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coleção TRANS Alain de Libera PENSAR NA IDADE MÉDIA Tradução Paulo Neves editoraB34 5 . FILÓSOFOS E INTELECTUAIS O aparecimento do intelectual no século XIII é um momento, decisivo na história do Ocidente. O f e n ô m ^ ^ J ^ m ^ e s c r i t o sociolo- gicamente pelos historiadores, ainda necessita no entanto ser avaliai do filosoficamente. A Idade Média, dizem, inventou um tipo de ho- mem novo: o ".universitário". Mas a universidade medieval não exis- te mais, as questões teóricas mudaram. Em que medida essa invenção poderia ainda nos interessar? Em que permanece ela legível e compreen- sível? A História sugere uma resposta, que devemos considerar em todo o seu rigor. Resumamos seu ponto de vista. UNIVERSIDADE DE MISÉRIA, MISÉRIA DA UNIVERSIDADE A universidade medieval é o ponto de partida durável de uma divisão do trabalho cuja realidade deixa-se hoje facilmente formular: a função do intelectual moderno é crítica, é isto que o distingue do universitário, r t inr^pn-pal p nm .itnr da amdançâ.sQCÍal^.Q universi- táno^jim espertador indiferente. Enquanto universitário, o intelectual medieval teria antecipado essa partilha, as próprias condições de sua emergência sendo ao mesmo tempo as de sua renegação. "Homem da cidade" e "trabalhador do canteiro de obras urba- no", mas "apegado aos privilégios clericais e à língua latina", "crente no progresso e na razão", mas incapaz de "emancipar-se da hierar- quia das disciplinas", homem de cultura, mas de uma cultura que combina os déficits da cultura clássica e os da cultura eclesiástica, apoiando sua atividade sobre "uma base social estreita" que tende a se reduzir "às dimensões de uma casta" , simultaneamente retido nas solidariedades corporativas e submetido à tentação dos príncipes, ele teria oferecido ao pensamento o espaço de todos os seus fracassos futuros: o das memórias improdutivas e dos saberes deslumbrados, o da autonomia inútil e da traição dos clérigos.1 Assim considerada, a história da universidade medieval seria a de uma ambigüidade de origem, de um casamento mal arranjado, cujo efeito à distância — o divórcio — se avaliaria plenamente hoje. O sen- Filósofos e intelectuais 139 tido filosófico dessa aventura seria dos mais claros e dos mais funes- tos: na falta de empreendimento social, os filósofos da Idade Média teriam aprisionado socialmente a filosofia; instalando-a no confortá- vel desconforto de uma instituição equívoca, eles a teriam definitiva- mente condenado à errância ou à repetição. Devemos aceitar esse diag- nóstico partilhado por J. Le Cioff e J . Verger? Não achamos que se deva recusá-lo em bloco; cabe simplesmen- te matizá-lo. A lilosofia ensina-se hoje tanto .comu_na Idade Média: há ductores e textus; em_s.umn,-comQ_anteriormentc cm Plepas, pip AleynnHria p em Bagdá, lê-se e comenta-se. Dizer que a Idade Média é a época da explicação dfi-tcxtos.é uma meia-yerdade; convém completá-la por çsta outra: o ensino da filosofia continua sendo medieval-~=jan uma palavra, textualista. A função do referente textual nas aprendizagens escolares não é porém a única manifestação da longa duração da Idade Média. Em sua dimensão universitária, a vida filosófica é antes de tudo um em- prego do tempo. Uma vida de filósofo é um curriculum: não há nada a colocar aí senão o que se colocava na Idade Média — uma lista de livros a ler acompanhada de um calendário de leitura. Onde estão as diferenças? Poderíamos encontrar milhares, mas é suficiente destacar uma. O prublema_do magister era passar rln fa- culdade de~artes_à faculdade de üealogia;-» Hn universitario-contem- poráneo é sâil da universidade. A ambição social do intelectual mo- derno reflete uma necessidade nova, a de um ambitus social do saber, um desejo de "alargamento" que, segundo os historiadores, os univer- sitários medievais precisamente ignoraram, preferindo "lavrar em pro- fundidade" um campo cujos limites, estabelecidos na base desde a Antigüidade tardia e a alta Idade Média, eles não pensavam sequer em deslocar. Não se discutirá aqui a realidade de um fenômeno que tudo atesta e confirma: a "fuga dos cérebros" é certamente a sanção de antigas limitações. No entanto não se poderia reduzir a Idade Média a uma laboriosa preparação do êxodo intelectual. A idéia de uma auto-renegação quase original do intelectual medieval defendida por Verger ("quase desde a origem se reuniam já as condições de sua própria renegação") de- senvolve uma intuição gramsciana de Le Goff. A aplicação do esque- ma de Gramsci — a caracterização do intelectual universitário como 1 4 0 Pensar na Idade M é d i a "intelectual orgânico" , "a l to funcionário" a serviço da Igreja e do Es- tado — conduz paradoxalmente a um resultado cuja validade acredi- tamos dever contestar aqui: em primeiro lugar, por fazer remontar à Idade Média o fenômeno denunciado em 1 9 2 7 por Benda* — a sub- mersão do " intelectual" , do clérigo, pela vontade de potência, pelo desejo do dinheiro, pelo servilismo para com os poderosos do mun- do, o fim do desinteresse material; em segundo, por fazer da Idade Média a época particular em que o intelectual, ao mesmo tempo em que emergia, renunciou — época, em suma, em que a universidade, que lhe havia dado origem, e o intelectual, que nela nascera, se sepa- raram inapelavelmente, o universitário tornando-se o orgânico, o "in- telectual" escolhendo a crítica. Esse diagnóstico é parcialmente falso tanto para a Idade Média quanto para " n o s s a " época: o intelectual não poderia simplesmente ser definido como um universitário que se desviou, isto é, que mudou repentinamente, o que parede implicar o privilégio sociológico concedido quase automaticamente ajo intelectual crítico. Quanto à traição — a "renegação" — , é óbvio que todo para- lelo entre o universitário medieval e o universitário contemporâneo deve ser considerado com prudência: o universitário é hoje um pequeno funcionário a quem a "autoridade de tutela" exige justificar-se social- mente (o que chamam "responder à demanda social") toda vez que sua especialidade parece excluí-lo de uma "rentabilidade econômica" imediata. Na linguagem ministerial, isto quer dizer entre outras coisas que, para uma instituição — digamos um "grande estabelecimento de ensino superior" não vinculado a um caminho pré-profissional — , "um longo passado, uma rica tradição podem ser, em certos, casos, uma desvantagem", e que ela precisa portanto "demonstrar sua validade presente" produzindo uma nova "visibilidade social" . Se o suposto intelectual "orgânico" deve, na maior parte do tempo, legitimar social- mente sua própria disciplina por não poder legitimá-la economicamen- te, parece que a possibilidade mesma da escolha entre o orgânico e o crítico lhe é retirada, restando-lhe apenas acumular os restos dela numa opção simultânea pela sobrevivência disciplinar e o inaíi humor pri- vado. De fato, e para tomar um único exemplo, se as burocracias, essenciais ao esquema gramseiano, permanecem, já há muito um pro- fessor de filosofia não é um "intelectual orgânico" que marcha agres- * Referência ao célebre panfleto de Julien Benda, La Trahisnn des eleres [A traição dos intelectuais|. Filósofos e intelectuais 141 sivamente rumo ao poder, mas um funcionário crítico que procura driblar as dificuldades. Sendo assim, dirão, qual é sua tese? Precisa- mente a que formulamos em nossa introdução a título de hipótese e que tentamos verificar ao longo de todo este livro: contrariamente ao que afirma Le Goff, a oposição do intelectual orgânico e do intelec- tual crítico é demasiado geral para ser operacional; não se deve con- fundir o intelectual crítico e o crítico intelectual, o "alto funcionário" e o universitário, o homem do poder e o servidor sem mestre. Em suma, o intelectual não se renega pelo simplesfato de ser universitário, e não basta "tomar suas distâncias" em relação à universidade para ser um intelectual. Além disso, do simples ponto de vista da história da filosofia medieval, falta uma peça essencial ao dispositivo de leitura emprega- do pelo historiador sociólogo: ao admitir a onipotência da idéia de "carreira", esquecem-se as interrupções voluntárias de trajetória que, na Idade Média, são tão reais quanto a busca de prebendas e de bene- fícios eclesiásticos. Se é verdade que a "passagem à teologia" focali- zou as energias e os desejos de muitos medievais, que a retribuição social da atividade teológica contribuía para perenizar a hierarquia das disciplinas, numerosos pensadores medievais também se recusaram à passagem, preferindo as artes à teologia. Esses mestres, geralmente pouco conhecidos, aspiraram a um be- nefício que a Igreja não distribuía: o benefício do prazer. Eles inven- taram um estado (status) que era ao mesmo tempo um ofício estável e uma parada no cursus, o de filósofo, e souberam dar-lhe um slogan que exprimia o termo desejado de uma carreira de professor e o fim alme- jado de uma ascese intelectual: Ibistatur, "permaneçamos aí". Chegando à filosofia, é preciso ater-se a ela; não há que ir mais longe que o sabor (sapor) da sabedoria (sapientia). Como escreve Aubry de Reims: Quando se sabe que se chegou ao termo, não resta senão saboreá-lo e desfrutar o prazer. E isto que chamam a sabedoria, esse sabor que se soube encontrar pode ser apre- ciado por si mesmo: é isto a filosofia, e é aí que convém deter-ser A sanção dessa renúncia voluntária caiu quando Etienne Tempier condenou a tese que afirmava "não haver status mais excelente que ocupar-se da filosofia" (quod non est excellentior status, quam vacare • i • X í j ? s r . m - s a V. i . i * \ l ¿ d i a ; philosophiae). As condenações parisienses de 1277 são o grande acon- tecimento intelectual do século