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TEXTOS DIREITOS HUMANOS

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O QUE SÃO DIREITOS HUMANOS  
Direitos Humanos: Noção e Significado
A expressão “direitos humanos” é uma forma abreviada de mencionar os direitos fundamentais da pessoa humana. Esses direitos são considerados fundamentais porque sem eles a pessoa humana não consegue existir ou não é capaz de se desenvolver e de participar plenamente da vida. Todos os seres humanos devem Ter asseguradas, desde o nascimento,, as mínimas condições necessárias para se tornarem úteis à humanidade, como também devem Ter a possibilidade de receber os benefícios que a vida em sociedade pode proporcionar. Esse conjunto de condições e de possibilidades associa as características naturais dos seres humanos, a capacidade natural de cada pessoa pode valer-se como resultado da organização social. É a esse conjunto que se dá o nome de direitos humanos.
Para entendermos com facilidade o que significam direitos humanos, basta dizer que tais direitos correspondem a necessidades essenciais da pessoa humana. Trata-se daquelas necessidades que são iguais para todos os seres humanos e que devem ser atendidas para que a pessoa possa viver com a dignidade que deve ser assegurada a todas as pessoas. Assim, por exemplo, a vida é um direito humano fundamental, porque sem ela a pessoa não existe. Então a preservação da vida é uma necessidade de todas as pessoas humanas. Mas, observando como são e como vivem os seres humanos, vamos percebendo a existência de outras necessidades que são também fundamentais, como a alimentação, a saúde, a moradia, a educação, e tantas outras coisas. 
Pessoas com Valor Igual, mas Indivíduos e Culturas Diferentes 
Não é difícil reconhecer que todas as pessoas humanas têm aquelas necessidades e por esse motivo, como todas as pessoas são iguais – uma não vale mais do que a outra, uma não vale menos do que a outra – reconhecemos também que todos devem Ter a possibilidade de satisfazer aquelas necessidades.
Um ponto deve ficar claro, desde logo: a afirmação da igualdade de todos os seres humanos não quer dizer igualdade física nem intelectual ou psicológica. Cada pessoa humana tem sua individualidade, sua personalidade, seu modo próprio de ver e de sentir as coisas. Assim, também, os grupos sociais têm sua cultura própria, que é resultado de condições naturais e sociais. Um grupo humano que sempre viveu perto do mar será diferente daquele que vive, tradicionalmente, na mata, na montanha ou numa região de planícies. Do mesmo modo, os costumes e as relações sociais da população de uma grande metrópole não serão os mesmos da população de uma cidadezinha pobre do interior, distante e isolada dos grandes centros. Da mesma forma, ainda, a cultura de uma população predominantemente católica será diferente da cultura de uma população muçulmana ou budista.
Em tal sentido as pessoas são diferentes, mas continuam todas iguais como seres humanos, tendo as mesmas necessidades e faculdades essenciais. Disso decorre a existência de direitos fundamentais, que são iguais para todos. 
Direitos Humanos: Faculdade de Pessoas Livres 
Todas as pessoas nascem essencialmente iguais e, portanto, com direitos iguais. Mas ao mesmo tempo que nascem iguais todas as pessoas nascem livres. Essa liberdade está dentro delas, em sua inteligência e consciência. É evidente que todos os seres humanos acabarão sofrendo as influências da educação que receberem e do meio social em que viverem, mas isso não elimina sua liberdade essencial. É por isso que muitas vezes uma pessoa mantém um modo de vida até certa idade e depois muda completamente. Essa pessoa estava vivendo sob certas influências mas continuava livre e num determinado momento decidiu usar sua liberdade para mudar de rumo.
Uma consciência disso é que não podemos uma pessoa a usar de todos os seus direitos, pois é preciso respeitar sua liberdade, que também é um direito fundamental da pessoa humana. Mas é indispensável que todos tenham, concretamente, a mesma possibilidade de gozar dos direitos fundamentais. Por esse motivo dizemos que gozar de um direito é uma faculdade da pessoa humana, não uma obrigação.
Assim, pois, é preciso Ter sempre em conta que todas as pessoas nascem com os mesmos direitos fundamentais. Não importa se a pessoa é homem ou mulher, não importa onde a pessoa nasceu nem a cor da sua pele, não importa se a pessoa é rica ou pobre, como também não são importantes o nome de família, a profissão, a preferência política ou a crença religiosa. Os direitos humanos fundamentais são ao mesmo tempo para todos os seres humanos. E esses direitos continuam existindo mesmo para aqueles que cometerem crimes ou praticam atos que prejudicam as pessoas ou a sociedade. Nesses casos, aquele que praticou o ato contrário ao bem da humanidade deve sofrer a punição prevista numa lei já existente, mas sem esquecer que o criminoso ou quem praticou um ato anti-social continua a ser uma pessoa humana. 
Direitos Humanos, Dignidade da Pessoa e Solidariedade 
Para os seres humanos não pode haver coisa mais valiosa do que a pessoa humana. Essa pessoa, por suas características naturais, pode ser dotada de inteligência, consciência e vontade, por ser mais do que uma simples porção de matéria, tem uma dignidade que a coloca acima de todas as coisas da natureza. Mesmo as teorias chamadas materialistas, que não querem aceitar a espiritualidade da pessoa humana, sempre foram forçadas a reconhecer que existe em todos os seres humanos uma parte não-material. Existe uma dignidade inerente à condição humana, e a preservação dessa dignidade faz parte dos direitos humanos.
O respeito pela dignidade da pessoa humana deve existir sempre, em todos os lugares e de maneira igual para todos. O crescimento econômico e o progresso material de um povo têm valor negativo se forem conseguidos à custa de ofensas à dignidade de seres humanos. O sucesso político ou militar de uma pessoa ou de um povo, bem como o prestígio social ou a conquista de riquezas, nada disso é válido ou merecedor de respeito se for conseguido mediante ofensas à dignidade e aos direitos fundamentais dos seres humanos.
No ano de 1948 a Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que diz em seu artigo primeiro que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direito”. Além disso, segundo a Declaração, todos devem agir, em relação uns aos outros, “com espírito de fraternidade”. A pessoa consciente do que é e do que os outros são, a pessoa que usa sua inteligência para perceber a realidade, sabe que não teria nascido e sobrevivido sem o amparo e a ajuda de muitos. E todos, mesmo os adultos saudáveis e muitos ricos, podem facilmente perceber que não podem dispensar a ajuda constante de muitas pessoas, para conseguirem satisfazer suas necessidades básicas. Existe, portanto, uma solidariedade natural, que decorre da fragilidade da pessoa humana e que deve ser completada com o sentimento da solidariedade.
Aí está o ponto de partida para a concepção básica dos direitos humanos neste final de milênio. Se houver respeito aos direitos humanos de todos e se houver solidariedade, mais do que egoísmo, no relacionamento entre as pessoas, as injustiças sociais serão eliminadas e a humanidade poderá viver em paz
FUNDAMENTO DOS DIREITOS HUMANOS
Fábio Konder Comparato**   
Na “era dos extremos” deste curto século XX, o tema dos direitos humanos afirmou-se em todo o mundo sob a marca de profundas contradições. De um lado, logrou-se cumprir a promessa, anunciada pelos revolucionários franceses de 1789, de universalização da idéia do ser humano como sujeito de direitos anteriores e superiores a toda organização estatal. De outro lado, porém, a humanidade sofreu, com o surgimento dos Estados totalitários, de inspiração leiga ou religiosa, o mais formidável empreendimento de supressão planejada e sistemática dos direitos do homem, de toda a evolução histórica. De um lado, o Estado do Bem-Estar Social do segundo pós-guerra pareceu concretizar, definitivamente, o ideal socialista de uma igualdadebásica de contradições de vida para todos os homens. De outro lado, no entanto, a vaga neoliberal deste fim de século demonstrou quão precário é o princípio da solidariedade social, base dos chamados direitos humanos da Segunda geração, diante do ressurgimento universal dos ideais individualistas.
Tudo isso está a indicar a importância de se retomar, no momento histórico atual, a reflexão sobre o fundamento ou razão de ser dos direitos humanos.  
1. A noção filosófica de fundamento e sua importância em matéria de direitos humanos.
Na linguagem filosófica clássica, não se falava em fundamento e sim em princípio. Em conhecida passagem de sua Metafísica, Aristóteles, exercitando o gênio analítico e classificatório que o celebrou, atribui a “arquê” várias acepções. Em primeiro lugar, o sentido de começo de uma linha ou de uma estrada, ou então, do ponto de partida de um movimento físico ou intelectual (o3 ponto de partida de uma ciência, por exemplo). É também considerado princípio, segundo Aristóteles, o elemento primeiro e imanente do futuro, ou de algo que evolui ou se desenvolve (as fundações de uma casa, o coração ou a cabeça dos animais). O filósofo lembra, igualmente, que se fala de princípio para designar a causa primitiva e não imanente da geração, ou de uma ação (os pais em relação aos filhos, o insulto em relação ao combate). Assinala, ainda, que a palavra pode ser usada para indicar a pessoa, cuja vontade racional é causa de movimento ou de transformação, como, por exemplo, os governantes no Estado, ou o regime político de modo geral. Ademais, considerou princípio, numa demonstração lógica, as premissas em relação à conclusão. Arrematando, unificou todas essas acepções da palavra afirmando que princípio é sempre “a fonte de onde derivam o ser, a geração, ou o conhecimento”; ou seja, a condição primeira da existência de algo.
Como se vê, a noção de arquê, no pensamento aristotélico, pouco tinha a ver com a ética. É a partir de K8ant que ela co3meça a ser empregada também nesse campo, sob a acepção de razão justificativa de nossas ações.
