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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Memória Jurisprudencial MINISTRO CASTRO NUNES SAMANTHA RIBEIRO MEYER-PFLUG Brasília 2007 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Ministra ELLEN GRACIE Northfleet (14-12-2000), Presidente Ministro GILMAR Ferreira MENDES (20-6-2002), Vice-Presidente Ministro José Paulo SEPÚLVEDA PERTENCE (17-5-1989) Ministro José CELSO DE MELLO Filho (17-8-1989) Ministro MARCO AURÉLIO Mendes de Farias Mello (13-6-1990) Ministro Antonio CEZAR PELUSO (25-6-2003) Ministro CARLOS Augusto Ayres de Freitas BRITTO (25-6-2003) Ministro JOAQUIM Benedito BARBOSA Gomes (25-6-2003) Ministro EROS Roberto GRAU (30-6-2004) Ministro Enrique RICARDO LEWANDOWSKI (9-3-2006) Ministra CÁRMEN LÚCIA Antunes Rocha (21-6-2006) Diretoria-Geral Sérgio José Américo Pedreira Secretaria de Documentação Altair Maria Damiani Costa Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência Nayse Hillesheim Seção de Preparo de Publicações Leide Maria Soares Corrêa Cesar Seção de Padronização e Revisão Rochelle Quito Seção de Distribuição de Edições Leila Corrêa Rodrigues Diagramação: Cláudia Marques de Oliveira Capa: Jorge Luis Villar Peres Edição: Supremo Tribunal Federal Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Supremo Tribunal Federal – Biblioteca Ministro Victor Nunes Leal) Meyer-Pflug, Samantha Ribeiro Memória jurisprudencial: Ministro Castro Nunes / Samantha Ribeiro Meyer-Pflug. – Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2007. – (Série memória jurisprudencial) 1. Ministro do Supremo Tribunal Federal. 2. Brasil. Supremo Tribunal Federal (STF). 3. Nunes, Castro – Jurisprudência. I. Título. II. Série. CDD-341.4191081 Ministro Castro Nunes FOTO APRESENTAÇÃO A Constituição de 1988 retomou o processo democrático interrompido pelo período militar. Na esteira desse novo ambiente institucional, a Constituição significou uma renovada época. Passamos para a busca de efetividade dos direitos no campo das prestações de natureza pública, como pelo respeito desses direitos no âmbito da sociedade civil. É na calmaria institucional que se destaca a função do Poder Judiciário. É inegável sua importância como instrumento na concretização dos valores expressos na Carta Política e como faceta do Poder Público, em que os horizontes de defesa dos direitos individuais e coletivos se viabilizam. O papel central na defesa dos direitos fundamentais não poderia ser alcançado sem a atuação decisiva do Supremo Tribunal Federal na construção da unidade e do prestígio de que goza hoje o Poder Judiciário. A história do SUPREMO se confunde com a própria história de construção do sistema republicano-democrático que temos atualmente e com a consolidação da função do próprio Poder Judiciário. Esses quase 120 anos (desde a transformação do antigo Supremo Tribunal de Justiça no Supremo Tribunal Federal, em 28-2-1891) não significaram simplesmente uma seqüência de decisões de cunho protocolar. Trata-se de uma importante seqüência político-jurídica da história nacional em que a atuação institucional, por vários momentos, se confundiu com defesa intransigente de direitos e combate aos abusos do poder político. Essa história foi escrita em períodos de tranqüilidade, mas houve também delicados momentos de verdadeiros regimes de exceção e resguardo da independência e da autonomia no exercício da função jurisdicional. Conhecer a história do SUPREMO é conhecer uma das dimensões do caminho político que trilhamos até aqui e que nos constituiu como cidadãos brasileiros em um regime constitucional democrático. Entretanto, ao contrário do que a comunidade jurídica muitas vezes tende a enxergar, o SUPREMO não é — nem nunca foi — apenas um prédio, um plenário, uma decisão coletada no repertório oficial, uma jurisprudência. O SUPREMO é formado por homens que, ao longo dos anos, abraçaram o munus publicum de se dedicarem ao resguardo dos direitos do cidadão e à defesa das instituições democráticas. Conhecer os vários “perfis” do SUPREMO. Entender suas decisões e sua jurisprudência. Analisar as circunstâncias políticas e sociais que envolveram determinado julgamento. Interpretar a história de fortalecimento da instituição. Tudo isso passa por conhecer os seus membros, os valores em que acreditavam, os princípios que seguiam, a formação profissional e acadêmica que tiveram, a carreira jurídica ou política que trilharam. Os protagonistas dessa história sempre foram, de uma forma ou de outra, colocados de lado em nome de uma imagem insensível e impessoal do Tribunal. Vários desses homens públicos, muito embora tenham ajudado, de forma decisiva, a firmar institutos e instituições de nosso direito por meio de seus votos e manifestações, são desconhecidos do grande público e mesmo ignorados entre os juristas. A injustiça dessa realidade não vem sem preço. O desconhecimento dessa história paralela também ajudou a formar uma visão burocrática do Tribunal. Uma visão muito pouco crítica ou científica, além de não prestar homenagem aos Ministros que, no passado, dedicaram suas vidas na edificação de um regime democrático e na proteção de um Poder Judiciário forte e independente. Por isso esta coleção, que ora se inicia, vem completar, finalmente, uma inaceitável lacuna em nossos estudos de direito constitucional e da própria formação do pensamento político brasileiro. Ao longo das edições desta coletânea, o aluno de direito, o estudioso do direito, o professor, o advogado, enfim, o jurista poderá conhecer com mais profundidade a vida e a obra dos membros do Supremo Tribunal Federal de ontem e consultar peças e julgados de suas carreiras como magistrados do Tribunal, que constituem trabalhos inestimáveis e valorosas contribuições no campo da interpretação constitucional. As Constituições Brasileiras (1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988) consubstanciaram documentos orgânicos e vivos durante suas vigências. Elas, ao mesmo tempo em que condicionaram os rumos político-institucionais do país, também foram influenciadas pelos valores, pelas práticas e pelas circunstâncias políticas e sociais de cada um desses períodos. Nesse sentido, não há como segmentar essa história sem entender a dinâmica própria dessas transformações. Há que se compreender os contextos históricos em que estavam inseridas. Há que se conhecer a mentalidade dos homens que moldaram também essa realidade no âmbito do SUPREMO. A Constituição, nesse sentido, é um dado cultural e histórico, datada no tempo e localizada no espaço. Exige, para ser compreendida, o conhecimento dos juristas e dos políticos que tiveram papel determinante em cada um dos períodos constitucionais tanto no campo da elaboração legislativa como no campo jurisdicional de sua interpretação. A Constituição, por outro lado, não é um “pedaço de papel” na expressão empregada por FERDINAND LASSALE. O sentido da Constituição, em seus múltiplos significados, se renova e é constantemente redescoberto em processo de diálogo entre o momento do intérprete e de sua pré-compreensão e o tempo do texto constitucional. É a “espiral hermenêutica” de HANS GEORG GADAMER. O papel exercido pelos Ministros do SUPREMO, como intérpretes oficiais da Constituição, sempre teve caráter fundamental. Se a interpretação é procedimento criativo e de natureza jurídico-política, não é exagero dizer que o SUPREMO, ao longo de sua história, completou o trabalho dos poderes constituintes que se sucederam ao aditar conteúdo normativo aos dispositivos da Constituição. Isso se fez na medida em que o Tribunal fixava pautas interpretativas e consolidava jurisprudências. Não há dúvida, portanto, de que um estudo, de fato, aprofundado no campo da política judiciária e no âmbito do direito constitucional requer, como fonte primária, a delimitação do pensamento das autoridades que participaram, em primeiro plano, da montagem das linhasconstitucionais fundamentais. Nesse sentido, não há dúvida de que, por exemplo, o princípio federativo ou o princípio da separação dos Poderes, em larga medida, tiveram suas fronteiras de entendimento fixadas pelo SUPREMO e pela carga valorativa que seus membros traziam de suas experiências profissionais. Não é possível se compreender temas como “controle de constitucionali- dade”, “intervenção federal”, “processo legislativo” e outros tantos sem se saber quem foram as pessoas que examinaram esses problemas e que definiram as pautas hermenêuticas que, em regra, seguimos até hoje no trabalho contínuo da Corte. Por isso, esta coleção visa a recuperar a memória institucional, política e jurídica do SUPREMO. A idéia e a finalidade é trazer a vida, a obra e a contribuição dada por Ministros como CASTRO NUNES, OROZIMBO NONATO, VICTOR NUNES LEAL e ALIOMAR BALEEIRO, além de outros. A redescoberta do pensamento desses juristas contribuirá para a melhor compreensão de nossa história institucional. Contribuirá para o aprofundamento dos estudos de teoria constitucional no Brasil. Contribuirá, principalmente, para o resgate do pensamento jurídico-político brasileiro, que tantas vezes cedeu espaço para posições teóricas construídas alhures. E, mais, demonstrará ser falaciosa a afirmação de que o SUPREMO deve ser um Tribunal da carreira da magistratura. Nunca deverá ser capturado pelas corporações. Brasília, março de 2006 Ministro Nelson A. Jobim Presidente do Supremo Tribunal Federal SUMÁRIO ABREVIATURAS...................................................................................19 DADOS BIOGRÁFICOS......................................................................21 NOTA DO AUTOR.................................................................................23 1. REPRESENTAÇÃO INTERVENTIVA.................................................27 Acolhimento pelo Procurador-Geral da República