XIII: falaremos delas em detalhe no ca- pítulo seguinte. Dessa "negação" filosófica da dimensão propriamente sobrenatural do destino humano, que nos seja permitido, por enquanto, privilegiar apenas a ambivalência de um termo: exatamente o de status que a articula e a realiza. Com efeito, é este o signo de contradição que, a nosso ver, reúne o universitário, o filósofo e o intelectual — a prova disso é que se hesita em traduzi-lo e que a gama de seus signifi- cados se estende aos extremos, indo da "condição de vida" ao "ofí- c io" , passando pelo "estado". Ao escolher ocupar-se da filosofia (vacare philosophiae), a corpo- ração dos "artistas" milita em favor do ócio grego em plena rua do Fouarre. Pode-se filosofar na miséria — aliás, será essa a estratégia adotada pela defesa: "não falávamos de teologia, mas de riqueza e de poder. Dizer que o ofício de filósofo é superior a outro qualquer não significa "superior ao de teólogo", mas apenas "superior ao de rei" — status philosophi perfectior est statu principis —, é o que escreve Jacques de Douai logo após a proclamação do sílabo.3 Entre o príncipe e o bispo, o filósofo afirma seu lugar. A ques- tão é situar tal no man's land, isto é, a comunidade dos mestres e dos estudantes de filosofia. Essa réplica é tão configuradora de mundos quanto pode sê-lo a busca de honrarias. É igualmente tão ingênua quanto a que consistiria em afirmar hoje que a pátria do filósofo é o ensino de segundo grau. Mas é precisamente esse paralelismo que im- porta. Antes de se confundir com a deontologia da função pública, a moral leiga se esboçou entre os clérigos do século XIII inteiramente ocupados com teologia natural. A busca da contemplação filosófica suscitou uma linguagem comunitária e uma forma de vínculo social cujos efeitos poderiam se fazer sentir ainda hoje se, para além das rei- vindicações estatutárias e da amargura das condições de vida, o uni- versitário recuperasse a audácia de um ibi statur! R E A B I L I T A R A T E O L O G I A A depreciação da filosofia medieval — digamos, a crítica dos in- telectuais— tem um longo passado historiográfico. A história contem- porânea é aqui solidária do humanismo: enquanto soube abordar livre- mente todos os outros aspectos da realidade social, econômica, mental da Idade Média, ela interiorizou, no que se refere a este único domí- nio, a visão da Renascença. A incapacidade do universitário de "res- Filósofos e intelectuais 1 4 3 ponderaos desafios de sua época" é um lugar comum literário que não evoluiu muito desde o episódio do roubo dos sinos da Notre-Dame em Gargântua. Este não é o único topos, podem-se citar facilmente outros: • o primeiro reside na aplicação generalizada de um modelo — o conflito das faculdades — ao conjunto das estratégias e dos recur- sos intelectuais de uma época; • o segundo, na neutralização da dimensão agonística do ensino universitário, seja ele filosófico ou teológico; • o terceiro, na retomada não crítica da distinção entre razão e fé, e em sua repartição institucional, sem levar em conta a pluralidade das formas do racional e da interpenetração dos domínios; • o quarto, na atribuição automática de valores puramente ne- gativos à suposta "reação teológica", como se a teologia fosse por essência um obstáculo ao progresso das ciências e ao desenvolvimen- to da racionalidade; • o quinto, na uniformização absoluta dos modos de comporta- mento intelectual, a marginalização dos grupos não representativos das idéias que nos fazemos sobre as "grandes correntes de pensamento" da Idade Média; • o sexto, na utilização de um recorte do tempo, uma periodiza- ção ternária que projeta sobre a Idade Média a imagem não científica de uma "sucessão de idades" como uma seqüência implacável e irre- versível de promessas (o século XII), de realizações (o XIII) e de deca- dências (o XIV); • o sétimo, no emprego obstinado de categorias historiográficas cuja substância teórica afigura-se a cada dia mais discutível ou mais enigmática: tomismo, averroísmo, nominalismo, agostinismo, volun- tarismo, misticismo, aristotelismo, neoplatonismo. Os estudos de história da filosofia medieval emanciparam-se pro- gressivamente dessas tutelas narrativas. Resta no entanto a mais per- niciosa de todas: a oposição brutal da razão dos filósofos à fé dos teó- logos, roteiro excessivo herdado de uma situação em grande parte anterior à Idade Média, situação marcada, nos últimos séculos da Antigüidade tardia, pelo choque efetivo de uma filosofia grega, na época ainda viva, e da teologia dos Padres, então em fase de conquis- ta. É óbvio que no século XIII a "filosofia" está morta: há mais de setecentos anos o imperador Justiniano fechou a última escola filosó- fica de Atenas. O fato é notável, mas não basta para caracterizar a Idade 1 4 4 Pensar na Idade Média Média: poderia igualmente definir o século X X , adicionando algumas centenas de anos suplementares. Se quisermos revisar em profundidade as convenções de leitura, temos que adotar uma outra grade e ver os confins dos séculos XII e XIII como aquilo que chamamos um "período de aculturação". Foi dito que os medievais não conheceram a integralidade da filosofia de Aristóteles antes dos anos de 1200, e que ignoraram quase tudo de Platão. Assim como para nós, o confronto entre helenismo e cristia- nismo não era portanto para eles mais que uma lembrança cujas peri- pécias — filtradas, orquestradas e deformadas pelo testemunho dos vencedores, os Padres da Igreja, os Sancti — acompanhavam à distân- cia. Esse afastamento da filosofia cessou de vez quando a massa de traduções de Aristóteles invadiu brutalmente o Ocidente. Mas sua distância histórica e cultural não foi abolida. A filosofia que voltava vinha do exterior, passando do Islã às terras da Cristandade. Era um produto de importação compósito no qual, como vimos, o Mediter- râneo inteirohavia colaborado: judeus, muçulmanos (árabes ou não árabes), cristãos do Oriente, bizantinos ou cismáticos (nestorianos, jacobitas). Face a essa invasão, os latinos adotaram diversas atitudes, que iam da rejeição pura e simples à assimilação integral. Nem por isso a filosofia voltou a ser "grega" a seus olhos. Foi num contexto cultural misturado, pobre em documentos au- tênticos, sem tradição histórica direta nem construção ordenada da memória que se desenrolou o confronto medieval da filosofia e da fé. Nesse confronto, os latinos, em nosso entender, reviveram a experiência dos árabes — até um certo ponto, com efeito, a oposição da philosophia e da theologia é a continuação da luta entre os defensores da falsafa e os do kalam. Também aí, no entanto, o enxerto não foi total. A teologia islâmica não era homogênea: a crítica dos mutazilitas no kalam asarita — que os latinos conheceram de longe por intermé- dio dos escritos de Maimônides — não teve equivalente ifliediato no Ocidente. Do mesmo modo, se — com exceção de Averfóis (que se queria decididamente aristotélico) — os filósofos árabo-muçulmanos tinham um terreno de entendimento fundamental, que era a leitura concordante de Aristóteles e de Platão, suas respectivas filosofias apre- sentavam suficientes diferenças para que aquilo que chamamos o "arabismo" tivesse de ser construído, pacientemente obtido de e- nunciados aparentemente dissonantes, num verdadeiro esforço de adaptação. Filósofos e intelectuais 145 Recebendo ao mesmo tempo os escritos de Aristóteles e os dos filósofos do Islã, os medievais não tinham os meios de selecionar com calma os materiais que lhes chegavam de cambulhada. A História se acelerava diante de seus olhos sem que eles pudessem perceber sua coerência ou descobrir sua lei de constituição. Para organizar a "re- cepção", uns retomaram portanto os modelos patrísticos, buscan- do, especialmente em Agostinho, elementos para traçar uma tabela de equivalências, preliminar indispensável a qualquer confrontação; outros se lançaram na doxografia árabe, buscando, principalmente em Averróis, elèrnentos para transformar a filosofia numa história natural do pensamento. Nessas condições, em parte hostis, a emergência de um ideal fi- losófico e a exaltação da vita philosophi nos anos de transição ao sé- culo XIII é portanto um fenômeno de ruptura que somente a institui- ção universitária, em sua estrutura unificadora e suas ambições con- trárias, tornou possível: de repente, os narradores se tornaram parte integrante da história que contavam às crianças. Foi por terem se reconhecido nas figuras de filósofos que alguns medievais puderam fazer profissão de filosofia. A assimilação da filo- sofia no mundo latino realizou-se assim parcialmente numa conduta de identificação coletiva a uma comunidade desaparecida — não es- queçamos jamais, com efeito, que os mestres em artes de Paris deviam fazer um esforço de imaginação pelo menos comparável ao nosso para conceberem o que podia ser uma existência de filósofo. Essa figuração da filosofia não esgota porém a totalidade de seu funcionamento medieval. Se alguns artistae inventaram a conduta típica do professor que tenta imitar o filósofo imaginando em voz alta a filo- sofia, esta última, como forma de pensamento conceituai, invadiu, contra toda expectativa, os diversos setores da atividade universitária. E exatamente este o paradoxo: se entendermos por "fi losofia" a prática da argumentação, os teólogos medievais acabaram por filoso- far tanto ou até mais que os filósofos de "of íc io" . Esta é uma verdade hoje indiscutível: a filosofia analítica nasceu na Idade Média e entre os teólogos. De fato, esse tratamento lógico-lingüístico das questões, essa maneira formal e crítica de pensar não surgiu diretamente dos textos "especializados": não a encontramos, ao menos originariamente, na leitura universitária de Aristóteles, mas sim na quintessência do procedimento teológico medieval — os comentários das Sentenças de Pedro Lombardo. 