O desenvolvimento da noção de princípio para fundamento, no pensamento kantiano tem origem num raciocínio tipicamente jurídico, apresentado na Crítica e Razão Pura, em torno da noção de dedução transcendental (tranzendent Deduktion). Lembra Kant que os juristas, quando tratam de autorizações ou pretensões de agir, distinguem, em cada caso, entre a questão jurídica (quid iuris) e a questão de fato (quid facti), denominando a demonstração da quaestio iuris uma dedução. Assim, enquanto em questões de fato o profissional do direito procura provas, em matéria de direito ele cuida de encontrar e demonstrar as razões justificativas, que formam a legitimidade (Rechtsmässigkeit) da conclusão.
Em sua introdução geral3 à filosofia ética, significativamente denominada Fundamentos para uma Metafísica dos Costumes, a dedução transcendental no campo ético tinha claramente a acepção de razão justificativa, e visa a encontrar, em última instância, o “supremo princípio da moralidade” (das oberrste Prinzip der Moralität), o qual não é outro senão o que Kant denominou imperativo categórico, isto é, uma “lei prática incondicional” ou absoluta, que serve de fundamento último para todas as ações humanas.
Ora, enquanto a “dedução transcendental”, no campo da razão sensitiva pura, diz respeito à possibilidade de um conhecimento a priori de objetos, em matéria de razão prática ela visa a encontrar a justificativa (Rechtfertigung) da validade objetiva e geral de um fundamento determinante (Bestimmungsgrund) da vontade, ou, em outras palavras, uma razão justificativa para a lei moral, semelhante a causalidade do campo da natureza. Esse fundamento último da moralidade só pode ser a liberdade.
Ao concluir sua reconstrução da filosofia ética, com A Religião nos Limites da Simples Razão, a noção de princípio ético, no sentido de razão justificativa, foi inteiramente substituída pela de fundamento (Grund). Interrogando-se, assim, sobre a bondade ou a maldade da natureza humana, Kant afirma que a resposta a essa indagação só pode ser encontrada num “primeiro fundamento” da aceitação pelo homem do bem ou do mal, sob a forma de máximas (subjetivas) de comportamento. Esse primeiro fundamento, não podendo ser um fato apreciável pela experiência, deve ser tido como inato, no sentido de ser posto como algo que antecede a todo o uso da liberdade.
Temos, pois, que enquanto em Aristóteles princípio ou fundamento significa essencialmente a fonte ou origem de algo, na filosofia ética de Kant passa a significar razão justificativa.
Pois bem, se analisarmos, ainda que superficialmente, o direito positivo brasileiro, verificaremos que o termo fundamento é empregado sempre com o sentido nuclear de razão justificativa ou de fonte legitimadora.
A Constituição Federal de 1988, por exemplo, abre-se com a declaração de que “a República Federativa do Brasil, (...), tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político” (art. 1º). Indicam-se nessa norma, indubitavelmente, as fontes legitimadoras de nossa organização política, isto é, a razão de ser de toda a organização estatal. Essas razões justificativas da República brasileira são explicitadas, no art. 3º, sob a forma de “objetivos fundamentais”: “I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir 3as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Já no campo da teoria gera2l do direito, a noção de fundamento diz respeito à validade dos normas jurídicas e à fonte da irradiação dos efeitos delas decorrentes. Em outras palavras: - Por que a norma vale e deve ser cumprida?
É unanimemente aceita, hoje, a idéia de que o ordenamento jurídico interno fora um sistema hierarquizado de normas, tendo por fundamento a Constituição, a qual se funda, por sua vez, na chamado poder constituinte.
Mas, levando a indagação até o fim, qual o fundamento último do poder constituinte? Ainda estaremos, aí, no campo do direito?
Não parece haver dúvida de3 que o poder constituinte encontra seu fundamento último, ou num fato – isto é, a força dominadora de um indivíduo, de uma família, de um estamento, de um partido político, ou de uma classe social -, ou então num princípio ético, isto é, numa razão justificativa de conduta, que transcende a autoridade dos constituintes. Ora, como bem observaram os pensadores políticos, a organização social baseada exclusivamente na força não tem condições de subsistir, pois carece de uma justificativa ética, que tranquilize a consciência social. Na frase lapidar de Rousseau, “o forte não é nunca bastante forte para ser sempre o senhor, se não faz da sua força um direito e da obediência um dever”. Resta, portant3o, o princípio ético.
Até a Idade Moderna, a justificativa ética que servia de fundamento ao direito vigente apresentava-se sempre como transcendente: a divindade, segundo uns, ou a natureza, entendida como princípio fundamental de todos os seres, segundo outros.
Na filosofia grega clássica, a grande explicação teista do homem e do mundo se encontra na última fase do pensamento de Platão.
No diálogo As Leis (715 b – 716 b), por exemplo, figurou ele o momento decisivo da fundação da nova cidade pelo diálogo seguinte:
“O ESTRANGEIRO ATENIENSE: Depois disso, que diremos então? Não devemos supor nossos colonos reunindo-se em nossa presença? E não seria o caso de eles prosseguirem nesse propósito até o fim?
CLÍNIAS: Por que não, com efeito?
ATEN: ‘Cidadãos’ (eis o que deveríamos dizer-lhes), ‘a Divindade, que, segundo antiga tradição, tem em suas mãos o começo, o meio e o fim de tudo o que existe, realiza, pela via reta da natureza, a completa revolução. Ela é sempre seguida de perto pela Justiça,que vinga a lei divina ao castigar os que dela se separam: a Justiça, cujos passos segue humildemente, ajuizadamente, aquele que quer levar uma vida feliz, enquanto o outro, exaltado pelo orgulho, excitado pelas riquezas ou pelas honrarias, ou ainda pela beleza de suas formas ao mesmo tempo que pela inexperiência de sua juventude e pelo desatino, inflama sua alma com o fogo da desmedida (hubris), convencido de que não precisa de um chefe, de um guia, e que ele possui tudo o que é necessário para conduzir seus semelhantes; um homem desses é abandonado pela Divindade, ele fica só consigo mesmo. Mas, nesse abandono, ele convoca outros homens, ele avança insensatamente, semeia em todo lugar a desordem e a confusão, e, enquanto muitos imaginam e ele é alguém importante, ao cabo no entanto de um tempo não muito longo ele sofre, sob a força do braço vingador da Justiça, uma pena irrecorrivel: ele se arruina completamente e, juntamente com ele, sua própria casa e a Cidade a que pertence. Ora, diante de uma situação dessas, que deve, ou não, fazer ou pensar o homem sábio?
“CLIN.: Ao menos isto fica claro: é que todo homem deve se dizer em pensamento que lhe cerrará fileiras com aqueles que cortejam a Divindade!”.
Sem dúvida, o grande exemplo clássico de justificação ética da conduta humana, sem o recurso à divindade, encon3tra-se na filosofia estóica. A moral dos estóicos, que muito influenciou os juristas roman3os, tinha como princípio supremo, “viver segundo a natureza” (Zenão). Na Idade Médi2a, o colossal esforço tomista de conciliação da razão humana com a revelação divina, da sabedoria clássica com a iluminação cristã, deu à lei natural uma posição eminente. Ela seria “a participação da lei eterna pela criatura racional” (patet quod lex naturalis nihil aliud est quam participatio legis aeternae in rationali creatura).
A Idade Moderna, que irrompe no campo ético-religioso com a “crise da consciência européia” do séc. XVII, assistiu ao esfacelamento dos fundamentos divinos da ética, na cultura ocidental, de formação judaico-cristã. É certo que a atual ascensão das tendências fndamentalistas representa uma reação importante contra o laicismo moral. Mas, ao mesmo tempo, a criação de uma rede universal de informações, graças ao progresso das telecomunicações, ao oferecer o espetáculo de uma impressionante variedade de costumes, crenças e religiões, torna difícil a aceitação de uma única revelação divina como fundamento absoluto da ética.
Seja como for, já no séc. XVII, sem dúvida como reação ao escândalo das guerras de religião (católicos v. protestantes), iniciou-se na Europa Ocidental a pesquisa de um fundamento exclusivamente terreno para a validade do direito,. Essa pesquisa orientou-se em dois sentidos: de um lado, a ressurreição da moral naturalista estóica e a construção do chamado jusnaturalismo (as leis positivas, em todos os países, têm a sua validade fundada no direito natural, sempre igual a si mesmo); de outro lado, o antinaturalismo ou voluntarismo de Hobbes, Locke e Rousseau, segundo o qual a sociedade política funda-se na necessidade de proteção do homem contra os riscos de uma vida segundo o “estado da natureza”, onde prevalece a insegurança máxima.
Esse antinaturalismo é a matriz do positivismo jurídico, que se tornou concepção predominante a partir do séc. XIX. Segundo a teoria positivista, o fundamento do direito não é transcendental ao homem e à sociedade, mas se encontra no pressuposto lógico ) o “contrato social”, ou a norma fundamental) de que as leis são válidas e devem ser obedecidas, quando forem editadas segundo um processo regular (isto é, organizado por regras aceitas pela comunidade) e 3pela autoridade competente, legitimada de acordo com princípios também anteriormente estabelecidos e aceitos. É a explicação formal da validade do direito.
