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FACULDADE NOVOS HORIZONTES Curso de Direito DIREITO À VIDA E O ABORTO Aspectos constitucionais e de dogmática social Bárbara Monique de Campos Diego Pereira Roberto Euro Garcia Lobato Júnior Fauez Shafir Leonardo Seif Eddine Geiziane Ferreira Silva Glaucya Pereira Rodrigues Vanessa Aparecida Ribeiro Belo Horizonte 2016 Bárbara Monique de Campos Diego Pereira Roberto Euro Garcia Lobato Júnior Fauez Shafir Leonardo Seif Eddine Geiziane Ferreira Silva Glaucya Pereira Rodrigues Vanessa Aparecida Ribeiro DIREITO À VIDA E O ABORTO Aspectos constitucionais e de dogmática social Trabalho apresentado como atividade complementar à disciplina Direito Constitucional I como requisito para obtenção de nota no 3º semestre do Curso de Direito da Faculdade Novos Horizontes. Professor(a): M.ª Karla Oliveira Resende Souza Belo Horizonte 2016 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .............................................................................. 3 2 VIDA ............................................................................................. 4 2.1 Conceito de vida .............................................................................................4 2.2 Direito à vida na Constituição de 88 .............................................................4 2.3 Vida e o entendimento adotado no ordenamento pátrio .............................5 3 ABORTO ...................................................................................... 6 3.1 Conceito de aborto e situações em que está é legal no Brasil ..................6 4 VISÕES E POSICIONAMENTOS ................................................. 7 4.1 Aborto e a posição médico-legal...................................................................7 4.2 Visão cristã sobre o aborto ...........................................................................7 4.3 Grupos feministas a favor do aborto ............................................................8 4.4 Posição doutrinária jurídica no Brasil ..........................................................9 4.5 Aborto e entendimento jurisprudencial ...................................................... 11 4.5.1 O Supremo Tribunal Federal - STF.............................................................. 11 4.5.2 Decisões diversas sobre o aborto .............................................................. 12 4.6 Aborto e Constituição no Direito Comparado ............................................ 13 4.6.1 O aborto nos Estados Unidos da América ................................................. 13 4.6.2 O aborto na França ....................................................................................... 14 4.6.3 O aborto na Itália .......................................................................................... 15 4.6.4 O aborto na Alemanha ................................................................................. 16 4.6.5 O aborto em Portugal ................................................................................... 17 5 ABORTO E A MICROCEFALIA ................................................. 19 5.1 Conceito de Microcefalia ............................................................................. 19 5.2 Aborto em caso de Microcefalia .................................................................. 19 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................ 23 REFERÊNCIAS .......................................................................... 25 3 1 INTRODUÇÃO De partida, é preciso sinalizar a cabal desonestidade intelectual à pretensão de restringir em um trabalho um tema tão polêmico e complexo que é a questão do aborto (essa polêmica gira em torno do fato de que existem posições contrárias à legalização e posições a favor, não se limitando tão somente aos argumentos jurídicos, mas também morais, sociais, de saúde pública e religiosa). Por essa razão, a presente pesquisa não pretende esgotar o assunto, nem restringir a amplitude de seus desdobramentos. Elaborar uma pesquisa de um tema de intensa magnitude no que tange aos acontecimentos de nossa época, em que se postulam o direito à vida e a proteção da autonomia, à liberdade, à privacidade, à livre expressão de pensamento, dentre outros, sob a perspectiva constitucional-sociológica e política, não é uma tarefa simples. Isto posto, há que se deixar ressalvado que a investigação deste trabalho resume-se em apresentar as perspectivas, posicionamentos e ideais tanto jurídicos, como de alguns grupos sociais importantes sobre a questão do aborto e suas influências na difícil decisão da descriminalização deste. Apresenta-nos os elementos essenciais para a compreensão do aborto sob diferentes pontos de vista. Tudo isto tem por escopo buscar uma compreensão ampla sobre o assunto e evitar que se tenha um posicionamento arbitrário e discricionário sem uma premissa fundamentada. O trabalho foi dividido em duas partes, a primeira, que consiste neste, é a parte escrita, que se volta a apresentar os apontamentos pesquisados sobre as posições jurídicas e de diversos grupos sociais e a segunda parte, que será apresentado em sala de aula, onde os posicionamentos encontrados serão expostos em forma de debate levando a turma a uma reflexão do tema em tela. 4 2 VIDA 2.1 Conceito de vida O conceito de vida é multifacetado, ou seja, pode ser analisado sob diferentes perspectivas, como por exemplo, no plano biológico, jurídico, político, social, cultural, religioso. No plano da Biologia, Fernandes (2014, p, 362) define vida como “aquela condição na qual um determinado organismo seja capaz de manter suas funções de modo contínuo, como metabolismo, crescimento, reação a estímulos provindos do ambiente, reprodução, etc”. No plano jurídico ainda não há um consenso de quando começa a vida, o que há são tutelas jurídicas a respeito da vida. Essas tutelas podem ser verificadas na Constituição Federal, no