Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 A MULTIDISCIPLINARIDADE DA ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO: UM APELO EM FAVOR DA DIVERSIDADE * Teun A. van Dijk Em favor da diversidade Neste capítulo, formulo os princípios e as diretrizes práticas para realizar uma análise crítica do discurso (ACD). Isso não significa, contudo, que ofereço um ‘método van Dijk’ já pronto de fazer ACD. Não disponho de tal método. Tampouco encabeço ou represento uma ‘abordagem’, ‘escola’ ou outra seita acadêmica que aparentam ser tão atraentes para muitos estudiosos. Sou contra os cultos à personalidade. Não quero que colegas ou alunos me ‘sigam’ – uma forma de subserviência acadêmica que considero incompatível com uma atitude crítica. Além disso, em meus muitos anos de experiência como editor de várias revistas científicas internacionais, constatei que contribuições que imitam e seguem algum grande mestre raramente são originais. Sem ser eclético, o bom saber acadêmico – e especialmente a boa ACD – deve integrar os melhores esforços de muitas pessoas, famosas ou não, procedentes de diferentes disciplinas, países, culturas e orientações de pesquisa. Em outras palavras, a ACD deve ser essencialmente diversificada e multidisciplinar. O que é ACD? Deixem-me começar explicando o que a ACD não é. A ACD não é uma orientação de pesquisa entre outras, tais como a gramática gerativo-transformacional ou a linguística sistêmica, nem tampouco uma subdisciplina da análise do discurso, tais como a psicologia do discurso ou a análise da conversação. Não é um método, nem uma teoria que simplesmente pode ser aplicada a problemas sociais. A ACD pode ser direcionada a – e ser combinada com – qualquer abordagem e subdisciplina nas ciências humanas e sociais. Antes, a ACD é uma perspectiva – crítica – sobre a produção do saber acadêmico: ela é, digamos assim, uma análise do discurso ‘com atitude’. Ela se concentra nos problemas sociais e, em especial, no papel do discurso na produção e reprodução do abuso de poder e da dominação. Sempre que possível, ela se ocupa dessas questões partindo de uma perspectiva que seja coerente com o que é melhor para os interesses dos grupos dominados. Ela leva a * Tradução de Leonardo Mozdzenski, para fins didáticos, de: VAN DIJK, T. Multidisciplinary CDA: A Plea for Diversity. In: WODAK, R.; MEYER, M. Methods of Critical Discourse Analysis. London: SAGE, 2001. p. 95- 120. 2 sério as experiências e opiniões dos membros desses grupos, apoiando sua luta contra a desigualdade. Isto é, a investigação realizada mediante a ACD combina o que costumava ser chamado talvez um tanto pomposamente de ‘solidariedade com o oprimido’, com uma atitude de oposição e divergência contra aqueles que usam de forma imprópria o texto e a fala com o propósito de estabelecer, confirmar ou legitimar seu abuso de poder. Diferentemente de muitos outros saberes, a ACD não nega, mas explicitamente define e defende seu próprio posicionamento político. Isto é, a ACD é parcial – e tem orgulho disso. Como em qualquer tipo de pesquisa, também há um mau conhecimento acadêmico na ACD, mas não porque ela é parcial. Um conhecimento parcial não é inerentemente um mau conhecimento. Ao contrário, tal como muitos estudiosos – especialmente entre mulheres e minorias – sabem, a pesquisa crítica não pode ser apenas boa, tem que ser o melhor conhecimento acadêmico produzido para que possa ser aceita. Nenhum outro conhecimento científico é atacado tão ferozmente em razão da sua suposta ausência ou deficiência metodológica quanto o conhecimento crítico. Especializada também na análise crítica (e autocrítica) do discurso acadêmico, a ACD evidentemente reconhece a natureza estratégica de tais acusações como parte dos complexos mecanismos de dominação, especificamente como uma tentativa de marginalizar e problematizar as diferenças de opinião. Precisamente por causa de suas responsabilidades acadêmicas e sociais combinadas, a ACD deve ser um conhecimento científico rigoroso. Suas teorias multidisciplinares devem levar em conta as complexidades das relações entre estruturas discursivas e estruturas sociais. Sem métodos explícitos e sistemáticos, não podem ser produzidas quaisquer observações e descrições socialmente úteis ou academicamente confiáveis. Na ACD, a formação da teoria, a descrição, a formulação