A grande falha teórica do positivismo, porém, como as experiências totalitárias do século XX cruamente demonstraram, é a sua incapacidade (ou formal recusa) em encontrar um fundamento ou razão justificativa para o direito, sem recair em mera tautologia. O fundamento ou princípio de algo existe sempre fora dele, com sua causa transcendente, não podendo pois nunca, sob aspecto lógico e ontológico, ser confundido com um de seus elementos componentes? Assim, o fundamento do poder constituinte, ou a legitimidade da criação de um novo Estado, sobretudo após uma revolução vitoriosa, não se encontram em si mesmos, mas numa causa que os transcende. Analogicamente, na ausência de uma razão justificativa exterior e superior ao sistema jurídico, um regime de terror, imposto por autoridades estatais investidas segundo as regras constitucionais vigentes, e que exercem seus poderes dentro da esfera formal de sua competência, não encontra outra razão justificativa ética senão a sua própria subsistência.
Ora, é justamente aí que se põe, de forma aguda, a questão do fundamento dos direitos humanos, pois a sua validade deve assentar-se em algo mais profundo e permanente que a ordenação estata3l, ainda que esta se baseie numa Constituição quanto mais louco ou acelerado o Estado.
Tudo isso significa, a rigor, que a afirmação de autênticos direitos humanos é incompatível com a concepção positivista do direito. O positivismo contenta-se com a validade formal das normas jurídicas, quando todo o problema situa-se numa esfera mais profunda, correspondente ao valor ético do direito.
Em conferência pronunciada em 1967, por ocasião de um congresso sobre o fundamento dos direitos humanos, Norberto Bobbio sustenta que toda pesquisa sobre um fundamento absoluto dos direitos humanos é, enquanto tal, infundada. Para corroborar essa opinião, apresenta três argumentos principais: em primeiro lugar, a expressão “direitos humanos” é muito vaga e mesmo indefinível; em segundo lugar, trata-se de uma categoria variável conforme as épocas históricas, ademais, além de indefinível e variável, os direitos humanos formam uma categoria heterogênea.
A argumentação é, em seu conjunto, muito fraca e não honra a celebrada argúcia lógica do seu autor.
Sem dúvida, a ciência jurídica ainda não logrou encontrar uma definição rigorosa do conceito de direito humano. Mas porventura já se chegou a apresentar uma definição precisa e indisputável do que seja direito? Para Bobbio, não se pode fundar os direitos humanos nos valores supremos da convivência humana, porque tais valores não se justificam, assumem-se. Ora, a razão justificativa última dos valores supremos encontram-se no ser que constitui, em si mesmo, o fundamento de todos os valores: próprio homem.
Dizer que não se pode dar fundamento absoluto a direitos historicamente relativos é laborar em sofisma. O próprio autor reconhece que há direitos que valem “em qualquer situação e para todos os homens indistintamente: são os direitos que se exige não sejam limitados nem na ocorrência de casos excepcionais nem com relação a esta ou aquela categoria, ainda que restrita, de pertencentes ao gênero humano, como, por exemplo, o direito de não ser escravizado e de não ser torturado”. Estes são, portanto, direitos absolutos. E de qualquer maneira, se a identificação dos diferentes direitos humanos varia na História, a sua reflexibilidade em c3onjunto ao homem todo e a todos os homens tem sido incontestavelmente invariável. Na verdade, todos os direitos, e não apenas os fundamentais, são historicamente relativos porque a sua fonte primária – a pessoa humana – é um ser essencialmente histórico, como se dirá mais abaixo.
Por último, nenhuma surpresa pode suscitar o fato de que a categoria geral dos direitos humanos compreende direitos específicos de diversa natureza. Porventura a categoria geral dos direitos subjetivos não é reconhecidamente heterogênea? Por causa disso, haveremos de negar a existência de direitos subjetivos, ou rejeitar como logicamente imprestável esse conceito?  
2. A dignidade do homem como fundamento dos direitos humanos. 
Uma das tendências marcantes do pensamento moderno é a convicção generalizada de que o verdadeirofundamento de validade – do direito em geral e dos direitos humanos em particular – já não se deve ser procurado na esfera sobrenatural da revelação religiosa, nem tampouco numa abstração metafísica – a natureza – como essência imutável de todos os entes no mundo. Se o direito é uma criação humana, o seu valor deriva, juntamente, daquele que o criou. O que significa que esse fundamento não é outro, senão o próprio homem, considerado em sua dignidade substancial de pessoa, diante da qual as especificações individuais e grupais são sempre secundárias.
Os grandes textos normativos, posteriores à 2ª Guerra Mundial, consagram essa idéia. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1948, abre-se com a afirmação de que “todos os seres humanos nascem livres e iguais, em dignidad3e e direitos” (art. 1º). A Constituição da República Italiana, de 27 de dezembro de 1947, declara que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social” (art. 3º). A Constituição da República Federal Alemã, de 1949, proclama solenemente em seu art. 1º: “A dignida3de do homem é inviolável. Respeitá-la e protegê-la é dever de todos os Poderes do Estado”. Analogamente, a Constituição Portuguesa de 1976 abre-se com a proclamação de que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”. Para a Constituição Espanhola de 1978, “a dignidade da pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito à lei e aos direitos alheios são o fundamento da ordem política e da paz social” (art. 10). A nossa Constituição de 1988 por sua vez, põe como um dos fundamentos da República “a dignidade da pessoa humana” (art. 1º - III). Na verdade, este deveria ser apresentado como o fundamento do Estado brasileiro e não apenas como um dos seus fundamentos.
Dignus, na língua latina, é adjetivo ligado ao verbo defectivo decet (é conveniente, é apropriado) e ao substantivo decor (decência, decoro). No sentido qualificativo do que é conveniente ou apropriado, foi usado tanto para louvar quanto para depreciar: dignus laude, dignus suplicio. O substantivo dignitas, ao contrário, tinha sempre conotação positiva: significava mérito e indicava também cargo honorífico no Estado.
Mas em que consiste, ao certo, a dignidade humana?
Para responder a essa pergunta é preciso tomar posição sobre a essência do ser humano. A teoria fundamental dos direitos do homem funda-se, necessariamente, numa antropologia filosófica, ela própria desenvolvida a partir da crítica aos conhecimentos científicos acumulados em torno de três pólos epistemológicos fundamentais: o pólo das formas simbólicas, no campo das ciências da cultura; o do sujeito, no campo das ciências do indivíduo e da ética; e o da natureza, no campo das ciências biológicas.
A respeito da dignidade humana, o pensamento ocidental é herdeiro de duas tradições parcialmente antagônicas: a judaica e a grega.
A grande (e única) invenção do povo da Bíblia, uma das maiores, aliás, de toda a história humana, foi a idéia da criação do mundo por Deus único e transcendente. Os deuses antigos, de certa forma, faziam parte do mundo, como super-homens. Iahweh, muito ao contrário, como criador de tudo o que existe, é anterior e superior ao mundo. Diane dele, os dias do homem, como disse o salmista, “são como a relva: ele floresce como a flor do campo; roça-lhe um vento e já desaparece, e ninguém mais reconhece o seu lugar” (Salmo 103). Em resposta aos queixumes de Jó, que procurava julgar os atos divinos segundo os critérios da justiça humana, Iahweh interpela, implacável e soberbo: “Onde estavas, quando lancei os fundamentos da terra? Quem lhe fixou as dimensões? – se o sabes -, ou quem estendeu sobre ela a régua? Onde se encaixam suas bases, ou quem assentou sua pedra angular, entre as3 aclamações dos astros da manhã e o aplauso de todos os filhos de Deus? (...) Entraste pelas fontes do mar, ou passeaste pelo fundo do abismo? Foram-te indicadas as portas da Morte, ou viste os porteiros da terra da Sobra? Examinaste a extensão da terra? Conta-me, se sabes tudo isso” (38, 4-18).
A idéia de uma certa participação do homem na essência divina – e que relativisa porisso mesmo a transcendência de De3us – tal como se pode ver o relato da criação do mundo que se encontra no chamado Documento Sacerdotal do Gênese (1, 26: “Deus disse: _ Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança”) – parece o resultado da influência dos mitos mesopotâmicos, durante os anos de exílio do povo eleito em Babilônia.
Na tradição grega, diferentemente, o homem tem uma dignidade própria e independente, acima de todas as criaturas. Sófocles expressou com emoção essa idéia, na declamação do Coro, em Antígona (332 e segs.):
“Há muitas maravilhas no mundo, mas a maior é o homem.
Ele é o ser que, sabendo atravessar o mar cinzento na hora em que sopram o vento do sul e suas tempestades, segue seu caminho por sobre os abismos
que lhe abrem as ondas levantadas. Ele é o ser que trabalha a deusa augusta entre todas,a Terra.
A terra eterna e incansável, com suas charruas que a sulcam ano a ano sem cessar; e a lavra pelas crias de suas éguas.
Os pássaros aturdidos são apreendidos e capturados, assim como a caça dos campos e os peixes que povoam os mares, nas malhas de suasredes,pelo homem de espírito engenhoso. Graças às suas habilidades, assenhoreia-sedo animal selvagem que percorre as serranias, e no momento azado subjuga tanto o cavalo de crina espessa quanto o infatigável touro das montanhas.
Palavra, pensamento rápido como o vento, aspirações donde nascem as cidades, tudo isto ele aprendeu sozinho, assim como soube, ao construir um abrigo,evitar os ataques do gelo e da chuva, cruéis para quem não possui outro teto senão o céu.
Prevenido contra tudo, não se acha desarmado contra nada que lhe possa reservar o futuro. Contra a morte, apenas, não poderá escapar por nenhum sortilégio, ainda que já tenha sabido, contra as doenças mais renitentes, encontrar vários remédios.