Código Civil e no Direito Penal, por exemplo. A despeito de haver controvérsias sobre a origem da vida no plano jurídico, Lenza (2014) diz que o STF definiu o conceito de vida no julgamento da ADI 3.510 que tratava da análise do art. 5º da Lei n. 11105/2005 (Lei de Biossegurança). Segundo o Relator da referida Ação, a vida humana começaria com o surgimento do cérebro, que, por sua vez, só apareceria depois de introduzido o embrião no útero da mulher. Assim, antes da introdução no útero não se teria cérebro e, portanto, sem cérebro, não haveria vida. 2.2 Direito à vida na Constituição de 88 A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, caput, garante como direito fundamental básico “[...] o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]”. Não é mero acaso que o direito à vida vem à frente dos demais direitos, pois dele emanam todos os outros. A intenção do legislador constitucional foi dar relevo ao bem mais importante de um ser humano: a vida. (ALFRADIQUE, 2005). De acordo com Lenza (2014, p. 1068) “o direito à vida, previsto de forma genérica no art. 5º, caput, abrange tanto o direito de não ser morto, de não ser privado da vida, portanto, o direito de continuar vivo, como também o direito de ter uma vida digna”. 5 Para garantir o direito de não se ver privado da vida de modo artificial, a Constituição de 88 proíbe pena de morte,a não ser em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX. Assim, mesmo por emenda constitucional é vedada a instituição da pena de morte no Brasil, sob pena de se ferir a cláusula pétrea do art. 60, § 4.0, IV. Para garantir o direito a uma vida digna, a Constituição assegura as necessidades vitais básicas do ser humano e proíbe qualquer tratamento indigno, como a tortura, penas de caráter perpétuo, trabalhos forçados, cruéis etc. (LENZA, 2014). 2.3 Vida e o entendimento adotado no ordenamento pátrio Apesar de deixar expresso o direito à vida, a CF/88 não delimitou qual a posição adotada quanto ao início da proteção desse direito. Há polêmicas entre os estudiosos sobre quando se inicia a vida. Há duas vertentes principais, os natalistas e os concepcionistas, que interpretam de maneira diferente o art. 2º do Código Civil de 2002, assim transcrito: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Para a teoria natalista, de acordo com Queiroz (2010), o nascimento ocorre com a separação do ventre da mãe; já a vida se daria com a primeira troca-oxicarbônica, ou seja, com a primeira respiração do bebê que acabou de nascer. Enquanto que, para a teoria concepcionista, a vida tem início a partir da concepção, ou seja, do surgimento do ovo ou zigoto em virtude da fecundação do óvulo pelo espermatozoide. (FERNANDES, 2014). Como visto no tópico 2.2, as doutrinas constitucionais desenvolvem um entendimento que vai além do sentido biológico, compreendendo a concepção de vida conectada à de dignidade humana, ou seja, o direito de estar vivo com condições mínimas de existência. (FERNANDES, 2014, p. 358) Foi assim o entendimento do Supremo Tribunal Federal quando, em abril de 2012, julgou procedente o pedido formulado na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, na qual se discutiu a possibilidade da permissão de aborto de feto anencéfalo. (FERNANDES, 2014). 6 3 ABORTO 3.1 Conceito de aborto e situações em que está é legal no Brasil Por aborto entende-se a interrupção voluntária da gravidez que causa a ocisão da vida do feto. É uma conduta criminosa, tipificada nos arts. 124 a 127 do Código Penal, mas o ordenamento jurídico brasileiro permite o aborto em algumas situações, sem sanção penal (CP, art. 128), como nos casos de risco de vida da mãe (aborto necessário) e em caso de estupro, quando por ausência de sentimento da mãe, ela pode abdicar da vida do feto (aborto sentimental). (FERNANDES, 2014). Por isso, Fernandes (2014) afirma que o direito à vida não pode ser tomado como absoluto. Ele é relativizado, assim como nas situações de aborto permitidas acima e também na possibilidade de existir pena de morte em casos de guerra declarada (CF/88, art. 5º, XLVII) ou então na figura penal da legítima defesa (CP, art. 128). 7 4 VISÕES E POSICIONAMENTOS 4.1 Aborto e a posição médico-legal Tentando manter a autonomia da mulher e do médico, o Conselho Federal de Medicina enviou à comissão especial do Senado em 2013 o parecer para haver a reforma do Código Penal brasileiro, pois o referido Código permite o aborto em casos de risco à saúde da gestante ou quando a gravidez é resultante de um estupro, como pode ser visto em seu artigo 128: o aborto legal, nas hipóteses de aborto necessário, inciso I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante e, o aborto no caso de gravidez resultante de estupro, inciso II- se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal (CONSELHO..., 2013). Sendo assim, considerando insuficientes essas hipóteses, o Conselho Federal de Medicina propôs novas condições, sendo elas, a) quando “houver risco à vida ou à saúde da gestante”; b) se a “gravidez resultar de violação da dignidade sexual, ou do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida”; c) se for “comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida independente, em ambos os casos atestado por dois médicos”; e por fim d) se “por vontade da gestante até a 12ª semana de gestação” (CONSELHO..., 2013). Então, posicionou-se o Conselho Federal de Medicina com seu colegiado que não é favorável ao aborto, mas sim da liberdade da mulher de se autodeterminar nas situações em questão e também para proteção dessas mulheres devido ao alto índice de mortalidade e de internações das que fazem abortos clandestinos (CONSELHO..., 2013). 