do problema e as aplicações estão intimamente interligadas e mutuamente inspiradas. Isso significa que na ACD as teorias e as análises não só devem ser elegantes e sofisticadas, além de empiricamente fundamentadas, mas também devem enfrentar o teste mais árduo de todos – a relevância. Elas devem funcionar. E, finalmente, a ACD deve ser acessível. O estilo esotérico é incompatível com os objetivos fundamentais da pesquisa crítica, tendo em vista que ela pode ser compartilhada com outros, especialmente pelos grupos dominados. O obscurantismo promove a imitação cega em vez do discernimento. A ACD deve ser ensinável e, portanto, compreensível. Se os alunos não nos entendem, não podem tampouco aprender conosco nem nos criticar. A teorização e a análise complexas não requerem jargões abstrusos e o profundo discernimento não precisa de formulações arcanas. 3 O triângulo discurso-cognição-sociedade Seguindo esses princípios metateóricos, proponho formular e ilustrar algumas das diretrizes que tento observar ao fazer ACD. Dada a minha orientação multidisciplinar, o rótulo global que às vezes utilizo para o meu modo de fazer ACD é o da análise do discurso ‘sociocognitiva’. Embora não goste de rótulos (porque são reducionistas e porque já mudei muitas vezes a minha área de pesquisa), tenho poucos problemas com esse, especialmente tendo em vista que ele enfatiza aquilo – ao contrário de muitos dos meus colegas em ACD – que avalio como de fundamental importância no estudo da cognição (e não apenas no estudo da sociedade) na análise crítica do discurso, na comunicação e na interação. A adoção desse rótulo, contudo, não significa que eu considero que a ACD deve se limitar à análise social e cognitiva do discurso ou a alguma combinação dessas dimensões. Apenas significa que (no momento presente) estou pessoalmente mais interessado na fascinante interface sociocognitiva da análise do discurso. Por exemplo, em meus primeiros trabalhos sobre racismo (van Dijk, 1984, 1987, 1991, 1993) e nas minhas pesquisas atuais sobre ideologia (van Dijk, 1998), tenho mostrado que esses fenômenos são ambos sociais e cognitivos. Não é preciso dizer, no entanto, que os complexos problemas do ‘mundo real’ com os quais a ACD lida também requerem um enfoque histórico, cultural, socioeconômico, filosófico, lógico ou neurológico, dependendo do que se deseja saber (ver, por exemplo, as várias abordagens representadas em van Dijk, 1997). Não é preciso tecer maiores argumentos para afirmar que, dada a natureza fundamentalmente verbal do discurso, uma ACD explícita também necessita de uma sólida base ‘linguística’, entendendo-se o termo ‘linguística’ em um amplo sentido ‘estrutural- funcional’. Em outras palavras, quaisquer que sejam as outras dimensões do discurso com as quais lida a ACD, esta – na medida em que constitui uma forma específica e prática de análise do discurso – sempre precisa obviamente dar conta ao menos de algumas das detalhas estruturas, estratégias e funções do texto e da fala, incluindo as formas gramaticais, pragmáticas, interacionais, estilísticas, retóricas, semióticas, narrativas ou similares de organização verbal e paraverbal dos eventos comunicativos. Tendo enfatizado a necessidade de uma ACD ampla, diversa, multidisciplinar e orientada aos problemas,limito meus próprios esforços ao domínio definido pelo triângulo teórico discurso-cognição-sociedade. Haja vista que isso é tão-somente um rótulo útil e, por conseguinte, passível de sofrer uma má interpretação reducionista, deve-se ressaltar que ‘discurso’ é aqui compreendido no sentido amplo de ‘evento comunicativo’, o que inclui a 4 interação conversacional, os textos escritos, assim como os gestos associados, os desenhos das fachadas, o layout tipográfico, as imagens e qualquer outra dimensão de significação ‘semiótica’ ou de multimídia. De modo semelhante, aqui ‘cognição’ implica tanto a cognição pessoal quanto a cognição social, as crenças e os objetivos, assim como as valorações e as emoções, e quaisquer outras estruturas, representações e processos ‘mentais’ ou ‘memoriais’ envolvidos no discurso e na interação. E, por fim, ‘sociedade’ é entendida de forma a incluir tanto as microestruturas locais das interações face a face situadas quanto as estruturas mais globais, sociais e políticas diversamente definidas em termos de grupos, de