1 4 6 Pensar na Idade M é d i a Os modelos históricos baseados numa partição institucional estri- ta revelam aqui sua completa inadequação. Se o esquema do progresso intelectual tem um sentido, cumpre buscar o posto avançado onde ele se encontra: notadamente no tratamento racional dos domínios, dos objetos e dos problemas paradoxais propostos à razão pela Revelação. Foi ao refletir sobre quebra-cabeças tais como o movimento do anjo ou o "momento preciso da transubstanciação" que os teólogos medievais fizeram avançar a filosofia, desenvolvendo lógicas não pa- dronizadas que a elucidação dos processos naturais examinados pela filosofia de Aristóteles não reclamava. A reivindicação filosófica — compreendida aqui a ênfase de um Aubry de Reims celebrando suas bodas com a Sabedoria — não é toda a filosofia. Os teólogos ingleses do século XIV, os calculatores, não se identificavam com os filósofos da Antigüidade, não pretendiam saborear nem apreciar um gosto es- tranho vindo de muito longe. No entanto, ao introduzirem as noções de grandeza intensiva e de proporção no campo da física, ao mate- matizarem as qualidades, ao sistematizarem a prática do raciocínio imaginário — esse esboço medieval da "experiência de pensamen- t o " — , eles contribuíram poderosamente, e involuntariamente, para o desenvolvimento da filosofia tal como a entendemos hoje. Como intelectuais, os "averroístas" parisienses do século XIII e os "calculadores" oxfordianos do século XIV não viviam no mesmo mundo espiritual; como "homens de ciência", não enfrentavam as mesmas problemáticas; mas partilhavam o essencial: o ritual univer- sitário com suas discussões e seus torneios oratórios. O regime da disputatio é o elemento aglutinador de todas as atitudes filosóficas da Idade Média. Foi a "questão disputada", organizada em seus meno- res detalhes pelas constituições universitárias (os estatutos), que per- mitiu a dupla eclosão de uma filosofia da identificação e de uma filo- sofia do jogo — identificação ética com os sábios da Antigüidade, em Paris, jogos analíticos da linguagem e do pensamento, em Oxford. 4 Os adversários da escolástica sabiam disso muito bem, ao con- centrarem principalmente contra a disputa seus ataques. Disputa-se antes, durante, depois do jantar; disputa- se em público, em particular, em todo lugar, a qualquer hora [...]. Não se dá ao adversário o tempo de explicar-se. Se ele entra numa explanação, exclamam: "Aos fatos! Aos fatos! Responda categoricamente". Não se preocupam com a ver- Fi lósofos e intelectuais 1 4 7 dade; procuram apenas defender o que propuseram. Se são pressionados com insistência, escapam à objeção à força de teimosia, negando insolentemente, derrubando às cegas to- dos os obstáculos a despeito da evidência. Às objeções mais sérias, que implicam as conseqüências mais absurdas, con- tentam-se em responder: "Admito-o, pois é a conseqüência de minha tese ". Contanto que se defendam conseqüentemente, são ti- dos como homens hábeis. A disputa não corrompe menos o caráter que o espirito. Gritam até ficar roucos, prodigali- zam grosserias, injúrias, ameaças. Chegam inclusive aos pontapés. A incompreensão do modo de pensar escolástico estampa-se nessa página de Juan Luis de Vives, escrita em 1 5 3 1 . Deslocando para a psicologia dos atores as características do jogo que os reúne, imputando à teimosia e à cegueira dos indivíduos o que decorre das regras que especificam um certo tipo de disputa — a disputa "obr igacional" (o- bligatio), destinada a examinar os paradoxos semânticos ou pragmá- ticos (insolubilia) — , incapaz de perceber a significação e os propósitos da teoria das inferências — as "conseqüências" (consequent iae ) — , não vendo senão "pseudo-dialética" na discussão protocolar dos sophis- mata, Vives condenaa parte mais nova, mais inventiva do pensamen- to medieval. Tal como ele o vê, o intelectual da Idade Média não é senão o ancestral de Diafoirus* , um homem amarrado à tradição e aos há- bitos escolares, lançado num perpétuo debate sobre assuntos sem im- portância, argumentando sobre os problemas mais fúteis ou os mais abstratos. Nos anos de 1 5 0 0 , a escolástica sem dúvida havia degene- rado profundamente — a Idade Média não era mais o que era — , mas a acusação humanista toca exatamente num ponto que é próprio do medieval: o pensamento "universitário" é um pensamento agonístico, a lei da discussão se impõe a todos. O problema central do pensamento medieval não é um conflito da razão e da fé em que cada um, por simples decisão disciplinar ou adesão passiva à sua suposta função, encontraria automaticamente seu lugar — os filósofos do lado da razão, os teólogos do lado da fé: en- quanto universitários, ambos trabalham e pensam da mesma manei- * Personagem de Molière em O doente imaginário (N. do T.) 148 Pensar na Idade Média ra. O cursus de ensino, os métodos de trabalho eram idênticos de uma faculdade à outra: a verdadeira clivagem passa entre racionalidades distintas. Trata-se de uma outra partilha, de um outro corte. Quer se dedique à filosofia ou à teologia, a universidade medie- val é o lugar da razão. É na universidade que as racionalidades gre- gas, judaicas e árabes se encontram com a razão latina. Não devemos nos surpreender que o mundo não tenha se transformado integralmente com isso. É possível, como afirma J . Verger, que o intelectual da Ida- de Média "não tivesse uma consciência bastante aguda de sua condi- ção específica para desempenhar, na sociedade de seu tempo, aquele papel crítico que nos parece hoje, por excelência, o do intelectual5". Em compensação, é certo que ele teve uma consciência suficiente de sua tarefa para efetuar o que devia ser efetuado: defender a razão contra os poderes e as quimeras, provar o movimento pondo-se em marcha. Dirão talvez que essa marcha não saía do lugar e que esses andarilhos da razão não iam muito além de seu bairro. É falso. Se uma imagem deve se impor, que seja a da marcha lenta. Gostaríamos dt' acelerar o desfile para visualizar de uma só vez a totalidade do fenômeno. Im- possível conter dois séculos no instantâneo de uma biografia coletiva. O primeiro dever do historiador é esposar uma lentidão sem imagens. A "marcha do século"* nem sempre se deixa ver. Pode-se, apesar de tudo, ir ao cinema, folhear alguns roteiros originais. A Idade Média também teve seus "realizadores". A PUNIÇÃO D O FILÓSOFO OU O DISCURSO D O O U T R O Deparando-se, a caminho da escola, com Aristóteles, com a fi- losofia árabe e alguns filósofos gregos (principalmente Alexandre de Afrodísias, Porfírio, Proclo e Simplício), todos os universitários da Idade Média, fossem "artistas" ou teólogos, cm algum momento de sua car- reira "se ocuparam de filosofia". Instrumentalizando através dela suas interpretações, suas exegeses, suas discussões, e inclusive suas proble- máticas, todos, mesmo aqueles apaixonadamente hostis aos pbilosophi, produziram enunciados, conceitos ou respostas filosóficas. Nesse sen- tido, todos foram intelectuais e filósofos. Contudo, de um filósofo esperamos mais que conhecer a filoso- fia: trata-se menos de uma freqüentação que de uma prática, ainda que * N o m e de um programa de televisão muito popular na França entre os intelectuais. Filósofos e intelectuais 149 os dois termos sejam às vezes sinônimos. Queremos encontrar no fi- lósofo uma necessidade da filosofia, um ideal, uma ética, uma manei- ra de viver. O filósofo trabalha e pensa, é um '"intelectual", mas lhe supomos uma "paixão predominante", uma vontade, um desejo e um destino singulares. Sobretudo, esperamos que a filosofia — a existên- cia filosófica — seja para ele ao mesmo tempo uma questão, uma ten- tação, uma urgência e uma falta, em suma, queremos que o filósofo se diga filósofo e que espere algo da filosofia. Os medievais responderam a essa espera de diversas maneiras. Alguns por discursos inflamados, mas cheios de retórica. Outros por declarações de intenção lisonjeiras e finalmente lisonjeadas. Outros fizeram o que tinham de fazer e aparentemente nada disseram, prefe- rindo, na aparência, falar de outra coisa — são os "poetas", como Dan- te, ou os "místicos", como Eckhart. Outros, enfim, encarnaram a esca- lada dos perigos aos olhos do adversário — tornaram-se assim, e a título póstumo, as testemunhas de acusação de um processo retrospectivo. Esse "heróis" da filosofia são, no sentido próprio do termo, heróis de lenda: eles ajudaram, contra a sua vontade, a inventar o verdadeiro. A ficção literária e a censura ideológica desempenharam cada qual urn papel no "nascimento dos intelectuais". Acompanharemos em deta- lhe o papel da censura. Não poderíamos no entanto esquecer o roman- ce, essa hagiografía negativa em que os próprios medievais consigna- ram seus temores e seus fantasmas. Dois exemplos serão suficientes, separados um do outro por meio século, mas ambos ilustrando per- feitamente um ripo de imagem ao mesmo tempo fascinante e artificiosa, sem a qual a imagem verdadeira, porém mais opaca, não se compreen- deria: Simón de Tournai e Siger de Brabante. Ninguém melhor que Simon de Tournai terá ilustrado, na Idade Média, as vicissitudes da "mestria". Não se trata aqui de um impulso prometéico, mas de uma fábula do orgulho que põe em cena uma san- ção, menos contra a posse de um saber que contra a ingratidão de um beneficiário abusivo. Para um teólogo, a sabedoria é um dom de Deus. Ela não se ad- quire pelo trabalho, ao menos não só por ele. A valorização teológica do esforço intelectual considera apenas o espaço do mérito. O traba- lho do intelectual é apenas um sintoma, é o sinal visível de que, obs- curamente, a graça trabalha nele. Nessa perspectiva, não poderia ha- ver portanto laicização do esforço, ascese leiga. 