Mas, ao se tornar assim senhor de um saber cujos engenhosos recursos ultrapassam toda esperança, ele pode em seguida tomar o caminho do mal como o do bem.
Que ele inclua pois, nesse saber, as leis do seu Estado e a justiça dos deuses, à qual jurou fidelidade!
Ascenderá então às mais elevadas posições em seu Estado, ao passo que dele pode ser banido no dia em que deixar o crime contaminá-lo por bravata”.
Sófocles realçou, no entanto, aí apenas a poiesis, isto é, a aptidão a fazer ou fabricar, do ser humano, segundo o valor da utilidade. Deixou de lado outras propriedades únicas do homem, como por exemplo a sua inesgotável capacidade de criação artística, sob a inspiração do belo. De qualquer modo, o elogio do homem já é feito aí diretamente, dispensando-se a intermediação do mito do Dom prometeano, como se vê em seu antecessor Ésquilo. A reivindicação de autonomia em relação à divindade já não precisa de intermediários no Olimpo.
É interessante, no entanto, observar que em Ésquilo o elogio indireto à humanidade, na pessoa do titã Prometeu, e mais completo que em Sófocles:
“Ouça agora as misérias dos mortais e perceba como, de crianças que eram, eu os fiz seres de razão, dotados de pensamento. Quero dizê-lo aqui, não para denegrir os homens, mas para lhe mostrar minha bondade para com eles. No início eles enxergavam sem ver, ouviam sem compreender, e, semelhantes às formas oníricas, viviam sua longa existência na desordem e na confusão. Eles desconheciam as casas de tijolo ensolaradas, ignoravam os trabalhos de carpintaria; viviam debaixo da terra, como ágeis formigas, no fundo de grotas sem sol. Para eles, não havia sinais seguros nem de inverno nem de primavera florida nem de verão fértil; faziam tudo sem recorrer à razão, é o momento em que eu lhes ensinei a árdua ciênc3ia do nascente e do poente dos astros. Depois, foi a vez da ciência dos números, a primeira de todas,que inventei para eles, assim como a das letras combinadas, memória de todas as coisas, labor que engendra as artes. Fui assim o primeiro a subjugar os animais, submetendo-os aos arreios ou a uma cavaleiro, de modo a substituir os homens nos grandes trabalhos agrícolas, e conduzi às carruagens os cavalos dóceis às rédeas, com que se ornamenta o fasto opulento. Fui o único a inventar os veículos com asas de tecido, os quais permitem aos marinheiros correr os mares”.
Ao se formular a indagação central de toda a filosofia – que é o homem? – já se está postulando a singularidade eminente deste ser, capaz de tomar a si mesmo como objeto da própria reflexão. A característica da racionalidade, que a tradição ocidental sempre considerou como atributo essencial do homem, deve ser entendida sobretudo nesse sentido reflexivo, a partir do qual, de resto, Descartes deu início a toda a filosofia moderna.
É claro que a racionalidade propriamente humana reside na capacidade de inventar e não pode ser reduzida ao simples comportamento intuitivo e mimético dos animais. Os pássaros constróem seus ninhos, desde a primeira fase de sua evolução como espécie, com uma técnica basicamente sempre igual a si mesma. Na espécie humana, ao contrário, não há técnicas imutáveis nem tampouco limitadas em numerus clausus: a evolução é constantemente dirigida pela aptidão inventiva do ser humano, que põe livremente os fins e inventa os meios mais puros a abraça-los. o chimpanzé serve-se habitualmente de seixos como instrumento ou ferramenta; mas nunca viu esse primata fabricar um instrumento por ele especialmente inventado, a fim de conseguir certo resultado, na vida pacífica ou em combate com outros animais.
Mas, sobretudo, a capacidade inventiva do homem acabou por levá-lo a intervir em seu próprio processo genérico, transformando-o em deux ex machina de si mesmo. A descoberta do chamado código genético, nos anos 50 do século XX, foi o ponto de partida para a mais radical revolução técnica de todos os tempos: a era da bio-engenharia. Com isto, Prometeu realizou o seu último 9e mais audacioso desafio ao Olimpo: entregou ao homem o domínio sobre o processo criador da própria vida.
Importa, aliás, ressaltar que a razão humana está essencialmente ligada à sua capacidade expressional. O logos do homem é sempre uma expressão de racionalidade. Como o é, também, de emotividade ou sensibilidade.
É que a razão humana não se limita, apenas, à racionalidade lógica ou geométrica, por mais extraordinário que ela apareça quando comparamos o homem com os primatas. Foi dito, mais acima, que o ser humano tem a faculdade de escolher livremente os seus próprios fins, ou os objetivos a alcançar pela sua atividade. Ora, isso só se realiza em virtude de outra característica essencial do homem, que é a razão axiológica, ou capacidade de apreciação de valores – éticos, utilitários, estéticos, religiosos – e de livre escolha entre eles.
Foi justamente a partir do realce posto no mundo dos valores, que a idéia atual de racionalidade humana passou a se distinguir nitidamente do racionalismo triunfante do século das luzes. Os valores, com efeito, não são objeto de uma percepção lógica, mas emotiva. Por isso mesmo, já não é possível fundar a ética em princípios puramente formais, mas em preferências axiológicas muito concretas, ditadas também pela emoção e pelo sentimento. O homem não é apenas um ser que pensa e raciocina, mas que chora e ri, que é capaz de amor e ódio, de indignação e enternecimento. Aliando, como advertiu Pascal, o esprit de géometrie ao esprit de finesse, ele é tanto um animal affectivus, quanto um animal rationale. O que mais nos diferencia dos outros animais, como chegou a sugerir provocativamente Unamuno, é o sentimento e não a racionalidade. Ou então, como disse Chesterton em paradoxo famoso, “louco não é o homem que perdeu a razão; louco é o homem que perdeu tudo, menos a razão”.
Para os racionalistas, não há negar, a animalidade do homem sempre foi uma fonte de escândalo; de onde a sua preocupação em separar, cuidadosamente, o universo ético de todo contato impuro com o mundo material. Descartes levantou seu edifício filosófico sobre a separação radical entre a res cogitans e a res extensa. A inteligência, como enfatizou Kant na conclusão da Crítica da Razão Prática, é o valor próprio do homem, um ser em que a lei moral manifesta uma vida independente da animalidade e mesmo de todo mundo físico. Segundo ele, a ética deve proceder como a química, separando, no julgamento moral, os elementos racionais dosa elementos empíricos aos quais porventura estejam ligados, a fim de torná-los essencialmente puros.
A concepção dualista do homem, como ser composto de alma em estado de perpétua tensão, resulta da confluência, no pensamento ocidental, da filosofia grega clássica e do judaismo.
Na Grécia clássica, a dissociação do ser humano no antagonismo entre alma e corpo atingiu o seu ápice, como sabido, em Platão, e a partir dele confluiu com a vertente religiosa do cristianismo nascente, através dos primeiros Doutores da Igreja, notadamente Santo Agostinho. A crítica contemporânea, porém, parece temperar a compreensão tradicionalmente radical do platonismo, neste particular.
Já quanto ao dualismo da concepção do homem, no pensamento judaico, ele manifesta-se tardiamente, sem dúvida por influência do zoroastrismo. No cristianismo primitivo, a concepção dualista do homem foi muito evidente entre gnósticos e maniqueus. No maniqueismo, sobretudo, a oposição metafísica entre o bem e o mal traduziu-se na idéia de perpétua tensão conflitiva entre corpo e alma, matéria e espírito; sendo o corpo, evidentemente, a fonte de todo o mal. O apóstolo Paulo, na Epístola aos Romanos (7, 14-25), acentuou o dualismo agônico entre carne e espírito, como figuração simbólica da oposição entre a lei mosaica e a graça divina difundida através de Jesus Cristo. Da mesma forma, no Evangelho de João, sublinha-se a separação entre o mundo da carne, considerado o reino do Maligno, e a vida do Espírito, para a qual o discípulo deve renascer (3, 5-6; 15, 18-27).
Esse inveterado repúdio à nossa condição animal, porém, acabou indo longe demais e suscitou a inevitável reação dos modernos, a culminar com o furor da crítica nietzscheana. Quão estranha é, realmente esse animal, capaz de inverter a “má consciência” e de introduzir no mundo a maior e mais inquietante de todas as moléstias: a doença em relação a si mesmo!
A diatribe de Nietzsche prenunciou uma mudança sensível na antropologia filosófica contemporânea, com o amplo reconhecimento de que a condição corporal é parte integrante da subjetividade humana. Os últimos avanços da ciência, de resto, têm demonstrado a inconsistência de uma separação absoluta entre corpo e mente. Para a neurobiologia de nossos dias, o conjunto do organismo humano, e não apenas o cérebro, é a sede conjunta, assim do pensamento e da memória, como dos sentimentos e das emoções.
Ademais, é justamente em razão de nossa condição corporal que a morte está sempre presente, como condição iminente da existência, em contínua e suprema interrogação sobre o sentido da vida.
Na Bíblia, a morte se apresenta como a separação radical entre o homem e Deus, que é a fonte de toda vida (Salmo 36, 10). A vida é considerada como um efeito do espírito de Deus, e a morte sobrevém quando Deus retira seu espírito do homem (Jó 34, 14; Eclesiastes 12, 7). De onde o fato de que todo contato com o cadáver provoca a impureza litúrgica (Levítico 21, I e ss).
No mundo contemporâneo, não é por acaso que a reflexão sobre a morte situa-se no cerne da filosofia existencialista. Como observou Wilthey, seu grande precursor, “a relação que caracteriza de modo mais profundo e geral o sentido de nosso ser é a da vida com a morte, porque a limitação da nossa existência através da morte é decisiva para a compreensão e a avaliação da vida”.
