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A POESIA DA IMAGINAÇÃO COSMO ANTROPOGÔNICA EM GASTON BACHELARD E GUIMARÃES ROSA (MARIA LUCIA GUIMARÃES DE FARIA)GRPC fonte10 5p

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Universidade Católica de Brasília 
Curso de Especialização em Literatura Brasileira 
Guimarães Rosa: Poesia e Cosmogonia 
Professora Livila Pereira Maciel 
Texto de apoio 
 
 
A POESIA DA IMAGINAÇÃO COSMO-ANTROPOGÔNICA EM 
GASTON BACHELARD E GUIMARÃES ROSA 
 
Maria Lucia Guimarães de Faria
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INTRODUÇÃO 
 
 
“Uma crítica que é assim como eu desejo não é mais verdadeiramente uma crítica... Ela é um diálogo entre o 
intérprete e o autor, um diálogo entre iguais, que apenas utilizam meios diferentes. Ela cumpre uma função 
literária indispensável. Ela é na sua essência... criativa e concriativa”. (ROSA) 
 
“É preciso estar presente, presente à imagem no minuto da imagem: se houver uma filosofia da poesia, essa 
filosofia deve nascer e renascer no momento em que surgir um verso dominante, na adesão total a uma imagem 
isolada, no êxtase da novidade da imagem”. (BACHELARD) 
 
 
A criação artística jamais cessa de renovar-se, impondo à crítica literária desafios constantes e 
crescentes. O instrumental analítico da estética clássica, com seus modelos e normas metodológicos, revela-se 
insuficiente e inadequado para se haver com as obras de arte essencialmente criativas. Uma obra autêntica não se 
deixa enquadrar em estreitos e incômodos esquemas preconcebidos de interpretação, mas proclama suas próprias 
regras, únicas e irrepetíveis, e reclama o reconhecimento e a apreciação de sua originalidade. Contra o 
desgastado e envelhecido aparato crítico tradicional, fortemente repudiado pelos artistas de todas as épocas, 
insurge-se Gaston Bachelard, lançando as bases para a renovação radical dos estudos literários. De sólida 
formação científica, Bachelard traz para a literatura a profunda contribuição da revolução epistemológica que 
instaurou na ciência, 
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quando delineou o perfil de um Novo Espírito Científico, fundamentado numa “filosofia do não”: uma geometria 
não-euclidiana, uma física não-newtoniana, uma razão não-kantiana, uma epistemologia não-cartesiana. 
Paralelamente ao novo espírito científico, Bachelard propõe um Novo Espírito Literário, que rejeita o 
positivismo crítico e refuta o cartesianismo literário. Para fazer frente aos impasses exegéticos suscitados pela 
literatura surrealista, - entendendo-se por este termo
 
não apenas as obras do movimento literário que se 
denominou surrealismo, mas qualquer obra que se preocupa, não com a descrição estática da realidade, mas com 
a suscitação órfica do real, - Bachelard inaugura uma Estética Concreta, que pretende, em última análise, 
concriar a criação dos artistas, apreendendo e surpreendendo a operação poética em seu interior, na gênese da 
imagem primordial que tece e entretece toda a trama imagética da obra. Movimentando-se no domínio puro
 
da 
imaginação criadora, preocupando-se com o ato genesíaco que engendra e singulariza cada obra de arte, 
solidarizando-se com o irresistível apelo à novidade que especifica o Imaginário, a poética de Bachelard revela-
se artisticamente criativa e hermeneuticamente concriativa. A escolha da poética de Bachelard como tema de 
dissertação deve-se, justamente, a sua capital importância para a renovação e o revigoramento das pesquisas 
literárias. Inúmeros autores, de nacionalidades diversas e períodos históricos diferentes, cujas obras não foram 
compreendidas nem apreciadas, ou foram vítimas de interpretações viciosas, podem ser recuperados e 
reabilitados à luz do novo espírito literário de Bachelard, cuja divulgação precária o presente trabalho pretende 
suprir e compensar. Além disso, o crítico que se forma com Bachelard es- 
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 FARIA, Maria Lucia Guimarães de. Introdução. In: -. A Estética Concreta de Guimarães Rosa. Dissertação 
(Mestrado em Teoria da Literatura). Brasília: Universidade de Brasília, 1988, p. iii-xiii. 
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tá apto a enfrentar, de igual para igual, a perene invenção e transformação artísticas, pois a sua própria atividade 
crítica é uma viagem poético-pensante que jamais se perfaz. A estratégia adotada para a exegese da obra poética 
do pensador é uma postura radicalmente concriativa, que consiste em apreender, compreender e explicitar 
Bachelard bachelardianamente, materializando, dinamizando e concretizando os próprios elementos filosóficos e 
os mesmos instrumentos poéticos
 