4.2 Visão cristã sobre o aborto As comunidades cristãs, majoritariamente, posicionam-se contra o aborto. A Evangelium Vitae, importante Encíclica escrita pelo Papa João Paulo II, considera o aborto o crime mais perverso e abominável que um homem pode cometer contra vida. Para os cristãos, cometer aborto reduz a liberdade humana a um significado 8 perverso, de poder absoluto sobre os outros e contra os outros (SECRETARIADO..., 2004). Mais ainda: Quando uma maioria parlamentar ou social decreta a legitimidade da eliminação, mesmo sob certas condições, da vida humana ainda não nascida, assume uma decisão tirânica contra o ser humano mais débil e indefeso. (João Paulo II, Evangelium Vitae, nº 58, 1995). O filósofo Antenágoras, em sua obra Súplica pelos Cristãos, escreve que é inconcebível e inconciliável a ideia de que a mulher carrega em seu ventre um ser vivo beneficiário da Providência Divina, com a de matar cedo aquele que já iniciou a vida (SECRETARIADO..., 2004). A Conferência Episcopal Portuguesa mantém firme sua posição contra o aborto, com a convicção de que na procriação humana existe vida desde o primeiro instante e interrompê-la é a forma mais grave de desrespeito contra a vida humana. Segundo tal entendimento, esta não é uma questão apenas religiosa, pois afeta o direito natural, na medida em que o respeito pela vida é o principal fundamento da ética. Desse modo, qualquer lei que permita o aborto cria um abismo entre a legalidade e a moralidade, pois o aborto voluntariamente procurado, mesmo que legal, continua a ferir a moralidade natural e as exigências da consciência (SECRETARIADO..., 2004). 4.3 Grupos feministas a favor do aborto A posição majoritária das feministas é favorável ao aborto. Este grupo entende que a não legalização do aborto é a retirada de direito da mulher sobre seu próprio corpo. Ainda defendem que essa falta de legalização e a privatização da saúde fazem com que as mulheres hipossuficientes procurem as clínicas clandestinas para praticar o ato, e muitas vezes sofrem em condições precárias, isso quando resolvem procurar ajuda e não tentam abortar sozinhas, com agulhas de tricô, cabides, remédios sem indicação médica, etc. Mas elas consideram que não há outra saída senão aquela, pois não desejam ter o filho, ou muitas das vezes não têm condições para criar a criança. Em contrapartida, as mais favorecidas financeiramente vão a lugares com melhores condições de realizar o procedimento, gastam uma fortuna e saem como se praticassem ato legal (LOPES, 2011). 9 Destaca, este grupo, que a parte mais prejudicada com essa proibição são as jovens negras e pobres, com baixa escolaridade e pouco acesso a saúde. Prova disso, pode ser observada em 1990 na Bahia, onde a taxa de mortalidade materna, devido ao aborto inseguro, foi de 82% somente da população feminina negra (LOPES, 2011). Sabe-se que o aborto é praticado à margem da lei e, já que é praticado de qualquer maneira, esse grupo busca em diversas manifestações que sejadescriminalizada tal prática, para que as mulheres, principalmente as menos favorecidas, possam ter melhores condições amparadas pelo poder público, para que, querendo, possam fazê-lo em condições seguras. Ademais, a luta feminista em prol da legalização e descriminalização do aborto tem como principal objetivo desconstruir os papéis (patriarcalistas) estabelecidos na sociedade, gerando desigualdades e colocando as mulheres em uma posição de submissão, impondo-lhes o mero lugar da reprodução, e com isso negando-lhes o lugar no mercado (trabalho) e excluindo-as assim do mundo público (LUXEMBURGO, 2013). 4.4 Posição doutrinária jurídica no Brasil Diversos são os posicionamentos doutrinários jurídicos acerca do aborto no Brasil. Neste sentido não há uma corrente doutrinária unânime a respeito dos fatores que podem e se podem ser considerados crimes de aborto, porém, alguns doutrinadores versam sobre o tema elencando aspectos diferenciadores para ocorrência do ato como crime. Segundo Costa Júnior (2008) para ocorrer o aborto, a gravidez terá que ser normal e o produto da concepção deverá atingir a vida própria. Na visão de Capez (2003), o crime de aborto só se enquadra da modalidade dolosa, conforme artigo 18 paragrafo único do Código Penal, não podendo ocorrer na modalidade culposa, contudo se terceiro provocar será responsabilizado penalmente pela lesão corporal culposa. Já Mirabete (2006), apesar de afirmar também que não existe crime de aborto na modalidade culposa, cita que o aborto provocado por mulher grávida em razão de imprudência por ela mesma causada, está responderá pelo crime de lesão corporal culposa. 10 Segundo Silva (2010), outra divergência entre correntes doutrinárias diz respeito ao caso de autorização ou não do aborto resultante de estupro, decorrente de violência ficta, na qual a primeira corrente autoriza a conduta, por entender que aborto sentimental está previsto de forma clara na lei; e ainda a segunda não autoriza, por entender a impossibilidade da morte de um ser humano em virtude de uma ficção. Conforme Nucci (2006), a doutrina majoritária opta pela primeira posição, pois está harmonicamente ligada ao princípio da legalidade. Por fim, ainda existe o dilema do direito à vida e o aborto de feto anencéfalo. Moraes (2008) discorre sobre o tema, com posicionamento a favor conforme a tendência da jurisprudência pátria: Observada a presença de diversas anomalias, incompatíveis com a vida extrauterina, tornando a gestação frequentemente complicada em virtude da polidramnia, que acarreta graves consequências à saúde da gestante, a intervenção cirúrgica se faz necessária, malgrado não incluída a antecipação de parto de fetos anencefálicos nos dispositivos legais que excluem a antijuricidade, o embasamento pela possibilidade esteia-se em causa supralegal autônoma de exclusão de culpabilidade por ser inexigível outra conduta. (MORAES, 2008, p.30). Na contramão do posicionamento de Guilherme Peña Morais, a doutrina de Ives Gandra Martins usando de argumentos sentimentais ou religiosos como exemplos, contraria o aborto de fetos anencéfalos. Neste sentido, Ives Gandra Martins escreve: Trata-se, pois desde a primeira célula, de um ser humano e não de um ser animal, apesar de toda a carga genética e seu mapa definitivo de ser humano já estar plasmado no zigoto, teríamos que admitir que todos nós teríamos sido animais nos primeiros meses de vida e só depois nos transformado em seres humanos. (MARTINS, 2004, p.2). Martins (2008) resume seus argumentos em três aspectos: o primeiro é que todos que propugnam pelo aborto sabem que o nascituro sofre muito. O segundo aspecto diz respeito a transformar o feto em lixo hospitalar como nos campos de concentração nazista. O terceiro aspecto é sobre anencéfalos que não possuem cérebro, contudo, possui tubo neural de tal maneira, que o nome adequado é a microcefalia. 