Aprofundando esse pensamento, Heidegger sublinhou o caráter existencialmente único da morte, para o homem. “Na medida em que a morte é,ela é essencialmente a minha morte”. “Ninguém pode assumir a morte de outrem”. Podemos morrer por causa, ou em lugar de uma pessoa; mas é impossível viver, por assim dizer, a morte de outrem”. D acordo com a sua idéia de que a essência do ser humano é um autêntico “poder-ser”, ou seja, a partir de sua concepção do homem como ente em estado de permanente inacabamento (ständige Unabgeschlosenheit), Heidegger enxerga na morte, justamente, um duplo acabamento, temporal e ontológico. O homem deixa de ser, quando cessa de existir temporalmente e, portanto, já não é mais um ente em estado de poder-ser. “A morte não é uma presença ainda não realizada, não é uma ultimidade reduzida ao mínimo (nicht der auf ein Minimum reduzierte letzte Ausstand), mas, antes, uma iminência (em Bevorstand). O homem é, pois, essencialmente um “ser para a morte” (Sein zum Tode).
Somos o único ser que sabe que vai morrer e que, almejando incansavelmente a imortalidade, não cessa de se dar explicações sobre esse seu destino inexorável. O horizonte da morte alimenta, sem descontinuar, o impulso religioso – outra característica essencial do ser humano! – como esperança de superação do absurdo existencial. Ésquilo registrou-o, em diálogo célebre:
“O CORIFEU – Foste, sem dúvida, ainda mais longe?
PROMETEU – Sim, livrei os homens da obsessão da morte.
O CORIFEU – Que Remédio descobriste para esse mal?
PROMETEU – Instalei neles cegas esperanças”.
Seja como for, a animalidade da natureza humana não nos pode fazer esquecer o fato, não menos evidente, de que o homem é um ser essencialmente moral, ou seja, que todo o seu comportamento consciente e racional é sempre sujeito a um juízo sobre o bem e o mal. E este é mais um elemento componente da dignidade humana, tomando-se agora a palavra no seu sentido ambíguo, tanto de louvor quanto de reprovação, por ela apresentado na língua latina, como assinalado acima. Nenhum outro ser, no mundo, pode ser apreciado em termos de dever ser, de bondade ou de maldade. Há mesmo, na história da antropologia filosófica, correntes de opinião que sustentam ora o caráter radicalmente mau, ora a índole essencialmente boa do ser humano. Assim é que, aos elogios antes citados do homem, nos grandes poetas trágicos gregos, podemos opor a visão pessimista de uma certa parte do cristianismo moderno. Para Kant, por exemplo, se o homem tem uma predisposição originária para o bem, ela se vê totalmente anulada pela sua natural inclinação para o mal. O filósofo não tem dúvida em sustentar que a natureza humana é radicalmente má. Somente mediante um constante esforço de auto-reforma, completado por uma merecida intervenção divina, pode o homem esperar restabelecer a sua originária predisposição ao bem.
De qualquer modo, para definir a especificidade ontológica do ser humano, sobre a qual fundar a sua dignidade no mundo, a antropologia filosófica hodierna vai aos poucos estabelecendo um largo consenso sobre algumas características próprias do homem, a saber, a liberdade como fonte da vida ética, a autoconsciência, a sociabilidade, a historicidade e a unicidade existencial do ser humano.  
a - liberdade 
O homem é o único ser dotado de vontade, isto é, da capacidade de agir livremente, sem ser conduzido pela inelutabilidade dos instintos.
“Conheço bem o homem, diz Deus,
Fui eu quem o fez. É um ser curioso.
Porque nele atua a liberdade, que é o mistério dos mistérios”.
É sobre o fundamento último da liberdade que se assenta todo o universo axiológico, isto é, o mundo das preferências valorativas, bem como toda a ética do modo geral, ou seja, o mundo das normas, as quais, contrariamente ao que sucede com as eis naturais, apresentam-se sempre como preceitos suscetíveis de consciente violação. É a liberdade que faz do homem um ser dotado de autonomia, vale dizer, de capacidade para ditar suas próprias normas de conduta.
A liberdade é a fonte da consciência moral, da faculdade de julgar as ações humanas segundo a polaridade entre bem e mal. Vem a propósito assinalar que no mito bíblico do paraíso terrestre (Gênesis 3, 5) a verdadeira vida humana – na alegria e na dor, no amor e no ódio – só principiou no momento em que o primeiro casal provou do fruto proibido da árvore da ciência do bem e do mal. A partir de então, como disse o tentador, os homens passaram a ser “como deuses”, isto é, a viver em plano superior ao de todas as demais criaturas.
Sem dúvida, a liberdade de juízo ético opõe-se à idéia de que o comportamento humano seja determinado, necessariamente, por fatores genéticos ou hereditários. Ningué9m nasce criminoso ou santo. Mas a liberdade tampouco significa que a vontade opera com total independência, em relação a tendência ou disposições caracteriais. Não é sem importância lembrar, a esse respeito, que ethos significa justamente caráter ou temperamento, e que os antigos sempre distinguiram as pessoas segundo a sua disposição caracterial.
A verdade é que a natureza humana é sempre ambivalente, sob o aspecto ético. Sem precisar aceitar o velho maniqueismo da oposição moral entre alma e corpo, acima referido, não podemos deixar de reconhecer que nossa consciência ética é sempre trabal9hada por tendências antagônicas. Essa ambivalência ética essencial tem sido reconhecida pelos espíritos mais argutos, em todas as épocas. “O lugar do homem”, observou Plotino, “é entre os deuses e as feras; ele tende a se aproximar, ora daqueles, ora destas; alguns homens assemelham-se a deuses, outros a feras, mas a maioria mantêm-se no centro”. O tema, retomado por Montaigne em pleno Renascimento, foi tragicamente ilustrado nos romances de Dostoiewski e constitui, de certo modo, a base da teoria psicanalítica de Freud, no princípio do século XX.  
b – autoconsciência
Contrariamente aos outros animais, o homem não tem apenas memória de fatos exteriores, incorporada ao mecanismo de seus instintos, mas possui a consciência de sua própria subjetivida8de, no tempo e no espaço; sobretudo, consciência de ser vivente e mortal. A evolução vital e a acumulação da memória histórica não apagam nunca, em cada um de nós, a permanência consciente na identidade do ser. O homem é, portanto, essencialmente, um animal reflexivo, capaz de se enxergar como sujeito do mundo – o “eu e sua circunstância”, segundo a fórmula célebre de Ortega y Gasset.
A autoconsciência opõe-se ao estado de alienação, que é a negativa da especificidade humana, como enfatizou Feuerbach. Alienado diz-se do homem que é incapaz de exercer sua liberdade e que vive, portanto, em situação de permanente heteronomia. Marx aplicou tal conceito, como sabido, à sociedade de classes e à classe operária em particular. Entendeu que, a partir do momento em que a classe operária lograsse adquirir autoconsciência e superar dialeticamente seu estado de objetiva alienação, toda a sociedade seria enfim humanizada.  
c - sociabilidade 
O caráter essencialmente sociável do ser humano foi enfatizado por Aristóteles em sua Política, mas a argumentação do grande estagirita nos parece, hoje, demasiadamente formalista. Partindo da premissa lógico-metafísica de que o todo precede sempre as partes que compõem, afirma ele que a pólis é, por natureza, anterior ao indivíduo. “Pois se cada indivíduo, uma vez isolado, não é autosuficiente, ele há de se relacionar com a pólis como um todo, assim como as partes devem sê-lo em relação ao todo; enquanto o homem incapaz de viver em sociedade, ou aquele que é tão auto-suficiente a ponto de não ter necessidade disto, não é parte da pólis, e deve portanto ser uma besta ou um deus”.
O pensamento moderno rejeita, porém, essa concepção mecanicista do homem, como parte do todo social, pois ela conduz, necessariamente, à conclusão da supremacia ética da sociedade em relação ao indivíduo, razão justificativa dos mais bestiais totalitarismos. O que se deve reconhecer é que o indivíduo humano somente desenvolve as suas virtualidades de pessoa, isto é, de homem capaz de cultura e auto-aperfeiçoamento, quando vive em sociedade. É preciso não esquecer que asqualidades eminentes e próprias do ser humano – a razão, a capacidade de criação estética, o amor – são essencialmente comunicativas.  
d – historicidade
A substância da natureza humana é histórica, isto é, vive em perpétua transformação, pela memória do passado e o projeto do futuro.
Tal significa dizer que o ser próprio do homem é um incessante devir. Mas um devir que se desenvolve e transforma deixando sempre rastros de sua trajetória, numa incessante acumulação de invenções culturais de todo gênero. A especificidade da condição humana, não se esgota na mera transformação do mundo circunstancial, com a acumulação da “cultura objetiva”, mas compreende também uma alteração essencial do próprio sujeito histórico. O homem aparece, portanto, como um ente cujo ser não se completa nem se consuma jamais (o permanente inacabamento de que falou Heidegger), mas que vai, ao longo da história, modificando-se pela experiência acumulada e o projeto de novos ensaios de vida. Daí poder-se dizer que o homem contemporâneo é em sua essência – e não apenas em sua condição ou circunstância existencial – diverso do homem da Idade Média, do Renascimento ou do Século das Luzes.  
e – unidade existencial
Finalmente, outra característica essencial da condição humana é o fato de que cada um de nós se apresenta como um ente único e rigorosamente insubstituível do mundo.