das argüições encaminhadas ao Tribunal................................................................31 Suspensão de ato inconstitucional....................................................32 Inconstitucionalidade em tese..........................................................33 Ato argüido de inconstitucional........................................................35 Caráter excepcional e rol taxativo...................................................35 Possibilidade de o vício ser sanado por outro meio judicial.................38 Presidencialismo............................................................................38 Estrutura do Poder Executivo.................................................38 Presidencialismo e parlamentarismo........................................41 Eleição indireta de vice-governador de estado..........................45 O governo presidencial e o rol dos princípios sensíveis..............46 Impeachment.......................................................................49 Autonomia municipal......................................................................52 Intervenção municipal....................................................................53 Disposições eleitorais de estado-membro.........................................53 2. INCONSTITUCIONALIDADE E RECEPÇÃO CONSTITUCIONAL...........................................................................55 Declaração de inconstitucionalidade pelo Poder Executivo.................55 Possibilidade de revogação de lei pela Constituição...........................56 Recepção de lei anterior pela nova Constituição................................61 Cláusula de reconstitucionalização prevista na Constituição de 1937..............................................................................................62 3. RECURSO EXTRAORDINÁRIO........................................................69 Delimitação...................................................................................69 Cabimento em face de ato do Governo Provisório.............................70 Necessidade de esgotamento da via recursal para o cabimento do recurso extraordinário...................................................................70 Recurso extraordinário e recurso de revista......................................71 Inadmissibilidade em face de decisão da Justiça do Trabalho.............75 Cabimento em face das decisões do Conselho Nacional do Trabalho......................................................................................75 Controvérsia sobre a constitucionalidade de leis federais...................77 Não-cabimento em face das decisões proferidas pela Justiça da União.......................................................................................77 Admissão de começo de prova.......................................................78 4. SEPARAÇÃO DE PODERES E IMUNIDADES PARLAMENTARES..........................................................................79 Separação de Poderes e delegações legislativas................................83 Separação entre Estado e Igreja.....................................................85 Imunidade de vereador...................................................................85 5. ATOS DO GOVERNO PROVISÓRIO.................................................91 Cabimento de Exame judicial..........................................................91 Imunidade....................................................................................91 Exoneração de funcionários............................................................93 Demissão de funcionário federal por ato de autoridade que não o Chefe do Governo Provisório..........................................................95 Controle judicial.............................................................................96 Possibilidade de revisão pelo próprio Poder Executivo......................99 Descumprimento de decisão judicial por interventor.........................100 Responsabilidade da União por atos de interventor..........................102 Cobrança compulsória de impostos................................................106 Atos legislativos...........................................................................108 Possibilidade de edição de decretos com efeito retroativo.................109 6. RESPONSABILIDADE DA UNIÃO E MOVIMENTOS REVOLUCIONÁRIOS.......................................................................111 Cabimento de indenização por prejuízos sofridos por particular em virtude de movimento Evolucionário.........................................111 Responsabilidade do Estado decorrente de movimento revolucionário...........................................................................114 Cabimento de indenização por danos causados por interventor nomeado.....................................................................................115 Cabimento de indenização por atos de prepostos da União................116 Impossibilidade de participante de movimento revolucionário exercer cargo de parlamentar........................................................116 7. ANISTIA...........................................................................................119 Crimes contra a segurança do Estado............................................119 Efeitos da concessão....................................................................119 8. COMPETÊNCIA...............................................................................123 Competência do Supremo Tribunal Federal.....................................123 Competência originária do Supremo Tribunal Federal no pleito de estado contra terceiros com interesse da União...........................125 Conflito de jurisdição não suscitado pelos estados...........................127 Competência do Supremo Tribunal Federal para conhecerde causas em que seja parte autarquia................................................128 9. IRRETROATIVIDADE DE LEI.........................................................131 Direito adquirido.........................................................................131 Decisão judicial...........................................................................134 Retroatividade de lei....................................................................136 10. MANDADO DE SEGURANÇA.......................................................139 Violação de direito líquido e certo decorrente de inconstitucionalidade...................................................................139 Cabimento contra atos judiciais.....................................................140 Cabimento em face de decisão do Tribunal de Apelação.................147 Cabimento em face de ato de presidente de tribunal.......................148 Cabimento contra ato administrativo.............................................149 Cabimento em face de ato do Executivo........................................150 Cabimento em face de ato de interventor......................................152 Recurso de ofício........................................................................153 Recurso cabível em face de decisões finais sobre mandado de segurança..................................................................................153 Embargos...................................................................................154 Inadmissibilidade de recurso em face de decisão embargável..........156 Prazo.........................................................................................157 Direito líquido e certo...................................................................157 11. HABEAS CORPUS...........................................................................159 Concessão durante guerra...........................................................159 Garantia do exercício da liberdade de crença no estado de guerra........................................................................................161 Crime de desacato praticado por militar.........................................162 Crime de uso de uniforme por militar da reserva.............................163 Concessão em face da falta de configuração legal..........................164 Falta de justa causa para instauração do processo..........................166 Cabimento em face de decisão de segunda instância desprovida de fundamentação.......................................................................167 Não-cabimento para afastar retardamento de instrução probatória...................................................................................169 Concessão para exilado político....................................................170 Concessão no crime político.........................................................171 Cabimento para garantir livramento condicional nos crimes políticos......................................................................................172 Competência para julgar crime político..........................................173 Cabimento em favor de preso estrangeiro mantido incomunicável para ser expulso..........................................................................174 Habeas corpus e recurso ordinário..............................................176 Concessão de regime especial......................................................176 Solicitação, pela defesa, de audiência com o ofendido.....................179 Falta de defesa prévia..................................................................180 Cabimento com base em interpretação de lei.................................181 Legitimidade para ingressar..........................................................181 Possibilidade de revisão de decisão do júri pelo tribunal...................182 Princípio da