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o cinema e a encenação

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O CINEMA
E A ENCENAÇÃO
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Jacques Aumont
O CINEMA
E A ENCENAÇÃO
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Título original: Le Cinéma est la mise en scène
Autor: Jacques Aumont
Tradução: Pedro Elói Duarte
Grafismo: Cristina Leal
Imagem da capa: Couple of Masks © Hans F. Meier
© Armand Colin, 2006
Edições Texto & Grafia, Lda.
Avenida Óscar Monteiro Torres, n.º 55, 2.º Esq.
1000-217 Lisboa
Telefone: 21 797 70 66
Fax: 21 797 81 30
E-mail: texto.grafia@gmail.com
Impressão e acabamento:
Papelmunde, SMG, Lda.
1.ª edição
Lisboa, Fevereiro de 2008
ISBN 978-989-95689-3-8
Depósito legal n.º 271899/08
Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida,
no seu todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado,
sem a autorização do Editor.
Qualquer transgressão à lei do Direito de Autor
será passível de procedimento judicial.
Ouvrage publié avec le soutien du Centre National du Livre
– Ministère Français Chargé de la Culture –
Obra publicada com o patrocínio do Centro Nacional do Livro
– Ministério Francês da Cultura –
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A organização contemporânea da sociedade coabita, de forma 
nem sempre harmoniosa, com a fruição do espectáculo nas suas 
mais variadas expressões.
Uma colecção de livros sobre as artes do espectáculo que delas 
preconizem uma vivência madura justifica-se pela necessidade de reordenar o 
nosso espaço de participação e adesão críticas; na realidade, o fenómeno do 
espectáculo encerra dimensões recônditas, a que razão e emoção devem ter 
igual acesso.
Em “Mi.mé.sis” terão presença obras de natureza estética, técnica, 
informativa, ou simplesmente lúdica; e, como não poderia deixar de ser, o 
cinema, o teatro, a dança, a música, entre outros, serão os protagonistas desta 
colecção.
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VOCÊ DISSE «ENCENAÇÃO»?
Introdução
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Foi em Maio de 1981 que, em França, se deu um acontecimento estra-
nho e cómico, mas cujo valor de sintoma a ninguém passou despercebido. O 
presidente da República, Valéry Giscard d’Estaing, que se candidatara à reeleição 
e fora derrotado por François Mitterrand, ia despedir-se publicamente dos Fran-
ceses. Para isso, muito naturalmente, decidiu dirigir-se a eles pela televisão. O 
dispositivo adoptado era simples. Sentado de frente para a câmara, o presidente 
pronunciava, olhos nos olhos, o seu discurso, baixando por vezes o olhar ape-
nas para consultar as suas notas. Inicialmente enquadrado à altura do peito, a 
imagem passou, a pouco e pouco, para um grande plano, com o rosto do pre-
sidente a ocupar todo o quadro – até que, no momento em que na parte final 
do discurso apelava à Providência, o quadro se abriu, recuando rapidamente, e 
viu-se o presidente sentado numa poltrona muito modesta, atrás de uma mesa 
sobre a qual se viam microfones, folhas manuscritas e um pequeno ramo de 
flores de várias cores, tudo numa sala decorada com lambris cinzentos claros.
Em plano aberto, Giscard d’Estaing calou-se momentaneamente, com 
o olhar fixo na câmara e no telespectador, e depois articulou, com um ar com-
penetrado: «Adeus». Em seguida, levantou-se e saiu do campo pela esquerda, 
em direcção ao fundo. Esta saída, em si mesma, era já um tanto invulgar, uma 
vez que obrigava o presidente a voltar as costas ao seu público, ou seja, ao 
povo francês. Mas aquilo que se seguiu foi visto como totalmente inconce-
bível: após a saída do Presidente, a câmara continuou a enquadrar a mesa, a 
cadeira, o ramo de flores, o texto do discurso e os microfones, enquanto se 
ouvia o hino nacional, durante quase meio minuto – duração muito breve, mas, 
naquelas circunstâncias, interminável, espantosa e escandalosa. Esta saída foi 
muito comentada na comunicação social e todos se perguntavam se aquele 
campo e aquela cadeira, vazios, seriam intencionais ou se seriam para ler sim-
bolicamente, ou se se deveria ver naquilo o gesto de sabotagem de um técnico 
decidido a ridicularizar o presidente em fim de mandato, ou simplesmente um 
acidente devido à má preparação da emissão.
Para um homem público, esta forma de utilizar o ecrã da televisão para 
se dirigir a um grupo de contornos indistintos («os Franceses») nada tem de 
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O CINEMA E A ENCENAÇÃO
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extraordinário enquanto ele fala. O jogo com o enquadramento, o seu estreita-
mento ligeiro e progressivo, que corresponde a um suposto aumento da aten-
ção à medida que o discurso avança, é banal e determinado pela retórica deste 
género de exercício. O olhar frontal, os olhos que não se desviam dos nossos, 
são o pequeno truque habitual do homem que é televisionado, a sua maneira 
de nos convencer que nos vê e que nada nos tem a esconder. Mas tudo muda 
quando a câmara recua. Primeira surpresa: este homem que nos falou de gran-
deza está sentado em condições desprovidas de decoro. A saída inesperada, sem 
qualquer majestade e quase ridícula, choca, a ponto de fazer esquecer quase 
imediatamente aquilo que o discurso tinha de majestoso. Sobretudo o vazio, 
a cadeira que se mantém à nossa frente, quando já nenhum olhar a habita, o 
ramo de flores que, subitamente, parece minúsculo, os papéis em cima da mesa 
a exibirem indiscretamente a preparação do discurso presidencial – tudo isto 
é mostrado com tempo suficiente para fazer sentido, para deixar, mesmo nos 
espectadores mais obtusos, que as conotações se tornem ainda mais pesadas.
Encenação? Com certeza, e duplamente (é este o interesse do exem-
plo). Em primeiro lugar, a encenação vulgar da comunicação presidencial: de 
ele a nós, da «grande cabeça» (como se dizia dos primeiros grandes planos 
do cinema, por volta de 1905) a todos os seus ouvintes; encenação simplifi-
cada, vincada pela frontalidade da filmagem, pelo carácter de caixa cénica do 
cenário, pelo encerramento do lado direito com um tabique e a abertura, pelo 
contrário, do fora-de-campo à esquerda, como uma espécie de bastidores por 
onde pode desaparecer a silhueta elegante do presidente francês – e à qual se 
junta e se opõe a encenação invulgar do operador de imagem sindicalista ou 
distraído, a permanência, contra qualquer expectativa, do quadro, do campo e 
do cenário, mesmo quando o actor já terminou a sua representação. A moral 
da história, o seu interesse teórico (e, na época, político), está evidentemente 
na vitória da segunda encenação sobre a primeira: da prestação do antigo pre-
sidente, ninguém reteve as suas expressões carregadas de sinceridade, as suas 
frases de fervor trabalhado, nem sequer a sua presença de dignidade ostensiva 
– mas apenas a incongruência da saída, o burlesco deste vazio, que parece fazer 
pouco do vencido.
Moral política simples, demasiado simples. A encenação está em toda 
a parte, nada se pode imaginar sem ela. A vida urbana é totalmente regida por 
gestos de encenador, conscientes ou forçados, pessoais ou colectivos. Toda a 
gente sabe isso, e desde os grandes regimes ditatoriais da Europa dos anos 20 
e 30, os poderes, sobretudose pretendem ser absolutos, só existem à custa de 
uma boa dose de encenação. Hitler, Mussolini, Franco, Péron, Kim (pai e filho), 
sem os seus cenógrafos, os seus gestores de imagem e até os seus coreógrafos, 
nunca teriam tido o prestígio necessário aos seus reinados. A encenação existe 
em toda a parte e, neste sentido, a invenção da televisão universal e obrigatória 
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VOCÊ DISSE «ENCENAÇÃO»?