A idéia dessa unicidade da pessoa humana, cuja concepção original parece ser do cristianismo – com a substituição do pacto entre Iahweh e o povo eleito, pela oferta da salvação divina, individualmente, a cada criatura – sempre fora, de resto, intuída pela sensibilidade poética. O belo verso de Lamartine exprime o sentimento que acode a todos os amantes, desde que o mundo é mundo, quando separados no tempo ou no espaço: “un seul être vous manque et tout est dépeuplé”. A ciência biológica contemporânea acabou confirmando o fundamento natural dessa grande verdade. A combinação de genes que cada um de nós recebe de nossos pais, em razão dos rearranjos complexos e aleatórios de cromossomas durante a meios e, é única, invariável e irreprodutível.  
Esse conjunto de características diferenciais do ser humano demonstra, como assinalou Kant, que todo homem tem dignidade, e não um preço, como as coisas. O homem como espécie, e cada homem em sua individualidade, é propriamente insubstituível, não tem equivalente, não pode ser trocado por coisa alguma. Mais ainda: o homem e não só o único ser capaz de orientar suas ações em função de finalidades racionalmente percebidas e livremente desejadas, como é, sobretudo, o único ser cuja existência, em si mesma, constitui um valor absoluto, isto é, um fim em si e nunca um meio para a consecução de outros fins. É nisto que reside, em última análise, a dignidade humana.
Vista ainda sob outro ângulo, a dignidade do homem consiste em sua autonomia, isto é, na aptidão para formular as próprias regras de vida. Todos os demais seres, no mundo, são heterônimos, porque destituídos de liberdade. É por isto que o homem não encontra no mundo nenhum ser que lhe seja equivalente, isto é, nenhum ser de valor igual. Todos os demais seres valem como meios para a plena realização humana. Ou, reformulando a expressão famosa de Protágoras, o homem é a medida de valor de todas as coisas.
A frase completa de Protágoras, que se encontra em seu tratado A Verdade, é: “o homem é medida de todas as coisas: para as que são, medida de seu ser; para as que não são, medidas de seu não-ser”. A idéia do grande sofista é a de um relativismo individual absoluto, tanto no campo do saber, quanto no do agir. Desapareceria, com isto, toda possibilidade lógica de Platão, fundado no mundo das idéias ou arquétipos, ou com o realismo aristotélico. Daí por que Platão dedicou todo um diálogo (Teeteta) para refutar essa perigosíssima idéia de tábua rasa, segundo a expressão de uma grande helenista contemporânea. Ainda em sua velhice, ao escrever As Leis, não deixou de voltar ao assunto: “É Deus que seria para nós, no mais alto grau, a medida de todas as coisas. Ele, antes que, segundo entendo, este ou aquele homem, como pretendem alguns” (IV, 716 c).
A dignidade transcendente é um atributo essencial do homem enquanto pessoa, isto é, do homem em sua essência, independentemente das qualificações específicas de sexo, raça, religião, nacionalidade, posição social, ou qualquer outra. Daí decorre a lei universal de comportamento humano, em todos os tempos, que Kant denomina imperativo categórico: “age de modo a tratar a humanidade não só em tua pessoa, mas na de todos os outros homens, como um fim e jamais como um meio”.  
3. O conceito de direito humano ou direito do homem. 
Como se acaba de ver, a dignidade de cada homem consiste em ser, essencialmente, uma pessoa, isto é, um ser cujo valor ético é superior a todos os demais no mundo.
O pleonasmo da expressão direitos humanos, ou direitos do homem, é assim justificado, porque se trata de exigências de comportamento fundadas essencialmente na participação de todos os indivíduos do gênero humano, sem atenção às diferenças concretas de ordem individual ou social, inerentes a cada homem. A Declaração Universal de 1948, das Nações Unidas, sublinha esse caráter de igualdade fundamental dos direitos humanos, ao dispor, em seu artigo 2º, que “cada qual pode se prevalecer de todos os direitos e todas as liberdades proclamadas na presente Declaração, sem distinção de espécie alguma, notadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião pública ou de qualquer outra opinião, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação”.
Percebe-se, pois, que o fato sobre o qual se funda a titularidade dos direitos humanos é, pura e simplesmente, a existência do homem, sem necessidade alguma de qualquer outra precisão ou concretização. É que os direitos humanos são direitos próprios de todos os homens, enquanto homens, à diferença dos demais direitos, que só existem e são reconhecidos, em função de particularidades individuais ou sociais do sujeito. Trata-se, em suma, pela sua própria natureza, de direitos universais e não localizados, ou diferenciais.
Assim como o Estado moderno, qualquer e um produto histórico, não criou o Direito e geral e muito menos os direitos humanos em particular, da mesma forma a eventual supressão dos Estado-nação contemporâneo não impedirá o reconhecimento universal da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais dela decorrentes, que representam o sentido axial de toda a História.
Três Teses equivocadas 
sobre os Direitos Humanos
Oscar Vilhena Vieira   
Direitos humanos, direito de bandido?   
Direitos humanos dificultam o trabalho das polícias
Direitos humanos ameaçam nossa soberania
Conclusão 
Direitos humanos, direito de bandido?   
É muito comum encontrar pessoas que associam os direitos humanos com a defesa do crime ou ao menos dos criminosos. Esta associação não é fundada num simples equívoco, pois como os criminosos também são humanos, eles têm direitos. Se houve algo de revolucionário trazido pela Declaração Uni​versal de 1948, foi a idéia de universalidade dos direitos. Por universalidade entenda-se a proposição de que todas as pessoas. independentemente de sua condição racial. econômica, social, ou mesmo criminal, são sujeitos aos direitos humanos. Neste sentido bandidos também têm direitos humanos. 
A afirmação. no entanto, é falaciosa, quando busca forjar a idéia de que o movimento de direitos humanos apenas se preo​cupa com o direito dos presos e suspeitos, desprezando os direi​tos dos demais membros da comunidade. 
Esta falácia começou a ser difundida no Brasil, no inicio dos anos oitenta, por intermédio de programas de rádio e tablóides policiais. Como os novos responsáveis pelo combate à crimina​lidade no início da transição para a democracia haviam sido fortes críticos da violência e do arbítrio perpetrado pelo Estado. houve uma forte campanha articulada pelos que haviam patro​cinado a tortura e os desaparecimentos.para deslegitimar os novos governantes que buscavam reformar as instituições e pôr fim á práticas violentas e arbitrárias por parte dos órgãos de segurança. Era fundamental para os conservadores demonstrar que as novas lideranças democráticas não tinham nenhuma condição de conter a criminalidade e que somente eles eram capazes de impor ordem á sociedade. Mais cio que isso, os con​servadores jamais toleraram a idéia de que os direitos deveriam ser estendidos ás classes populares de que, qualquer pessoa, independentemente de sua etnia, gênero, condição social ou mesmo condição de suspeito ou condenado, deveria ser respei​tada como sujeitos de direitos. 
Outro objetivo desse discurso contrário aos direitos huma​nos, não apenas no Brasil, foi, e ainda é, buscar criar um conflito dentro das camadas menos privilegiadas da população, eximindo as elites de qualquer responsabilidade em relação à criminalidade. Ao vilanizar os que comentem um crime, como se tosse um ato estritamente voluntário, dissociado de fatores sociais, como desigualdade. fragilidade das agências de aplicação da lei, desemprego ou falta de estrutura urbana, jogam a população vítima da violência apenas contra o criminoso, ficando as dites isentas de responsabilidades, pela exclusão social ou pela omissão do Estado, que impulsiona a criminalidade. Nesse contexto, associar a luta pelos direitos humanos à defesa de bandidos foi uma forma de buscar manter os padrões de violência perpetrados pelo Estado contra os negros e os pobres, criminosos ou não.. 
E evidente que, ao se contrapor a toda a forma de exclusão e (opressão, o movimento de direitos humanos não poderia deixar de incluir na sua agenda a defesa da dignidade daqueles que se encontram envolvidos com o sistema de justiça criminal. Isto não significa. porém, que o movimento de direitos humanos tenha se colocado, a qualquer momento, a favor do crime; aliás a luta contra a impunidade tem sido uma das principais bandei​ras dos militantes de direitos humanos. No entanto, esta luta deve estar pautada em critérios éticos e jurídicos, estabelecidos pelos instrumentos de direitos humanos e pela Constituição, pois toda vez que o Estado abandona os parâmetros da legalidade, ele passa a se confundir com o próprio criminoso, sob o pretexto de combatê-lo. E não há pior forma de crime do que aquele organizado pelo Estado. 
Por fim, é fundamental que se diga que o movimento pelos direitos humanos tem uma agenda bastante mais ampla do que a questão dos direitos dos presos e dos suspeitos. Não seria Incorreto dizer que hoje a maior parte das organizações que advogam pelos direitos humanos estão preocupadas primordialmente com outras questões, como o racismo, a exclusão social, o trabalho infantil, a educação, o acesso à terra ou à moradia, o direito à saúde, a questão da desigualdade de gênero etc. O que há de comum corre todas essas demandas é a defesa dos grupos mais vulneráveis. Embora os direitos humanos sejam direitos de todos, é natural que as organizações não governamentais se dediquem à proteção daqueles que se encontram em posição de maior fragilidade dentro de uma sociedade. 