isonomia...................................................................183 12. RECURSO E COISA JULGADA......................................................185 Tempestividade..........................................................................185 Coisa julgada............................................................................185 Intangibilidade da coisa julgada nos regimes autoritários.................185 Recurso de revista.....................................................................188 13. AÇÃO RESCISÓRIA.......................................................................191 Reiteração................................................................................191 Possibilidade de admissão em face dos julgados do Supremo Tribunal Federal proferidos em recurso extraordinário....................191 14. JUSTIÇA DO TRABALHO.............................................................197 Autonomia da Justiça do Trabalho................................................197 Cabimento de recurso em face de decisão da Justiça do Trabalho....................................................................................198 Juntas como órgãos representativos da Justiça do Trabalho...........198 Aplicação dos Códigos comuns à Justiça do Trabalho e proteção dos trabalhadores rurais................................................201 15. DIREITO ADMINISTRATIVO........................................................207 Apreciação de ato administrativo pelo Poder Judiciário.................207 Irredutibilidade de vencimentos dos magistrados e controle judicial de atos administrativos.....................................................210 Possibilidade de o estado-membro conceder tratamento mais favorável a funcionários públicos estaduais e municipais................213 Aplicabilidade automática das garantias da função pública no âmbito estadual.....................................................................215 Garantias dos promotores públicos..............................................216 Exoneração dos serventuários da Justiça......................................217 Responsabilidade da União sobre os atos dos funcionários.............217 Tombamento.............................................................................219 16. AUTARQUIAS................................................................................223 Natureza jurídica das autarquias..................................................223 Tributação dos bens de autarquia.................................................226 Caracterização de funcionário de autarquia..................................230 17. DIREITO CIVIL..............................................................................233 Possibilidade de cobrança de dívida de jogo..................................233 Concubinato entre empregador e empregada................................237 Prova de filiação legítima............................................................239 Reconhecimento judicial de filhos ilegítimos..................................241 Divórcio por incompatibilidade de gênios......................................244 Sucessões e direito adquirido.......................................................245 Bens com cláusula de inalienabilidade..........................................246 Cabimento de indenização ao marido em virtude do falecimento da esposa e ressarcimento por dano moral....................................248 Inclusão de honorários advocatícios na liquidação de sentença.......251 Inclusão de honorários advocatícios em pagamento de indenização por expropriação......................................................255 18. USUCAPIÃO..................................................................................257 Impossibilidade de usucapião de terras ou bens públicos................257 Impenhorabilidade de bens ou rendas públicas...............................257Ações de reivindicação ou reintegração de posse..........................258 19. TRIBUTOS......................................................................................261 Cobrança de taxa rodoviária por município...................................261 Coisa julgada em matéria fiscal....................................................263 Isenção de imposto de imóvel de concessionária de serviço público......................................................................................265 Isenção de imposto a professores, escritores e jornalistas..............267 Bitributação de imposto municipal................................................268 Tributação de renda pelo próprio estado........................................270 20. JUSTIÇA ELEITORAL....................................................................273 Cancelamento do registro do Partido Comunista...........................273 Possibilidade de magistrado em disponibilidade integrar a Justiça Eleitoral.........................................................................279 APÊNDICE...........................................................................................287 ÍNDICE NUMÉRICO............................................................................445 ABREVIATURAS ACi Apelação Cível AR Ação Rescisória CJ Conflito de Jurisdição HC Habeas Corpus MS Mandado de Segurança OAB Ordem dos Advogados do Brasil RE Recurso Extraordinário RHC Recurso em Habeas Corpus Rp Representação STF Supremo Tribunal Federal DADOS BIOGRÁFICOS JOSÉ DE CASTRO NUNES, filho do Dr. João Francisco Leite Nunes e de D. Tereza da Conceição Castro Nunes, nasceu em 15 de outubro de 1882, na cidade de Campos, Estado do Rio de Janeiro. Iniciou seus estudos na cidade natal, prosseguindo-os no Colégio Santa Rosa (Niterói); no Instituto Politécnico, em Salto (Uruguai), onde seu pai exercia o cargo de Cônsul do Brasil; na Escola Pública do Engenho Velho (RJ) e no Externato Pedro II (1897-1901), de onde saiu para matricular-se na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, onde se bacharelou, em 1906. Quando estudante, lecionou Matemática Elementar e Física no Liceu Literário Português. Exerceu os cargos de Fiscal de Ensino (1909-1911), Procurador dos Feitos da Prefeitura de Niterói (1915-1931), Membro do Conselho Administrativo da Caixa Econômica Federal e seu Presidente (1930) e Membro do Conselho Penitenciário do Rio de Janeiro (1928-1931). Ingressando na Magistratura, foi Juiz Federal Substituto, na Seção do Estado do Rio de Janeiro (1931-1934); Juiz Federal da 2ª Vara da Seção do antigo Distrito Federal (1934-1937) e Juiz dos Feitos da Fazenda Pública, também do antigo Distrito Federal (1937-1938). Nomeado Ministro do Tribunal de Contas da União, exerceu o cargo de 1938 a 1940. Por decreto de 10 de dezembro de 1940, do Presidente Getúlio Vargas, foi nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal, na vaga decorrente da aposen- tadoria do Ministro João Martins de Carvalho Mourão, tendo tomado posse em 18 do referido mês e ano. Em 1º de novembro de 1945, foi nomeado, por decreto do Ministro José Linhares, então exercendo a Presidência da República, para o cargo de Vice-Presidente do Supremo Tribunal Federal, assumindo-o em 3 do mesmo mês e ano. Ao despedir-se da Corte, na sessão de 16 de setembro de 1949, foi saudado pelo Ministro Laudo de Camargo, Presidente, e pelo Ministro Annibal Freire, em nome do Tribunal; pelo Procurador-Geral da República, Dr. Luiz Gallotti, e pelo Juiz Dr. Elmano Cruz. Falou pelos advogados o Dr. Plínio Pinheiro Guimarães, após o que agradeceu o homenageado. Aposentou-se em 22 de setembro de 1949. Era membro da Academia Fluminense de Letras e do Instituto do Brasil. Publicou vários livros de ciência jurídica, destacando-se: A jornada revisionista (Prêmio Carlos de Carvalho-1924); Do mandado de segurança e de outros meios de defesa contra atos do Poder Público; Teoria e prática do Poder Judiciário; Da Justiça do Trabalho no mecanismo jurisdicional do regime; Juristas e homens de letras; Rui Barbosa e seu espírito judiciarista; O espírito público fora dos partidos; O Poder Executivo na evolução política do Brasil; Bitributação e competência judiciária; Da Fazenda Pública em juízo; Soluções de direito aplicado; Alguns homens do meu tempo (literatura); As Constituições Estaduais do Brasil; Unidade do processo; Aspectos do federalismo contemporâneo; Patente de invenção; Os projetos não sancionados e o art. 40 da Constituição; A proibição de entrada de negros no Brasil; Da conceituação jurídica da Lei Orgânica do Distrito Federal; O poder de polícia e a localização das indústrias; e, ainda, Dos bens públicos de uso comum e da proteção possessória. Também exerceu o jornalismo, como cronista judiciário do Correio da Manhã (1906-1910) e como redator de A Noite, na época de Irineu Marinho (1912-1915), e da Gazeta Judiciária, a partir de 1953. Faleceu em 5 de setembro de 1959, na cidade do Rio de Janeiro, sendo homenageado em sessão de 9 seguinte, quando usaram da palavra o Ministro Orozimbo Nonato, Presidente, e, em seguida, o Ministro Luiz Gallotti, o Dr. Alceu Barbedo, Procurador-Geral da República em exercício, e o Dr. Leopoldo Braga, em nome dos advogados. O Supremo Tribunal Federal comemorou o centenário de nascimento em sessão de 20 de dezembro de 1982, falando em nome da Corte o Ministro Décio Miranda, pela Procuradoria-Geral da República o Prof. Inocêncio Mártires Coelho e pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil o Dr. José Paulo Sepúlveda Pertence. Dados biográficos extraídos da obra Supremo Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal — Dados Biográficos (1828-2001), de Laurenio Lago. Este texto também pode ser encontrado no sítio do Supremo Tribunal Federal na Internet. NOTA DO AUTOR Foi com imensa alegria e honra que recebi o convite para participar da série Memória Jurisprudencial, levada a efeito pelos