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foi apenas a forma de as democracias encontrarem também a sua encenação, 
ao mesmo tempo que toda a sociedade, ao «politizar-se», se transformava em 
espectáculo1. A encenação de Giscard d’Estaing, tão simplória quanto pom-
posa era a dos ditadores, é apenas um momento minúsculo desta história. 
Mas adaptou-se, por um lado, à democracia (em que o detentor do poder se 
deve apresentar como um homem comum) e, por outro, à televisão, ou seja, 
a outro reino, simbolicamente concorrente – o reino das imagens. O erro de 
Giscard d’Estaing (que se considerou ridicularizado e se queixou) foi não ter 
trabalhado suficientemente a sua encenação. Cenografia pobre, encenação ele-
mentar (imobilidade, monotonia): qualquer debutante na arte do teatro (ou na 
prática do grande plano) sabe que, nestas condições, o mais pequeno efeito, 
por contraste, é amplificado. A pior encenação é aquela que menos perdoa a 
improvisação, o acidente, o erro de apreciação.
Vingança do cinema (e do teatro) sobre a televisão, da encenação como 
arte sobre a escrita e o jornalismo? Em certo sentido, sem dúvida: a ingenui-
dade na utilização daquilo que constitui, quer queiramos quer não, uma arte, é 
sempre arriscada. Este incidente tem já um quarto de século. Se o teatro nada 
mudou deste então, o mesmo não se pode dizer do cinema e, ainda menos, 
da televisão. O discurso «olhos nos olhos» tornou-se um exercício raro; os 
políticos desconfiam dele; o publico vê nele uma forma arcaica; os jornalis-
tas tudo fazem para desacreditarem este dispositivo, que lhes reduz o papel. 
Actualmente, a intervenção política televisionada é quase obrigatoriamente 
organizada numa forma agonística, quer ponha frente-a-frente dois campos 
moderados pelos jornalistas, que distribuem a palavra e as avaliações, quer 
oponha o político ao entrevistador. Isto não produz necessariamente melhores 
encenações, e a monotonia, o aborrecimento, o ridículo são tão frequentes 
como dantes. Mas, decididamente, uma coisa mudou: existe, na imagem e no 
local de filmagem, um representante visível do dispositivo, um intermediário, 
um encenador – pelo menos por delegação simbólica.
Na época da saída de Giscard d’Estaing, o cinema já tinha sofrido ou 
passado por várias grandes revoluções técnicas, industriais, estéticas e estilísti-
cas. Ganhara som e cor, fizera a prova do relevo e do grande ecrã, a supremacia 
passara da Europa para a América após a guerra de 1914-1918 e, depois da 
Segunda Guerra Mundial, uma série de «novas vagas» tentou abalar a forta-
leza hollywoodiana – mas o cinema, contra ventos e marés, sobreviveu, e os 
prognósticos pessimistas que o tinham visto «devorado» pela televisão foram 
desmentidos.
1 Guy Debord, La Société du Spectacle, Paris, Buchet-Chastel, 1967 (reed. Gallimard, 1992); Commen-
taires sur la société du spectacule, Paris, Éd. Gérard Lebovici, 1988.
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O CINEMA E A ENCENAÇÃO
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Como a expressão indica, e até duplamente, a encenação2 tem a ver 
com o teatro e a teatralidade. Como encenar sem ter definido primeiro, pelo 
menos implicitamente, uma cena? Inversamente, em caso de algo semelhante 
a uma cena, que podemos nela colocar? Estas questões elementares, tal como 
todas as da mesma ordem, são necessariamente formuladas tendo o teatro 
no horizonte. É porque a arte do teatro, que é antiga, mas não tem a univer-
salidade das artes verdadeiramente primeiras – a música, a poesia (sobretudo 
cantada), a pintura/escultura, que são praticadas em toda a parte onde haja 
grupos humanos –, desde cedo definiu formas, práticas e noções que mode-
laram a nossa vida social e o seu imaginário. Entre estas noções, e no centro 
delas, está a cena; desde a skéné da antiguidade grega, a cena foi para o teatro 
aquilo que o quadro foi para a pintura: o artefacto que permite criar, isolar, 
designar um espaço específico, que escapa às leis do espaço quotidiano, para 
pôr em seu lugar outras leis, talvez artísticas, mas seguramente artificiais e 
convencionais.
É sem dúvida por isso que, no vocabulário crítico do cinema, poucos 
termos deram lugar a tantos excessos e ambiguidades. Isto porque, se a ence-
nação é um gesto do teatro, como compreender a sua intervenção no cinema? 
Devemos limitá-la às filmagens, ao que se passa no local de filmagem [plateau], 
(outro termo que assinala também a segregação do espaço da arte e do espaço 
da vida)? Será que a devemos alargar, mesmo que metaforicamente, a todo o 
fílmico e ver nela um princípio geral, a arte de reger a filmagem de forma a obter 
um determinado resultado em imagem? Ou tratar-se-á ainda de outra coisa 
mais vaga e profunda, uma espécie de qualidade que estabeleceria a diferença 
entre filmes com encenação e filmes sem encenação? Na história da crítica, 
todas estas definições foram adoptadas, por vezes com um surpreendente vigor 
polémico. O termo tem sido visto ora como excessivamente negativo (a «ence-
nação» assimilada a «artificial», «rígido» e até a «datado» ou a «alavanca»), ora 
como, pelo contrário, excessivamente positivo, numa reivindicação da encena-
ção como virtude essencial, ainda que inefável. Hoje em dia o debate é menos 
fervoroso, pois desde há 30 anos que o cinema segue outros caminhos e, em 
muitos casos, esqueceu o teatro, a cena e, em geral, os condicionalismos da 
dramaturgia; mas o termo não deixou de ter uso, e até vários usos – sempre 
marcados pelo mesmo equívoco.
Falar de encenação a propósito de cinema é, pois, instalarmo-nos na 
contradição ou, pelo menos, na duplicidade: por um lado, a cena e a sua orga-
nização, o teatro, a peça, os actores, o espaço, os trajectos, os pontos de vista, 
2 No original, mise en scène; traduziremos este termo por «encenação» e mettre en scene por «encenar», 
seguindo assim a conotação teatral sugerida pelo autor (N.T.)
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VOCÊ DISSE «ENCENAÇÃO»?
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em suma, toda uma topografia ou uma topologia do mundo da ficção, toda 
uma série de gestos narrativos e expositivos; por outro, uma ciência, uma arte, 
uma sensibilidade e, por que não, uma qualidade específica, que não estará 
apenas ligada ao êxito técnico. Como dizia, de forma muito lúcida, Éric Rohmer 
em 1961: «A Beleza – ou belezas – é um conceito preferível ao da encenação, 
também aqui preconizado, mas que não quero, porém, denunciar. A primeira 
noção inclui a segunda, a qual, por sua vez, possui também uma acepção téc-
nica.3» Não se pode ser mais rigoroso e mais económico: a encenação é uma 
questão de «técnica», aprende-se, pratica-se e discute-se; mas, afinal de con-
tas, toda esta técnica visa apenas obter um efeito que deve ser considerado 
estético – ainda que tenhamos dificuldade em perfilhar o termo «beleza», já 
obsoleto em 1961.