relações de grupo (como as de dominação e desigualdade), de movimentos, de instituições, de organizações, de processos sociais, de sistemas políticos, juntamente com outras propriedades mais abstratas de sociedades e culturas. De uma maneira mais ou menos informal, podemos considerar que a combinação das dimensões cognitiva e social do triângulo define o contexto relevante (local e global) do discurso. De fato, com seus objetivos sociopolíticos e orientados aos problemas, a ACD necessita particularmente de uma sofisticada teorização acerca das intricadas relações texto- contexto. Uma simples análise do texto ou da fala unida a algum estudo social e/ou cognitivo não é suficiente. Veremos que uma análise do discurso adequada requer simultaneamente uma detalhada análise cognitiva e social, e vice-versa, e que apenas a integração dessas explicações pode alcançar uma adequação descritiva, explicativa e especialmente crítica no estudo dos problemas sociais. Dever ser enfatizado que a ACD, assim como a análise do discurso em geral, não constitui um ‘método’ que pode simplesmente ser aplicado no estudo dos problemas sociais. Os estudos discursivos são uma disciplina transversal, com muitas subdisciplinas e áreas, cada uma delas com suas próprias teorias, instrumentos descritivos e métodos de investigação. A ACD não apresenta um enfoque já pronto, que nos indique como fazer análise social; antes, ressalta que para cada estudo deve ser realizada uma completa análise teórica de um assunto social, de forma que sejamos capazes de selecionar que discurso e que estruturas sociais temos que analisar e relacionar. Além disso, os métodos concretos de investigação dependem das propriedades do contexto da investigação acadêmica: objetivos, participantes, localização e usuários, o que inclui suas crenças e interesses. Que estruturas discursivas devemos analisar? Embora tenhamos argumentado que uma teoria texto-contexto seja crucial especialmente na ACD, temos que fazer algumas breves considerações sobre as estruturas 5 discursivas per se. Décadas de especialização nessa área acabaram ‘descobrindo’ muitas centenas, quando não milhares, de unidades, níveis, dimensões, movimentos, estratégias, tipos de atos e dispositivos relevantes, além de outras estruturas do discurso. Podemos ter estruturas e níveis paraverbais, visuais, fonológicos, sintáticos, semânticos, estilísticos, retóricos, pragmáticos e interacionais. Isso significa que, em qualquer sentido prático, não há nada semelhante a uma análise do discurso ‘completa’: uma análise ‘plena’ de uma breve passagem pode levar meses e preencher centenas de páginas. A análise do discurso completa de um corpus extenso de texto ou fala está, portanto, totalmente fora de questão. Dessa maneira, também na ACD, devemos fazer escolhas e selecionar para uma análise mais pormenorizada aquelas estruturas que sejam relevantes para o estudo de uma questão social. Isso requer ao menos algumas ideias informais acerca dos vínculos entre o texto e o contexto – ideias que nos indiquem que propriedades do discurso podem variar em função de que estruturas sociais. Assim, se queremos estudar – como seria típico na ACD – os modos como alguns falantes e escritores exercem o poder em seu discurso ou por meio deste, só faz sentido estudarmos aquelas propriedades que podem variar em função do poder social. Dessa forma, a ênfase e a entonação, a ordem das palavras, o estilo lexical, a coerência, os movimentos semânticos locais (tal como as retificações), a seleção de temas, os atos de fala, a organização esquemática, as figuras retóricas e a maioria das formas de interação são, em princípio, suscetíveis de controle pelo falante. Já outras estruturas, tais como a forma das palavras e muitas das estruturas das sentenças, são gramaticalmente obrigatórias e contextualmente invariáveis; sendo assim, normalmente não estão sujeitas ao controle do falante e são, portanto, irrelevantes para um estudo do poder social. No entanto, mesmo entre aquelas estruturas discursivas contextualmente variáveis e, por conseguinte, possivelmente relevantes para um estudo crítico do discurso, há algumas que são apenas marginalmente relevantes e outras que são significativamente relevantes, dependendo naturalmente do tipo de questões que decidimos investigar. Por exemplo, um estudo perfeitamente