afirmar o seguinte: em situações complexas, nas quais, num mesmo espaço e tem- po, não há apenas ordem, mas também desordem; não há apenas determinismos, mas também acasos; em situações nas quais emerge a incerteza, é preciso a atitude estratégica do sujeito ante a ignorância, a desarmonia, a perplexidade e a lucidez. É possível, contudo, outra concepção do método: o méto- do como caminho, ensaio gerativo e estratégia “para” e “do” pensamento. O método como atividade pensante do sujeito vivente, não-abstrato. Um sujeito capaz de aprender, inventar e criar “em” e “durante” o seu caminho. A relação entre experiência, método e ensaio Em sua concepção, o pensamento complexo engloba a experiência do ensaio. O ensaio como expressão escrita da ati- vidade pensante e da reflexão é a forma mais adequada para a forma moderna de pensar. Pensar uma obra como ensaio e caminho é empreender uma travessia que se desdobra em meio à tensão entre a fixa- ção e a vertigem. Tensão que, por um lado, permite resistir ao fragmento e, por outro, a seu contrário: o sistema filosófico, entendido como totalidade e escrita acabada1. É preciso so- bretudo resistir, porque, como afirma o sábio Hadj Garum O’rin, “o homem e seu herdeiro permanecerá pascaliano, ou seja, 1. No primeiro caso, o exemplo é Friedrich Nietzsche e, no segundo, o projeto de um sistema absoluto de G. W. F. Hegel. EDUCAR NA ERA PLANETÁRIA 19 atormentado pelos dois infinitos, kantiano, porque se choca com as antinomias de seu espírito e os limites do mundo dos fenômenos, hegeliano, porque se encontra em perpétuo devir, em contínuas contradições, em busca da totalidade que lhe escapa”2. Desde Montaigne, que emprega o termo ensaio em seus escritos de Bordeaux e que se confessava incapaz de definir o ser, mas apenas “pintar sua passagem”, até Baudelaire, que afirmava que o ensaio é a melhor forma de expressão para captar o espírito da época, por eqüidistar entre a poesia e o tratado, o ensaio é também um método. Entre a pincelada e a palavra, o ensaio não é um caminho improvisado ou arbitrá- rio, mas a estratégia de um demarche aberta que não dissimu- la sua própria errância, mas que não renuncia a captar a ver- dade fugaz de sua experiência. O sentido e o valor do ensaio decorrem da proximidade do vivente, do caráter genuíno “morno, imperfeito e provisó- rio” da própria vida. Essa condição lhe confere sua forma úni- ca e torna manifesta sua especificidade, assim como o princí- pio que o fundamenta. Após as experiências realizadas pelas ciências e pela filo- sofia no século XX, ninguém pode basear um projeto de apren- dizagem e conhecimento num saber definitivamente verifica- do e edificado sobre a certeza. Tampouco se pode ter a preten- são de criar um sistema absoluto de proposições possíveis ou o sonho de escrever o último livro em que esteja contida a tota- lidade da experiência humana. Assumir essas experiências exige a construção de um pro- cesso de aprendizagem e conhecimento construído sobre um solo frágil, caracterizado pela ausência de fundamento. Não se trata de uma experiência do nada, mas de algo muito mais 2. Manuscrito inédito, traduzido para o espanhol por Hermes Clavería. 20 MORIN • CIURANA • MOTTA profundo e paradoxal. Não se pode conhecer a imensa pleni- tude que nos rodeia, envolve e desafia a partir de um funda- mento que assegure a transmissão e o resultado de um simples esforço: talvez essa plenitude seja a única coisa que nos dirige ao esforço de aprender. O fundamento de nosso método resi- de na ausência de qualquer fundamento. Há uma relação entre o método como caminho e a expe- riência de pesquisa do conhecimento, entendida como traves- sia geradora de conhecimento e sabedoria. Em Notas de um método, María Zambrano3 refere-se a uma metafísica para a experiência, assinalando a peculiaridade de um método-cami- nho que transite entre a experiência da pluralidade e da incer- teza, experiência que hoje a educação deve encorajar, estabe- lecendo uma relação direta com a revelação da multiculturali- dade das sociedades no âmago da planetarização. María Zambrano postula um método-caminho não só do espírito (já que nunca é possível separar o espírito do corpo), mas de toda o ser, e não apenas para realizar o que é possível, mas também para pressentir o que é impossível, para o desejo do que não se pode alcançar e para a esperança do que não se pode esperar4. Por essa razão, o método não precede a experiência, o método emerge durante a experiência e se apresenta ao final, talvez para uma nova viagem. A experiência — afirma Zambrano — precede qualquer método. Poder-se-ia afirmar que a experiência constitui um a priori e o método, um a posteriori. Isso só é verdadeiro como uma indicação, já que a verdadeira experiência não pode ocor- rer sem a intervenção de uma espécie de método. Desde o 3. Zambrano, M. Notas de un método. Madrid, Mondadori, 1989. 