O projecto deste livro nasceu da admiração constante que me pro-
vocou a leitura de textos críticos, que, por volta de 1960, foram autênticos 
manifestos da encenação como valor estético específico do cinema (e acerca 
dos quais voltarei a falar). Como podemos defender o cinema enquanto arte 
específica, que não só concretiza aquilo que antes dele era impossível (o registo 
das acções com um forte quociente de mimetismo, a narração em imagens e 
sons, a produção de imagensdotadas de movimento), como também inventa 
sensações totalmente novas e, com elas, os meios de as apreciar – e, por outro 
lado, para isso, apoiarmo-nos na noção de encenação, que parece fazer retroce-
der incessantemente o cinema para antecedentes teatrais? Por que escolhi esta 
expressão, em vez de um vocabulário da imagem (o estilo, a representação, a 
figuração, a expressão) ou de um vocabulário da narração (o ritmo, a lógica, a 
economia)? Será que, apesar de tudo e dos seus esforços para aceder ao esta-
tuto de arte, o cinema nunca saiu do espectáculo?
Inútil dizer que não responderei totalmente a estas perguntas. O 
cinema foi visto socialmente como primo e rival do teatro, muito mais do que 
a pintura ou a literatura: é um facto que é preciso registar e que se prende a 
outras coisas que não aos filmes – entre outras, às condições, muito especiais, 
da apresentação das obras. É provável que, se o cinema se tivesse desenvolvido 
mais segundo a tendência do quinetoscópio de Edison e da visão individual 
(se tivesse passado directamente para o DVD), teríamos mais dificuldade em 
pensar no teatro, na cena ou na encenação. A verdade é que se desenvolveu, 
em toda a parte, em salas de espectáculo, com cadeiras, uma escuridão pelo 
menos relativa, uma atenção concentrada no ecrã, e que isso contribuiu muito 
para fazer pensar na situação do espectador de teatro. Apesar das transforma-
ções, por vezes brutais, sofridas pela organização do espectáculo de cinema, 
3 E. Rohmer, «Le goût de la beauté», Cahiers du cinéma, nº 121, Julho de 1961, publicado também em 
Le Goût de la beauté, Paris, Éd. de l’Étoile, p. 80.
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O CINEMA E A ENCENAÇÃO
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este dado de base nunca desapareceu: vamos ao cinema para estar frente a 
qualquer coisa, que está separada de nós por uma rampa, real ou virtual, e que 
vai, durante o tempo de uma representação, oferecer-nos um simulacro acei-
tável de mundo. Os filmes podem até ser cada vez menos «encenados», mas o 
teatro está sempre lá enquanto formos «ao cinema» – talvez, agora, já não por 
muito tempo.
Este livro não é uma história da encenação cinematográfica, nem um 
panorama exaustivo das concepções críticas sobre a encenação. Pretendi ape-
nas apresentar, com algum pormenor, o ponto de partida da minha questão, 
que continua a ser um ponto enigmático: como é que pudemos hipostasiar a 
«encenação» a ponto de nela vermos a qualidade primordial do autor, do poeta, 
do génio – e como se pôde conciliar isso com uma estética, uma moral e até 
uma política da arte cinematográfica que lhe valorizou a beleza dos gestos, dos 
corpos e dos sentimentos? Este é o tema do segundo capítulo deste livro e, para 
clarificar esta questão, é necessário desde já recordar tudo aquilo que o cinema, 
no seu início (que durou muito tempo, pelo menos 30 ou 40 anos), foi buscar 
ao seu grande antepassado e as querelas de antiguidade e de território que isso 
engendrou; tentei fazê-lo (no primeiro capítulo) marcando os dois pólos desta 
relação: por um lado, a dependência em que esteve, para o bem e para o mal, 
o cinema do primeiro meio século relativamente à concepção cénica do espaço 
e à riqueza do texto (e, em geral, do verbal) mesmo nas imagens; por outro, 
a inventividade a que esta sujeição deu lugar, manifestando mais uma vez a 
velha máxima sobre a arte que nasce do condicionalismo. Por último, o terceiro 
capítulo tenta interrogar-se mais directamente sobre o que é a encenação no 
cinema: uma série de gestos técnicos e, mais essencialmente, uma postura 
analítica, que, sob este ou aquele nome, são inevitáveis e permanentes.
Terá a encenação morrido? É fácil pensar isso, face aos produtos da 
indústria (americana, de Hong Kong e outras) desde há pelo menos 20 anos. 
Cada vez menos filmes – e cada vez mais marcados como «filmes de arte», fil-
mes de autor ou filmes marginais – mostram cenas seguidas e, quando o fazem, 
é geralmente levando aos limites a autonomia e a arbitrariedade do ponto de 
vista da câmara. Os filmes de acção, actualmente, já não têm o apanágio de 
uma concepção do cinema como arte do plano e do plano obrigatoriamente 
expressivo. A arte da encenação, nas suas realizações mais puras, pertence à 
história do cinema, ao museu (ainda que este museu, com o DVD, se tenha 
transformado num «museu imaginário» formidável e permanente). No entanto, 
a encenação permanece, e permanecerá, na raiz de toda a arte cinematográfica 
imaginável, pelo menos enquanto o cinema consistir em filmar corpos huma-
nos a exprimirem-se, a representarem, a sentirem, a viverem num quadro, num 
meio, num espaço e num tempo.
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VOCÊ DISSE «ENCENAÇÃO»?
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A matéria deste livro foi retirada de cursos leccionados entre 2002 
e 2005 na Universidade de Paris-3 e na EHESS. Agradeço a todos os alunos 
que, pelos suas intervenções e exigência, me ajudaram a clarificar as ideias. Os 
meus agradecimentos vão também para Michel Marie, que encomendou este 
livro, pela sua paciência amiga, e para Dominique Paini, pelos seus encoraja-
mentos paradoxais; a Frank Kessler, pelas cópias que me arranjou de alguns 
textos raros. Agradeço especialmente a Lyang, a minha primeira leitora, pela 
inspiração e estímulo.
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A HERANÇA DO TEATRO:
A ENCENAÇÃO, O TEXTO E O LUGAR
Capítulo 1
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Encenador, cineasta, realizador (e autor)
O teatro filmado
«Quando a fala se apoderou da película, foi um grande banzé. (...) Os 
intelectuais, os literatos, os fervorosos do teatro triunfavam insolentemente.4» 
Os «intelectuais», não é certo, mas os «fervorosos do teatro», sem dúvida: a 
invenção do cinema sonoro provocou, de forma previsível e inevitável, uma 
vaga de filmes que não passava de uma imitação insípida de representações 
teatrais. René Clair, ainda jornalista, parecia pensar que o «teatro filmado» era 
um género novo, que tinha a sua legitimidade, e que não havia qualquer razão 
para melindres (desde que, claro, não travasse o desenvolvimento do «verda-
deiro» cinema). Na sua obra retrospectiva de 1970, René Clair conclui: «Profecia 
não realizada.5» O teatro filmado passou a ser o estigma dos inícios do cinema 
sonoro. De resto, os amantes de teatro não viam vantagens nesse cinema. «O 
cinema não pode substituir o teatro, tal como a fotografia não substituiu a pin-
tura6», afirma Sacha Guitry em meados dos anos 30. O teatro filmado é atacado 
por todos: por aqueles que têm saudades do «cinema puro», feito para os olhos 
e não para os ouvidos, por aqueles que acham que o cinema só adapta peças 
de terceira categoria, por aqueles (por vezes, os mesmos) que se alegram por o 
ver a evitar as grandes obras, que só poderia desnaturar. A causa é conhecida: 
o cinema não é o teatro, o teatro filmado é cinema inferior.