legítimo e interessante acerca da conversação informal ou institucional entre homens e mulheres pode decidir examinar que papel desempenha a entonação ou o volume da voz masculina no controle da interação, incluindo os gritos e outras formas de intimidação. Entretanto, se estamos interessados em um estudo crítico acerca do papel do discurso na reprodução do sexismo ou do machismo na sociedade, normalmente não podemos nos limitar a examinar as estruturas bastante específicas da entonação e do volume de voz. É mais provável que comecemos, por um lado, com um estudo sobre o controle da interação e, por 6 outro, com uma análise do ‘conteúdo’, tal como a seleção de temas, proposições e elementos lexicais. O motivo é que essas formas de sentido parecem estar mais diretamente relacionadas com as crenças e, por consequência, com as atitudes e com as ideologias sexistas que os homens adotam ou expressam quando conversam com (ou sobre) as mulheres. Note, contudo, que não estamos afirmando obviamente que seja isso que se sucede, mas sim que estamos aqui diante de uma conclusão estabelecida por uma teoria das relações entre texto e contexto, uma teoria em que as estruturas específicas do discurso estão relacionadas com as estruturas específicas do contexto, tais como as crenças sociais compartilhadas pelos falantes. Níveis e dimensões da ACD: um exemplo A título de exemplo, podemos ilustrar nosso construto teórico e nossas categorias analíticas mediante uma breve descrição de um texto do Centro para a Defesa Moral do Capitalismo, “uma petição contra a perseguição da Microsoft”, disponibilizada na Internet (www.moraldefense.com). Essa petição critica o governo dos Estados Unidos por sua batalha legal contra a Microsoft e solicita que os leitores assinem o documento: UMA PETIÇÃO CONTRA A PERSEGUIÇÃO DA MICROSOFT Assine a petição – versão internacional (para pessoas não residentes nos Estados Unidos) Para: os Membros do Congresso, a Procuradora-Geral Janet Reno e o Presidente Bill Clinton Colegas americanos, A Declaração da Independência proclama que o objetivo fundamental do governo é proteger os direitos do indivíduo e que cada indivíduo possui o direito inalienável da busca da felicidade.Ao longo da história dos Estados Unidos, essa nobre ideia tem protegido o direito do indivíduo de procurar sua própria felicidade através da utilização de sua energia em um trabalho produtivo, comercializando os produtos de seus esforços em um mercado livre e chegando tão longe quanto seu talento permitir. No entanto, ao longo do século passado, essa liberdade tem sido atacada e uma das manifestações mais notórias desse ataque tem sido as leis antitruste. Sob o pretexto de ‘proteger o público’, essas leis têm permitido que competidores invejosos e funcionários públicos ávidos por poder ataquem homens de negócio bem-sucedidos, pelo crime de terem obtido sucesso. Isso tem levado ao feio espetáculo de ver como os gênios criativos 7 do mundo empresarial – os homens que têm tornado grande este país – vêm sendo tachados de tiranos opressores, cujos impérios empresariais arduamente edificados devem ser reduzidos a escombros, ficando sujeitos ao controle dos agentes reguladores do governo. O atual pleito do Departamento de Justiça contra a Microsoft é o último exemplo dessa tendência. Fundamenta-se na inveja provocada pela capacidade produtiva da Microsoft e de seu fundador, Bill Gates. O resultado desse pleito, caso obtenha êxito, será não só privar o Sr. Gates do seu direito de controlar a sua própria companhia, mas também privar a companhia de sua propriedade e controle sobre seus próprios produtos. O argumento do Departamento de Justiça – e, na realidade, de toda legislação antitruste – está baseado na noção estranhamente invertida de que as ações produtivas dos indivíduos no mercado livre podem, de alguma forma, constituir uma ‘força’, enquanto as ações coercitivas dos agentes reguladores do governo podem, de algum modo, assegurar a ‘liberdade’. A verdade é que o único tipo de ‘monopólio’ que pode constituir-se em um mercado livre é aquele baseado na oferta de melhores produtos a preços mais baixos, uma vez que, em um mercado livre, até os monopólios têm que obedecer às leis de oferta e demanda. Os monopólios prejudiciais e coercitivos são resultado não da atividade do mercado livre, e sim das regulamentações, dos