11 4.5 Aborto e entendimento jurisprudencial Procura-se abordar neste tópico o entendimento dos tribunais a respeito do tema, partindo do princípio de que o Brasil possui dimensões continentais e de que existem juízes em todos os Estados do território nacional, emitindo sentenças sobre o tema e todos com autonomia para decidir de acordo com suas consciências. Presumível, seria, que fosse encontrada uma diversidade de decisões, sem lastro comum, porém nota-se que apesar disso não há muita disparidade nas sentenças, como verifica-se no estudo abaixo. 4.5.1 O Supremo Tribunal Federal - STF A mais alta corte brasileira não poderia deixar de se manifestar sobre a questão e, neste diapasão, foi decisiva para a pacificação da jurisprudência, com a decisão de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 54, analisando o aborto dos fetos anencéfalos, ou seja, com ausência total ou parcial do encéfalo. Ementa: ADPF - ADEQUAÇÃO - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ - FETO ANENCÉFALO - POLÍTICA JUDICIÁRIA - MACROPROCESSO. Tanto quanto possível, há de ser dada seqüência a processo objetivo, chegando- se, de imediato, a pronunciamento do Supremo Tribunal Federal. Em jogo valores consagrados na Lei Fundamental - como o são os da dignidade da pessoa humana, da saúde, da liberdade e autonomia da manifestação da vontade e da legalidade -, considerados a interrupção da gravidez de feto anencéfalo e os enfoques diversificados sobre a configuração do crime de aborto, adequada surge a argüição de descumprimento de preceito fundamental. ADPF - LIMINAR - ANENCEFALIA - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ - GLOSA PENAL - PROCESSOS EM CURSO - SUSPENSÃO. Pendente de julgamento a argüição de descumprimento de preceito fundamental, processos criminais em curso, em face da interrupção da gravidez no caso de anencefalia, devem ficar suspensos até o crivo final do Supremo Tribunal Federal. ADPF - LIMINAR - ANENCEFALIA - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ - GLOSA PENAL - AFASTAMENTO - MITIGAÇÃO. Na dicção da ilustrada maioria, entendimento em relação ao qual guardo reserva, não prevalece, em argüição de descumprimento de preceito fundamental, liminar no sentido de afastar a glosa penal relativamente àqueles que venham a participar da interrupção da gravidez no caso de anencefalia (BRASIL, 2012) Até esta decisão, os juízes e tribunais ao se depararem com o tema do aborto, baseavam-se na Constituição e no Código Penal para permitir o aborto sem a tipificação de crime, nos casos descritos nos incisos I e II do artigo 128 do Código Penal, que são o aborto necessário, para salvar a vida de gestante, e o aborto no caso de gravidez resultante de estupro. 12 No entanto, existiam muitos pedidos de tutela para que fosse deferido o aborto em gravidez de feto com anencefalia, o que era, muitas vezes, indeferido por falta de previsão legal, mas com a decisão do STF o tema foi pacificado. 4.5.2 Decisões diversas sobre o aborto Além do entendimento do STF existem muitos outros a respeito do tema, que merecem citação e comentário: RECURSO ESPECIAL. DIREITO SECURITÁRIO. SEGURO DPVAT . ATROPELAMENTODE MULHER GRÁVIDA. MORTE DO FETO. DIREITO À INDENIZAÇÃO. INTERPRETAÇÃO DA LEI Nº 6194/74. 1 - Atropelamento de mulher grávida, quando trafegava de bicicleta por via pública, acarretando a morte do feto quatro dias depois com trinta e cinco semanas de gestação. 2 - Reconhecimento do direito dos pais de receberem a indenização por danos pessoais, prevista na legislação regulamentadora do seguro DPVAT, em face da morte do feto. 3 - Proteção conferida pelo sistema jurídico à vida intra-uterina, desde a concepção, com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana. 4 - Interpretação sistemático-teleológicado conceito de danos pessoais previsto na Lei nº 6.194 /74 (arts. 3º e 4º). 5 - Recurso especial provido, vencido o relator, julgando-se procedente o pedido (BRASI, 2011). Nesta decisão o Superior Tribunal de Justiça – STJ reconhece ao nascituro os direitos da personalidade e autoriza o pagamento do seguro DPVAT para indenizar a vida, que ainda no ventre, tem seus direitos garantidos nos termos da legislação brasileira. A decisão abaixo do Tribunal de Justiça de São Paulo revela o retrato da lentidão da justiça, que, devido à mora, faz com que a ação perca o objeto, tendo em vista que houve o parto espontâneo, antes que a tutela fosse analisada. ABORTO – Ação de interrupção de gravidez com pedido de tutela antecipada – Feto identificado com tumoração cística septada em topografia cervical posterior sugestiva de higroma cístico e hidropsia fetal – Síndrome de Turner - Pedido indeferido pela origem, rejeitada a medida cautelar. Apelação. Pedido prejudicado em razão do decurso do tempo, inviabilizando, a esta altura a realização do pretendido aborto. Perda de objeto. Apelo prejudicado (SÃO PAULO, 2015). Por fim, uma decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que retrata uma ação típica do gênero, em que é discutida uma das situações mais comuns, envolvendo o 13 tema, quais sejam, os crimes relacionados ao aborto, tipificados nos artigos 124 a 127 do Código Penal Brasileiro. Ementa: Responsabilidade Civil - Município de Belo Horizonte e clínica particular - deslocamento de placenta com aborto - relação médico-paciente - obrigação de meio - prova da culpa - exigência - negligência dos médicos - não comprovação - improcedência do pedido - recurso não provido (MINAS GERAIS, 2014). Destaca-se que, em relação ao aborto, os Tribunais são quase uníssonos nas decisões, que se balizam na lei penal, com suas exceções à tipicidade do crime de aborto, descritas no artigo 128 e na jurisprudência do STF sobre os anencéfalos. 