Numa entrevista de 1968, Jacques Rivette declarava que «todos os 
filmes são sobre o teatro; não há outro tema7». De uma forma mais prosaica, 
4 Alexandre Arnoux, Du muet au parlant. Souvenirs d’un témoin. Paris, La Nouvelle édition, 1946, pp. 
184-185.
5 «O teatro filmado substituirá as representações teatrais de bairro e de província, tal como a edição 
popular de grande tiragem ajudou a edição original a difundir uma obra literária.» Cinéma d’hier, 
cinéma d’aujourd’hui, Paris, Gallimard, 1970,p. 236.
6 Sacha Guitry, «Pour le théâtre e contre le cinéma» (1936), Le Cinéma et moi, ed. revista, Paris, Ramsay, 
1990, p. 63.
7 «Le temps déborde», entrevista a J. Rivette, Cahiers du cinéma, nº 204, Setembro de 1968, p. 15.
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O CINEMA E A ENCENAÇÃO
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pode concluir-se que, três quartos de século após a passagem para o cinema 
sonoro, uma percentagem não negligenciável de filmes se apresenta como a 
transcrição mais ou menos directa de uma representação teatral. A televisão, 
cujo aparecimento e popularização, um pouco mais tarde, desencadearam 
polémicas comparáveis, não alterou as coisas: os telefilmes e as séries televi-
sivas não são teatro, mas continuam a assemelhar-se-lhe bastante, gerando 
personagens que se deslocam em espaços definidos, que se encontram e se 
falam – que ocupam uma cena. Boa parte dos filmes de autor preocupa-se tam-
bém com o teatro, seja por uma referência directa – como em Noite de Estreia 
[Opening Night] de John Cassavetes, em Esther Khan ou Léo, en jouant «Dans 
la compagnie des hommes», ambos de Arbaud Desplechin –, seja pelo interesse 
contínuo na cena (quase todos os filmes franceses, as comédias e os dramas 
hollywoodescos). Ao mesmo tempo, o cinema alterou consideravelmente a sua 
definição do espectacular, desde os «efeitos especiais» dos anos 70 à digitali-
zação cada vez mais usada nos filmes. O teatro continua subterraneamente 
presente no cinema, mas e a encenação? E, desde logo, quem é responsável por 
esta «encenação» no cinema?
O encenador
«Receita da ratatouille8*: pegue numa obra-prima de Balzac ou numa 
comédia famosa de Sardou e confie-a a um encenador.9» Para Guitry – especia-
lista das posições reaccionárias corajosamente assumidas –, é claro: a pretensão 
do cinema em imitar o teatro é insustentável; o espectáculo cinematográfico, 
que não tem espírito nem técnica, mais não faz do que degradar a arte do tea-
tro; «encenador», no cinema, é um título usurpado à força. No início, o cinema 
não tinha qualquer termo para designar o homem responsável pelo carácter 
do filme. Com o crescimento das ambições artísticas e da especialização das 
tarefas, o vocabulário desenvolveu-se e diversificou-se, segundo dois eixos – o 
do ofício e o da arte: havia, de um lado, o realizador e encenador; do outro, 
cineasta e, depois, autor. «Cineasta» é o único destes termos que tem uma 
data de nascimento e um progenitor: em Maio de 1921, no seu jornal Cinéa, 
Louis Delluc propõe o termo, um pouco por acaso e com o desejo confesso de 
substituir o termo francamente bizarro de «écraniste», que fora inventado por 
Canudo. Os Ingleses chamar-lhe-ão filmmaker, fazedor de filmes, mas outras 
línguas europeias (espanhol, português, alemão, etc.) usarão o termo cineasta, 
por vezes em concorrência com outros. É que este termo oferece uma solução 
para uma verdadeira dificuldade: como designar este indivíduo de pretensões 
artísticas, cuja obra, porém, não resulta do trabalho solitário normal, mas de 
8 A ratatouille é uma antiga receita culinária provençal à base de beringelas e tomates (N.T.).
9 S. Guitry, op. cit., p. 62.
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A HERANÇA DO TEATRO: A ENCENAÇÃO, O TEXTO E O LUGAR
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uma colaboração? Na época em que se tentava definir a todo o custo o cinema 
como arte, cineasta foi o cómodo equivalente de pintor, escultor ou músico: o 
oficiante de uma arte singular. No entanto, durante bastante tempo, o termo 
foi equívoco e designava «todos – animadores, realizadores, artistas, industriais 
– os que fizeram alguma coisa pela indústria artística do cinema10», incluindo 
os produtores ou os operadores; quando dá o título de «Os Cineastas» à sua 
crónica, Delluc juntou Abel Gance, Serge Sandberg, Adolph Zukor, Lillian Gish e 
David W. Griffith. Foi para voltar ao trabalho solitário e distinguir estas perso-
nagens que, a partir dos anos 30, a terminologia se decidiu pela atribuição da 
qualidade de «autor» (voltarei a este assunto).
Face a estas fórmulas gerais, dois termos concorrentes visam definir 
um ofício. O realizador, evidentemente, é aquele que realiza. Mas o que é que 
ele realiza? Hoje em dia, temos tendência a dizer que realiza um filme; ora, 
este termo foi concebido para designar aquele que «realiza», ou seja, que faz 
passar um argumento para a realidade sensível. O realizador é um homem do 
concreto, do visível e do audível, aquele que sabe traduzir uma narrativa escrita 
em acções e gestos. Nos anos 20, quando este termo entrou no uso corrente, 
estava separado do de «encenador» apenas por uma nuance recentemente apa-
recida no teatro; ambos estão incumbidos de passarem para a realidade actos, 
gestos e movimentos, a carga expressiva de um texto escrito, de um argumento 
ou de uma peça de teatro. Seria o homem do cinema também um encenador? 
Esta é a questão, a meu ver, levantada pela difícil emancipação do cinema rela-
tivamente ao teatro. Realizador, encenador: o cineasta, através destas designa-
ções, tem a missão, de qualquer modo, de ser o ilustrador de um texto.
Felizmente, isto não é inteiramente verdade. Claro que há numerosos 
filmes de peças de teatro, quase sem diferenças. Mas, inversamente, esta pers-
pectiva inquietante do «quase sem diferença», do registo sem imaginação, foi, 
para alguns cineastas, aquilo que os levou, como que por desafio, a pegarem 
em peças de teatro puro para as transformarem em filme, quer «desteatrali-
zando-as», como dirá mais tarde Jean Cocteau a propósito das suas próprias 
experiências, quer «sobreteatralizando-as» (como o fez o próprio Guitry). Uma 
das primeiras realizações neste sentido foi a adaptação, por Jean Renoir (foi 
o seu primeiro filme sonoro), de uma comédia de George Feydeau, On purge 
Bébé. Se há um teatro convencional, é este, que exige a cena ou palco à italiana 
mais tradicional, para organizar as entradas, as saídas, os apartes, e que, além 
disso, se baseia num diálogo incessante em que os efeitos cómicos se sucedem 
quase sem interrupção. Renoir não pratica uma operação revolucionária sobre 
a comédia de Feydeau; conserva a sua estrutura geral e boa parte do diálogo, 
10 Louis Delluc, Le Monde nouveau, V, 17-18, 15 de Agosto-1 de Setembro de 1922, p. 34. Reeditado em 
Delluc, Écrits cinématographiques 1. Le Cinéma et les Cinéastes, Paris, Cinémathèque française, 1985.