  
Direitos humanos dificultam o trabalho das polícias
  
Durante muito tempo acreditou-se que havia uma incompa​tibilidade entre direitos humanos e segurança pública. E evi​dente que as diversas garantias atribuídas aos suspeitos e aos réus em um processo judicial tornam mais onerosos o trabalho daqueles que tem por missão responsabilizar os criminosos. A investigação tem que ser mais criteriosa, as provas têm que ser colhidas cuidadosamente, as prisões só devem ser feitas com ordem judicial ou em flagrante delito, ao réu deve ser garantida a ampla defesa, o policiamento tem que se pautar em regras determinadas, tendo como limite as diversas liberdades dos cidadãos. Tudo isto sob o escrutínio judicial. Estas restrições, no entanto, paradoxalmente podem favorecer um sistema de segurança pública eficiente. 
O trabalho da polícia está fundamentalmente estruturado em duas atividades: prevenção e repressão. Para que ambas as ativi​dades possam ser minimamente eficazes, as polícias dependem de uma mesma coisa: informação. 
Por mais que os meios tecnológicos venham auxiliando o trabalho das polícias, o que verdadeiramente favorece a anteci​pação da atividade criminosa é a boa informação. Informação confiável e rapidamente transmitida àqueles que têm poder para tomar decisões é o instrumento mais eficaz à prevenção policial da criminalidade. 
Da mesma forma, sem informação fidedigna, a policia difi​cilmente inicia qualquer investigação Sem que alguém tenha visto uma pessoa rondando uma casa e esteja disposta a dizer isso à polícia, de nada servem computadores, rádios ou perícia técnica. Esses instrumentos só entram em campo quando há alguma forma de suspeita, o que se dá por intermédio de infor​mação. Boa informação. 
De que forma as polícias podem ter acesso a esse elemento tão precioso na realização do seu trabalho? Um primeiro modo é por intermédio da coerção ou da extorsão: tortura, vio​lência, ameaça, ou dos famosos gansos, que são criminosos que vendem informações para as polícias. Estas informações, além de imoralmente conseguidas, normalmente são de baixa quali​dade, pois as pessoas sob coerção tendem a falar aquilo que o algoz quer e não necessariamente a verdade. Por outro lado, a informação vinda de criminosos depende da garantia de que os mesmos permanecerão impunes. 
Uma segunda maneira de se obterem informações é a voluntariedade. Quando a população confia em sua polícia, esta é procurada por quem tem alguma suspeita, ou por alguém que testemunhou algo e quer contribuir numa investigação. Quando a população teme ou desconfia da polícia, especialmente a população mais vulnerável, ocorre uma ruptura no fluxo de informações e consequentemente uma redução da eficácia policial. 
Para que a população confie na polícia é necessário que esta respeite a população, e os termos desse respeito são dados pelas regras de direitos humanos e pelo padrão de honestidade dos policiais. Quando se sabe que a polícia viola sistematicamente os direitos de jovens, de negros e da população mais carente em geral, dificilmente esta irá confiar na policia, quando forem vítimas, testemunhas e mesmo portadoras de alguma informação relevante para coibir o crime. Quando a policia é desonesta, também fica a população temerosa de fornecer qualquer infor​mação que pode lhe colocar em risco no futuro. 
A percepção por parte da população de que a policia respeita os direitos humanos, é honesta e trata as pessoas de forma justa é indispensável na construção de boas relações com a comunidade, sem o que não há bom fluxo de informações. Destaque-se que não há polícia eficiente em qualquer lugar do mundo que não seja respeitadora dos direitos humanos. Nesse sentido os direitos humanos ao invés de constituírem uma barreira á eficiência policial, oferecem a possibilidade para que o aparato de segurança se legitime face a população e consequentemente aumente a sua eficiência, seja na prevenção, seja na apuração de responsabilidades por atos criminosos. 
  
Direitos humanos ameaçam nossa soberania
  
Não é incomum ouvirmos por parte de autoridades e de seg​mentos mais nacionalistas da população a queixa de que, a ação do movimento de direitos humanos é parte de uma cons​piração internacional voltada a limitar nossa soberania; de que a Anistia Internacional, ou outras entidades internacionais de defesa dos direitos humanos, não dispõem de qualquer legiti​midade para monitorar a atuação de nossas autoridades em relação as suas práticas no que se refere aos nossos cidadãos; de que essa é uma questão que só diz respeito ao Brasil, não devendo o Brasil ficar exposto internacionalmente. 
Não é impróprio lembrar que o movimento de direitos huma​nos surge a partir da Segunda Guerra Mundial, que teve como produto a morte de mais de 45 milhões de pessoas. Um dos aspectos mais perversos dessa catástrofe humanitária é que a maioria das vítimas foimorta pelos seus próprios Estados. Foram alemães mortos pela Alemanha, Russos mortos pela Rússia. Evi​dente que esses nacionais exterminados pelo aparato bélico e de segurança de seus Estados eram discriminados, em face de suas religiões, etnias ou posições políticas. O fato é que isso demons​trou que os Estados não poderiam ser os únicos fiadores da segu​rança e da dignidade de seus cidadãos. A violação dos direitos de um brasileiro ou de um alemão não deve ser apenas um pro​blema para os seus compatriotas. Se partimos do pressuposto de que temos direitos pelo simples fato de sermos humanos, a violação dos direitos de qualquer pessoa deve ser um problema de todos. Trata-se de uma agressão à toda a humanidade, e, por​tanto, é legítimo que pessoas de outras partes do mundo se pre​ocupem com o que ocorre no Brasil ou na Alemanha. 
Por outro lado, é necessário refletir um pouco sobre o signifi​cado de soberania e da sua abrangência. A soberania surge como uma doutrina de justificação do poder absoluto do Estado, não só face à comunidade internacional, mas também em relação a outros poderes domésticos. No inicio do século XVI era importante afirmar a autoridade do Estado face ao poder da igreja ou dos impérios, assim como dos senhores feudais. Com o tempo percebeu-se que a concentração do poder absoluta nas mãos do Estado havia se transformado numa ameaça constante aos seus próprios súditos, tanto que com as revoluções americana e fran​cesa a soberania passa por um processo de domesticação, ou seja, busca-se a sua limitação por intermédio de constituições e declarações de direitos. Desta forma o exercício da soberania só será legítimo se capaz de respeitar os direitos das pessoas. A soberania passa então a estar a serviço das pessoas e não dos Estados. Com a democracia, completa-se a inversão do sentido da soberania, pois ela não mais é concebida como um atributo do príncipe mas do cidadão. É o cidadão que detém o poder sobre sua própria vida e que deve determinar ao Estado de que forma se comportar. li nesse momento que deixamos de ser súditos e passamos a cidadãos. 
Nesse sentido, quando o nosso Estado viola o direito de um cidadão, é ele que está agindo contra a soberania popular. Se para buscar evitar essas práticas a comunidade internacional se mobiliza e denuncia um Estado, na realidade, a sua ação busca favorecer os cidadãos daquele Estado, ou seja, a soberania popu​lar em detrimento da soberania absoluta. Assim, reagir à solidariedade internacional em nome da soberania só favorece aque​les que querem um ambiente de impunidade para que possam tranquilamente violar direitos humanos. 
  
conclusão 
  
A gramática dos direitos humanos está fundada no pressu​posto moral de que todas as pessoas merecem igual respeito umas das outras. Somente a partir do momento em que formos capazes de agir em relação ao outro da mesma forma que gos​taríamos de que agissem em relação a nós é que estaremos con​jugando essa gramática corretamente. Os argumentos de que direitos humanos são direitos de bandidos, de que atrapalham a atuação das polícias ou de que minam a soberania do Estado buscam destruir essa lógica. Aderir a qualquer desses argumen​tos significa assumir a proposição de que algumas pessoas tem mais valor, outras menos, e de que ao Estado e seus funcionários cabe fazer a escolha de quais deverão ser respeitadas e quais poderão ser submetidas à exclusão, à tortura, à violência e à discriminação. 
  
Oscar Vilhena é professor de Direito da PUC-SP, 
Diretor Executivo do ILANUD/BrasiI, Coordenador do Consórcio  Universitário pelos Direi​tos Humanos PUC-SP/Universidade de Columbia-NY/USP
Os Novos Paradigmas da Universalidade, Interdependência e Indivisibilidade dos Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais
						*Nilmário Miranda
	
A luta pelo reconhecimento e expansão do rol de direitos humanos no Brasil e no mundo encontra-se em plena transição: depois de cinco décadas dedicadas quase que exclusivamente aos direitos humanos civis e políticos, começamos, finalmente, a priorizar a dimensão econômica, social e cultural dos direitos humanos.
Entretanto, este movimento pela consolidação da multidimencionalidade dos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana se dá, exatamente, durante a aceleração do processo de globalização. Processo este de enfático destaque para o aumento da produtividade e competitividade; além de insofismável empenho do capital transnacional em flexibilizar suas obrigações com a força produtiva do trabalho.
Ainda assim, podemos verificar, em contrapartida a evolução de instrumentos do direito, sobretudo internacionais. Esta referência ao direito internacional se justifica pelo fato de os direitos humanos terem seus princípios compartilhados por instituições e ativistas de todo o mundo. Tais princípios constituem-se num importante parâmetro ao processo civilizatório, dimensionado pela existência de uma opinião pública mundial, de fundamental papel na repercussão planetária de denúncias de grave violações aos direitos humanos proporcionada por estados nacionais.
Em outras palavras, os novos tempos começam a delinear a materialização de mecanismos formais de proteção aos direitos humanos: universais e inscritos em declarações, pactos e tratados internacionais.
Os direitos civis e políticos, agrupados no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e constituídos pelo direito à igualdade perante a lei; pelos direitos dos presos; pela proibição da tortura e da escravidão; pelo direito a um julgamento justo com a presunção da inocência; pelo direito de ir e vir, pela liberdade de opinião, pensamento e religião; pelo direito à vida privada e por reunir-se pacificamente, associar-se e participar da vida política, constituem a base estrutural dos direitos fundamentais. Tais princípios foram sendo consagrados em convenções e pactos internacionais, acompanhados de órgãos de monitoramento. 