subsídios e dos privilégios estabelecidos pelo governo, que bloqueiam a entrada de concorrentes. Nenhuma empresa pode vetar suas concorrentes – só o governo pode. Nós defendemos que a Microsoft tem direito ao que lhe pertence; que está, portanto, autorizada a lançar seus produtos no mercado – incluindo o Windows 95 e o Internet Explorer –, em qualquer combinação desejada, sem necessidade de pedir permissão a ninguém e com direito integral. Nós defendemos que privar esse direito é atacar o direito que todos os inovadores possuem sobre os produtos de seu esforço, destruindo as fundações de um mercado livre e de uma sociedade livre. Nós não queremos viver em um país onde as realizações gerem rancor e sejam atacadas, onde todo inovador e empreendedor tenha que temer a perseguição de agentes reguladores e juízes ditatoriais, infligindo leis ambíguas segundo a ordem de competidores invejosos. Nós entendemos que as nossas vidas e o nosso bem-estar dependem da existência de um mercado livre, no qual inovadores e empreendedores são livres para chegar tão longe quanto seu talento lhes permitir, sem serem freados pela arbitrariedade e injustiça das regulações governamentais. Como cidadãos preocupados, pedimos que os argumentos do Departamento de Justiça contra a Microsoft sejam rejeitados. Solicitamos um debate nacional acerca das disposições arbitrárias e injustas das leis antitruste, dando um fim à prática de perseguir homens de negócio que têm sucesso. 8 (Em seguida, encontra-se o espaço para escrever o endereço.) Tendo em vista que um texto curto obviamente não é capaz de exemplificar as centenas de estruturas discursivas possíveis, e uma vez que, por outro lado, mesmo uma análise mais ou menos completa desse texto curto iria requerer dezenas – quando não centenas – de páginas, não seria nem preciso enfatizar que não podemos oferecer mais do que uma análise bastante parcial. E assim o fazemos apresentando uma breve discussão de algumas das estruturas discursivas que têm demonstrado ser relevantes em grande parte da minha própria investigação em ACD (assim como na de outros investigadores). Além de mostrar a utilidade prática que essas categorias parecem possuir para a análise, também explicarei brevemente por que isso acontece, descrevendo o marco teórico no qual essas categorias estruturais se relacionam com as estruturas sociais. Em outras palavras, a escolha de categorias discursivas em ACD é guiada tanto pela teoria quanto pelos principais objetivos da ACD, ou seja, pelo estudo crítico da reprodução discursiva da dominação na sociedade. Tópicos: macroestruturas semânticas Por razões discursivas, cognitivas e sociais, os tópicos ou temas do discurso desempenham um papel fundamental na comunicação e na interação. Definidos como ‘macroestruturas semânticas’ derivadas das (micro) estruturas locais de sentido, os tópicos representam o assunto ‘de que trata’ o discurso em termos globais, agregando a informação mais importante de um discurso e explicando a coerência geral do texto e da fala (van Dijk, 1980). Os tópicos são o sentido global que os usuários de uma língua estabelecem mediante a produção e compreensão de discursos, e constituem a ‘essência’ daquilo que é posteriormente relembrado de forma mais marcante. Os usuários de uma língua não são capazes de memorizar e administrar todos os detalhes do sentido de um discurso, e assim organizam mentalmente esses sentidos por meio de tópicos ou sentidos globais. Disso também decorre a relevância social dos tópicos no discurso, na interação e na estrutura social: eles definem não só aquilo que orienta os falantes, as organizações e os grupos, mas também aquilo que exerce maior impacto sobre as ações e os discursos futuros. Definidos como sentidos globais, os tópicos não podem, em si, ser diretamente observados; antes, são inferidos a partir do discurso – ou atribuídos a ele – pelos usuários de uma língua. Contudo, expressam-se com frequência no discurso, por exemplo, nos títulos, manchetes, sumários, resumos, sentenças temáticas ou conclusões. Esses elementos podem 9 ser utilizados pelos usuários de uma língua como dispositivos estratégicos com os quais se pode inferir ou atribuir tópicos – tal como pretendido pelo falante ou escritor (van Dijk e Kintsch, 1983). Isso também dá margem à influência e à manipulação. Desse