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O CINEMA E A ENCENAÇÃO
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e respeita no essencial as indicações cénicas. Mas faz duas coisas simples que 
tornam o seu filme um autêntico filme. Em primeiro lugar, «areja» a peça, acres-
centando-lhe pequenos sainetes, na maioria quase mudos, situados fora da 
cena principal; dupla vantagem: estes sainetes ou inserts agem principalmente 
sobre a imagem (nomeadamente a primeira, e a mais importante, a do menino 
a quem a mãe quer dar o laxante e que o recusa, fazendo caretas) e permitem 
introduzir uma montagem alternada, isto é, uma das bases mais sólidas da 
linguagem do primeiro cinema. Em seguida, usa, no próprio interior das cenas 
que conserva, uma montagem sempre cortante, muitas vezes surpreendente, 
em que os saltos de pontos de vista no interior de um mesmo local são fre-
quentes e não obedecem a regras identificáveis. Todo o filme é, pois, a simples e 
constante produção de um ponto de vista enquanto tal, o da câmara, que tanto 
desaparece como se afirma: seguimos sem dificuldade a continuidade dos diá-
logos e das situações, mas nunca podemos antecipar o ponto de vista em que 
nos serão apresentados. Este estilo, feito de «ataques11» repetidos, típico de 
Renoir12, afasta decisivamente o filme do «teatro em conserva»: aqui, o cinema 
soubejuntar a sua encenação à que era proposta pelo texto teatral.
A herança do teatro: o verbo e o lugar
Os anos 20, apogeu do cinema mudo, e os anos 30, aparecimento e 
consolidação do cinema sonoro, preocuparam-se com esta difícil relação. Dever-
se-á seguir a tendência teatral? Dever-se-á contrariá-la? E que pensar da criação, 
da arte? Quem é o representante do projecto, quem é o autor? De todos estes 
pontos de vista, o cinema até aos anos 40 (até ao muito simbólico Citizen Kane, 
O Mundo a Seus Pés, que marca brilhantemente a mudança radical dos dados 
sobre todas estas questões) aparece-me como o único grande período, uma 
espécie de «primeiro cinema», em que a técnica e o dispositivo inventados com 
o Cinematógrafo se desenvolvem até se tornarem «completos». Liberto dos pro-
blemas de aquisição da técnica de reprodução, o cinema concentrar-se-á depois 
mais nos problemas de enunciação. Mas este primeiro cinema confronta-se 
constantemente com o teatro, porque, entre os problemas que ainda não resol-
veu, há dois, enormes, em relação aos quais o teatro impõe as suas soluções: o 
lugar central atribuído ao verbo, a importância da noção de espaço.
11 No sentido em que o entende Alain Bergala, a propósito de Fassbinder, mas também de Renoir e de 
alguns outros. Ver Le Cinéma comment ça va. Lettre à Fassbinder suivie de onze autres, Paris, Cahiers 
du cinéma, 2005, pp. 18 ss. Lembremos que, ao comentar o seu filme Carmen [Prénom Carmen] 
(1982), Jean-Luc Godard assimilara o ataque no banco ao «ataque» no sentido musical, e, implicita-
mente, a sua própria forma de conceber o quadro e o plano.
12 E mais alguns outros cineastas, como Mizoguchi. Permitam-me remeter para o meu artigo «Appren-
dre le Mizoguchi», Paris, Cinémathèque, nº 14, Outono, 1998, pp. 14-27.
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Teatro filmado: a imposição de um ponto de vista.
(On purge Bébé, Jean Renoir, 1930)
D. R.
Logo no princípio do filme, entramos no escritório de Follaivoine com a criada (1). No plano 
seguinte, a câmara salta para o outro lado do escritório, num raccord a 90º (2). A mesma 
mudança brusca de ponto de vista, na primeira cena entre Follavoine e a mulher (3 e 4). Na 
cena (muda) entre Madame Follavoine e Bébé, o ponto de vista conserva um eixo fixo, mas 
recua progressivamente (por travelling) do princípio (5) ao fim (6) do plano. Estamos longe 
do registo passivo de uma representação teatral; o cineasta impõe ao espectador a consci-
ência do olhar da câmara.
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O CINEMA E A ENCENAÇÃO
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O verbal no fílmico
No princípio era o texto
O reportório teatral do século XIX parece-nos hoje identificado com o 
seu reportório literário. Num como noutro, há obras-primas e grandes auto-
res, produtores em série e pequenas obras que se esquecem facilmente; auto-
res célebres totalmente desaparecidos da nossa memória. Ora, por volta de 
1850 ou 1860, havia, na crítica mais exigente, uma grande diferença, quase 
um abismo, entre literatura e teatro. Ninguém a expressou tão violentamente 
como Barbey d’Aurevilly: «Percorram-se todos os registos do espírito humano, 
desde o poema épico, que é o romance dos homens primitivos, até ao romance, 
que é o poema épico dos povos modernos, e ver-se-á se a arte dramática com 
as convenções que a regem não é a menos profunda, a menos completa das 
altas composições literárias13.» Ainda em 1912, uma revista parisiense fazia 
um inquérito com estas perguntas reveladoras: «Será que o espectáculo implica 
as mesmas faculdades espirituais que a leitura? Quem, para vós, é superior: o 
homem que “tem amor pela leitura” ou o homem que tem “a paixão do tea-
tro”? Será o gosto do teatro uma forma do gosto da literatura?14» Ler um texto é 
um fenómeno espiritual, activo; o espectáculo, pelo contrário, mobiliza meios 
materiais, efémeros; pressupõe um destinatário passivo, ao qual só acede pelos 
sentidos. Muitos eram os críticos que repetiam esta axiologia, quando não 
acrescentavam que, sendo o teatro uma arte de massas, é necessariamente 
inferior à arte de elite que é a literatura (é a posição de Barbey d’Aurevilly). É 
difícil não sorrir, reconhecendo a mesma cantiga que acolherá o cinema primi-
tivo, rejeitado pela crítica literária e teatral pelos mesmos motivos e com os 
mesmos argumentos: demasiado sensacional, não suficientemente espiritual, 
o cinema adula o gosto naquilo que este tem de mais grosseiro e mais material, 
transforma o espectador em receptáculo passivo, é a distracção de um povo 
estúpido (de «hilotas», segundo a expressão de um literato esquecido, Georges 
Duhamel).
Era noutra direcção que, por volta de 1870, se esboçava a evolução da 
arte do teatro, com Richard Wagner a enveredar por uma Gesamtkunstwerk15, 
que incluía a música, a poesia e também uma cenografia sofisticada. Mas, ape-
sar dos esforços conscientes de alguns, por volta de 1900, para defenderem 
a arte do teatro enquanto tal, ou seja, enquanto espectáculo, apesar do apa-
recimento notável do encenador, esta relação com a literatura nunca deixou 
de inquietar os espíritos, como uma má consciência. Stéphane Mallarmé, que 
13 Jules Barbey d’Aurevilly, Théâtre contemporain (1866-1868), Paris, 1908. Citado de André Veinstein, 
La Mise en scène théâtrale et sa condition esthétique, Paris, Flammarion, 1955., p. 51.