4. Retornaremos à noção de esperança. EDUCAR NA ERA PLANETÁRIA 21 início, o método deve conter dada experiência bem precisa que, graças a ele, adquire forma e sentido. Foi indispensável uma dose de aventura e até mesmo uma certa perdição na expe- riência; foi necessário que o sujeito se perdesse em sua própria experiência. Esse modo de perdição transformar-se-á em se- guida em liberdade. O método como viagem e transfiguração Longe da improvisação, mas também buscando a verda- de, o método como caminho que se experimenta seguir é um método que se dissolve no caminhar. Isso explica a atualidade e o valor dos versos de Antonio Machado, que sempre nos acompanha e nos dá força: “Caminante no hay camino, se hace camino al andar” [Caminhante não há caminho, o cami- nho faz-se caminho ao andar]. Esse verso é muito conhecido, mas talvez não tenha sido totalmente compreendido. A simpli- cidade expressiva de Antonio Machado esconde a experiência de uma dolorosa e lúcida percepção da complexidade da vida e do humano; sem dúvida, a função essencial da verdadeira literatura se resuma a isso: mostrar a experiência anônima da humanidade traduzida em forma de saber e de conhecimento, tantas vezes deixada de lado pela atividade acadêmica e inte- lectual, e hoje tão necessária para educar e educar-nos5. 5. Antonio Machado relata com singela humildade um conhecimento apreendido em sua viagem singular e irrepetível, que, por sua vez, reflete sobre seu próprio caminhar. Não são outra coisa os cinqüenta e três versos do poema intitulado “Proverbios y cantares”, em que se diz, por exemplo: “nuestras horas son minutos / cuando esperamos saber,/ y siglos cuando sabemos / lo que se puede aprender” [nossas horas são minutos / quando espera- mos saber, / e séculos quando sabemos / o que se pode aprender] — Estrofe IV; ou aquela que sempre cantamos: “Caminante, son tus huellas / el camino, y nada más; / caminante, no hay camino, / se hace camino al andar. / Al andar se hace caminho, / y al volver la vista atrás / se ve la senda que nunca / se ha de volver a pisar. / Caminante, no hay camino, / sino estelas en la mar” [Caminhante, são tuas pegadas / o caminho, e nada mais; / caminhante, não há caminho,/ faz-se caminho ao andar. / Ao andar se faz o caminho, / e ao voltar o olhar 22 MORIN • CIURANA • MOTTA Filósofo e poeta, Machado sabe que, se existe um méto- do, este só poderá nascer durante a pesquisa; talvez no final poderá ser formulado, e até em alguns casos formalizar-se. Como tantos outros já afirmaram: “o método vem no final” (Nietzsche), “chamamos caminhos os nossos titubeios” (Kafka). É possível o regresso, a volta ao início do caminho? Para Antonio Machado, “ninguém voltou ainda”. Em todo o caso, o retorno não poderá ser um círculo completo, pois isso é impos- sível, uma vez que, para o homem, qualquer método traz con- sigo a antiqüíssima experiência da viagem. Esse retorno nos ensina a sabedoria que se depreende dos mitos, das tradições e das religiões, mas sempre retornamos modificados; quem retorna é outro. Essa aprendizagem acarreta uma transfigura- ção. Se o caminho é uma trajetória em espiral, o método, ago- ra consciente de si, descobre e nos descobre diferentes. Um retorno ao início da travessia também revela precisamente o quanto esse início encontra-se longínquo no presente. Essa é a revolução da aprendizagem6. Aquele que quer chegar — afirma Nietzsche — à liberdade da razão só tem direito (ao menos por certo tempo) a se sentir na terra como um viajante sem direção fixa. Terá de se deslocar com os olhos muito abertos e conservar as imagens que o mun- do oferece; por isso não pode ligar fortemente seu coração a nada em especial; é preciso que haja sempre nele algo do via- jante que encontra seu prazer na mudança e em sua paisagem. O viajante passará noites ruins e se sentirá cansado, encontrará fechada a porta da cidade, ouvirá