Ministros Nelson Jobim e Gilmar Mendes, concluída na Presidência da Ministra Ellen Gracie e cuja finalidade precípua é divulgar a produção jurisprudencial dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. A mim coube a gratificante, honrosa e desafiadora tarefa de analisar e estudar a produção jurisprudencial do Ministro José de Castro Nunes, cujos artigos científicos e obras são de consulta obrigatória por todos aqueles que desejam aprofundar os conhecimentos no vasto campo do Direito Constitucional, precipuamente no tocante ao controle de constitucionalidade, aos princípios constitucionais, ao pacto federativo, ao mandado de segurança, aos direitos e garantias fundamentais, entre outros. José de Castro Nunes desempenhou a função de Ministro do Supremo Tribunal Federal por nove anos1, tendo abrilhantado a Corte durante esse período com votos sempre inovadores e garantidores da força normativa da Constitui- ção. Em 1945, foi nomeado Vice-Presidente do Supremo Tribunal Federal. O Ministro trouxe para a Suprema Corte toda a experiência adquirida como juiz federal, como Ministro do Tribunal de Contas da União e como jorna- lista. Sua formação profissional mostra-se presente nos votos sempre atentos a todos os efeitos e implicações da decisão a ser tomada, tanto no aspecto jurídico, como no social e no econômico. Verifica-se também, em suas manifestações, permanente preocupação com a necessidade de levar a cabo uma profunda in- vestigação acerca de cada tema e instituto do direito comparado, bem como o enfrentamento constante de novos desafios. O Ministro foi grande defensor do voto obrigatório e do sufrágio feminino, além de ter delineado os contornos do instituto do mandado de segurança. Em face da intensa produção científica e das posições inovadoras do Ministro Castro Nunes manifestadas em seus votos, tornou-se difícil a escolha dos acórdãos que integrariam esta obra, principalmente tendo em vistaque o próprio Ministro publicou duas obras que versavam sobre as matérias objetos de acórdãos da Corte Suprema2. Esse fato já demonstra sua preocupação em divul- gar as decisões do Supremo Tribunal Federal, pois, em sua visão, a jurisprudência da Corte Constitucional constitui-se na fonte mais categorizada do Direito apli- 1 José de Castro Nunes foi procurador do município de Niterói, jornalista, juiz federal, juiz dos feitos da Fazenda (1931-1938), Ministro do Tribunal de Contas da União (1938-1940) e Ministro do Supremo Tribunal Federal de dezembro de 1940 a setembro de 1949. 2 O Ministro Castro Nunes publicou as obras: Teoria e prática do Poder Judiciário e Soluções de direito aplicado. cado, devendo, portanto, ser analisada, criticada e estudada, tanto no que diz respeito às decisões que foram adotadas, como na fundamentação dos votos vencidos. Para o desenvolvimento do trabalho, a Secretaria de Documentação do Supremo Tribunal Federal forneceu todos os acórdãos, em papel impresso, num total de 1.750 decisões, nas quais o Ministro Castro Nunes proferiu voto, ou como relator, ou como Ministro, para apreciação. Dos acórdãos analisados, foram separados cem, nos quais a posição sustentada pelo Ministro se mostrou relevante para o deslinde da questão ou nos quais ele figurou como voto vencido. Estes são de extrema importância principalmente no tocante ao estudo da fundamentação levada a cabo pelo Ministro para justificar sua posição. Na seleção dos acórdãos, procurei dar maior ênfase às decisões que ver- savam sobre matéria constitucional, pois o Ministro Castro Nunes era um emi- nente constitucionalista, tendo recebido do Ministro Orozimbo Nonato a alcunha de “O Constitucionalista”. Analisei detidamente os votos proferidos nas repre- sentações interventivas propostas na época e cujas posições por ele sustentadas foram decisivas para o desenvolvimento do controle de constitucionalidade brasileiro e para a preservação dos princípios constitucionais, sendo referência, até os dias de hoje, nas decisões e nos votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria. Dediquei também especial atenção aos votos proferidos em mandado de segurança, tendo em vista que o Ministro foi um dos responsáveis pela definição e pela fixação dos limites e das hipóteses de cabimento do referido instituto, além de autor de obra clássica sobre o tema “mandado de segurança”.3 Igualmente, conferi destaque aos votos apresentados nas matérias relativas à justiça eleitoral, à coisa julgada, à anistia, à competência do Supremo Tribunal Federal, ao recurso extraordinário, à ação rescisória, à irretroatividade das leis, ao direito civil, ao direito administrativo, à responsabilidade da União, às autarquias, ao direito tributário, ao direito do trabalho4, entre outros. Tratei, em capítulo específico, do controle judicial dos atos do governo provisório e da concessão de habeas corpus. Nesse sentido, cumpre salientar que, a despeito de o Ministro ter aderido ao autoritarismo do Estado Novo, como 3 O Ministro Annibal Freire, em discurso proferido na sessão de aposentadoria do Ministro Castro Nunes, assim se manifestou: “Em dois pontos capitais da nossa elabora- ção jurídica, sobretudo, a obra de Castro Nunes há de perdurar — na conceituação e alcance do mandado de segurança e na fixação das diretrizes do Poder Judiciário.” 4 Em discurso proferido por ocasião da homenagem ao centenário do nascimento do Ministro José de Castro Nunes, o Ministro Xavier de Albuquerque esclareceu: “Entre as últimas, afirma a liberdade mais ampla do juiz togado quando funciona como magistrado do trabalho, mediante a aplicação do processo técnico do standard jurídico, conceituado por Marcel Stati.” magistrado sempre pautou sua conduta na mais estrita aplicação dos dispositivos constitucionais, preservando a coisa julgada, o direito adquirido e a concessão do habeas corpus durante o estado de guerra. Nesse aspecto, ressaltou o Ministro Sepúlveda Pertence: “O homem filiou-se explicitamente à doutrina autoritária do Estado Novo. Mas o juiz, este não se dobrou às arbitrariedades da ditadura.”5 A obra é composta de cem acórdãos, analisados individualmente, agrupados por temas e, quando possível, com identificação das tendências e evoluções jurisprudenciais. Também foram selecionados alguns dos acórdãos mais significativos para constar do apêndice, sem, contudo, procurar-se esgotar o assunto, o que seria de todo impossível em face da grandiosidade da colaboração do Ministro Castro Nunes à jurisprudência da Suprema Corte. Tem-se, pois, que a obra consiste numa resenha jurisprudencial do Ministro Castro Nunes e procura ressaltar sua valiosa colaboração para a história do Supremo Tribunal Federal e do desenvolvimento do direito pátrio. Não se buscou tratar aqui da biografia ou das obras doutrinárias do Ministro Castro Nunes, embora no comentário de algumas decisões fosse inevitável fazer referência expressa às obras por ele publicadas acerca do tema objeto da decisão. É, no entanto, possível, por meio do estudo de seus votos, vislumbrar um pouco do homem, do jornalista, do doutrinador e do juiz que foi o Ministro Castro Nunes, cuja grandiosidade e sabedoria não se encerram em uma única obra, mas transcendem seus textos, para adentrar a própria história do Supremo Tribunal Federal e as discussões permanentes dos temas de Direito Público. O Ministro Castro Nunes foi defensor árduo do debate e das discussões sobre os temas objetos de apreciação do Supremo Tribunal Federal, mas sempre na busca incessante da realização do direito e da justiça, como ele mesmo afirmou no discurso que proferiu no dia da concessão de sua aposentadoria: Não raro dissentimos, não raro divergi, sustentando, às vezes, talvez com demasiada insistência, os meus pontos de vista; mas sempre no plano elevado em que devem ser postas as divergências entre homens dominados pela preocupação comum de servir ao Direito e à Justiça. Ao fim, gostaria de agradecer especialmente: à Ministra Ellen Gracie, Presidente do Supremo Tribunal Federal, e aos Ministros Nelson Jobim e Gilmar Mendes, pelo convite para elaborar esta obra e pela confiança; à Dra. Altair Maria Damiani Costa e a toda a sua equipe, pela gentileza e atenção dispensadas ao longo deste trabalho e por seus conhecimentos precisos, que foram decisivos 5 Discurso proferido pelo Ministro José Carlos Sepúlveda Pertence, como representante da Ordem dos Advogados do Brasil, por ocasião da homenagem ao centenário do nasci- mento do Ministro José de Castro Nunes. para a conclusão da obra; à minha amiga Dra. Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha, pelo auxílio na seleção do material; e aos acadêmicos e amigos queridos Alceu Cicco e Tércia Lisboa, pela dedicação e auxílio com várias trans- crições. Samantha Meyer-Pflug Brasília, outubro de 2006 2 7 Ministro Castro Nunes 1. REPRESENTAÇÃO INTERVENTIVA A representação interventiva surgiu no ordenamento jurídico brasileiro com a Constituição de 1934. O único legitimado para propô-la era o Procurador- Geral da República, consoante o disposto no art. 12, § 2º, do Texto Constitucional: Ocorrendo o primeiro caso do n. V, a intervenção só se efetuará depois que a Corte Suprema, mediante provocação do Procurador-Geral da República, tomar conhecimento da lei que a tenha decretado e lhe declarar a constitucionalidade. As hipóteses constantes do n. V do art. 12 remetiam à execução de leis federais e aos princípios constitucionais especificados nas letras a até h do art. 7º, n. I, e, quais sejam: a) forma republicana representativa, b) independência e coordenação de poderes; c) temporariedade das funções eletivas, limitada aos mesmos prazos dos cargos federais correspondentes, proibida a reeleição de governadores e prefeitos para o período imediato; d) autonomia dos municípios; e) garantias do Poder Judiciário e do MinistérioPúblico locais; f) prestação de contas da Administração; g) possibilidade de reforma constitucional e competência do Poder Legislativo para decretá-la; h) representação das profissões. Esses eram os denominados “princípios sensíveis”, cuja violação por parte dos Estados-Membros ensejaria a propositura de representação interventiva no Supremo Tribunal Federal pelo Procurador-Geral da República. É interessante registrar que a função do Supremo Tribunal Federal, naquele período, era verificar a constitucionalidade — consoante o disposto no art. 12, § 2º, da Constituição — da lei que decretou a intervenção federal, e não do ato normativo estadual que deu origem a essa intervenção. A Constituição de 1934 também continha dispositivo expresso que “vedava ao Poder Judiciário conhecer das questões exclusivamente políticas” (art. 68). A Constituição de 1937, por sua vez, representou retrocesso no sistema de controle de constitucionalidade na medida em que dispôs, no seu art. 96, parágrafo único, que: No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República, seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República submetê-la novamente ao exame do Parlamento: se este a confirmar por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do Tribunal. Interessante ressaltar que, uma vez confirmada pelo Parlamento a constitucionalidade, a lei tornava-se imune à apreciação do Poder Judiciário. A Constituição de 1937 manteve também a vedação ao Poder Judiciário para conhecer das questões exclusivamente políticas (art. 94). 2 8 Memória Jurisprudencial A Constituição de 1946 tratou da representação interventiva em seus artigos 7º, VII, e 8º, parágrafo único, in verbis: Art. 7º O Governo federal não intervirá nos Estados salvo para: (...) VII - assegurar a observância dos seguintes princípios: a) forma republicana representativa; b) independência e harmonia dos Poderes; c) temporariedade das funções eletivas, limitada a duração destas à das funções federais correspondentes; d) proibição da reeleição de Governadores e Prefeitos, para o período imediato; e) autonomia municipal; f) prestação de contas da Administração; g) garantias do Poder Judiciário. Art. 8º A intervenção será decretada por lei federal nos casos dos n. VI e VII do artigo anterior. Parágrafo único. No caso do n. VII, o ato argüido de inconstitucionalidade será submetido pelo Procurador-Geral da República ao exame do Supremo Tribunal Federal, e, se este a declarar, será decretada a intervenção. Ficou estabelecido também, consoante o disposto no art. 13 do Texto Constitucional de 1946, que: Nos casos do art. 7º, n. VII, observado o disposto no art. 8º, parágrafo único, o Congresso Nacional se limitará a suspender a execução do ato argüido de inconstitucionalidade, se essa medida bastar para o restabelecimento da nor- malidade no Estado. Note-se que a Constituição de 1946 trouxe mudança na representação interventiva, que versava aqui sobre o ato impugnado, e não sobre a lei que decretava a intervenção, como ocorria na Constituição de 1934. O perfil da representação interventiva descrito na Constituição de 1946 permanece, com alguns abrandamentos, ainda na Constituição Federal de 1988, precisamente no art. 34, VII, que trata dos princípios sensíveis. O Ministro Castro Nunes participou do julgamento de representações interventivas relevantes, propostas com base na Constituição de 1946. Dentre elas, destacam-se as de n. 93, 94, 96 e 97. 2 9 Ministro Castro Nunes A primeira representação interventiva proposta foi a de n. 931, pelo Procurador-Geral da República, Dr. Themistocles Brandão Cavalcanti, em 7 de julho de 1947, com fundamento no art. 8º, parágrafo único, da Constituição de 1946, em virtude da existência de grave conflito de poderes originados pela aprovação da Constituição do Estado do Ceará. Alegava-se violação da letra b do n. VII do art. 7º do Texto Constitucional. O Procurador-Geral da República encaminhou a Representação com parecer sobre a inconstitucionalidade. A Representação Interventiva versava basicamente sobre a inconstituciona- lidade de três dispositivos da Constituição do Estado do Ceará. O primeiro deles dizia respeito à eleição do Vice-Governador pela Assembléia (art. 1º do ADCT; art. 27, § 2º, e art. 79, § 2º); o segundo determinava que a nomeação dos secretários do Governo deveria ser submetida à aprovação da Assembléia Legislativa (art. 17, XXII); o terceiro estabelecia a aprovação da nomeação de prefeitos pela Assembléia Legislativa (art. 28, §§ 1º e 2º). O relator da Representação Interventiva foi o Ministro Annibal Freire, e o Presidente era o Ministro José Linhares. O acórdão foi proferido em 16 de julho de 1947 e julgou procedente em parte a reclamação, para declarar constitucional o art. 1º das Disposições Transitórias, contra os votos dos Ministros Ribeiro da Costa e Lafayette de Andrada, e inconstitucionais o art. 17, XXII, da Constituição do Ceará, unanimemente, e o art. 59 das Disposições Transitórias, tendo os Ministros Hahnemann Guimarães, Goulart de Oliveira, Orozimbo Nonato e Castro Nunes votado com restrição. Note-se que, em virtude da ausência de regras processuais disciplinando a representação interventiva, coube ao Supremo Tribunal Federal desenvolver os mecanismos procedimentais, que posteriormente constaram da legislação processual. O Supremo Tribunal Federal enfrentou inicialmente questões que versavam sobre a própria forma da argüição, seus aspectos processuais e limites constitucionais, tanto como sobre a função do Procurador-Geral da República. A Representação Interventiva n. 942 foi proposta pelo Procurador-Geral da República, Dr. Themistocles Brandão Cavalcanti, com fundamento no art. 8º, parágrafo único, da Constituição de 1946, por representação do Governador do Estado do Rio Grande do Sul, em face dos arts. 78, 81, 82, 89 e outros da Constituição estadual, que versavam sobre o secretariado, no que se referia a sua dependência perante a Assembléia estadual, no tocante à escolha e ao desempenho dos secretários do governo, o que comprometia a forma republicana 1 Data da decisão: 16 de julho de 1947. Relator, Ministro Annibal Freire; Presidente, Ministro José Linhares. 2 Data da decisão: 17 de julho de 1947. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente, Ministro José Linhares. 3 0 Memória Jurisprudencial e o princípio da independência e harmonia entre os Poderes. Em síntese, tratava-se de dispositivos que consagravam o regime parlamentarista na Constituição estadual. Julgada em 17 de julho de 1947, a Representação n. 94 teve como relator o Ministro Castro Nunes e foi julgada procedente, declarando o Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Ministro José Linhares, por unanimidade, inconstitucionais os arts. 76, 77, 78, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87 e 89 da Constituição do Rio Grande do Sul e também os artigos das suas disposições transitórias que faziam referência àqueles supracitados. O Ministro Castro Nunes suscitou, em seu voto, questões relevantes para a criação e o desenvolvimento do controle de constitucionalidade abstrato em nosso País e para a delimitação da ação interventiva. A Representação Interventiva n. 963 foi proposta pelo Procurador-Geral da República, Dr. Themistocles Brandão Cavalcanti, tendo em vista representação do Governador do Estado de São Paulo argüindo a inconstitucionalidade de dispo- sitivos da Constituição do Estado que violavam o princípio da independência dos Poderes, de outros que colidiam com a própria Constituição Federal e, ainda, de dispositivos com excessos que desvirtuavam a prática do regime. O relator da Representação n. 96 foi o Ministro Goulart de Oliveira. O acórdão foi proferido em 3 de outubro de 1947, e ficou decidido, por maioriade votos, que o Tribunal conhecera de todas as argüições submetidas a seu exame pela Representação, mesmo daquelas sobre cuja inconstitucionalidade não havia opinado o Dr. Procurador-Geral, pronunciando, porém, apenas as que pudessem ser enquadradas em algum dos princípios enumerados no art. 7º, n. VII, da Constituição Federal. Isso posto, por unanimidade de votos, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucionais os arts. 21, letra i; 43, letra d; 44 e 45 da Constituição do Estado de São Paulo e, por maioria de votos, os arts. 6º; 16, § 2º; 21, letra m, 1ª parte; 37, letra d; 65, letras a, b, c e d; 66; 77, § 1º; 85; 87 e 146 da mesma Constituição e os arts. 3º, n. I (quanto a prefeitos); 28 e 30, letra f, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. A Representação Interventiva n. 974 foi proposta pelo Procurador-Geral da República, submetendo ao Supremo Tribunal Federal a representação em que o Governador do Estado do Piauí argüia a inconstitucionalidade de numerosos dispositivos da Constituição estadual. A representação teve como relator o Ministro Edgard Costa. 3 Data da decisão: 3 de outubro de 1947. Relator, Ministro Goulart de Oliveira; Presidente, Ministro José Linhares. 4 Data da decisão: 12 de novembro de 1947. Relator, Ministro Edgard Costa; Presidente, Ministro José Linhares. 