por ele concebidos, engenhados e manipulados, concriando a dimensão 
dialética do seu pensamento e depreendendo o sentido subjacente à tessitura plástico-imagética de todo o seu 
repertório estético-literário. Respondendo concriativamente
 
ao filósofo, esperamos esclarecer e evidenciar a 
amplitude filosófica e a magnitude hermenêutica de suas concepções, comprovando a sua inestimável 
contribuição para o aprofundamento, a ampliação e a revitalização dos estudos de literatura. 
A tese que propomos divide-se em duas partes. A primeira, intitulada “A Poética Concriativa de Gaston 
Bachelard”, contém uma avaliação detalhada da vertente literária de sua vasta obra, distribuída em quatro 
capítulos, cada
 
qual consagrado ao estudo aprofundado de um dos principais aspectos do novo espírito literário. 
O primeiro capítulo dedica-se a rastrear a gênese e a perseguir a gestação da Estética Concreta desde as 
concepções revolucionárias do novo espírito cientifico, para vê-la desabrochar e plenificar-se
 
como o grande 
edifício estruturador e articulador do novo espírito literário. Esta estética se diz concreta por quatro
 
motivos 
capitais: primeiramente, porque se edifica sobre a noção originalíssima de imaginação material ou dinâmica; em 
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segundo lugar, por conceder à imaginação o papel básico e
 
preponderante na plasmação, no desenvolvimento e 
na consumação do psiquismo humano; em terceiro lugar, porque entende o devaneio como a voz concretamente 
expressa e manifesta da alma do homem; e, finalmente, por eleger a imagem poética como o único objeto 
verdadeiramente sensível, concreto e material da investigação literária. O segundo capítulo devota-se 
inteiramente à apresentação, à explicitação e à clarificação do conceito inédito e inaudito de Imaginação 
Material ou Dinâmica, que constitui a rica e densa proposta de Bachelard para a substituição da concepção inerte 
e estática de imaginação formal e abstrata, que rege e norteia o classicismo artístico. O terceiro capítulo 
preocupa-se em captar e retraçar os passos e trâmites exegéticos do procedimento especificamente bachelardiano 
de análise e interpretação literária , - o Método Ritmanalítico, - para, em seguida, surpreendê-lo e denunciá-lo em 
plena atividade hermenêutica em alguns primorosos ensaios de exegese artística, magníficos pela agudeza 
reflexiva e pela sensibilidade poética. Finalmente,o quarto capítulo aplica-se a explicar, desdobrar e exemplificar 
o princípio primeiro e primordial que propicia a tessitura e a composição do multi-facetado universo poético de 
Bachelard: a Isomorfia das Imagens. Embora figure no último dos capítulos, a isomorfia é, dentre as noções 
bachelardianas, a mais original e originária, pois é ela que, descobrindo e desvelando a imagem-matriz que 
insufla e inspira todo o enredo imagético de uma obra, permite evidenciar hermeneuticamente, acompanhar 
poeticamente e retraçar concriativamente a atividade formativa e plasmadora da imaginação material ou 
dinâmica, e possibilita penetrar dialeticamente e elucidar ritmanaliticamente a operação necessariamente dual, 
ambígua e ambi- 
vi ________________________________________________________________________________valente da imagem poética prodigalizadora do sentido de todo um universo. O princípio da isomorfia das 
imagens é, simultaneamente, o fundamento recôndito e a coroação apoteótica da Estética Concreta de Gaston 
Bachelard. 
Por suas virtudes essencialmente inovadoras e pelo mérito da singularidade e da audácia poética, a 
estética concreta atende magistralmente aos reclamos de uma crítica criativa e concriativa, vivamente expressos 
por Guimarães Rosa em entrevista a Günter W. Lorenz. Estimulando e preparando o crítico para uma viagem 
hermenêutica ao universo germinativo e imaginativo dos textos literários, uma viagem regida e norteada pelo 
próprio princípio que engendra e articula a originalidade e a especificidade de cada obra, a poética de Gaston 
Bachelard revela-se à altura da criação artística de Guimarães Rosa. Com efeito, uma obra tão insólita, ousada e 
invulgar como a de Rosa só pode ser condignamente apreciada e penetrantemente interpretada por uma postura 
crítica como a de Bachelard, que valoriza, acima de tudo, o trabalho poético da imaginação, o gesto inexaurível 
de um originar que jamais se esgota ou perfaz, o impetuoso e irreprimível impulso efabulador do imaginário. 
Escolhendo como tema de interpretação autor tão complexo e revolucionário como Rosa, acreditamos provar e 
comprovar a fertilidade e a relevância dos ensinamentos literários do grande mestre francês. Assim, a segunda 
parte da tese, cujo título é “A Estética Concreta de Guimarães Rosa”, consiste na aplicação da poética 
concriativa
 