14 In Veinstein, La Mise en scène et sa condition esthétique, op. cit., p. 53.
15 Ou seja, uma obra de arte total (N.T.).
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A HERANÇA DO TEATRO: A ENCENAÇÃO, O TEXTO E O LUGAR
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compreendeu o problema de forma mais profunda, percebeu bem que o teatro 
(de que fora espectador assíduo) assentava em fenómenos psíquicos e estéti-
cos que em nada ficavam atrás, nem em grandeza nem em profundidade, dos 
do livro: «O palco é o centro evidente dos prazeres sentidos em comum, bem 
como, afinal de contas, a majestosa abertura ao mistério pelo qual estamos no 
mundo para descortinar a grandeza [...]16.» No entanto, a solução que propõe é 
a de um homem para quem a literatura é e continua a ser a referência: o teatro 
puro consumado no livro17.
Ler em voz alta numa apresentação pública aquilo que é feito para ser 
lido em voz baixa, passar do Livro para o Teatro e do Teatro para o Livro: esta 
utopia, alguns escritores, homens de teatro e até vários cineastas, desde Jean-
Marie Straub a Raoul Ruiz, passando por Manoel de Oliveira, vão realizá-la em 
alguns dos seus filmes, e Jean-Luc Godard18 evoca-a de forma mais abstracta. 
É o acme, que se quer positivo, da sujeição do teatro à literatura, ao poema. 
«Penso que a literatura, extraída na sua fonte que é a Arte e a Ciência, nos dará 
um Teatro cujas representações serão o verdadeiro culto moderno; um Livro, 
explicação do homem, suficiente para os nossos mais belos sonhos.19» Salva-
mento do teatro pela eliminação da grosseria que o encobre e por concentração 
no canto primordial: o diagnóstico é mais optimista do que o de Barbey, mas 
assenta nas mesmas premissas. Entregue a si próprio, o teatro é uma literatura 
invadida por ervas daninhas; o verdadeiro teatro, que representará a continui-
dade do grande teatro original (a tragédia grega), será, de qualquer forma, um 
teatro da literatura. A representação teatral, nesta concepção do século XIX 
que ainda perdura e alimenta a televisão, é feita apenas para ouvir um texto, 
para o ouvir dizer e para o ouvir dito.
Paliativos mudos: a pantomina
O cinema mudo está quase sempre associado no nosso espírito à 
ideia de actores cujos gestos impressionam pela incongruência, pelo exagero e 
pelo artifício. É impossível não pensar na pantomina,essa arte teatral menor, 
16 Mallarmé, Crayonné au théâtre (1887), em Œuvres complètes, Paris, Gallimard, «Bibliothèque de la 
Pléiade», 1945, p. 314.
17 «Teatro», se quisermos, no qual a relação entre o oral e o escrito seria regida com um rigor implacá-
vel, em que um «operador» dá o espectáculo total, perfeito, de uma leitura que seria, a seu modo, tão 
rigorosamente encenada quanto uma representação teatral. Das 200 páginas do manuscrito em que 
pensa neste Livro Ideal, Mallarmé dedica apenas algumas a esboçar o conteúdo desse livro-poema, 
concentrando-se quase exclusivamente no dispositivo – incluindo económico – da sua apresenta-
ção. Ver a edição feita por Jacques Schérer, Le «Livre» de Mallarmé, Gallimard, 1957.
18 «[...] o teatro não pode nem deve ser representado, apenas lido e, por conseguinte, escrito, ou então 
inventado e vivido.» (1990) Citado por Liandrat-Guiges e Jean-Louis Leutrat, Godard simple comme 
bonjour, Paris, L. Harmattan, 2005, p. 268.
19 Mallarmé, «Sur le théâtre», fragmento sem data, Œuvres complètes, Paris, Gallimard, «Bibliothèque de 
la Pléiade», p. 875.
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O CINEMA E A ENCENAÇÃO
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baseada na capacidade expressiva (não verbal) do corpo. Ora, no século XIX, 
a teorização da pantomina acentua a sua parte de codificação paraverbal. 
A obra de François Delsarte, cuja influência foi enorme em todos os países 
ocidentais (incluindo os Estados Unidos), propõe um «método» assente na 
fisiognomonia20, baseado numa espécie de dicionário ou léxico que estabelece 
uma correspondência entre gestos e estados de espírito: só há uma forma de 
o corpo manifestar a ira, a angústia, o ciúme, a inquietação ou a ternura. A 
uma emoção corresponde sempre um movimento do corpo; inversamente, 
um movimento do corpo representa adequadamente uma única emoção21. 
Representar, segundo o sistema da pantomina, é aprender a produzir «enun-
ciados bem formados», numa linguagem convencional e artificial que mobi-
liza o corpo.
O cinema mudo contém, em muitos filmes, o vestígio desta tradição. 
Veja-se o exemplo, cómodo e genérico, das curtas-metragens de David Wark 
Griffith para a produtora Biograph. Todas as semanas, Griffith realizava um ou 
dois filmes, primeiro de só uma bobina e depois de duas bobinas, entre The 
Adventures of Dollie, filmado a 18 e 19 de Junho de 1908, e Judith of Bethulia, 
filmado em Julho de 1913 (estreado apenas em 1914). Nestes cerca de 450 
filmes podemos ver as marcas da encenação a ficarem cada vez mais ténues, a 
utilização das paisagens naturais a adquirir cada vez mais importância, e até 
a representação se torna mais natural à medida que se afirmam como actores 
de cinema personalidades como as irmãs Gish, Lionel Barrymore, Harry Carey, 
Robert Harron, Mae Marsh ou Mary Pickford. Griffith nunca teme recorrer ao 
sistema do dicionário mímico. Para indicar que é casada, uma personagem 
mostra o dedo anelar; se tem filhos, coloca a mão horizontalmente à altura da 
cabeça (tantas vezes quantas o número de filhos); ninguém faz um brinde sem 
inclinar o busto para trás e estender o braço; o desespero é expresso pelas duas 
mãos levadas às têmporas (sobretudo nas mulheres), etc.
Ao mesmo tempo, no cinema mudo encontramos um eco directo da 
tese de base do naturalismo: uma origem natural da gestualidade expressiva 
20 Fisiognomonia: «ciência» que pretende deduzir das características puramente físicas (em especial, 
as do rosto e da cabeça) um conhecimento acerca do carácter e da psicologia dos seres humanos. 
Foi inventada por Johann Kaspar Lavater, numa obra publicada em 1775-1778, e que, durante um 
século, exerceu grande influência (nomeadamente através de Goethe e Balzac).
21 Na obra que expõe o sistema de Delsarte (do seu discípulo Alfred Giraudet, Mimique: Physionomies 
et gestes, méthode pratique d’après le système de F. del Sarte, pour servir à l’expression de sentiments, 
Librairies-Imprimeries Réunies, 1895), os corpos são representados por uma espécie de manequins 
com linhas simplificadas e abstractas. Acerca desta obra e da posteridade de Delsarte no cinema, 
remeto, por um lado, para Mikhail Iampolski, «Les expériences de Kuleshov et la nouvelle anthropo-
logie de l’acteur», Iris, vol. 4, nº 1, 1986, e, por outro, para Emmanuelle André, Formes filmiques et 
idées musicales: en quête de musicalité au cinéma, tese de doutoramento na Universidade de Paris-3, 
2000 (ver também «L’homme désaccordé. La gestuelle de Jerry Lewis», Cinéma 04, Outono, 2002, 
pp. 21-31).