4.6 Aborto e Constituição no Direito Comparado Neste tópico, será feita uma análise sobre o posicionamento jurídico-constitucional de alguns países com relação ao aborto. Sabendo-se que no mundo moderno em que se renovaram os valores sociais da função da mulher, no reconhecimento da igualdade de gênero, superando o entendimento da mulher tão somente como finalidade reprodutiva, tem levado os Estados a terem posicionamentos igualitários e humanos com relação à autonomia da mulher, buscando valores axiológicos ao tratar dos direitos fundamentais destas. Lado outro, “por razões de ordem biológica, social e moral, tem-se considerado também que o grau de proteção constitucional conferido à vida intrauterina vai aumentando na medida em que avança o período da gestação”, sendo usado como condicionante para autorização do aborto em certas fases da gestação. Assim, buscando postular esses novos valores consagrados, apontar-se-á aqui como os legisladores ou Tribunais (Cortes) Constitucionais de países como EUA, França, Itália, Alemanha e Portugal tem tratado o tema, para, sem embargo, ao menos usá-los como experiências ou modelos a serem mensurados no tratamento deste tema no Brasil (SARMENTO, 2005, p. 2). 4.6.1 O aborto nos Estados Unidos da América Nos EUA a questão do aborto não está explicitamente tratada na Constituição, mas sim em posicionamentos dos juízes em célebre caso julgado pela Suprema Corte1, no qual se posicionaram no entendimento de que “o direito à privacidade [...] 1 Trata-se do caso Roe vs Wade, julgado em 1973. 14 envolveria o direito da mulher de decidir sobre a continuidade ou não de sua gestação” (SARMENTO, 2005, p. 6). É certo que a Suprema Corte definiu contornos em que a autonomia da mulher sobre o aborto se daria, tais como que no primeiro trimestre da gestação, o aborto é de livre decisão por parte da gestante junto ao seu médico. No segundo semestre, o aborto ainda seria livre ao direito da gestante, porém o estado regularia meios restritivamente a proteger à vida da mãe. Só a partir do terceiro semestre em diante poderia então os Estados proibir a realização do aborto, objetivando a vida do nascituro, exceto quando a interrupção fosse preciso para a preservação da vida ou saúde da mãe. Vale ressaltar que o então colendo reconheceu “a inconstitucionalidade de lei que condicionava o exercício do direito ao aborto ao consentimento do pai do nascituro” (SARMENTO, 2005, p. 8). Vale destacar um trecho do posicionamento adotado pela então Corte: A restrição que o Estado imporia sobre a gestante ao negar-lhe esta escolha é manifesta. Danos específicos e diretos, medicamente diagnosticáveis até no início da gestação, podem estar envolvidos. A maternidade ou a prole adicional podem impor à mulher uma vida ou futuro infeliz. O dano psicológico pode ser iminente. A saúde física e mental podem ser penalizadas pelo cuidado com o filho. Há também a angústia, para todos os envolvidos, associada à criança indesejada e também o problema de trazer uma criança para uma família inapta, psicologicamente ou por qualquer outra razão, para criá-la [...] Nós assim concluímos que o direito de privacidade inclui a decisão sobre o aborto, mas que este direito não é incondicionado e deve ser sopesado em face daqueles importantes interesses estatais (SARMENTO, 2005, p. 6) 2 . Apesar de posicionamentos de grupos e seguimentos contrários a esta liberdade, este é o entendimento que ainda vigora nos Estados Unidos. 4.6.2 O aborto na França Na França, a então discussão não se deu por via judicial, mas sim por via legislativa. Foi aprovada uma lei3 provisória de 5 anos, em 1975, em que se permitia o aborto voluntário através de médicos habilitados, desde que fosse nas primeiras dez semanas de gestação, quando a gestante acusasse que a então gravidez lhe cause angústia, e após esse período é permitido quando haja risco à sua vida ou saúde, ou que o feto venha sofrer após o nascimento devido a doenças patológicas incuráveis. Ademais, pela então lei, a gestante que quisesse abortar, deveria ir a consultas em 2 Tradução livre do autor. 3 Trata-se da Lei nº 75-17 de 1975. 15 “determinadas instituições e estabelecimentos, que lhe forneceriam assistência e conselhos apropriados para a resolução de eventuais problemas sociais que estivessem induzindo à decisão pela interrupção da gravidez” (SARMENTO, 2005, p. 9). Esta lei, até então provisória por cinco anos, foi tornada definitiva em 1979 (SARMENTO, 2005, p. 10). Ademais, recentemente em 2001, foi promulgada uma lei4 na França que ampliou o prazo geral de interrupção de gravidez que antes era de 10 semanas para 12 semanas e a consulta em estabelecimentos e instituições de aconselhamento e informação que antes era obrigatória, passou então a ser facultativa (SARMENTO, 2005, p.10). O Conselho Constitucional ao ser provocado posicionou-se no sentido da constitucionalidade da referida lei, afirmando que: [...] ao ampliar de 10 para 12 semanas o período durante o qual pode ser praticada a interrupção voluntária de gravidez quando a gestante se encontre numa situação de angústia, a lei, considerando o estado atual dos conhecimentos e técnicas, não rompeu o equilíbrio que o respeito à Constituição impõe entre, de um lado, a salvaguarda da pessoa humana contra toda forma de degradação, e, do outro, a liberdade da mulher, que deriva da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (SARMENTO, 2005, p. 10) 5 . 