do idealizador do novo espírito literário à exegese de três textos fulcrais do belo e intricado repertório 
do genial escritor brasileiro. O primeiro texto, Cara-de-Bronze, é exaustivamente interpretado no primeiro 
capítulo, intitulado “A Visagem do Homem e a Miragem do Mundo”, subdividido em três 
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partes: a primeira, “A Gestação da Imagem”, analisa a figura do personagem central da narrativa, o Velho 
Segisberto Jéia; a segunda, “O Rito de Passagem e a Demanda da Origem”, examina a estranha personalidade do 
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Grivo, e clarifica o sentido da misteriosa excursão encomendada pelo Cara-de-Bronze; finalmente, a terceira, “A 
Viagem da Viagem”, aprecia e avalia a narrativa em sua totalidade harmônica, como extraordinária realização 
artístico-literária, demonstrando e evidenciando
 
o agenciamento material e a interpenetração dinâmica do todo e 
das partes na configuração e articulação de toda a trama
 
de efabulação. Os dois outros textos, “As Margens da 
Alegria” e “Os Cimos”, que constituem, respectivamente, a estória inicial e a estória terminal de Primeiras 
Estórias, são interpretados no segundo capítulo, denominado “A Aporia Primitiva e a Alegria Definitiva”, 
também subdividido em três partes: a primeira, “O Ápice e o vórtice”, dedica-se a exegese de “As Margens da 
Alegria”; a segunda, “Os Abismos e os Cimos”, devota-se à interpretação de “Os Cimos”; a terceira, por fim, 
“Transdescendência, Transcendência, Transfinitude”, consagra-se à clarificação hermenêutica da profunda 
interação dialética e da fecunda integração ritmanalítica das duas estórias. 
Elegemos para título, tanto da tese, quanto da segunda parte, A Estética Concreta de Guimarães Rosa 
com o firme propósito de acentuar e enfatizar os laços que irmanam e solidarizam o filósofo-poeta Gaston 
Bachelard e o poeta-filósofo Guimarães Rosa. Para ambos, a literatura e a vida nao se dissociam: a natureza do 
homem e a essência da literatura são equivalentes e solidárias. “Literatura deve ser vida! O escritor deve ser o 
que ele escreve”, afirma e mantém Rosa. De acordo com Bachelard, é impossível escrever sem sonhar: 
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é a caneta que sonha, é a página em branco que proporciona o direito de sonhar. Escrever é escrever-se, 
interpretar é interpretar-se. Uma interdimensão anímica entrelaça a imaginação do escritor e a fantasia do leitor, 
comandando o intercâmbio dialógico entre o poeta e o intérprete. O diálogo entre aquele que escreve e se escreve 
e aquele que lê e a si mesmo se colhe é uma hermenêutica da alma: desvelar o ser das imagens e desocultar o 
próprio ser mutuamente se implicam. Bachelard e Rosa compartilham e comungam um mesmo credo poético: a 
linguagem é a casa do ser, o horizonte da experiência mais genuína da existência humana. “Meu lema é: língua e 
vida são uma coisa só. Quem não faz da língua o espelho de sua personalidade não vive, e como a vida é uma 
corrente contínua, um desenvolvimento contínuo, assim a língua também deve-se desenvolver continuamente. 
Mas isto significa que eu, como escritor, tenho que prestar contas a mim mesmo de cada palavra e devo meditar 
sobre cada palavra tanto tempo até ela ter vida de novo”, proclama Rosa. Bachelard, por sua vez, anuncia que os 
nomes pensam e sonham, e reclama atenção para a “imensidão interior de uma palavra”, exclamando 
enfaticamente: “Todas as grandes palavras, todas as palavras chamadas à grandeza por um poeta, são chaves do 
universo, do duplo universo do Cosmo e das profundezas da alma humana”. Comprova-se a vasta dimensão 
poético-filosófico-espiritual em que se movimentam os dois criadores. Confirma-se a amplitude existencial de 