1 5 0 Pensar na Idade M é d i a Esse tema reacionário tem uma dupla função. Sociológica: ele denuncia de antemão toda reivindicação social da corporação dos mestres; psicológica: ele mantém o trabalho, portanto o pensamento, no espaço do sagrado, numa relação dual em que o pensar se mani- festa como uma iluminação da alma por Deus. A história de Simon existe em diferentes versões. Pierre de Li- moges, Thomas de Cantimpré, Matthieu Paris, todos os três a conta- ram à sua maneira.6 Na versão de Pierre de Limoges, Simon atribui à sua vela e a seu trabalho a ciência de que é dotado — a ciência, não a sabedoria. A "i luminação" é aqui puramente material — uma simples luz de vela. É a forma infantil da blasfêmia: o dito espirituoso. Ele era um mestre de Paris cuja reputação era maior que a de todos os outros. Um dia, alguém lhe disse: "Mes- tre, deveis agradecer a Deus por ter vos dado tal sabedo- ria. — Devo sobretudo agradecer a meu candeeiro e a meu trabalho, graças aos quais pude adquirir minha ciência ". Convém sublinhar a escolha dos termos: ao responder sobre a origem "concreta" de uma ciência adquirida, quando seu interlocutor o incitava a louvar a origem divina de uma sabedoria dada, Simon redobra sua falta. O castigo não se faz esperar: alguns dias mais tarde, sua ciência desapareceu. O raciocínio posto aqui em apólogo é brutal: se Deus retomou o que se supunha adquirido, então o que se supu- nha adquirido havia sido dado. Atingido em plena cátedra, o " m a u " Simon vem abaixo, retorna à condição nativa do homem enquanto homem, a de um "pastor iletrado". Esse exemplum "esclarecedor", destinado aos pregadores, faz parte de um estoque de lugares comuns edificantes nos quais, na outra extremidade do painel, pode-se ver o futuro arcebispo de Canterbury, o " b o m " Edmond Rich, derrubar uma vela sobre um manuscrito,onde ela se consome inteiramente sem causar o menor dano ao pergaminho! O afinco dos cronistas contra a figura de Simon de Tournai vai no entanto bem além desse códigos narrativos. Sigamos Matthieu Paris e Thomas de Cantimpré. No primeiro relato, tudo começa num dia do ano de 1201. Simon, que está em Paris, anunciou lições sobre o mistério da Santíssima Trin- dade. Ele é um exímio dialético que explica e disputa com a maior Fi lósofos e intelectuais 1 5 1 sutileza, um mestre verdadeiro, daqueles que "sabem desembaraçar- se das questões mais difíceis onde ninguém se aventurou antes deles". Suas lições são portanto muito freqüentadas e acompanhadas com paixão. No famoso dia, premido pelo tempo, Simon não consegue concluir seu assunto. Alinha os argumento pró e contra, desenvolve dez teses que ele refuta logo a seguir, e, quando a noite cai, é obriga- do a anunciar que transfere para o dia seguinte a decisão da contro- vérsia. Passa-se a noite. Na manhã seguinte, todos os teólogos de Pa- ris vão em cortejo à sessão. Chegado o momento, o mestre levanta-se com solenidade e, com voz forte, sem a menor hesitação, "determi- na" sobre as questões que abordara na véspera e que a todos pareciam insolúveis. Há tanta clareza, tanta elegância em sua exposição, sua doutrina é ao mesmo tempo tão perfeitamente cristã, que todos os ouvintes ficam estupefatos. E então que tudo se estraga. Mal termi- nada a lição, eis que seus discípulos o cercam, supheando-o a deixá- los escrever sob seu ditado as soluções que acaba de dar, uma vez que, dizem, "seria uma perda irreparável deixar perder-se uma ciência tão profunda sem que sua lembrança pudesse chegar às gerações futuras". Embriagado por esses ejogios, Simon perde toda compostura: levanta os olhos para o céu, dá uma gargalhada e apostrofa o Cristo. Jesus, exclama, meu bom Jesus, prestei boje um gran- de serviço à tua Lei pela questão que esclareci. Mas se qui- sesse te atacar, se quisesse voltar-me contra ti, eu encontraria razões e argumentos bem mais fortes para arrasar tua reli- gião e saberia perfeitamente reduzi-la a nada! Imagina-se sem dificuldade o efeito que pode produzir tal blas- fêmia. O castigo não se faz esperar. Segundo uma testemunha direta, Nicolau de Fernham, Simon mergulha na imbecilidade total. Não sabe explicar nem concluir mais nada. Em poucas horas, é objeto de derrisão e de troça para todos aqueles que haviam conhecido sua grandeza e sua vaidade. A crônica acrescenta que, durante dois anos, seu filho tentará ensiná-lo de novo a ler e que, apesar de seus esforços, ao cabo dessa nova aprendizagem, o antigo mestre mal será capaz de decifrar, de reter e de recitar o Pai-Nosso. Na segunda versão dos acontecimentos, Simon é apresentado como o homem mais sábio de seu tempo. Admirável em doutrina, é no entanto de uma "insuportável arrogância" e de uma "inacreditá- 1 5 2 Pensar na Idade Média T! vel lubricidade" — detalhe que acrescenta um novo condimento à cena, cruzando emblemáticamente o domínio do saber e o excesso sexual. Aliás, esta não é a única diferença em relação ao outro relato. Na manhã em questão, Simon não disputa sobre a Santíssima Trindade, mas sobre a "profunda simplicidade" ou, mais exatamente, sobre a "sublime baixeza da doutrina do Cristo" — um tema, o da união da grandeza e da humildade, sobre o qual voltaremos a falar, mas do qual convém notar desde já que é, por excelência, a pedra no caminho en- tre duas éticas: a filosófica e a cristã. A seqüência da crônica é igualmente muito distinta. Uma vez proposta uma solução, que ele, como sempre, argumentou com brio, não é o orgulho ou a fatuidade que se apodera do espírito de Simon: é uma verdadeira raiva anti-religiosa. Ele não se limita a arrasar a re- ligião cristã com a força de sua dialética; denuncia como pura e sim- ples impostura as três religiões do Livro. Em suma, lança, ex-cathedra, a "Blasfêmia dos três impostores": Houve três impostores, três trapaceiros que seduziram o mundo e o enganaram com suas seitas e seus dogmas. O primeiro, Moisés, enganou o povo judeu; o segundo, Jesus, os que foram chamados por sua causa cristãos; o terceiro, Maomé, todo o resto da humanidade. Para uma nova perversidade, castigo distinto. Mal terminada sua frase, o mestre de Tournai cai no chão, desconjuntado como um bo- neco, estendendo a língua, revirando os olhos. Fica vermelho como uma carne de boi, arrasta-se, rasteja, gostaria de dizer alguma coisa mas não consegue. É que ele está destruído: sua memória sumiu, deixando- o "qual numa furna cuja boca jaz selada", dirá Baudelaire. Não é mais nada. Não poderia sequer pronunciar o nome de Boécio, de quem há pouco sabia ainda de cor todo o De Trinitate. O castigo é menos lon- go que na versão baseada no testemunho de Nicolau de Fernham. A decrepitude de Simon dura apenas três dias. Nesse lapso de tempo, nenhum filho zela por ele. Não importa, o sexo está presente: acome- tido de mutismo, Simon conservou o uso de uma palavra — um nome, um único nome que ele repete, "muge" incansavelmente "como um touro no c io" , o de sua concubina: "Adelaide! Adelaide!...". O mugi- do dura três dias, mas, no final desses três dias, Simon está morto. Fi lósofos e intelectuais 1 5 3 Contemporáneo J e Alain de l.ille, Simon de Tournai havia ensi- nado no monte Sainte-Cencviève nos anos de I 170-1180. Afora seu dominio da discussão, parece que nada o destinava a desempenhar eternamente na Historia uma cena um tanto enfática do castigo do ímpio. Mestre das escolas parisienses do século XII, ele não pertencia ainda ao mundo de uma universidade que devia se constituir uns qua- renta anos mais tarde. Sendo assim, por que essa ficção? Sua história infeliz é talvez uma daquelas etimologias populares que se encontram com freqüência no princípio de uma historicização: trata-se de explicar, ou melhor, de motivar o inexplicável, um apaga- mento de memória, uma vertigem, um episódio confuso, ou mesmo um delírio passageiro, tanto mais impressionante por acometer um grande orador. Seja qual for o "fundo de verdade", os contornos da fisionomia esboçados pela fábula são plenamente significativos: o ho- mem não deve arrogar-se o pensamento, ele é seu depositário e não o primeiro autor. Se preferirem, a natureza não basta à natureza; o sa- ber, mesmo natural, é "gratuito". Como era de se esperar, Simon de Tournai tem seu equivalente oposto. As lendas que, nos séculos XIV e X V , relatam à distância a vida de Alberto Magno propõem uma versão suave das condições e das servidões do ultra passamento de si. Teórico da ascese intelectual, Alberto havia aclimatado no Ocidente a doutrina árabe de um "pro- gresso da inteligência" no qual o indivíduo, à força de trabalho, adqui- riria sua própria essência de ser pensante — o que era chamado preci- samente o intellectus adeptus ou "intelecto adquirido" (al-'aqlal tnus- tafad). A sabedoria popular haveria de se apoderar desse enorme arauto para fazer dele o exemplar inesperado da fragilidade mental. Basta citar aqui o Sagenkranz der Stadt Kòln editado em 1922 por Pauly. Jovem noviço, Alberto desespera de ser um dia capaz do trabalho a que se destina. Prepara-se para renunciar, pensa em abandonar o convento. Somente a aparição da Virgem Maria lhe dá a certeza e a força de empreender e posteriormente de realizar sua tarefa. Todavia, o trabalho obstinado que ele efetuará durante toda a sua vida, elevando- o ao cume do saber, não modifica o homem. No final de sua existência, o mestre reúne seus discípulos para confessar-lhes o que tem todas as aparências de uma impostura intelectual: supunham-no sábio, ele se sabe estúpido — donde uma revelação que é ao mesmo tempo uma profissão de fé nas fraquezas da natureza: tudo vem da graça. A essa confissão não sucede o castigo, mas a libertação. ComoSimon, mes- 