rugir as feras do deserto en- quanto um vento gelado castigará seu corpo. para trás / vê-se a estrada que nunca / se há de tornar a pisar. / Caminhante, não há cami- nho, / apenas trilhas sobre o mar]. In: Obras, poesías y prosa. Buenos Aires, Losada, 1964, estrofe XXIX. 6. Utilizamos aqui o antigo significado de revolução, empregado para a descrição as- tronômica do percurso dos planetas, e não só no sentido linear e progressivo ou de ruptura de uma linearidade, postulada pelas teorias do desenvolvimento e pela idéia moderna de revolução. EDUCAR NA ERA PLANETÁRIA 23 É impossível reduzir o método/caminho/ensaio/travessia/ pesquisa/estratégia a um programa e ele tampouco pode ser reduzido à constatação de uma vivência individual. Na verda- de, o método define-se pela possibilidade de encontrar nos detalhes da vida concreta e individual, fraturada e dissolvida no mundo, a totalidade de seu significado aberto e fugaz. Para Baudelaire, o problema do método consistia em sua possível aptidão para capturar o efêmero, o contingente, a novi- dade, a multiplicidade, enfim, a complexidade. “O problema do método não se restringe às artes plásticas, pois também o escri- tor e o ensaísta se defrontam constantemente com ele, e isso requer uma habilidade especial.” O nome, diz Baudelaire, desse hábil sujeito é o de menos, pois o essencial é sua observação apaixonada, o exercício de uma “paixão crítica” (Octavio Paz). Chame-se de filósofo, espectador, intelectual, flâneur, pensador, ou como se queira, o essencial, o que requerem estes tempos é a capacidade de se situar em meio à multiplicidade e complexida- de da vida para capturar, destilar o “eterno do transitório”. Apenas uma visão deficiente e irrefletida pode reduzir a dimensão múltipla do método a uma atividade programática e a uma técnica de produção de conhecimento. Para elucidar as circunstâncias, para compreender a complexidade humana e o devir do mundo requer-se um pensar que transcenda a ordem dos saberes constituídos e da trivialidade do discurso acadêmi- co. Uma escrita e um pensar que incorporem a errância e o risco da reflexão. É impossível hoje enquadrar a busca do co- nhecimento nos estereótipos dos discursos e dos gêneros lite- rários herdados. A relação entre o método e a teoria O caminho certamente se inicia a partir de algo e tam- bém prefigura um fim. É importante compreender aqui o lugar 24 MORIN • CIURANA • MOTTA ocupado pela teoria e como ela se relaciona com o método. Uma teoria não é o conhecimento, ela permite o conhecimen- to. Uma teoria não é uma chegada, é a possibilidade de uma partida. Uma teoria não é uma solução, é a possibilidade de tratar um problema. Uma teoria só cumpre seu papel cogniti- vo, só adquire vida, com o pleno emprego da atividade mental do sujeito. E é essa intervenção do sujeito o que confere ao termo método seu papel indispensável. Na perspectiva complexa, a teoria, como um engrama, é composta de traços permanentes, e o método, para ser posto em funcionamento, precisa de estratégia, iniciativa, invenção, arte. Estabelece-se uma relação recursiva entre método e teo- ria. O método, gerado pela teoria, regenera a própria teoria. Toda teoria dotada de alguma complexidade só pode con- servar sua complexidade à custa de uma recriação intelectual permanente. Corre incessantemente o risco de se degradar, ou seja, de se simplificar. Toda teoria abandonada à sua própria densidade tende a se aplainar, a se unidimensionalizar e a se reificar. Na perspectiva complexa, a teoria não é nada sem o mé- todo, a teoria quase se confunde com o método, ou melhor, teoria e método são os dois componentes indispensáveis do conhecimento complexo. A errância e o erro O método inclui também a precariedade do pensar e a falta de fundamento do conhecer. O exercício desse método, a tentativa desse caminho requer a incorporação do erro e uma visão diferente da verdade. Apesar do que já foi dito e escrito, o erro é um problema prioritário e original, e ainda tem-se que pensar muito sobre EDUCAR NA ERA PLANETÁRIA 25 ele. No livro Os sete saberes necessários para a educação do futuro, desde o início, enfatiza-se amplamente a importância deste problema para a educação: o maior erro seria subesti- mar o problema do erro7. Cosntatamos que a vida comporta inúmeros processos de detecção e repressão do erro, e o extraordinário é que a vida também comporta processos