seu pensamento, o profundo vínculo que suas obras estabelecem com a vida. A plasmação poética do 
pensamento de Bachelard é a auto-formação de seu próprio espírito. A imaginação criadora de Rosa é a auto-
invenção de seu próprio ser. Bachelard declara que não é senão “o sujeito do verbo estudar”. Quem se concebe 
como o sujeito de um verbo, 
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reconhece e enaltece o perpétuo devir da vida, o eterno ritmo floral da existência, o perene compromisso de 
renovação e recriação, que é a suprema liberdade do espírito humano. O sujeito do verbo estudar não é uma 
substância formada e conformada, mas uma virtualidade em incessante gestação, para a qual cada instante de 
decisão e de aquisição do espírito é um ato genesíaco que reinaugura e reinventa a vida. Rosa, dando formulação 
poética ao mesmo sentimento expresso pelo filósofo, confessa: “Eu, às vezes, chego a acreditar que eu mesmo, 
eu, João, sou uma estória que eu contei”. Não é o poeta que escreve o poema, mas o poema que prescreve o viver 
do poeta e inscreve a legenda de seu destino. Não é o homem que conta a estória, mas é a estória que historia e 
historiciza o homem. O escritor é transcriado pela obra; o poeta é jogado pelo jogo de seu poetar. O poeta é o 
partejador da linguagem, mas, trazendo à luz a Palavra, é a si mesmo que engendra e desvela: “O bem-estar do 
homem depende do soro contra a varíola, mas depende também”, afiança Rosa, “de que ele dê de volta à palavra 
seu sentido original. Ele medita sobre a palavra e descobre a si mesmo. Assim, ele repete o processo da criação”. 
Bachelard e Rosa associam-se e comungam-se na defesa de uma mesma divisa: o imaginar poético é a 
plasmaçao do mundo e a gestação do homem, ou, noutros termos, a poesia da imaginação é um gesto 
cosmoantropogonico. De tal ordem é a comunhão entre os dois criadores, que, não somente Bachelard esclarece 
a obra poética de Rosa, como também a criação artística do escritor elucida e aprofunda o pensamento estético 
do filósofo. Com esta observação, afirmamos e sustentamos o caráter circular da tese proposta: da apreensão das 
teses de Bachelard depende a compreensão dos textos de Rosa, e do entendimento da prosa epifânica do poeta 
promana e pro- 
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cede uma iluminação ulterior, mais lúcida e cristalina das doutrinas preconizadas e defendidaspelo pensador. 
O germe do pensamento literário de Bachelard repousa em sua meditação ontológica da imagem 
poética. A imagem
 
não é para ele uma cópia ou reflexo, ou a mera descrição de algo existente, mas a 
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inauguração de um mundo e do homem que o habita. Neste ato inaugural, que é a irrupção súbita de uma 
imagem inédita, a linguagem recupera a originariedade de seu falar, as palavras recolhem e recordam o frescor e 
o fulgor primordial da gênese, o dizer redescobre o encanto da primeira vez. As prenhes e férteis entranhas da 
linguagem emergem na imagem insólita e inaudita. Ser poeta é pronunciar as palavras sempre pela primeira vez. 
“A imagem poética nos coloca diante da origem do ser falante”, é a convicção de Bachelard, que se confessa 
“um sonhador de palavras” (un rêveur de mots). Seguindo o mesmo impulso e perseguindo o mesmo anelo, Rosa 
deseja remontar ao emergir vigoroso da fala
 
para utilizar cada palavra “como se ela acabasse de nascer”, e almeja 
“voltar cada dia à origem da língua, ali, onde a palavra ainda está abrigada nas entranhas da alma”, a fim de 
animá-la e vivificá-la segundo sua imagem. Mesma preocupação filosófica, mesma ocupação poética. Bachelard 
e Rosa, dois grandes sonhadores das palavras. Para Rosa, criar palavras
 