1 5 4 Pensar na Idade M é d i a rrc Alberto recai na ignorância. Mas i-ssu queda, ou melhor, essa re- caída, é a justa recompensa de sua humildade. O tardo do saber e da aprendizagem é finalmente depositado, fardo que o colocava à parte dos homens e o fazia marchar duramente sob a coerção do " d o m " . Tanto em Alberto como em Simon, a filosofia não está em poder do filósofo. Simplesmente, aquele que o sabe e o diz conquista a tranqüi- lidade final; aquele que o ignora ou quer ignorá-lo mergulha na pior impotência. Essas duas mensagens, essas duas advertências, têm uma origem distinta e uma função complementar. Uma magnifica o transitório, o efêmero, introduz a idéia de um direito natural à imbecilidade; a ou- tra, em sua encenação pomposa, estigmatiza a pretensão de fazer-se duradouramente alguém. No entanto, ambas confirmam a existência da filosofia no imaginário medieval. Os homens da Igreja e os cronis- tas que divulgam o infortúnio de Simon, os homens do povo que se confortam invocando a dupla fortuna de Alberto — a acumulação frenética e depois a morte cerebral — são o eco involuntário de uma verdadeira emergência da filosofia. Ao deixarem alternadamente ter- minar a trajetória individual do filósofo na estupidez mórbida ou na imbecilidade feliz, eles se esforçam por mostrar que a filosofia é nada, mas provam que uma existência filosófica individual é possível, uma vez que, num caso, deve ser punida e, no outro, esquecida. Em qual- quer hipótese, o filósofo não se presta a risos: ele fascina e faz acredi- tar. Sua queda é assim mais dura, mas, pensando bem, é menos ridí- cula que a de Tales. Passemos a Siger. Figura militante da filosofia na Idade Média, Siger de Brabante morreu de diversas maneiras. Para a Histoire littéraire de la France, ele foi "um blasfemador, um ímpio convertido por uma visão do inferno", que no fim da vida se torna frade. Mas, já nos anos de 1320 , formou-se também a lenda que nos mostra o "infiel" fugin- do de Paris, onde sua vida era ameaçada, para, não obstante, encon- trar a morte na Itália, na cúria pontifícia de Orvieto, "apunhalado por seu secretário enlouquecido".8 "Vingança de Mendicantes", conclui Renan, que aproxima os destinos literários de Siger, de Simon de Tour- nai e de Gérard d'Abbeville, morto "paralítico e leproso", e acrescen- ta: "Talvez algum acidente tinha dado origem a essas terríveis histórias com as quais buscavam atemorizar a imaginação das escolas".9 Esse buscavam refere-se à ordem dos Pregadores, a "gente dominicana". Filósofos e intelectuais 1 5 5 A questão do filosófico na idade Média mostra-se aqui em seu elemento favorito: o fictício. A hisrória da filosofia na Idade Média nasce do cruzamento repetido de várias historiografias romanescas. Os próprios medievais definiram os papéis temáticos; os historiadores modernos acrescentaram o diálogo. Contra a sua vontade, o medie- valismo se constrói com freqüência em uma história adaptada: é a tra- dição continuada por outros meios. O lugar do filosófico é a parte de sombra da hagiografía, a parte maldita, a do mal em estado puro; é o alimento necessário dos "triunfos da santidade". Ora, de quê Siger tornou-se efetivamente culpado? Se examinar- mos o que se passou em Paris nos anos de 1270 , a resposta é clara e transparente: de nada. Como demonstrou o padre Gauthier, é Aubry de Reims e não Siger que está no ponto de partida da crise universitária, crise esta que a historiografia do "averroísmo latino" julgou o grande acontecimento da vida do mestre de Brabante. Os fatos são simples e saborosos: no Natal de 1271 , o mestre em artes Aubry de Reims era eleito reitor da universidade por seus colegas das nações francesas, picarda, inglesa (com a unanimidade menos um, para cada uma das três) e por apenas um quarto da nação normanda — as três quartas partes dos mestres restantes julgando-o inapto para ocupar esse cargo. Confirmado em seu cargo por um tribunal, Aubry o ocupou por três meses, segundo o costume, sem que seus oponentes se inclinassem. Expirado seu man- dato, elegeu-se um sucessor. Os normandos recalcitrantes não foram convocados e resolveram eleger seu próprio reitor, com seus procura- dores e seus bedéis. A faculdade de artes passava a ter duas facções: a primeira, largamente majoritária, conservava o nome daquele que havia sido seu primeiro reitor, causa ocasional do conflito — era a pars Alberici ("facção de Aubry") —, a segunda chama-se pars Sigeri ("fac- ção de Siger"). Siger de Brabante pertencia à nação picarda, portanto sua eleição para chefiar a facção dos normandos tem apenas uma ex- plicação válida: ela é institucional. Como o estatuto universitário de 27 de agosto de 1266 proibia sob pena de excomunhão uma nação separar-se das outras, os normandos deviam necessariamente tirar de sua cisão "toda aparência de uma separação de nação" . Eles "decidi- ram fazê-lo elegendo como seu primeiro reitor um picardo. Foi assim que a facção dos normandos tornou-se a facção de Siger". Tal terá sido a única contribuição de Siger à crise parisiense, que a arbitragem do cardeal legado Simon de Brion haveria de resolver em maio de 1275 1 5 6 Pensar na Idade Média em detrimento dos '"cismáticos'": uma cooertura legai. O interessante da história é que, transformada em "partido di- Sij-cr", .1 i>,u\ Siyrri foi identificada pelos historiadores modernos com o partido "aver- roísta", e o próprio Siger alçado à condição de líder de uma corrente, embora tudo prove que, em realidade, ele estava melhor representa- do no partido ou na facção opostos! De fato, como observa com hu- mor R.-A. Gauthier: Se os mestres que fizeram secessão fossem os aver- roístas, haveria apenas um único averroísta, entre 60 mes- tres, na nação francesa [aquele que votou contra a eleição de Aubry], um único entre os 20 na nação picarda — Siger de Brabante —, um único entre os 20 na nação inglesa — seria então Boécio da Dácia —, mas na nação normanda todos os mestres, com exceção de 5 ou 6, teriam sido a- verroístas, e, por um acréscimo de acaso, os 5 ou 6 ortodo- xos teriam sido os 5 ou 6 mestres da arquidiocese de Rouen, enquanto todos os mestres dos seis bispados sufragáneos, em número de 14 ou IS, teriam sido averroístas! Esse averroísmo, "um pouco geográfico demais para ser verdadei- ro", aparece no entanto nos manuais e nas histórias da filosofia há mais de um século — precisamente porque seu caráter geográfico não havia sido notado (aliás, como poderia sê-lo se o aspecto institucional da crise não o era?). Percebe-se por esse exemplo o quanto a história das univer- sidades é essencial para a história intelectual e filosófica: por não se compreender o sentido legal da expressão pars Sigeri, inventou-se um partido intelectual sigeriano, solidamente escorado de opções doutri- nais supostamente extremistas; Siger tornou-se assim um agitador — justificação retrospectiva pelo historiador da lenda que, na Idade Mé- dia, o havia instalado sem grande razão no papel do ímpio. Ao mes- mo tempo, esqueceu-se Aubry de Reims, sua paixão filosófica e seu ibi statur. O intelectual crítico — Siger, o profeta assassinado — eclip- sou deste modo o intelectual orgânico — Aubry, o reitor contestado; o problema é que, em 1271, o crítico não era aquele que julgavam ser. Isto posto, o castigo do ímpio permanece uma ficção indispen- sável à escrita do poder teológico: a filosofia só emerge para ser ven- cida ou conjurada por esses heróis de uma fé reconciliada que são um Tomás de Aquino ou um Alberto Magno. Fi lósofos e inte lectuais 1 5 7 É nos anos de 1300 que se endurece a hipótese de uma insurreição da razão. E a época, como vimos, em que Raimundo Lúlio começa a perseguir o "averroísmo", um fenômeno que no entanto deve mais às preocupações histórico-críticas de Ernest Renan que aosdesejos filosóficos reais do pobre morto de Orvieto. Não importa. Acaso não é por ser tecida de histórias que essa ficção teórica pode ainda inte- ressar o fifósofo? Ao fazer da auto-afirmação da filosofia uma catástrofe cujo centro organizador é a corte dos Hohenstaufen, um movimento heterodoxo elaborado secretamente pelo "arabismo" do qual Frederico II teria sido ao mesmo tempo o profeta e o protetor, Renan faz entrar o orientalismo no campo-da filosofia moderna. Mas ele descobre simultaneamente a dimensão originária da filosofia tal como a concebem os latinos do século XIII: uma doença exógena cujo foco está no Oriente. O drama filosófico da baixa Idade Média não dá um lugar pri- vilegiado à Grécia. A brancura do templo de colunas erguidas sob o azul do céu grego não anuncia a cor da filosofia: o confronto da fé e da razão não é representado pelo choque dos helenos e dos romanos cristianizados para aqueles mesmos que o inventam ou recorrem a ele. Cumpre pensar aqui num mundo espiritual em que Bizâncio é uma cidade do Oriente e na qual os "gregos" são cristãos — o Con- tra errores Graecorwn de Tomás de Aquino não é um tratado anti- filosófico, é uma refutação dos cristãos ortodoxos. A invenção da fi- losofia não supõe o encontro da filosofia grega com o cristianismo, mas, como foi dito, o confronto da fé cristã dos latinos com os peri- gos de um pensamento diretamente saído do mundo muçulmano. Em outras palavras, a filosofia vem dos infiéis e — redobramento da me- táfora — é duas vezes infiel, já que seus defensores são eles mesmos infiéis à sua própria Lei. Tal é o sentido do recurso a Averróis, que reúne em seu nome a totalidade dos roteiros e dos perigos supostos. Como todos aqueles que inovam a filosofia, Frederico II e Siger de Brabante são "aver- roístas", ou seja, "incrédulos". No ponto de partida da filosofia não está a busca aristotélica da ordem da natureza, mas uma rejeição à Lei, isto é, o gesto fundador e