4.6.3 O aborto na Itália A Corte Constitucional declarou sabiamente a inconstitucionalidade, em1975, do artigo do Código Penal italiano que punia indiscriminadamente o aborto sem considerar sequer as hipóteses em que a sua não realização implicaria dano ou risco à saúde da gestante. Segue trecho sob o qual se deu tal entendimento: [...] o art. 2 da Constituição reconhece e garante os direitos invioláveis do Homem, dentre os quais não pode não constar [...] a situação jurídica do nascituro. E, todavia, esta premissa – que por si justifica a intervenção do legislador voltada à previsão de sanções penais – vai acompanhada da ulterior consideração de que o interesse constitucionalmente protegido relativo ao nascituro pode entrar em colisão com outros bens que gozam de tutela constitucional e que, por consequência, a lei não pode dar ao primeiro uma prevalência total e absoluta, negando aos segundos adequada proteção. E é exatamente este o vício de ilegitimidade constitucional que, no entendimento da Corte, invalida a atual disciplina penal do aborto [...] Ora, não existe equivalência entre o direito não apenas à vida, mas também à 4 Trata-se da Lei 2001-588 de 2001. 5 Tradução livre do autor, de trecho da decisão que pode ser obtida na íntegra no sítio: <http://www.conseilconstitutionnel.fr>. 16 saúde de quem já é pessoa, como a mãe, e a salvaguarda do embrião, que pessoa ainda deve tornar-se (SARMENTO, 2005, p. 11) 6 . Assim, sob o manto do posicionamento da Corte, foi editada nova lei7 em 1978 que regulou sobre o aborto nas seguintes condicionantes, a gestante pode pedir o procedimento do aborto em caso de risco à sua saúde física ou psíquica, de comprometimento das suas condições econômicas, sociais ou familiares, em razão das circunstâncias em que ocorreu a concepção ou em casos de má-formação fetal, tudo isto no prazo dos primeiros noventa dias de gravidez. Sendo que deverá ser feito acompanhamento por agentes sanitários que discutirão uma alternativa, que não a interrupção da gestação e com exceção de casos emergenciais, a gestante deverá aguardar 7 dias entre a solicitação do procedimento e o dia da realização, resguardando o tempo para a reflexão desta (SARMENTO, 2005, p. 11). Por fim, a então lei permitiu a realização do aborto, a qualquer momento, nas hipóteses em que a gravidez ou o parto representem grave risco de vida para a gestante ou quando se verifiquem processos patológicos que inviabiliza a vida do feto ou gere anomalias que cause perigo à saúde física ou psíquica da mulher (SARMENTO, 2005, p. 12). 4.6.4 O aborto na Alemanha Na Alemanha, em 1974, foi promulgada uma lei que descriminalizava o aborto realizado por médico competente, com o consentimento da mulher, desde que nas primeiras doze semanas de gestação. Foi manejada uma ação de inconstitucionalidade e o Tribunal Constitucional Federal em 1975 vetou a tal lei sobre o entendimento de que “o direito à vida só começaria com o nascimento, afirmando que, antes disso, o feto já é ‘um ser em desenvolvimento’, dotado de dignidade e merecedor de proteção constitucional” (SARMENTO, 2005, p. 12). O Tribunal não se olvidou o direito à privacidade da mulher grávida, mas entendeu que casos concretos merecem ponderações de razões que levam a ceder o direito à vida do feto, tais como o risco à vida ou à saúde da gestante, também a má-formação fetal (SARMENTO, 2005, p. 13). 6 Tradução livre do autor. O acórdão pode ser obtido em Giurisprudenza Costituzionale, Ano XX, 1975, p. 117 et seq. 7 Trata-se da Lei nº 194 de 1978. 17 Em 1992 foi elaborada nova lei que novamente tentou permitir a prática “livre” do aborto nos primeiros três meses de gravidez. Tentou, porque a referida lei foi contestada pela Corte Constitucional, sob o mesmo argumento de que só poderia ser realizada em casos especiais, em que a continuidade da gestação significasse um ônus excessivo para a gestante. Entretanto, reiterou que tal proteção ao feto, não deve, necessariamente, ser feito pelo Direito Penal, mas sim por outros meios de caráter assistencial à gestante (SARMENTO, 2005, 14). Segue excerto do entendimento da respeitosa Corte: [...] Os embriões possuem dignidade humana; a dignidade não é um atributo apenas de pessoas plenamente desenvolvidas ou do ser humano depois do nascimento [...] Mas, na medida em que a Lei Fundamental não elevou a proteção da vida dos embriões acima de outros valores constitucionais, este direito à vida não é absoluto [...] Pelo contrário, a extensão do dever do Estado de proteger a vida do nascituro deve ser determinada através da mensuração da sua importância e necessidade de proteção em face de outros valores constitucionais. Os valores afetados pelo direito à vida do nascituro incluem o direito da mulher à proteção e respeito à própria dignidade, seu direito à vida e à integridade física e seu direito ao desenvolvimento da personalidade [...] (SARMENTO, 2005, p. 14) 8 . 4.6.5 O aborto em Portugal O Tribunal Constitucional português firmou entendimento que a Constituição resguarda a vida do feto, entretanto não com a mesma intensidade com que protege à vida de quem já nasceu. Como se nota a seguir: A ideia de uma capacidade jurídica apenas restrita do nascituro perde [...] o caráter chocante se se considera que o nascituro, enquanto já concebido, é já um ser vivo humano, portanto, digno de proteção, mas enquanto ‘não nascido’, não é ainda um indivíduo autônomo e, nesta medida, é só um homem em devir [...]. A matéria relativa à colisão ou situação conflitual que pode gerar-se entre os valores ou interesses do nascituro e os da mãe merece ser aprofundada mais um pouco [...] (SARMENTO, 2005, p. 16). Por isso há de ser ponderado com razoabilidade entre a vida do nascituro e direito fundamental da mulher. Entretanto, fortalece o entendimento do Tribunal que o direito gradativamente se consolida na proporção em que o feto se desenvolve e torna-se viável a vida extrauterina (SARMENTO, 2005, p. 17): 8 Tradução livre do autor. O acórdão está parcialmente reproduzido em língua inglesa em KOMMERS, Donald, op. cit., pp. 349-356. 