3 1 Ministro Castro Nunes ACOLHIMENTO PELO PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA DAS ARGÜIÇÕES ENCAMINHADAS AO TRIBUNAL Na Representação Interventiva n. 94, questionou-se a necessidade de formulação de requerimento ao Procurador-Geral da República. Prevaleceu o entendimento no sentido de reconhecer a necessidade de se formular requerimento devidamente fundamentado ao Ministério Público Federal para que encaminhasse representação interventiva, acompanhada de parecer, ao Supremo Tribunal Federal. O requerimento com a argüição de inconstitucionalidade não poderia ser arquivado pelo Procurador-Geral da República e deveria ser submetido à apreciação do Supremo Tribunal Federal, uma vez que o Ministério Público Federal era o único legitimado para propô-la. Admitia-se, igualmente, que a argüição de inconstitucionalidade fosse acompanhada de parecer do Procurador- Geral da República em sentido contrário. O Supremo Tribunal Federal seguiu a mesma orientação na Representação n. 95, na qual o Procurador-Geral da República elaborara parecer pela constitu- cionalidade do dispositivo argüido de inconstitucional. Na Representação Interventiva n. 96, levantou-se a questão sobre o conhe- cimento de toda a matéria suscitada, tendo em vista o fato de o Procurador-Geral da República, em seu parecer, manifestar-se sobre a constitucionalidade de alguns dispositivos argüidos de inconstitucionais. O Ministro Castro Nunes, em seu voto, deixa claro que: Toda a matéria submetida pelo nobre Dr. Procurador-Geral da República, qualquer que seja a opinião de S. Exa., sempre, sem dúvida, valiosa, mesmo que seja desfavorável, não implica o afastamento da questão, uma vez que ela conste da representação da Procuradoria-Geral. Esclarece que, se o Procurador-Geral da República acolhe a representação que lhe tenha sido encaminhada e a submete ao Supremo Tribunal Federal, toda a matéria submetida deve ser apreciada pelo Tribunal, inclusive a que pareça ple- namente constitucional para o Ministério Público Federal. Todavia, em relação à ampla liberdade do Procurador-Geral da República no que diz respeito à emissão de parecer, declara: Coisa diversa é o seu parecer, a opinião emitida sobre os diversos aspectos da questão, o acolhimento ou a repulsa deste ou daquele ponto. Nem o Tribunal está preso a esse parecer, por valioso e esclarecido que seja, e o são os do eminente titular do cargo — nem circunscrito na sua função aos pontos que tenham incidido na sua censura. Fora assim e seria o nobre procurador-geral, e não o Tribunal, o juiz da procedência das argüições, que estariam encerradas, desde que pela sua improcedência se manifestasse o órgão do Ministério Público. 3 2 Memória Jurisprudencial Vale dizer que foi esse o entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca do tema, justamente no sentido de conhecer toda a matéria argüida na representação interventiva, independentemente do parecer proferido pela Procuradoria-Geral da República. SUSPENSÃO DE ATO INCONSTITUCIONAL Na Representação Interventiva n. 94, o Ministro Castro Nunes, relator, analisou pedido formulado pelo Governador do Estado do Rio Grande do Sul e encaminhado pelo Procurador-Geral da República para que fosse suspensa a Constituição estadual, provisoriamente, até o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal sobre a controvérsia. No entanto, o Ministro Castro Nunes foi enfático ao estabelecer que não era possível aplicar o procedimento do mandado de segurança, por analogia, à representação interventiva, para efeito de deferimento de pedido de suspensão provisória, pois tratava-se de ações constitucionais distintas: A atribuição ora conferida ao Supremo Tribunal é sui generis, não tem por objeto ato governamental ou administrativo, senão ato constituinte ou legislativo; não está regulada em lei, que, aliás, não poderia dispor para estabelecer uma tramitação que entorpecesse a solução, de seu natural expedita, da crise ins- titucional prefigurada. O Ministro salienta que o poder de suspender o ato argüido de inconstitucio- nal não compete ao Supremo Tribunal Federal, por força da própria Constituição, que é expressa ao estabelecer, no art. 13, que incumbe ao Congresso suspender a execução de ato argüido de inconstitucional, se essa medida bastar para o restabelecimento da normalidade no estado: A suspensão aí prefigurada articuladamente com a decisão judicial não será do ato, se parcial a inconstitucionalidade declarada, mas somente do dispositivo ou dispositivos atingidos. Consiste a intervenção, nas hipóteses do n. VII, na suspensão, importa dizer na decretação pelo Congresso da não- vigência do ato legislativo. São duas atribuições distintas, de índole diversa, mas articuladas: a decisão do Supremo Tribunal situa-se no terreno jurídico; a do Congresso, no plano político, mas a título de sanção daquela. Outro ponto levantado pelo Ministro Castro Nunes, na Representação n. 94, dizia respeito ao fato de o Governador do Estado do Rio Grande do Sul, ao ter provocado a iniciativa do Procurador-Geral da República, haver solicitado a declaração de inconstitucionalidade em bloco do Texto Constitucional estadual. Ressalta o Ministro Castro Nunes que a Constituição Federal não proíbe a declaração de inconstitucionalidade parcial, prática sistematicamente exercida pela Corte Suprema no controle difuso de constitucionalidade em sede de recurso 3 3 Ministro Castro Nunes extraordinário. Esclarece, quanto à suspensão do ato, que ela deve ser feita nos termos do art. 13 do Texto Constitucional: A Constituição não distingue, mas não exclui evidentemente que a decla- ração da inconstitucionalidade possa atingir o ato apenas em parte, a exemplo do que se pratica nos julgamentos em espécie, consoante jurisprudência assentada, à luz dos ensinamentos da doutrina e dos subsídios do direito americano. Na mesma medida, se terá de entender a suspensão pelo Congresso do ato declarado inconstitucional, nos termos do art. 13. Para o Ministro Castro Nunes, a atuação do Supremo Tribunal Federal, ao julgar representação interventiva, não é a de órgão consultivo, pois tal papel contraria a própria essência do Poder Judiciário. É enfático ao esclarecer que o Supremo Tribunal Federal: “não se limita a opinar, decide, sua decisão é um aresto, um acórdão; põe fim à controvérsia como árbitro final no contencioso da inconstitucionalidade.” Em seu voto, deixa claro que, em sede de representação interventiva, não atua o Supremo Tribunal Federal como órgão meramente consultivo. Pelo contrário, o Tribunal profere decisão, consubstanciadaem acórdão que põe fim à controvérsia sobre a constitucionalidade do ato impugnado. Atua, assim, como guardião da Constituição em conflito em face de ato estadual. Conclui que: É nessa função de árbitro supremo que ele intervém, se provocado, no conflito aberto entre a Constituição, que lhe cumpre resguardar, e a atuação deli- berante do poder estadual. Daí resulta, que, declarada a inconstitucionalidade, a intervenção sancionadora é uma decorrência do julgado. Sustenta o fato de que, proferido o acórdão que resolve o conflito acerca da inconstitucionalidade do ato estadual impugnado, com base na Constituição, cabe ao legislador estadual, por sua vez, cumprir a decisão do Supremo Tribunal Federal. Esclarece que: Atribuição nova, que o Supremo Tribunal é chamado a exercer pela primeira vez e cuja eficácia está confiada, pela Constituição, em primeira mão, ao patriotismo do próprio legislador estadual no cumprir, de pronto, a decisão e, se necessário, ao Congresso Nacional, na compreensão esclarecida da sua função coordenada com a do Tribunal, não será inútil o exame desses aspectos, visando delimitar a extensão, a executoriedade e a conclusividade do julgado. Na declaração em espécie, o Judiciário arreda a lei, decide o caso por inaplicação dela, e executa, ele mesmo, o seu aresto. INCONSTITUCIONALIDADE EM TESE O Ministro Castro Nunes entende que a decisão em representação interventiva é uma inovação jurídica, que se consubstancia na apreciação pelo 3 4 Memória Jurisprudencial Supremo Tribunal Federal da inconstitucionalidade “em tese”. Portanto, verifica-se aqui o surgimento do papel do Supremo Tribunal Federal como órgão de defesa da Constituição na apreciação da inconstitucionalidade em tese, ou seja, do controle abstrato de constitucionalidade, desvinculado do caso concreto, pois se aprecia a adequação do texto da lei ao texto da Constituição. São estas as palavras do Ministro no voto proferido na Representação Interventiva n. 94, de que foi relator: Trata-se, aqui, porém, de inconstitucionalidade em tese, e nisso consiste a inovação desconhecida entre nós na prática judicial, porquanto até então não permitida pela Constituição. Em tais casos a inconstitucionalidade declarada não se resolve na inaplicação da lei ao caso ou no julgamento do direito questionado por abstração do texto legal comprometido; resolve-se por uma fórmula legislativa ou quase legislativa que vem a ser a não-vigência, virtualmente decretada, de uma dada lei. O Ministro traça a distinção entre o controle abstrato e o julgamento em espécie (controle concreto), em que, segundo entende, o Supremo Tribunal Federal não suspende a lei, que subsiste, ou seja, permanece em vigor, sendo, portanto, aplicada até que o Senado venha a suspendê-la, conforme dispõe o art. 64 da Constituição de 1946, in verbis: “Art. 64. Incumbe ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei ou decreto declarados inconstitucionais por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”. O Ministro Castro Nunes foi o primeiro a ressaltar que a declaração em tese da inconstitucionalidade da lei implica sua ab-rogação ou derrogação e que, portanto, o efeito dessa decisão será erga omnes, e não inter partes, como ocorre nos julgamentos em espécie: Na declaração em tese, a suspensão redunda na ab-rogação da lei ou na derrogação dos dispositivos alcançados, não cabendo ao órgão legiferante censurado senão a atribuição meramente formal de modificá-la ou regê-la, segundo as diretivas do prejulgado; é uma inconstitucionalidade declarada erga omnes, e não somente entre as partes; a lei não foi arredada apenas em concreto; foi cassada para todos os efeitos. Adverte, ainda, que, segundo alguns consideram: os julgamentos em tese não podem constituir a res judicata, porque a função exercida pelo Judiciário é antes política do que jurisdicional, função da mesma natureza da exercida pelas assembléias e a que falta o requisito de um direito subjetivo em reação, inerente ao exercício