sacrílego generosamente atribuído a Averróis. Em seu tratado Sobre os erros dos filósofos, Egídio Romano traça um retrato de Averróis que se torna uma identificação dos filósofos para todos os adversários da filosofia. Aristóteles, que não conheceu 21 Pensar na Idade M é d i a a Lei, pecou por ignorância, ou melhor, na ignorância; Averróis opôs- se conscientemente a toda espécie de Revelação: Averróis renovou todos os erros de Aristóteles, mas ele é bem menos escusável porque ataca mais diretamente nossa fé. Independentemente dos erros dc Aristóteles, podemos censurar-lhe ter criticado todas as religiões, como o vemos nos livros II e XI de sua Metafísica onde critica a Lei dos cristãos e a dos sarracenos, por ambas admitirem a Criação ex-nihilo. Critica ainda as religiões no começo do livro III de sua Física; e, o que é pior, nos chama, a nós e a todos os que defendem uma religião, de "faladores", "tagarelas", gente desprovida de razão. No livro VIII dc sua Física, critica enfim as religiões e chama as opiniões dos teólogos de "fantasias ", como se eles as concebessem por capricho e não por razão.10 O slogan filosófico é portanto lançado por Averróis e por ele só: Nulla Lex est vera, licet possit esse utilis, "nenhuma religião é verda- deira, mesmo que ela possa ser útil". É sobre essa base que aparece a ficção última, que motiva a pos- teriori o episódio muito psicológico do castigo de Simon de Tournai e que, mais ainda, lança o modelo negativo de uma insurreição radical: a "Blasfêmia dos três impostores". Após tê-la sucessivamente atribuído a Averróis, Frederico II e Pedro delia Vigna, a imaginação medieval transformou em livro essa frase que ninguém havia pronunciado. Livro inencontrável, fantasmático, que ninguém jamais viu e que teve de ser escrito, alguns séculos mais tarde, para poder finalmente ser lido. Esse livro foi um medíocre libelo, cujo primeiro título, L'Esprit de Spinoza ou Ce que croit la plus saine partie du monde, exprime suficientemente a inocência da Idade Média e de Averróis numa laboriosa encenação libertina assim alfinetada por Voltaire: Insípido escritor, que julgas a teus leitores Traçar os retratos dos Três Impostores, Como se explica que, sem espirito, sejas o quarto? Será que não confundes Maomé com o Criador E as obras do homem com Deus, seu autor? Corrige o criado, mas respeita o mestre. Deus não deve penar com as tolices do Padre-11 Fi lósofos e intelectuais 1 5 9 Lê-se em Bayle uma versão extrema da "Blasfêmia" de Averróis: o cristianismo é aí definido como uma "religião impossível"; o ju- daísmo, como uma "religião de crianças"; o Islã, como uma "religião de porcos". Mas Gregório IX havia mostrado o caminho ao atribuir a Frederico II uma mesma invectiva contra os três "trapaceiros" (Moi- sés, Jesus, Maomé): Esse rei de pestilência afirma que o universo foi enga- nado por três trapaceiros /baratores/; que dois deles mor- reram na glória enquanto Jesus foi suspenso numa cruz. Ademais, ele afirma claramente e em voz alta, ou melhor, ousa mentir, chegando a dizer que são tolos todos os que crêem que um Deus criador do mundo e onipotente nasceu de uma virgem. Sustenta a heresia de que nenhum homem pode nascer sem o comércio do homem e da mulher. Acres- centa que só se deve crer absolutamente no que é provado pelas leis das coisas e pela razão natural. Veremos adiante o que pensava Siger sobre a vida filosófica. Mas, já que os destinos literários do mestre de Tournai e do mestre de Bra- bante nos conduzem uma vez mais a Frederico, convém, para encer- rar a iconografia, dizer uma palavra acerca dos Staufers. F R E D E R I C O E M A N F R E D O OU OS REIS F I L Ó S O F O S Platão havia lançado a idéia de um filósofo rei; os árabes, que conheciam A República mas também A Política, propuseram um imam filósofo;12 os latinos, que por muito tempo ignoraram tanto um quanto o outro, tiveram seus reis filósofos: Frederico II de Hohen- staufen e Manfredo, seu filho. O primeiro foi imperador; o segundo, rei da Sicília. A Igreja pouco os estimou; ambos morreram desacre- ditados. Muito foi atribuído a Frederico, muito pouco a Manfredo. O pai queria saber, o herdeiro quis transmitir. Ambos, com ou sem "blasfê- mia" , abriram-se ao "arabismo", ambos contribuíram para o "nasci- mento dos intelectuais". F.ra Frederico "f i lósofo"? Ao nos relatarem experiências extravagantes em que na maior parte do tempo a crueldade rivaliza com o horror, os cronistas, sobre- tudo Salimbene de Parma ( f l 2 9 0 ) , alteraram profundamente a pala- 1 6 0 Pensar na Idade Média vra de ordem que organiza o tratado de falcoaria de Frederico: "Fa- zer conhecer o que é, tal como é" . Um dia, o imperador manda encerrar um homem nuhi tonel cujas aberturas foram hermeticamente fechadas com alcatrão para verificar se, no momento em que desse seu último suspiro, "se veria sair alguma coisa do tonel" (caso contrário se poderia concluir seja que não havia alma, seja que, se houvesse alguma, ela morrera com ele); noutra oca- sião, faz abrir o ventre de dois infelizes que ele primeiro fartou e de- pois enviou, um a caçar, o outro a dormir, simplesmente para decidir se o repouso favorece mais a digestão que a atividade; noutra ocasião ainda, decide retirar uma dúzia de recém-nascidos de suas mães para entregá-los a guardiãs, com proibição de pronunciar diante deles a menor palavra, para saber, com o tempo, que língua falarão as crian- ças quando tiverem atingido a idade propícia: o hebraico, o grego, o árabe, o latim ou — por que não? — a língua de seus respectivos pais? Experiência de lingüística divertida que, como era previsível, não le- vará a nada, todas as cobaias morrendo além disso no percurso. Essa loucura de saber, encenada em protocolos erráticos ou mor- tíferos, é acolhida numa escrita que, marcada pela solidariedadepri- mordial da lenda e da crônica, atinge precisamente seu ponto máxi- mo toda vez que se trata da ciência. Nicolau Curbio, capelão de Ino- cêncio IV, irá tirar daí uma conclusão surpreendente ao acusar Fre- derico de sodomia, enquanto, paralelamente, o boato público atribuía ao imberour um harém povoado das mais belas jovens da cidade — na época, muçulmana — de Lucera. O mesmo movimento de fascínio e de transgressão articula as pseudobiografias de Alberto Magno, criador de andróides, mago, ne- cromante e alquimista. Ao excesso das lendas — traço característico das biografias de Alberto — corresponde o exagero dos historiadores: é na mesma linha de pensamento de Salimbene que um Kantorowicz faz do Falkenbucb de Frederico "uma virada na história do pensamento ocidental". A confusão entre a experiência (o experimentum de Aris- tóteles) e a experimentação é a expressão última dessa deriva. Nem Alberto nem Frederico são os criadores do método experimental. F. em nome do conceito aristotélico de experiência que o imperador se afasta de Aristóteles: Não seguimos em absoluto o príncipe dos filósofos, pois ele raramente — para não dizer jamais — praticou Fi lósofos e intelectuais 161 pessoalmente a caça com aves, enquanto nós, ao contrário, sempre nos comprazemos e exercitamos nela. Na verdade, muito do que ele relata em seu Livro dos animais, ele pró- prio afirma que outros o disseram assim antes dele. Mas o que alguns disseram, ele mesmo jamais o viu, e pode-se du- vidar que os que ele cita tenham eles próprios visto. A cer- teza da fé não pode ser fruto do ouvir-dizer. A rejeição da fides ex auditu em benefício da experiência pessoal, a única que permite compreender, não nos tira da concepção aristo- télica da ciência: para além de sua significação religiosa, o termo fides tem também um sentido filosófico diretamente herdado de Aristóte- les: a apreensão imediata dos dados. Frederico não argumenta portanto contra o aristotelismo, ele justifica a liberdade que toma em relação a uma autoridade baseada numa experiência de segunda mão. Homem de experiência, ou seja, perito em uma arte — a falcoaria —, Frederico não é portanto um experimentador. Se ele abandona os limites de sua arte, é na qualidade de questionador. A verdadeira grandeza de Frederico foi ter criado, isto é, manifes- tado concretamente, uma categoria nova: a demanda filosóficaOu- tros monarcas patrocinaram obras ou traduções, adotando assim o ponto de vista de um leitor especializado desejoso de formar-se numa arte: o governo dos homens — sabe-se a importância dos trasladado- res que marcaram o reinado de um Filipe o Belo e de um Carlos V. Quanto a Frederico, ele não se contentou em fazer traduzir e ler os fi- lósofos do passado: questionou os filósofos de seu tempo colocando- lhes as questões que o preocupavam. Contrariamente ao que haveria de preocupar posteriormente os grandes reis da França, suas questões não eram políticas, mas metafísicas. Os cinco problemas transmitidos ao jovem filósofo muçulmano Ibn Sab'in têm, desse ponto de vista, va- lor de manifesto: F : — O sábio Aristóteles afirma, no conjunto de seus escritos, que o universo existe desde toda a eternidade. Não há dúvida de que foi esta sua opinião. Nesse caso, que pro- vas ele apresenta, se é que o tenha provado? E, se não o provou, em que baseia sua convicção? — Qual é o objetivo da ciência teológica e quais são os fundamentos irrefutáveis dessa ciência, se é que os possui? 