A Anistia Internacional estruturou-se para fiscalizar a implementação da Declaração Universal, ao lado de outras entidades civis que foram sendo criadas em todo o mundo.
A instalação do Tribunal Penal Internacional Permanente, aprovado em 17 de julho de 1998 pela Conferência Diplomática de Plenipotenciários das Nações Unidas, vem coroar este processo de universalização dos direitos humanos, constituindo-se em instrumento para garantir a primazia, no Direito Internacional Público, dos direitos humanos sobre o direito interno, quebrando a impunidade para os crimes de genocídio, lesa-humanidade e agressão. O episódio do processo contra o general Augusto Pinochet consolidou essa tendência à universalização.
Desde a Conferência Internacional de Viena, em 1993, vem sendo reafirmada a indissociabilidade dos direitos humanos e a recusa da prioridade dos direitos civis e políticos como primeira etapa. O evento tornou-se um marco mundial pelo delineamento do Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais como fundamento ético, base para denúncias e combustível para a busca de caminhos alternativos para a humanidade superar a iniqüidade e a injusta distribuição das riquezas, do poder e do saber.
Ao fracasso das ideologias que preconizaram o crescimento econômico ilimitado como meio de superar a pobreza, quer pela via do socialismo real, quer pelo neoliberalismo, sucedeu-se o reconhecimento da Declaração Universal e dos pactos referentes à instauração de um sistema global de segurança econômica, social e cultural, estendido aos pobres e às gerações futuras.
Nas últimas duas décadas, problemas de desigualdade se agravaram: o desemprego estrutural, hoje estimado em 1,2 bilhão de pessoas no mundo, a desintegração das sociedades africanas, o intolerável trabalho infantil para 300 milhões de crianças, a super exploração de recursos naturais, as dívidas externas impagáveis esmagando as nações do Sul, a liberdade absoluta para o fluxo de capitais em detrimento de interesses nacionais e grupos populacionais, entre outros problemas,representam para nós um legado desse modelo falido, a ser substituído.
Com o fim da polarização entre Leste e Oeste e a emergência dos efeitos perversos da globalização econômica, principalmente nos países periféricos, ficou mais evidente que, se não vingarem os direitos humanos econômicos, sociais e culturais, os próprios avanços nos direitos civis e políticos ficarão comprometidos, com o crescimento da violência, da xenofobia, do racismo, da intolerância e do autoritarismo. Por outro lado, o crescimento da demanda por recursos naturais e o dever humano para com nossos descendentes impulsionaram a consciência ambiental e disseminaram o conceito de desenvolvimento sustentável, enriquecendo o conceito de direitos humanos econômicos.
Nos próximos anos questões como perdão das dívidas dos países pobres, proposta pelas Igrejas no chamado Jubileu da Dívida; a taxação em cerca de 0,1% dos recursos das transações financeiras internacionais para aplicação no combate à miséria, conhecida como Taxa Tobin; outras idéias de constituição de fundos mundiais para erradicar a fome, combater o desemprego, o trabalho infantil e outras mazelas decorrentes das desigualdades em escala global, passam a integrar a agenda da comunidade internacional. Essa conjuntura demanda a imediata reorganização da Organização das Nações Unidas (ONU) e dos demais organismos multilaterais. Não há hoje no mundo mecanismos objetivos para combater a marginalização dos grupos e populações vulneráveis e para garantir os direitos das futuras gerações.
A referência para o desafio que se coloca, pois, são os direitos humanos integrados no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o qual estabelece um nível essencial para a dignidade da pessoa humana como responsabilidade dos Estados, da comunidade dos Estados e das autoridades públicas internacionais.
Constituem os Direitos Econômicos o direito à alimentação, de estar livre da fome, o direito a um padrão de vida mínimo, com vestuário e moradia, o direito ao trabalho e aos direitos trabalhistas. São Direitos Sociais no Pacto o direito à seguridade social das famílias, mães, crianças, idosos, os serviços de saúde física e mental. Por direitos culturais entende-se o direito à educação, de participar da vida cultural e de beneficiar-se do progresso científico, assim como o direito das minorias étnicas e raciais, de gênero, orientação sexual etc.
  
Institucionalização dos Direitos 
  
A ratificação pelo Brasil dos dois pactos – de Direitos Civis e Políticos e o de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – ambos de 1966 e decorrentes da Declaração Universal dos Direitos Humanos, foi tardia. Só em 1992, sete anos após o fim do regime militar, os dois foram ratificados. Antes, porém, a Constituição Federal de 1988 incorpora todos os princípios da Declaração Universal. A nova Constituição ostenta hoje os fundamentos de nossa política para os direitos humanos. Podemos afirmar, portanto, que os princípios da defesa dos direitos humanos em vigor no nosso ordenamento jurídico são de elaboração recente, incorporados num momento de retomada da ordem democrática. O problema é que a Constituição condicionou a implementação dos direitos a leis regulamentadoras. Daí a lenta implementação.
A institucionalização dos direitos humanos no nosso país teve outros reveses. Por duas vezes, em 1987 e 1991, a Mesa da Câmara dos Deputados arquivou projetos de resolução para criar uma Comissão Permanente de Direitos Humanos, revelando o desprezo reinante entre as elites sobre o tema. O Poder Executivo, por sua vez, não dispunha de organismos específicos com a função de defender e difundir os direitos humanos.
  
A legislatura 1991-95 do Congresso Nacional abrigou importantes iniciativas relacionadas aos direitos humanos, tais como a Comissão Externa dos Desaparecidos Políticos, as CPIs do Extermínio de Crianças, do Sistema Penitenciário, da Pistolagem, da Violência contra a Mulher, da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Elas resultaram da maior sensibilização e organização da sociedade civil para a temática dos direitos humanos, compelindo o Parlamento a discuti-la e a buscar o equacionamento dos fenômenos que investigaram. Foi intensa a participação de grupos e organizações não-governamentais de direitos humanos nesse processo.
Mas o Poder Legislativo Federal não dispunha, nessa ocasião, de foro específico e habilitado para receber e encaminhar denúncias de violações, promover o debate e atuar de modo articulado com as instituições públicas e a sociedade civil nessa área. O tratamento, dessa forma, era fragmentado e disperso, impossibilitando o acúmulo de matéria crítica que resultasse em propostas com ampla legitimidade, capazes de transformar anseios em conquistas.
Em 1995 foi afinal criada a Comissão de Direitos Humanos na Câmara dos Deputados. Num primeiro momento, ela atuou em sintonia com o então ministro da Justiça Nelson Jobim, oferecendo ao Parlamento uma gama de proposições legislativas. Paulatinamente, foram sendo aprovadas a Lei de reparação às famílias dos mortos e desaparecidos políticos; a que instituiu o rito sumário na reforma agrária; a que tipificou o crime contra a tortura, a que transferiu da Justiça Militar para a Justiça comum a competência sobre os crimes dolosos perpetrados por policiais militares, além da ratificação de diversos tratados internacionais relevantes para os direitos humanos. Para se ter uma idéia da rapidez com que foram institucionalizados os direitos humanos no Poder Legislativo nos últimos cinco anos, em 1995, quando foi criada a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, só havia esses colegiados em cinco Assembléias Legislativas. Em 1999 já são 25, além de centenas de comissões criadas em Câmaras Municipais de todo o país.
A Comissão de Direitos Humanos tornou-se o desaguadouro das inúmeras denúncias trazidas pela sociedade ao Parlamento, permitindo uma resposta imediata diante de violações que, de outra forma, ficariam algumas sujeitas à incerta criação de CPIs e outras – a maioria – ignoradas nos escaninhos burocráticos. O Congresso Nacional dotou-se, então, de um instrumento capaz de exercer sua função fiscalizadora com a agilidade e amplitude que essa área exige. O poder que tem a Comissão de Direitos Humanos de cobrar providências e soluções é um poder político, pois não dispõe do poder coercitivo. Cabe mencionar também sua influência na tramitação de projetos relacionados aos direitos humanos, que tem sido importante no sentido de agregar informações e apoio de segmentos da sociedade civil.
  
No âmbito do Poder Executivo, foi criada em 1995, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, sendo o advogado ligado aos direitos humanos José Gregori designado para ocupar o cargo. Em 1999 o órgão foi fortalecido com sua transformação em Secretaria de Estado. Em maio de 1996 foi lançado pelo presidente da República o Programa Nacional de Direitos Humanos, com predomínio para os direitos civis e políticos, para orientar as ações do Estado. Em 99 foi aprovada lei instituindo o Programa Nacional de Proteção de Vítimas e Testemunhas, e o Governo Federal reconheceu a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Brasil. O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa, do Ministério da Justiça, passou a ser mais atuante, tendo participado das investigações sobre grupos de extermínio no Acre, Espírito Santo, Rio Grande do Norte e Amazonas.
Hoje há Ouvidorias de Polícia em seis estados. Há Conselhos Estaduais de Direitos Humanos instituídos por leis com a participação de organizações não-governamentais em vários estados. Todos criados recentemente. O Brasil passou a admitir a inspeção por comissões internacionais de verificação do cumprimento dos compromissos internacionais e fez o relatório à ONU em 1996 sobre o cumprimento do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.
Em todo esse processo, alianças políticas incomuns se estabeleceram, movidas pelo compromisso com os direitos humanos e não por alianças político-eleitorais.

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