da jurisdição. Entende o Ministro que não se trata de função de natureza diversa, na medida em que o Supremo Tribunal Federal decide por aplicação dos mesmos 3 5 Ministro Castro Nunes critérios de julgamento, cujo conteúdo não deixa de ser interpretação da Constituição consubstanciada em um aresto. A diferença reside tão-somente na maior extensão da decisão. ATO ARGÜIDO DE INCONSTITUCIONAL No voto proferido na Representação n. 94, o Ministro Castro Nunes fixa o sentido do que vem a ser ato argüido de inconstitucional, que, segundo seu entendi- mento, só diz respeito aos atos legislativos, atos da Assembléia Legislativa em sua função legiferante ou constituinte, restando excluídos os atos governamentais: Será, no entendimento natural do dispositivo constitucional, o ato institu- cional do Estado e as leis orgânicas que o completam. O legislador constituinte usou da palavra ato na sua acepção mais ampla e compreensiva, para abranger no plano legislativo as normas de qualquer hierarquia que comprometam algum dos princípios enumerados. Nesse particular, acrescenta que a Constituição não deixa de ser ato constituinte da Nação ou do Estado, ou seja, a manifestação da vontade do povo por meio de seus representantes. Portanto, restam excluídos da representação interventiva os atos governamentais. Nessa linha de raciocínio, demonstra o Ministro ser plenamente cabível a representação interventiva em face de atos legislativos e, no plano constitucional, por conseguinte, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: No direito privado, o ato jurídico se traduz no contrato; no direito público, pode ser também o contrato, mas é precipuamente a manifestação da vontade do Estado como poder público na forma legalmente estabelecida. Se se trata de Poder Legislativo, está consagrada até na linguagem corrente a locução atos legislativos e, no plano constitucional, ato adicional, ato das disposições constitucionais transitórias... CARÁTER EXCEPCIONAL E ROL TAXATIVO No voto proferido na Representação n. 94, adverte o Ministro Castro Nunes que o intérprete deve, necessariamente, tratando-se de representação interventiva, ter em mente o “caráter excepcional dessa medida”, que se encontra pressuposta no regime da autonomia constituinte, legislativa e administrativa dos estados-membros. Nesse particular, deve o intérprete preservar essa autono- mia, sob pena de ser elidida pelos Poderes da União: Daí decorre que a interpretação não será jamais extensiva, em qualquer dos dois planos em que se situam os casos de intervenção, quer no plano propriamente político, quer no plano jurídico do n. VII, que se define pelos princípios aí enumerados. A intervenção, no primeiro caso, isto é, nos casos 3 6 Memória Jurisprudencial enumerados de I a VI, escapa à apreciação judicial, como matéria de índole puramente política, e supõe a perturbação de ordem jurídica por fatos e não sob a forma de leis. A diferença, segundo entende, reside precipuamente no fato de que os incisos I a VI tratam de situações concretas, portanto de fatos. Já o inciso VII trata de princípios; logo, a violação ocorre por meio de atos legislativos. Estabelece o Ministro: O n. VII contém um elenco de princípios, e o que aí se pressupõe é a ordem jurídica comprometida, não por fatos, mas por atos legislativos destoantes daquelas normas fundamentais. Esses princípios são somente os enumerados para o efeito da intervenção, que é a sanção prevista para efetivá-los. Não serão outros, que os há na Constituição, mas cuja observância está posta sob a égide dos tribunais, em sua função normal. Esclarece que todas as hipóteses enumeradas no art. 7º são passíveis de intervenção, mas apenas as enumeradas no n. VII estão sob a guarda do Supre- mo Tribunal Federal, pois são verdadeiras declarações de princípios, “comportan- do o que possa comportar cada um dessesprincípios como dados doutrinários, que são, conhecidos na exposição do direito público.” É por essa razão que o exame do conteúdo e da extensão desses princípios ficou reservado ao Supremo Tribunal Federal, portanto ao controle do Poder Judiciário. A partir daí, conclui o Ministro: Quero dizer, com estas palavras, que a enumeração é limitativa como enumeração. Dessa forma, fica respondido o argumento que o eminente Sr. João Mangabeira suscitou da tribuna. A enumeração é taxativa, é limitada, é restritiva e não pode ser ampliada a outros casos pelo Supremo Tribunal. Mas cada um desses princípios é dado doutrinário que tem de ser examinado no seu conteúdo e delimitado na sua extensão. Daí decorre que a interpretação é restritiva apenas no sentido de limitada aos princípios enumerados; não o exame de cada um, que não está nem poderá estar limitado, comportando necessariamente a exploração do conteúdo e a fixação das características pelas quais se defina cada qual deles, nisso consistindo a delimitação do que possa ser consentido ou proibido aos estados. Ele deixa claro, portanto, que a restrição da interpretação reside tão- somente nos princípios enumerados no n. VII, mas não quanto ao exame de cada um, pois definir a extensão e a profundidade dessa análise é tarefa exclusiva do Poder Judiciário; no caso, do Supremo Tribunal Federal. O Ministro Castro Nunes mantém e reforça esse ponto de vista no voto proferido na Representação Interventiva n. 96, para deixar claro que a represen- tação interventiva só pode versar sobre os princípios enumerados no art. 7º, n. VII, da Constituição Federal de 1946: 3 7 Ministro Castro Nunes Basta considerar que a sanção adstrita ao veredictum do Tribunal é a intervenção, para mostrar o seu caráter excepcional. O Tribunal pode conhecer de quaisquer das argüições, mas pela via comum. Mediante os remédios judiciais adequados, poderão essas argüições vir aos tribunais competentes e chegar até ao Supremo Tribunal Federal. Mas, para exercer a atribuição do art. 8º, parágrafo único, que lhe dá o poder de declaração da inconstitucionalidade, em tese, e, como conseqüência, a intervenção federal, ele está adstrito e obrigado a verificar, em cada argüição, a sua filiação, o seu entroncamento em alguns dos princípios enumerados na Constituição. Do contrário, estaríamos ampliando uma atribuição que é do seu natural, excepcionalíssima, e de certa forma diminuindo e ameaçando a autonomia dos estados. Isso não podemos fazer, data venia. O rol do n. VII do art. 7º do Texto Constitucional é taxativo e, como tal, não admite o acréscimo de nenhum princípio que não os elencados expressamente. Adverte o Ministro Castro Nunes: Fora daí, por mais evidente que seja a inconstitucionalidade do dispositivo estadual, não lhe compete corrigir a violação no exercício da atribuição excepcional que lhe foi conferida, e sim em espécie, mediante os meios ou recursos de que dispuser o interessado. Reconhece, ainda, que existem outros princípios, outras regras, outras limi- tações que podem ser violadas, e isso não deve ficar impune. Todavia, entende que essas situações fogem “ao julgamento por disposição geral e à intervenção que virtualmente o acompanha, como sanção excepcional só compreensível naqueles casos restritos”. No entanto, ressalta que cada um dos princípios constitucionais elencados no n. VII do art. 7º é um dado doutrinário e, como tal, comporta exploração e conceituação. Desse modo, deve o intérprete estudar a noção de cada um desses princípios, segundo a doutrina e a jurisprudência, para então verificar se o dispositivo atacado na representação interventiva está incluído ou não nesses princípios constitucionais: Se se concluir que não é possível, não se deve conhecer da argüição. Não temos que nos pronunciar sobre ela. Temos que aguardar que o caso venha, por provocação do interessado, para ser examinado em espécie. Pondera, ainda, que não se pode pronunciar sobre a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade antes de se apreciar se a questão está ou não contida no art. 7º do Texto Constitucional e adverte que essa questão não pode ser examinada como questão preliminar: Este é o meu ponto de vista, tanto que, no caso do Rio Grande, não destaquei a questão constitucional; não pode o Tribunal, preliminarmente, examinar esta questão. Eu não fiz assim e entendo que, realmente, não é possível, porque a preliminar exige, para ser destacada e examinada, o exame do fundo da argüição. Seria perturbador do julgamento fazermos, agora, essa apreciação. 3 8 Memória Jurisprudencial POSSIBILIDADE DE O VÍCIO SER SANADO POR OUTRO MEIO JUDICIAL Admite o Ministro Castro Nunes a propositura da representação interven- tiva, ainda que haja outro meio capaz de sanar a violação de determinado direito subjetivo decorrente de dispositivo eivado de inconstitucionalidade. Para isso, exige apenas que reste demonstrado que a violação se relaciona com os princípios enu- merados no n. VII do art. 7º do Texto Constitucional. O ingresso da representação interventiva se torna possível na exata medida em que seus efeitos diferem das demais ações. Nesse sentido, esclarece: Muitas vezes a violação argüida poderá ser remediada em espécie, configurando um direito subjetivo em termos de ingressar em juízo, circunstância que por si só não bastará para que o Tribunal se abstenha de declarar a inconstitucionalidade em tese. Se se demonstra que a violação poderia ser corrigida pelos meios processuais comuns, mas se, igualmente, se demonstra que ela se relaciona com qualquer das cláusulas enumeradas no art. 7º, n. VII, nem por isso estará trancado o julgamento por disposição geral. Pode ocorrer que se trate de argüição para a qual esteja previsto na própria Constituição o recurso para dada justiça. PRESIDENCIALISMO Estrutura do Poder Executivo O Ministro Castro Nunes, em seu voto na Representação Interventiva n. 93, enfrenta questão relativa à estrutura do Poder Executivo no âmbito dos estados-membros, tendo como parâmetro a estrutura desse Poder no âmbito federal. Esclarece que a estrutura do Poder Executivo é definida pelo Presidente da República e seus Ministros, que são escolhidos — e destituídos por ele — como seus auxiliares imediatos: O Poder Executivo não se reduz ao presidente da República. O Ministério ou os ministros, individualmente considerados, como auxiliares imediatos do presidente da República, constituem uma peça constitucional desse Poder, da qual cogita a Constituição Federal e da qual não poderia o presidente da República declinar, porque cada um dos ministros completa a ação do presidente da República, legaliza essa ação e nisso consiste a referenda. Tendo em vista o princípio da simetria, a organização estadual estrutura-se, segundo o Ministro Castro Nunes, como a esfera federal. Desse modo, cabe aos governadores escolher seus secretários livremente, sem nenhuma restrição imposta pelo Legislativo ou qualquer outro Poder. Os secretários de estado devem corresponder aos ministros de Estado na órbita federal, devendo ser nomeados e demissíveis livremente pelo governador. 