162 Pensar na Idade M é d i a — Quais são os atributos fundamentais do ser e qual seu número exato? São dez, como afirma Aristóteles, ou cinco, como afirma Platãoí — Qual a prova da imortalidade da alma, se é que ela existe? E onde se situa nesse ponto Aristóteles em relação a Alexandre de Afrodísias? — O que significa esta frase do profeta Maomé: O coração do crente repousa entre os dedos do Misericordioso? Eternidade do mundo, possibilidade da teologia, estrutura cate- gorial do ser, possibilidade de uma imortalidade pessoal, existência de uma alma individual, relação entre a razão e a Revelação: tais são as demandas articuladas por um imperador alemão da Itália a um jovem filósofo muçulmano. Pouco importam aqui as respostas, aliás pruden- tes, do questionado.1 4 O que merece ser notado é, com a natureza do questionário, a existência mesma do questionador: o estatuto impe- rial do demandador autentifica o caráter pessoal da demanda. Se duvidam que tenha havido filósofos na Idade Média, isto se deve primeiramente ao fato de se duvidar que houve uma necessidade da filosofia. Ao reduzir o trabalho intelectual ao comentário de tex- tos, e a liberdade de pensamento aos jogos estéreis de disputas carica- turadas, a historiografia de inspiração medieval desarticulou a filoso- fia medieval em duas espécies de frivolidades: a seriedade da lectura; a ausência de seriedade da disputatio. A idéia é simples: como se po- deria, necessitaria e quereria filosofar num mundo dc textos autoritá- rios que alimentavam uma atividade profissional que só podia emanci- par-se deles falando de outra coisa? As questões de Frederico provam que a interrogação filosófica não era incompatível com o questiona- mento escolástico. São questões verdadeiras, que pedem uma resposta. A sinceridade do imperador transparece ainda claramente numa carta que ele envia a seu tradutor preferido, Miguel Scot, o qual aliás havia redigido, a seu pedido, diversas obras de astronomia, de fisio- gnomonia e de zoologia para "a instrução dos iniciantes e outros es- píritos pouco exercitados", atendendo assim a uma demanda mais geral do imperador: "alargar o campo das coisas para que seus súditos ti- vessem acesso a uma vida superior". Tal como o concebe Frederico, esse alargamento passa por um prolongamento das matérias de con- trovérsia. As questões ligadas ao corpus aristotélico não abrangem a totalidade do questionável — para escapar ao jogo que um Vives ou Filósofos e intelectuais 1 6 3 um Rabelais denunciarão, é preciso ir mais longe: à natureza em seu conjunto. A natureza é. o .verdadeiro livro das questões. Do mesmo modo, ò procedimento habitual da discussão — as disputas organizadas na corte — não basta: é preciso interrogar o es- tudioso em particular. É com essa dupla condição que uma questão pode se desenvolver autenticamente. É preciso dirigir-se a um indiví- duo a partir de um desejo verdadeiro, uma libido sciendi — articula- ção social e pessoal de uma demanda ao mesmo tempo imperial e imperiosa que se reflete na extraordinária imbricação do nós e do meu na abertura da carta: Meu mestre bem-aniado, nós ouvimos com freqüência e de muitas maneiras questões e soluções debatidas por um ou vários estudiosos relativas aos corpos do alto tais como o sol, a lua e as estrelas fixas do céu, bem como aos elemen- tos, à alma do mundo, aos povos pagãos e cristãos, e ao resto das criaturas comumente espalhadas em cima e embaixo da terra, como as plantas e os metais. Mas jamais ouvimos nada sobre os segredos que asseguram o prazer do espírito e ao mesmo tempo a sabedoria: por exemplo, aquilo que se refere ao paraíso, ao purgatório e ao inferno, ou então ao funda- mento da terra e às maravilhas que ela contém. Por isso te rogamos, pelo amor da ciência e pelo respeito que deves à nossa coroa, explicar-nos qual é o fundamento da terra, em outras palavras, como entender que ela esteja firmemente estabelecida em cima do abismo, e de que modo o próprio abismo repousa abaixo dela. E te perguntamos se há outra coisa que suporta a terra além do ar e da água, ou então se ela repousa sobre si mesma ou sobre os céus que estão, di- zem, abaixo dela. Perguntamos-te ainda quantos céus exis- tem e quais os princípios que dirigem seus movimentos Não se sabe se as respostas de Miguel Scot apaziguaram essasede de conhecer. O importante é que o imperador tenha prefigurado uma necessidade da filosofia que a própria instituição universitária irá abri- gar em Paris. De fato, nos anos de 1260, a universidade parisiense encarnou coletivamente o sonho do Staufer. Seu filho não se enganou quanto a isso, dirigindo-se a ela oficialmente, como em sinal de reco- nhecimento, e testemunhando, pela troca de cartas, que o fenômeno 164 Pensar na Idade M é d i a obscuramente esperado no sul da Itália havia enfim se produzido: o renascimento da filosofia no centro intelectual da Cristandade. A profissão de fé filosófica de Manfredo se manifesta na carta que ele envia aos mestres em artes da Universidade de Paris. Muito se especulou sobre esse documento, a princípio conhecido numa versão adulterada e deficiente, publicada em 1566 como carta de Frederico II ou, mais exatamente, como carta redigida para o imperador por seu secretário, Pierre des Vignes. Os dois textos são diferentes: a carta de Manfredo é escrita num estilo difícil e ornado; a de "Frederico" é sem brilho e como que sistematicamente insípida — tudo indica a ativida- de de um revisor ignorante. Podemos esquecer a carta de Frederico, trata-se de uma simples falsidade literária.16 E verdade que foi essa medíocre adaptação que a posteridade conservou — existem mais de cem manuscritos dela, contra um único para o texto original. Mas a aprovação da História não altera em nada esse ponto. A carta de Man- fredo é um documento essencial para a história da idéia de filosofia; a falsa carta de Frederico não é senão um capítulo a mais na longa teo- ria dos falsos escritos que acompanharam a lenda do "último impe- rador dos romanos". Por que Manfredo, rei da Sicília, escreve aos mestres de Paris? Para anunciar-lhes o envio de um certo número de traduções do gre- go e do árabe que ele deseja oferecer-lhes para "espalhar suas luzes". Eis aí um gesto político, o primeiro começo do Aitfkliiritiig. Manfredo é, no sentido mais literal da palavra, um soberano das Luzes, para quem a filosofia é "como o dia": é preciso deixá-la "ale- gremente difundir sua luz para que sua claridade se prolongue". A difusão do saber é a condição principal de seu crescimento. Retomando uma definição, então moderna, da ciência, correntemente atestada na Paris dos anos de 1250, Manfredo sustenta que o saber só progride "distribuído ou repartido", isto é: comunicado. Tendo, em sua juven- tude, meditado sobre os livros de "diversos caracteres" (cyrographa) que faziam a riqueza da biblioteca paterna, ele não quer deixar aque- les tesouros dormindo em suas "estantes". Decide assim mandar tra- duzi-los para que entrem na língua latina, e depois oferecê-los aos mestres capazes de fazer o melhor uso deles. Como seu pai, Manfredo havia se cercado de tradutores: para o grego, J o ã o de Messina; para o árabe, Flstêvão de Messina e João de Dumpno. A astrologia ocupava um lugar especial nessa oficina literá- ria. Apesar da importância dos assuntos envolvidos, é pouco prová- Fi lósofos e intelectuais 165 vel que os livros de lógica e de matemática prometidos aos mestres pa- risienses tenham jamais sido traduzidos. A morte do rei em Benevento, em 26 de fevereiro de 1266, teria, de todo o modo, impedido seu en- vio. Porém, mesmo inconcluso, o projeto de mecenato filosófico de Manfredo conserva sua significação e seu brilho. O ponto decisivo aqui é, de qualquer forma, o vocabulário. O rei escreve a mestres em artes — este é o título e a função oficial deles na universidade; no entanto, não é essa a palavra que ele emprega, mas sim a de "filósofos". Os destinatários não são "artistas", ou melhor, artiens — o termo é atesta- do em francês desde La Bataille des sept arts, de Henri d'Andelis — , são "os doutores que dirigem as quadrigas do ensino filosófico", os "alunos ilustres da filosofia", que "fazem reviver os filósofos antigos graças ao ministério da palavra falada e que, através do ensino, con- servam sua glória passada". O diagnóstico é claro, os mestres aos quais se dirige Manfredo são mestres de filosofia. Poder-se-ia pensar que existe aí uma figura literária nascida ape- nas da fantasia do monarca. E exatamente o contrário. Manfredo não fala sua própria linguagem, fala a nova língua dos mestres; não lhes confere uma dignidade à qual não aspirariam, reconhece-lhes um pres- tígio que eles próprios proclamam. Há uma abundância de imagens bíblicas em sua carta que exprimem todas a supremacia da filosofia: é ela que "torna a vida correta", "suaviza a força e fortalece a justi- ça" , ela que "faz frutificar as sementes da virtude", ela que "revela a verdade da escritura" — a escritura de Aristóteles, não a Sagrada Es- critura (apesar da fórmula paralela de Lucas 24 , 32). Foi ela que Man- fredo "apaixonadamente amou e perseguiu desde sua juventude" — não a sabedoria divina louvada por Salomão na passagem correspon- dente do Livro da Sabedoria 8, 2. A carta de Frederico, que neste ponto parece ter conservado uma lição original, acrescenta inclusive: "res- pirando com prazer e sem interrupção o odor de seus perfumes", num novo desvio dos textos sagrados (agora, Cântico dos cânticos 1, 3). Estilo metafórico, sem dúvida, mas de uma metáfora fundadora que instaura no desvio concertado da Escritura a nova dignidade da filosofia. Metáfora, mas no sentido preciso de uma "transferência de legitimidade" figurada no deslocamento dos predicados da sabedoria cristã para a ciência dos filósofos. Ora, esse deslocamento não reflete a idiossincrasia de Manfredo, é uma técnica de apresentação da filosofia, de auto-afirmação do fi- losófico, que reina na Universidade de Paris nos anos de 1260. É essa 1 6 6 Pensar na Idade M é d i a operação de deslizamento que é efetuada, com intrepidez, pela Phi- losophia de Aubry de Reims, composta por volta de 1 2 6 5 , numa su- cessão de transformações reguladas: as invectivas da Sabedoria e dos Salmos contra os "negadores de Deus" são aplicadas aos "difamado- res da f i losofia" ; a esposa do Cântico dos cânticos não é mais a Sabe- doria divina ou a Virgem Maria , mas a Filosofia — é ela, e não M a - ria, que está sentada à direita de Deus, é ela que, numa espécie de litania, acaba recebendo os títulos habituais da Virgem: Escada das virtudes, Esplendor da santidade, Norma de justiça, Espelho de virgindade, Modelo da castidade, Leito nupcial do pudor. A definição magistral da filosofia — magistraliter diffinitur sic — é um contrabando textual que se efetua em silêncio pelo deslocamento e a colagem dos textos da liturgia. A violência da letra é aqui máxima: uma manifesto se apre- goa num trabalho às escondidas. É esse elogio da filosofia que será retomado às claras, isto é, em termos filosóficos e filosoficamente explícitos, por Boécio da Dácia em seu tratado D o bem supremo ou da vida filosófica, inspirando-se des- ta vez em Averróis: " C h a m o filósofo todo homem que vive segundo a ordem verdadeira da natureza, e que conquistou a finalidade melhor e mais elevada da vida humana" . 