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A HERANÇA DO TEATRO: A ENCENAÇÃO, O TEXTO E O LUGAR
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e da mímica do actor. Em concorrência com o léxico de gestos e poses padro-
nizados, há também o contrário da convenção, na forma de gestos originais 
inventados pela sua expressividade ou, mais claramente naturalistas, gestos 
que não parecem premeditados. Estes três géneros de gestos – convencionais; 
artificiais mas originais; naturais e espontâneos – coexistem, na verdade, em 
todo o cinema mudo, sem que nisso se veja qualquer progressão. Existe sem-
pre, pelo menos até meados dos anos 20, tanta ou mais mímica como inven-
ção, mesmo em filmes a priori próximos do documentário. Desde as vistas 
de Lumière encontramos toda a gama, dos gestos espontâneos dos sujeitos 
filmados na sua actividade quotidiana até às pantominas puras dos filmes de 
estúdio, passando pelo vasto registo intermédio dos gestos copiados do espon-
tâneo por sujeitos filmados que se mostram demasiado conscientes de o serem. 
Os Primeiros Passos do Bebé [Premiers Pas de bébé] (vista 67) são executados 
com a maior das naturalidades pelo bebé; a mãe, muito consciente da presença 
da câmara, assegura a encenação por delegação, fazendo com que o menino se 
mantenha no campo, ao mesmo tempo que, espontaneamente, vela para que 
ele não caia. Ainda nos filmes de família, Jogo de Cartas [Partie d’écarté] (vista 
73) oferece um contraste nítido entre as poses dos jogadores, atentos para não 
perderem (por isso parcialmente naturais), e do criado que serve as bebidas e 
se contorce para exprimir – pensa ele – a sua reacção às jogadas, num desem-
penho que acaba por ser tão exagerado quanto o dos actores de Griffith.
A pose, a postura, a conformidade do gesto dramático a um dicionário 
implícito constituíram a lei em praticamente todos os dramas e melodramas (o 
caso do filme cómico é um pouco diferente, com o excesso carnavalesco a que 
chamamos burlesco). As divas italianas de Il fuoco (Giovanni Pastrone, 1915) 
ou de Assunta Spina (Gustavo Serena, 1915), tal como as primeiras stars de 
Hollywood, mostram-nos uma representação exagerada, artificial, facilmente 
decomponível em gestos unitários, nos quais se vê a excessiva articulação. 
Fazer do corpo, privado da fala, um meio de recuperar a linguagem articulada 
copiando-lhe, precisamente, a articulação: é esta a definição de princípio de 
grande parte da representação do actor do período «mudo». A linguagem, no 
cinema mudo, não se limita, pois, aos entretítulos; não partilho a opinião de 
Michel Chion, que vê nestes entretítulos um «corpo estranho» à imagem e 
uma forma de manter «a ilusão de que o cinema mudo poderia tornar-se puro 
e, dispensado-a [a linguagem], emancipar-se das palavras22». Mesmo nos pou-
cos filmes que procuraram esta pureza desembaraçando-se dos entretítulos, 
a imagem continua impregnada de alguma linguagem, que provém da longa 
habituação, no teatro, de ver a coabitação de um corpo, de uma voz e de 
uma dicção articulada. O próprio Chion observa que, nas cenas dialogadas 
22 Michel Chion, Un art sonore, le cinéma, Paris, Cahiers du cinéma, 2003, p. 18.
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O CINEMA E A ENCENAÇÃO
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dos filmes mudos, a maior parte das vezes as personagens mantêm-se imóveis 
mesmo quando falam23. Com efeito, é como se fosse necessário optar entre 
falar e mover-se; se o actor «fala», não se move e a palavra tem de ser veiculada, 
do exterior do corpo do actor, pelo pesado sistema dos entretítulos; e se não 
«fala», a pantomina reenvia a linguagem para o corpo do actor.
Esta carga de linguagem da representação exagerada, esta impregnação 
da linguagem nos gestos, foi percebida na primeira década do século XX pelos 
cineastas mais atentos. O dinamarquês Urban Gad, autor da primeira obra 
completa sobre a realização de filmes, nota que o actor de teatro tem maior 
tendência em levar para o filme essas convenções, uma vez que está habituado 
a exprimir-se de forma exagerada: «No cinema, um actor não pode limitar-se a 
exprimir o desespero pelas mãos postas no rosto, ou a paixão encostando-as 
ao coração; por causa da distância do espectador, no teatro, estes gestos exer-
ceram o seu efeito durante tanto tempo que se tornaram símbolos tradicionais 
[...]. Num filme, o público deve ter o sentimento autêntico, tal como se reflecte 
na vibração do rosto humano.24» Gad acrescenta ainda que, nas cenas de diá-
logo, é no rosto daquele que ouve que veremos o sentido das palavras – abrindo 
assim caminho, pelo menos em teoria (porque os seus filmes estão longe deste 
ideal), a um cinema liberto do teatro e da sua gestão da fala.
A logorreia
Às primeiras representações de filmes mudos dramáticos, o público 
tinha tendência a reagir como aquele crítico que escrevia em 1908: «Come-
çamos a sentir uma espécie de irritação com o mutismo obstinado daque-
las silhuetas gesticuladoras. Temos vontade de lhes gritar: “Digam qualquer 
coisa!”25» Este desejo foi satisfeito, ampla e copiosamente, em filmes sonoros 
que não faziam senão isso – dizer qualquer coisa, fosse o que fosse; a encena-
ção, então, consistia no seu princípio, e para além das habilidades individuais, 
em conservar no centro da nossa atenção aquelas «silhuetas» falantes.
Na altura da passagem para o cinema sonoro (entre 1926 e meados 
dos anos 30), a ambição era alcançar os famosos «100%» prometidos pelos slo-
gans dos produtores: filmes em que a fala dramatizada nunca se calaria. É uma 
concepção hiper-teatral a que visa a «Querela do teatro filmado», e que, por 
ser o seu oposto exacto, não é diferente na sua essência de um cinema mudo 
reduzido à mímica articulada e focalizada. O cinema sonoro teve opositores, 
que nele viam apenas uma regressão a um estádio primitivo da encenação, em 
23 Chion, op. cit, p. 49.
24 Urban Gad, Filmen: Dens Midler og maal, Copenhaga, Gyldendal, 1919. Cito a partir da tradução 
alemã, Der Filme, seine Mittel, seine Ziele, trad. por J. Koppel, Berlim, Schuster & Loeffler, 1920, pp. 
151-152.
25 Adolphe Brisson, citado em Marcel Lapierre, Anthologie du cinéma, La Nouvelle Édition, 1946.
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A HERANÇA DO TEATRO: A ENCENAÇÃO, O TEXTO E O LUGAR
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que a câmara devia permanecer imóvel e registar o desempenho dos actores. 
Mas este critério da mobilidade da câmara e da fluidez da montagem, ainda que 
pertinente, foi apenas provisório, uma vez que a câmara depressa recuperou a 
liberdade de movimentos – em parte, graças a invenções como a dobragem. 
Em contrapartida, aquilo que não desapareceu com as invenções técnicas foi 
o papel central e determinante da fala; adquiriu apenas uma nova forma, que 
bem se pode chamar logorreia, nos muitos filmes claramente teatrais dos anos 
30 (a década em que se fizeram mais adaptações de peças de teatro). Sacha 
Guitry não escondia que desejava, antes de tudo, registar um testemunho da 
encenação e da dicção que aprovara para as suas próprias peças: «Encenei [em 
1916] uma comédia intitulada Faisons un rêve, na qual Raimu esteve admirável. 
Foi há exactamente 36 anos. Mais tarde [1936], filmei-a – e está agora [1952] 
a ser representada num cinema dos Campos Elísios. Raimu já não está cá, eu já 
não tenho idade para a representar – e podeis vê-la ainda!»26 Faisons un rêve é 
uma peça em que o reduzido número de personagens (três) não impede a abun-
dância dos diálogos; está sempre alguém a falar, como no célebre monólogo 
em que Guitry, enquanto espera pela amante (Jacqueline Delubac), a imagina a 
arranjar-se, a sair de casa, a apanhar um taxi, etc. – tudo isto, sem dúvida, para 
benefício do espectador, suspenso nesta narração durante quase oito minutos 
pela magia do verbo e da voz, a ponto de, quando a personagem chega à con-
clusão de que pecou por optimismo e que a jovem não vem, ficarmos, tal como 
ele, desiludidos.