3 9 Ministro Castro Nunes Tal organização deve ocorrer de maneira autônoma, do contrário restaria violado o princípio da separação de Poderes. O Ministro Castro Nunes manifesta, em seu voto, a preocupação em preservar a harmonia e a independência entre os Poderes como elemento intrínseco ao Estado Democrático de Direito: Essas relações de independência entre os três Poderes do Estado, tomada a expressão no seu sentido teórico, doutrinário ou genérico, são governadas por um sistema chamado de “freios e contrapesos” e que consiste, exatamente, em manter a independência e ao mesmo tempo a harmonia e o equilíbrio dos poderes. No caso, o que se estabelece é um freio, e um freio, sem contrapeso, porque o governador do estado lança a nomeação ou faz a nomeação, mas estapoderá ser cassada pela Assembléia. Cria-se, assim, um verdadeiro impasse, e esse impasse se define por uma limitação do governador para organizar o seu governo, para se cercar dos auxiliares imediatos, que lhe completam a ação. O Ministro traça, ainda, paralelo entre o modelo brasileiro e o americano, para ressaltar as distinções entre eles, visto que, no modelo americano, os secretários do governo são nomeados pelo Presidente da República, mas dependem da aprovação do Senado. Nesse particular, pondera: Não existe nisso nenhum traço de parlamentarismo, e sim coisa diversa, a exageração do princípio eletivo como limitação posta ao poder titulado no gover- nador. A origem ou razão de ser do Senado é conhecida. É uma representação quase corporativa dos estados. O regímen vinha do consentimento das ex-colônias, era um produto de transação política. O Senado é o sinal ou a expressão política da Federação. O partido chamado dos estados reivindicava para o Senado funções executivas complementares, e contrapesos à possível ação do presidente em detrimento das prerrogativas estaduais. Assinala que, no modelo brasileiro, a realidade é distinta, pois a Constituição Federal faculta ao Presidente da República cercar-se de auxiliares de sua livre escolha, de modo que tal prerrogativa deve ser estendida aos estados-membros: Não seria possível admitir que o governador, que é o órgão do Poder Executivo do estado, que encarna o Poder Executivo no estado, tivesse cerceada a sua escolha, por qualquer forma, mediante um freio não cogitado no sistema federal e, por isso, eu estou de acordo com o eminente Sr. Ministro Relator, em haver por inconstitucional a limitação estabelecida no caso da nomeação dos secretários de estado. O Ministro Castro Nunes entende também ser violação do princípio dos Poderes harmônicos e independentes a intervenção do Legislativo, no âmbito dos estados-membros, na escolha, pelo governador, do chefe de polícia: O chefe de polícia é o auxiliar de mais imediata confiança do governador, livre de escolher os secretários do seu governo conforme lhe aprouver, segundo 4 0 Memória Jurisprudencial o entendimento que já firmamos nos casos do Ceará e do Rio Grande, e, por melhor razão, o chefe de polícia. É disposição que contravém à independência do Executivo e, portanto, inconstitucional, ainda que possivelmente inócua ou de caráter meramente diretivo no interesse de colocar a função acima das competi- ções partidárias.5 Todavia, pondera que, no tocante à escolha dos prefeitos com o auxílio da assembléia legislativa, deve-se obedecer à ressalva estabelecida pela Constituição: quanto aos prefeitos das estações hidrominerais, das bases militares e da capital do estado, porque, com relação a esses, a Constituição Federal, ela mesma, declara que compete ao governador nomeá-los; e, se a Constituição confere ao governador o poder de nomear os prefeitos da capital, das estações hidrominerais e das bases militares, não é possível que o legislador estadual, mesmo constituinte, limite esse poder conferido, que é de presumir irrestrito. Fundamenta-se o Ministro no art. 28, § 1º, do Texto Constitucional, que estabelece, in verbis: Poderão ser nomeados pelos Governadores dos Estados ou dos Territórios os Prefeitos das Capitais, bem como os dos Municípios onde houver estâncias hidrominerais naturais, quando beneficiadas pelo Estado ou pela União. O Ministro faz distinção no que se refere aos: prefeitos que o governador terá de nomear para as prefeituras eletivas, aquelas que tenham de ser exercidas por prefeitos eleitos e não nomeados, serão, portanto, outros que não os mencionados. Relativamente a esses, o governador não tem o poder conferido na Constituição Federal; ele poderá, segundo determina a Constituição cearense, nas disposições transitórias, ter o seu poder limitado pela assembléia estadual. Aí a dificuldade que encontro é de articular, consti- tucionalmente, a proibição. Não encontro na Constituição, data venia do Sr. Ministro Relator, base para declarar que está limitada a autonomia estadual. Nesse caso, segundo o Ministro Castro Nunes, o governador não tem o poder conferido na Constituição Federal, de modo que poderá ter seu poder limitado pela assembléia estadual, como faz a Constituição do Ceará: eu não encontro disposição constitucional que proíba o provimento interino por nomeação, porque o constituinte estadual terá provido a uma situação não regulada na Constituição Federal, ainda porque, na Constituição Federal, o presidente da República não nomeia prefeitos, senão o da capital da República, e para isto se estabeleceu, após a promulgação da Constituição —, a aprovação do Senado, o que seria um argumento a mais, para admitir o símile adotado. 5 Voto proferido na Representação Interventiva n. 97. Data da decisão: 12 de novembro de 1947. Relator, Ministro Edgard Costa; Presidente, Ministro José Linhares. 4 1 Ministro Castro Nunes Contudo, considera plenamente constitucional as nomeações, pelo gover- nador, dos diretores das autarquias e das sociedades de economia mista ficarem sujeitas ao placet da assembléia legislativa: Argumenta-se que não admitimos a colaboração da Assembléia na escolha dos secretários de governo, que declaramos livre de tal restrição, e assim decidimos no caso do Ceará. Mas não existe paridade. A nomeação de tais auxiliares do chefe do Executivo situa-se, nos termos da Constituição, no plano da confiança do presidente da República, devendo refletir-se na órbita estadual com a mesma característica. Muito diverso é o caso dos serviços autônomos que a lei institui (e tais são as autarquias e as sociedades de economia mista) para que se desenvolvam à margem da administração direta dos serviços do Estado. Não vejo por que censurar, por inconstitucional, a reserva de uma colaboração do Legislativo na escolha dos dirigentes de tais serviços. Adverte ainda que a administração indireta está subordinada, quanto aos atos da administração financeira, aos tribunais de contas. Presidencialismo e parlamentarismo Na Representação Interventiva n. 94, o Ministro Castro Nunes também analisa, em seu voto, a estrutura do Poder Executivo no âmbito dos estados- membros, bem como verifica a existência de alguns traços do regime parlamen- tarista em constituição estadual. A Constituição do Rio Grande do Sul estabelecia que o Poder Executivo era exercido pelo Governador e pelo Secretariado. Para o Ministro Castro Nunes, o enunciado por si só não revela o bastante para ser considerado inconstitucional, na medida em que se considera que o Executivo federal é composto pelo Presidente e pelos Ministros de Estado, seus auxiliares imediatos, que, por força da Constituição, têm funções complementares das do Presidente da República: A instituição ministerial existe, pois, por determinação constitucional, com assento nos arts. 78, 90 e 91, e já existia ao tempo da Constituição de 91, quando do assunto me ocupei em artigo sob o título “Dos ministros de Estado no regime presidencial” (Arquivo Judiciário, vol. 12, Supl.), consoante a lição, já então preponderante, que os ministros, ainda que livremente escolhidos e dispensados pelo presidente, integram o Poder Executivo na sua definição constitucional. Recordei então que a possibilidade, nem sempre admitida, do que entre nós se chamava despacho coletivo, prática adotada por alguns presidentes, não bastaria para abastardar o governo presidencial, como se afigurava a certos espíritos extremados. O despacho coletivo, sobretudo nos primeiros tempos da República, era suspeitado de parlamentarismo e repelido pelos republicanos da propaganda como uma corruptela do regime ou prática larvada de parlamentarismo. Era um exagero, porquanto o Ministério não seria só por isso um ser coletivo, um órgão colegiado, senão somente uma reunião dos seus componentes em torno do 4 2 Memória Jurisprudencial
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