1 Manfredo fala mais a língua de Aubry que a de Boécio; ele se encontra na fase subterrânea da reivindicação. Mas sua dignidade real consagra o princípio da transferência ao passar da Escritura às litterae, da figura ideal da Virgem àquela, idealizada, da filosofia. Manfredo não é portanto apenas um questionador, é um ator da mudança que acompanha e encoraja um movimento que a Igreja tentará deter de duas maneiras: condenando em Paris as teses dos filósofos; despachando para a Itália Carlos de Anjou, irmão de são Luís, para se apoderar do reino da Sicília. H Á U M FILÓSOFO NA S A L A ? " OU NA ESCOLA DA CENSURA N a Paris dos anos de 1 2 6 0 , alguns docentes das artes liberais começaram a se dizer ou a se pensar "f i lósofos" : é a eles que Manfredo se dirigia.Reatando com os ideais da Antigüidade tardia, mas conscien- tes de todas as mudanças, de todos os desenvolvimentos que eles ha- viam conhecido no mundo islâmico, esses profissionais do pensamento lançaram, formularam, impuseram novas maneiras de ser, novas nor- * Alusão ao romance de F. Dard, Y a-t-il un françois dans la salle? Filósofos e intelectuais 1 6 7 mas de vida, novas respostas e, sobretudo, novas questões. Aristotéli- cos, fizeram reviver o aristotelismo, mas um aristotelismo "peripate- tizado", penetrado de neoplatonismo e de ciência árabe, e mesmo de astrologia. A autoridade eclesiástica, que em várias ocasiões já havia tentado impedir a difusão de Aristóteles, viu-se assim confrontada não mais a uma doutrina ou a um corpus, mas a um grupo instalado na instituição e interessado em nela permanecer. Acionado pelo papa João X X I — o ex-lógico Pedro Hispano —, o contra-ataque tomou a for- ma da maior censura universitária que o Ocidente medieval jamais conheceu: as condenações de 1277. Uma censura jamais causa boa impressão. A "reação teológica" do bispo de Paris, responsável nominal pela medida antifilosófica, foi por muito tempo considerada uma simples resposta da fé ultrajada, desconexa na forma, limitada no fundo. No entanto, os artigos con- denados formavam um sistema completo, coerente, polêmico, em suma: racional, cheio de subentendidos, de implicações e de reservas, que traçava um retrato automático do "f i lósofo" e ao mesmo tempo a lis- ta de seus supostos delitos — quer fossem passados, presentes ou, sobretudo, vindouros. Pela primeira vez, a filosofia não era mais con- siderada abstratamente, como uma "vã curiosidade" que parasitava o espirito dos clérigos, mas concretamente, como um conjunto arti- culado de decisões relativas ao mundo, o lugar que nele ocupava o homem e a ética que daí decorria. Muitos historiadores, não conseguindo identificar os promoto- res de desordens — os verdadeiros defensores das teses condenadas —, concluíram pela má-fé ou a estupidez dos censores, isto quando não viam mais simplesmente despontar aí — se não pela primeira vez, ao menos em tão larga escala — o que hoje se convencionou chamar a "técnica do amálgama". Por não se poder nomear os culpados, con- cluiu-se que o delito não existia. Hra enganar-se gravemente sobre a natureza da censura. Uma aspiração coletiva estava nascendo, aspiração que seus por- ta-vozes instituídos não conseguiam formular por não poderem fazê- lo institucionalmente — a faculdade de artes não sendo uma escola de filosofia; esse fracasso, porém, era apenas aparente. O que não se podia dizer, era calado, ou melhor, dito de outro modo. Mais ainda, era vi- vido com palavras ambíguas ou, supremo prazer, com palavras indi- retas. O censor precisava assim descobrir o que era o ideal filosófico para obrigar o filósofo a se mostrar. Foi o que decidiu fazer Étienne 1 6 8 Pensar na Idade M é d i a Tempier. O paradoxo é que, uma vez descrito o sintoma, a doença existiu de fato, fez-se contagiosa e deixou em parte a universidade para percorrer o mundo sob outros nomes. Duplo fracasso, portanto, mas estranhamento criador e que testemunha, em todo caso, a segurança do diagnóstico. Pois existia realmente o desejo de uma vida nova; uma outra concepção do amor e da felicidade, um humanismo propriamente me- dieval estavam a caminho, exigindo a revisão e a reviravolta dos va- lores melhor estabelecidos: abstinência e castidade, grandeza de alma e humildade, nobreza e pobreza, felicidade e beatitude, tudo se inver- tia ou mudava de sentido. O ascetismo, o destino, a liberdade vinham colorir com matizes inéditos, com seduções imprevistas a idéia de uma existência inteira- mente votada ao pensamento. Uma outra teologia, um outro sistema de ligação entre a alma, o mundo e Deus disputava o terreno com a teologia cristã: depois de séculos de ausência, a idéia de uma salvação filosófica entrava novamente em discussão. Mas, dirão, de onde você tirou tudo isso? Onde percebe esses "magnânimos", esses "intelectuais" escorados num ideal tão complexo que é preciso, para compreendê-lo — e mesmo assim em meias pala- vras—, reler Aristóteles inteiro, seus principais satélites gregos e a quase totalidade de seus grandes derivados árabes? Você não estaria, como acontece freqüentemente quando se trata da Idade Média, a inventar vidas de homens juntando pontas de textos? Talvez, mas essa filolo- gia ficção não é culpa nossa: Etienne Tempier nos precedeu. Sejamos claros. Não será jamais olhando ao telescópio as con- dições de vida dos mestres parisienses dos anos de 1260 que veremos nascer os "intelectuais". A miséria material — real —, os catálogos de reivindicações — numerosos —, as jeremiadas e as invectivas — can- sativas — estão de fato aí. Eles nada nos ensinam que já não soubés- semos: o intelectual se reconhece por um certo desvio, perfeitamente inimitável, entre o que ele dá e o que recebe. No entanto, o essencial não está na dificuldade de viver nem na amargura que ela engendra — tudo o que foi tão bem descrito no Laborinthus de Évrard o Ale- mão, essa descrição inaugural e definitiva da condição do ensino em que cada linha tem já o aspecto de um slogan: "Paris, paraíso para os ricos, inferno para os pobres"; " O mestre de escola é o escravo de sua função"; " E tudo isto, com que proveito?"; "Quanto aos colegas, nem falemos disso!". . . Fi lósofos e intelectuais 1 6 9 O e s s e n c i a l n ã o e s t á n a s o c i o l o g i a d o o f í c i o , m a s n a d e o n t o l o g i a q u e e le se i n v e n t a e n a m a n e i r a c o m o e l a é r e c e b i d a — c o m f r e q ü ê n - c i a c r i t i c a d a , à s v e z e s i m i t a d a . E e s s a c r í t i c a q u e q u e r e m o s a q u i c h a - m a r e m t e s t e m u n h o , e e s s a i m i t a ç ã o . U m a p o r q u e n o s p e r m i t i r á c e r - c a r o i d e a l , a o u t r a p o r q u e n o s i n s t r u i r á s o b r e a m a n e i r a c o m o u m i d e a l n ã o r e a l i z a d o p o d e , p e l a s i m p l e s v i r t u d e d o d i s c u r s o , t r a n s f o r m a r - s e à s v e z e s e m m o d e l o . N O T A S 1 Esse diagnóstico é de J . Verger, "Condit ion de l'intellectuel aux X I I I c e t X I V e siècles", in Philosophes médiévaux..., op. cit., pp. 4 7 - 8 . A expressão "cante i ro de obras u r b a n o " (citada por Verger, p. 4 0 ) é tomada de Le Gof f , Les lntellectuels au Moyen Age, p. 6 7 , que define " o novo t rabalho intelectual c o m o a união, no espaço urbano e não mais monást ico, da pesquisa e do e n s i n o " (p. IV). 2 Sobre Aubry de Reims e seu "entus iasmo f i losóf i co" , cf. R . -A. Gauthier , "Notes sur Siger de Brabant . II. Siger en 1 2 7 2 - 1 2 7 5 . Aubrv de Reims et la scission des N o r m a n d s " , Revue des sciences philosophiques et thcologiques, 6 8 ( 1 9 8 4 ) , pp. 3 -49 . 5 O arrazoado de Jacques de Douai , extra ído de seu prólogo às Questões sobre os Meteorológicos (ms. Paris, Nat . lat. 1 4 6 9 8 , fl. 6 2 . a), está editado em R . - A. Gauthier , Magnanimité. L'idéal de la grandeur dans la philosophie pdienne et dans la tbéologie chrctienne, I'aris, V'rin, 1951 , pp. 4 6 8 - 9 (era nota). 4 Uma das principais características da pedagogia filosófica de Oxford é a existencia de disputas de treinamento distintas da disputa de ensino, conduzida por um mestre, que era praticada em Paris. F.ssa forma de training original, a disputa dita in parviso, opunha na maior liberdade, mas n ã o sem prescrições argumen- tativas, os bacharéis n ã o formados. Cumpre notar que a " f reqi ientação do a d r o " (provavelmente o pórt ico de uma igreja vizinha das " e s c o l a s " ) , ou seja, a partici- pação seguida em disputas não controladas pelos mestres, elemento lúdico por excelência, tornou-se obrigatória
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