O objectivo da logorreia é sempre o mesmo: suspender o espectador 
na enunciação do sentido, fazer com que deseje e espere pelo seguimento do 
diálogo (ou do monólogo). O jogo dramático é então reduzido à circunstância 
desta enunciação. Uma das obras-primas da logorreia é O Grande Escândalo 
[His Girl Friday], de Howard Hawks (1940), adaptado de uma peça de Ben Hecht 
e de Charles MacArthur, remake de uma primeira adaptação, Front Page (Lewis 
Milestone, 1931); esta primeira versão tinha a fama de ser o filme mais rápido 
alguma vez realizado e Hawks apostou em tornar o seu ainda mais rápido. 
«Para isso, só é preciso algum trabalho suplementar no diálogo. Colocam-se 
algumas palavras antes da réplica de uma personagem e algumas palavras logo 
a seguir, e depois sobrepomo-las. Isto dá uma sensação de rapidez que, na 
realidade, não existe. E depois, põem-se as pessoas a falar mais depressa. [...] 
Expliquei isto a Hecht e a MacArthur. Falávamos os três ao mesmo tempo e eu 
disse-lhes: “Estão a ver? Eles vão falar exactamente como nós estamos agora 
a falar”.27» O resultado é surpreendente e, ainda hoje, a velocidade de elocu-
ção desses diálogos, perfeitamente articulados, continua a ser incomparável. 
26 Sacha Guitry, Le Cinéma et moi, 2ª ed., Paris, Ramsay, 1984, p. 105.
27 Joseph McBride, Hawks on Hawks, University of California Press, 1982, pp. 80-81.
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O CINEMA E A ENCENAÇÃO
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Mas, tal como na pantomina, o preço a pagar é a imobilidade dos actores e 
também, com frequência, da câmara. Na cena em que Walter (Cary Grant) 
toma o pequeno almoço com a ex-mulher Hildy (Rosalind Russell) e o noivo 
desta (Ralph Bellamy), as três personagens estão enquadradas juntas e, além 
disso, como nenhuma delas pode voltar as costas, estão sentadas no mesmo 
lado da mesa, de forma muito pouco natural. É nestas condições que decorre 
o diálogo, a um ritmo de metralhadora. A encenação, aqui, é apenas o puro 
exercício da logorreia – ou não participasse Cary Grant, um dos actores mais 
versáteis que alguma vez existiu, que «actua como um elfo com as pernas, os 
braços, os músculos do rosto, e executa um bailado digno de Massine28».
A dicção
Quando o cinema se tornou sonoro, o dilema da pantomina (exprimir 
convencionalmente ou tentar exprimir naturalmente) incidiu na dicção, com o 
seu duplo pólo normativo: por um lado, o verosímil e, por outro, o prosódico. 
Com efeito, há duas grandes tradições na dicção teatral: a que se esforça por 
naturalizar o diálogo, por o tornar tão fluido quanto possível, por fazê-lo esque-
cer; e a que, ao contrário, se impõe, se destaca, se apresenta ao ouvinte por si 
mesma e pelas qualidades sonoras. Este dilema nunca foi tão visível como na 
representação de peças antigas, que nos chegaram na forma escrita, sem que se 
saiba exactamente que relação tinham com a oralidade. Sabemos apenas que a 
dicção era muito artificial e articulada (a dicção mais solta, no teatro, só apa-
receu com o naturalismo de André Antoine). Várias tentativas derecuperação 
desta pronúncia e de reconstituição do estilo gestual, sonoro e visual da cena 
do século XVII ao século XVIII foram propostas; eram sugestivas, mas sempre 
hipotéticas29. Para além destas tentativas, apaixonantes mas experimentais, 
montar Le Cid (Corneille) ou Andrómaca (Racine) implica uma escolha entre 
duas soluções igualmente contestáveis: dizer alexandrinos, com o risco de ser 
difícil seguir a construção das frases, ou naturalizar o discurso, quebrando a 
métrica e a rima, como se se tratasse de um texto contemporâneo.
Quando, em 1970, filmou a peça Othon, de Corneille, Jean-Marie Straub 
tomou, entre outras, posição sobre estas relações entre o verbal e o espectacu-
lar. O seu filme é uma representação da peça, que oferece algumas particularida-
des notáveis (e notadas, pois o filme foi recebido como uma provocação). Desde 
logo, em termos cenográficos: cada um dos cinco actos é filmado num único 
28 Manny Farber, «Preston Sturges: du succès au cinéma» (1954), Espace negative, trad. por B. Mat-
thieussent, Paris, POL., 2004, p. 127. Sobre o estilo deste actor, ver também Luc Moullet, Politique 
des acteurs, Paris, Cahiers du cinéma, 2003.
29 Penso sobretudo no trabalho sistemático de Eugène Green e do seu Théâtre de la Sapience. Ver o seu 
livro, La Parole Baroque, Paris, Desclée de Brouwer, 2000, e a aplicação das algumas das suas ideias 
nos seus filmes, Le Monde vivant (2003) e Le Pont des Arts (2004).
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Introdução. Você disse «encenação»? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
1. A herança do teatro: a encenação, o texto e o espaço . . . . . . . . . . . . . . . 17
 Encenador, cineasta e realizador (e autor) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
 O teatro filmado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
 O encenador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20
 A herança do teatro: o verbo e o espaço . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22
 O verbal no fílmico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24
 O palco fílmico: o cubo, os bastidores, a profundidade . . . . . . . . 32
 A herança da literatura: o argumento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40
 Argumento, adaptação, planificação (preeminência do argumento) . . 41
 A revolta contra a herança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54
 Como o cinema mudo dispensa o teatro . . . . . . . . . . . . . . . 54
 Como o cinema supera a literatura (e o teatro) . . . . . . . . . . . . 59
2. Um manifesto estético: a encenação e o mundo . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73
 Um manifesto negativo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
 A época das estéticas e dos manifestos . . . . . . . . . . . . . . . . 75
 A intenção do cinema como arte não se define pelo desejo do artista . 78
 A arte do cinema não implica um terceiro simbolizante . . . . . . . . 81
 A estética do cinema não é relativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83
 A «encenação» à prova dos filmes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87
 Os «quatro ases» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87
 Cinema da encenação e cinema da imagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 108
 O fim da encenação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 108
ÍNDICE
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3. A essência da encenação ou o fantasma da analítica . . . . . . . . . . . . . . . . 127
 A encenação como técnica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129
 Nascimento do encenador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129
 A encenação no «primeiro cinema» . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131
 Crítica e analítica da encenação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 140
 Eisenstein, Straub e a encenação analítica: a busca do sentido . . . . 142
 Rohmer e a análise da encenação: a busca da forma . . . . . . . . . . 153
 Encenação e ficcionalização . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157
 A ficção como construção da encenação . . . . . . . . . . . . . . . 157
 Encenação e estrutura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163
 A parte do acaso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169
Conclusão. Será o fim da encenação? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175
Referências bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181
 A encenação e o teatro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181
 Cinema e teatro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 182
 A «encenação» e a arte do cinema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 182
 A encenação: práticas e análises . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183
Índice remissivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185
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