é, no fundo, criar religiões. Bachelard 
ensina que “uma só palavra é freqüentemente o germe do sonho”, ilustrando com sua própria obra e em sua 
própria existência que “no próprio excesso do ser dado a palavras um devaneio profundo se manifesta”. Uma só 
palavra, proferida em toda a sua vibração, é uma imagem. Uma só palavra, que pode nem mesmo ser 
pronunciada, mas somente latejar e pulsar em silêncio, eternamente à espera de desentranhar-se, mas germinando 
e proliferando, si- 
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lente e subjacentemente, sem cessar. Uma “palavra pegante , dada ou guardada, que vai rompendo rumo”. Uma 
palavra perigosa, em perpétuo périplo poético, semeando o incessante porvir da experiência humana. 
A grande tese bachelardiana, que sedimenta o novo espírito científico e fundamenta o novo espírito 
literário, é a da interação dialética dos contrários. Numa sentença estranha e algo enigmática, Rosa anuncia: 
“Isso tudo, a vida e a morte são, no fundo, paradoxos. Os paradoxos existem para que seja possível exprimir algo 
para o qual nao existem mais palavras”. Esta breve colocação resume e abrange os elos de ligação e os pontos de 
reunião entre o poeta e o pensador, assinalados nesta introdução. Em primeiro lugar, a aguda formulação rosiana 
é o pleno reconhecimento da fundamental duplicidade e ambivalência das coisas, concepção que, conforme 
veremos, vai perfeitamente ao encontro do núcleo inseminador e propulsor do pensamento dinâmico e movente 
do genial mestre francês. Em segundo lugar, exprimir algo para o qual não existem mais palavras implica criar o 
algo e a palavra que o nomeia, numa versão humana, mediante a Poesia, da criação ex nihilo: o homem concria 
Deus, ao potenciar-se como “origem de linguagem” e ao edificar-se como partejador das sagradas “palavras de 
voz”. Em terceiro lugar, se o algo novo carece da palavra que o propicie, a descoberta da palavra sera o próprio 
aflorar do ser do algo e o próprio constituir-se do ser do descobridor. O sujeito e o objeto engendram-se mutua-
mente num único e mesmo ato; o surgir do mundo e o exsurgir do homem são simultâneos e contemporâneos: 
assim afirma Rosa, assim confirma Bachelard. Em quarto lugar, o não mais existirem palavras significa que já as 
houve? Neste caso, o recuperá-las é um sincrônico e sinfônico recordá-las e rein- 
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vencioná-las, e esta operação mista denuncia e evidencia a atividade indissolúvel e indissociável do tríptico 
Imaginação-Memória-Devaneio, que, para Bachelard, é a voz e a vocação do Imaginário. Finalmente, se o 
próprio acontecer poético decorre da existência de paradoxos, então, paradoxos são vitais. Sem a perpétua tensão 
coalescente dos contrários, não há vida, nem criação: assim imagina Rosa, assim sonha Bachelard. O dia e a 
noite se abraçam no crepúsculo. A luz e a treva se transfundem na religião. O masculino e o feminino
 
se cingem 
no amor. A vida e a morte se consagram na poesia. O ritmo dialético dos contrários é a coreografia floral da 
dança do existir. 
Em prol do imaginário, do translógico, do suprarreal, da “matéria vertente” da vida; contra o 
cartesianismo, o positivismo, o logicismo, o dogmatismo, a forma estagnada e conformada: eis o ditame comum 
que defendem e conclamam o filósofo-poeta e o poeta-filósofo. Entender Bachelard bachelardianamente e 
interpretar Rosa criativa e concriativamente; interpenetrar dinamicamente a poética concriativa do primeiro e a 
estética concreta do segundo; explicar e explicitar imaginativamente a atividade poética da imaginação nas duas 
obras; movimentar-se circularmente no interior de cada obra e no intercâmbio dialógico entre uma e outra: eis a 
tarefa poética da dissertação subseqüente, que a inscreve na tradição hermenêutica dos estudos literários. 
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