18 Esta tutela progressivamente mais exigente à medida que avança o período de gestação poderia encontrar, desde logo, algum apoio nos ensinamentos da biologia, já que o desenvolvimento do feto é um processo complexo em que ele vai adquirindo sucessivamente características qualitativamente diferentes [...] Mas o que releva, sobretudo, é que essa tutela progressiva encontra seguramente eco no sentimento jurídico coletivo’, sendo visível que é muito diferente o grau de reprovação social que pode atingir quem procure eventualmente ‘desfazer-se’ do embrião logo no início de uma gravidez ou quem pretenda ‘matar’ o feto pouco antes do previsível parto [...]. Mesmo o Tribunal Constitucional condicionando a liberdade da mulher em decidir sobre a continuidade da gestação ou não na proporção da viabilidade do feto viver sem a mãe biológica, a atual legislação ordena que o aborto só seja legal em casos específicos, de risco de vida ou saúde materna, má-formação ou doença incurável do feto e gravidez decorrente de violência sexual (SARMENTO, 200, p. 18). 19 5 ABORTO E A MICROCEFALIA 5.1 Conceito de Microcefalia Microcefalia é uma situação neurológica rara em que a má formação da cabeça e do cérebro da criança, deixando-os fisicamente menores do que os de outras da mesma idade e sexo. A microcefalia geralmente é diagnosticada logo no início da vida e é resultado do cérebro não crescer o suficiente durante a gestaçãoou após o nascimento. Bebês com microcefalia têm problemas no desenvolvimento. Atualmente não há uma cura definitiva para a microcefalia. A microcefalia pode ser causada por uma série de problemas genéticos ou ambientais (PINTO E SÁ, 2013). 5.2 Aborto em caso de Microcefalia A discussão do aborto em caso de microcefalia ganhou força no cenário brasileiro nos últimos tempos devido ao surto dessa doença pelo zika vírus, também transmitido pelo mosquito Aedes Aegypt (BELTRAME, 2016). Conforme abordado anteriormente, no Brasil, o aborto só é permitido em caso de gravidez resultante de estupro, risco de morte da gestante e anencefalia do feto. Neste último caso, a liberação foi permitida pelo Supremo Tribunal Federal em 2012, por se tratar de uma condição incompatível com a vida. Sabe-se que no direito contemporâneo, à luz do Estado Democrático de Direito, busca-se postular no ordenamento pátrio, o direito do nascituro e também da autonomia da mulher, ambos condensados na máxima constitucional da dignidade da pessoa humana. Foi por entender assim, que o STF estendeu o manto legal da proteção à mulher em poder abortar no caso de feto anencéfalo, pois prevaleceu a tese de que não haveria ali uma vida a ser protegida e, portanto, obrigar uma mulher a levar uma gestação em que ao final haveria um caixão e não um berço era afrontar a sua dignidade e submetê-la à tortura (BRUM 2016). Mas o que dizer no caso do feto diagnosticado com microcefalia? Toda questão que envolve o tema aborto é tormentosa e vem à tona a ojeriza ética pelo procedimento, que é considerado um ato atentatório contra a vida. Na hipótese 20 de aborto em caso de microcefalia também tem se dividido o entendimento quanto à permissividade legal ou não do aborto. Entretanto, é importante destacar que a microcefalia não se confunde com a anencefalia, conforme o dizer de Oliveira Junior (2015): Não se pode comparar a anencefalia, que é a má-formação do tubo neural, caracterizada pela ausência parcial do encéfalo e da calota craniana, que resulta na nulidade da expectativa de vida, com a microcefalia, em que há chance de vida, porém com dificuldades cognitivas, motoras, de aprendizado, em consequência da má-formação cerebral, fazendo com que a criança nasça com a circunferência da cabeça menor que 32 cm. Assim, no entender de Oliveira Junior (2015), não há que se falar em relaxar o entendimento permissivo do aborto em caso de anencefalia para o caso de microcefalia, pois naquela não há possibilidade de vida extrauterina, enquanto nesta há a possibilidade de vida, ainda que com capacidade reduzida. Oportuno se faz destacar que pela teoria natalista, que foi adotada no Código Civil de 2002, “a personalidade do ser humano se inicia do nascimento com vida, não se exigindo mais nenhuma característica como a forma humana, viabilidade de vida ou tempo de nascido” (QUEIROZ, 2010). Desta forma, ao rechaçar a condição de viabilidade de vida, não é possível, nos parâmetros supramencionados, considerar o aborto no caso de microcefalia, pela corrente que segue esse entendimento. Segundo pesquisa Datafolha revelou, a maioria dos brasileiros (média de 58%) desaprovam o aborto em caso de microcefalia em qualquer circunstância. Enquanto outra menor parte (média de 32%) apoia a interrupção da gestação neste caso (FOLHA..., 2016). As diversas entidades religiosas, tais como Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, como diversas outras, representadas por seus presidentes em reunião, já se manifestaram contrárias ao aborto em caso de microcefalia. Um dos argumentos usados foi a de que: Infelizmente, a nossa casa comum está sendo assolada pelo mosquito transmissor de doenças [...] que alguns julguem que a solução para esses casos seja o aborto de bebês com microcefalia e que isso representa total desrespeito ao dom da vida e às pessoas com algum tipo de limitação, apesar de entender a extrema gravidade da situação vivida por gestantes em todo o País (TERRA, 2016). 21 Porém, insurgem nesse contexto aqueles que entendem ser possível o aborto em caso de microcefalia. Estes defendem tal entendimento sobre a prerrogativa de que “em casos de microcefalia com previsão médica de morte do bebê é ‘válida’ e precisa ser avaliada ‘caso a caso’” (MARTINS, 2016). Esse entendimento tem sido usado por alguns juízes que tem autorizado o aborto de feto com microcefalia nessas condicionantes, é o caso do titular da 1ª Vara dos Crimes Dolosos Contra a Vida de Goiânia, o juiz goiano Jesseir Coelho de Alcântara. Este argumenta que “se o aborto é permitido por lei em casos de fetos anencefálicos, ‘cuja vida após o nascimento é inviável’, também se justifica em ‘gestações em que o feto comprovadamente nascerá sem vida’, devido à microcefalia”. O Alto-Comissariado de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) também defendeu que países com surto do vírus Zika autorizem o direito ao aborto em casos de infecção em gestantes (BBC BRASIL, 2016). Ademais, não se pode olvidar para o desdobramento social na vida de mulheres, principalmente as mulheres pobres, que terão bebês com microcefalia. Destacando neste sentido a escassez da prestabilidade da saúde pública para o acompanhamento e direcionamento nesses casos, a inclusão social e educacional das crianças num momento posterior. Problemas e questões essas que precisam ser endossadas quando debatida a questão do aborto por microcefalia, conforme aponta Brum (2016): A cada ano, há mais de 200 mil atendimentos no Sistema Único de Saúde (SUS) por complicações pós-aborto, a maioria deles por procedimentos induzidos. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), são realizados mais de 1 milhão de abortos inseguros por ano no Brasil. O aborto é a quinta causa de mortalidade materna no país. [...] Quem se arrisca a ser presa e a morrer está se arriscando a muito. Está arriscando tudo. Assim, é possível concordarmos, ao menos, que os fatos demonstram que aborto não é um ato banal para essas mulheres, mas uma necessidade profunda, movida por condições objetivas e subjetivas que só elas conhecem intimamente. [...] As mulheres pobres são as que mais sofrerão para incluir uma criança com deficiências num sistema de saúde pública precária e numa sociedade que discriminará seus filhos em todos os espaços. 22 Importante destacar que o Ministério da Saúde não tem ainda parecer se houve aumento de mortes de crianças após o surto da microcefalia causada pelo Zika vírus. Porém mesmo em casos comprovados de morte do bebê, a interrupção da gravidez está longe de ser unanimidade no País e gera intenso debate entre juristas, ativistas e sociedade civil (MARTINS, 2016). 23 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo desta pesquisa, observou-se que tanto a vida do nascituro como os direitos fundamentais à saúde, à privacidade, à autonomia reprodutiva e à igualdade da mulher são interesses constitucionalmente relevantes, que merecem ser devidamente amparados. Sabendo que o pilar de todo ordenamento jurídico constitucional e o maior de todos os direitos e garantias fundamentais das pessoas se desnuda no primado da dignidade da pessoa humana, a Constituição não pode virar as costas para um direito ao tentar amparar outro. Por essa razão, a discussão sobre o aborto se mostra tão intricada, sofrendo efeitos exógenos dos diversos grupos sociais que de maneira direita ou indireta influenciam na decisão desta. Pode-se observar que, buscando equilíbrio, o ordenamento jurídico prevêem rol taxativo de situações em que o aborto não será considerado crime, que foi estendido (no caso da anencefalia) por posição do STF. Entretanto, ainda insurgem vozes que militam no sentido de que o ordenamento legal não pode restringir a autonomia reprodutiva, sendo uma grave violação do Estado à privacidade, saúde e igualdade isonômica buscada pelo Estado Democrático de Direito, pois a partir do momento que o Estado impõe restrições a esse direito, ele está agindo de forma discriminatória, violando, especialmente, o primado da liberdade. Lado outro, observado foi a forma como este tema é tratado em outros países, mostrando que o assunto é de igual modo tormentoso, sempre chocando com o descontentamento de um ou outro grupo, mesmo em que se sopesem os interesses de todos. Todavia a maioria desses países, sendo mais permissivo ou não quanto ao aborto, buscam medidas públicas para orientar as mulheres antes e depois da concepção, para que situações de gravidez (indesejada ou de contexto conflituoso) não se 24 desague no abortamento do feto. Medida esta que, infelizmente sofre carência no Brasil, não só neste sentido, mas como em outras instâncias públicas (saúde, educação, emprego), ainda mais neste momento, em que o assunto do aborto reacendeu devido o surto do zika vírus que causa microcefalia nos bebês. Baseado em todos esses pontos abordados e perspectivas vistas, parece-nos que seria bastante razoável adotar no Brasil solução semelhante àquela perfilhada por grande parte dos países, que legalizaram a realização do aborto voluntário no trimestre inicial de gestação, mas, por outro lado, criaram aparatos extrapenais para evitar a vulgarização desta prática, relacionados à educação sexual, ao planejamento familiar, acompanhamento das gestantes hipossuficientes e ao fortalecimento da rede de proteção social voltada para a mulher. Uma solução desse porte, em nossa opinião, não afligirá a Constituição, mas antes instrumentalizaria, de forma mais adequada e racional, os seus princípios e valores. É por óbvio que a interrupção voluntária da gravidez não deve ser tratada como método anticoncepcional, ela é providência muito mais grave, não só porque impede o nascimento de uma pessoa, como também por constituir, no geral, motivo de profunda tristeza para as mulheres que o praticam, sendo o seu propósito buscado em último caso. 25 REFERÊNCIAS ALFRADIQUE, Eliane. Direito à vida: aborto- estupro- feto anencefálico. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, VIII, n. 22, ago 2005. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artig o_id=448>. Acesso em: 02 maio 2016. BBC BRASIL. Juiz defende direito a aborto em casos de microcefalia com risco comprovado de morte. São Paulo, 2016. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160121_microcefalia_aborto_zika_r s>. Acesso em: 04 de maio 2016. BELTRAME, Beatriz. Entenda o que é Microcefalia e quais são as consequências para o bebê. 2016. 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