modo, falantes e escritores podem enfatizar o sentido, controlar a compreensão e influenciar a formação dos chamados ‘modelos mentais’ do evento abordado pelo discurso. Mais abaixo explicarei em maiores detalhes esses papéis cognitivos e sociais desempenhados pelos tópicos. Uma vez que os tópicos possuem um papel tão importante e tendo em vista que a análise (macroestrutural) dos tópicos também pode ser aplicada a um conjunto de dados mais amplo, normalmente recomendo que se comece por tal análise. Com ela, obteremos uma primeira ideia geral do assunto de que trata o discurso ou um corpus de textos, e também controlaremos muitos outros aspectos do discurso e de sua análise. Dado que, por definição, os resumos expressam macroestruturas, podemos (para todos os fins práticos) simplesmente ‘listar’ os tópicos de um texto mediante o expediente de resumi-lo – um método que pode ser repetido com diversos níveis de abstração. No texto que tomamos como exemplo, o título “Uma petição contra a perseguição da Microsoft” expressa não apenas parte do tópico (“a perseguição da Microsoft”), mas também a autocategorização do gênerotextual (“petição”). Assim, podemos resumir esse texto através, por exemplo, das seguintes ‘macroproposições’: M1. As leis antitruste ameaçam a liberdade da empresa. M2. Os homens de negócio bem-sucedidos estão sendo representados como tiranos. M3. O processo contra a Microsoft é um exemplo dessa tendência. M4. O governo não deve limitar a liberdade de mercado. M5. A Microsoft tem o direito de fazer com seus produtos o que quiser. M6. Os inventores não devem ser punidos. M7. Solicitamos que os argumentos contra a Microsoft sejam rejeitados. Em uma redução posterior, pode-se resumir essas macroproposições na seguinte macroproposição geral de nível superior (tópico): Pede-se que governo dos Estados Unidos interrompa a sua perseguição judicial da inovadora Microsoft. Observamos que esses diversos tópicos/macroproposições representam, na verdade, princípios de nível muito elevado, às vezes até abstratos. Nesse caso, essas proposições são uma expressão mais ou menos direta de alguns dos dogmas da ideologia capitalista clássica 10 sobre a liberdade da empresa. Em outras palavras, as macroproposições expressam os princípios gerais neoliberais da liberdade de mercado, e depois a sua aplicação ao caso especial da Microsoft. Mais adiante veremos que essa distinção reflete a diferença entre as representações socialmente compartilhadas, por um lado, e os modelos mentais mais pessoais, por outro. Sentidos locais Minha próxima escolha analítica consistirá em um estudo dos sentidos locais, tais como o sentido das palavras (um estudo que também pode ser chamado de lexical, dependendo da perspectiva adotada), a estrutura das proposições, bem como a coerência e outras relações entre proposições. Mais uma vez, a razão para essa escolha é principalmente contextual. Os sentidos locais são o resultado da seleção feita pelos falantes ou escritores em função de seus modelos mentais acerca dos eventos ou ainda das suas crenças de caráter mais geral, socialmente compartilhadas. Ao mesmo tempo, os sentidos locais são o tipo de informação que (sob o controle geral dos tópicos globais) influencia mais diretamente os modelos mentais e, portanto, as opiniões e atitudes dos destinatários. Junto com os tópicos, esses sentidos locais são mais bem recordados e mais facilmente reproduzidos pelos destinatários e, dessa forma, podem compreender as mais óbvias consequências sociais. Embora haja muitas maneiras de estudar o sentido, apenas algumas delas serão aqui mencionadas. Com frequência, a investigação em ACD encontra-se interessada nos discursos ideologicamente preconceituosos e nos modos como polarizam a representação do ‘nós’ (grupos internos) e do ‘eles’ (grupos externos). Por conseguinte, tanto no plano global quanto no plano local da análise do sentido, testemunhamos normalmente uma estratégia geral de ‘autoapresentação positiva e apresentação negativa do outro’, na qual são enfatizadas as nossas coisas boas e as coisas ruins dos outros, ou então são atenuadas as nossas coisas ruins e as coisas boas dos outros. Nesse plano semântico local, podemos, por exemplo, examinar a escolha da palavra “perseguição” no título do texto anterior – uma escolha que possui várias implicações as quais expressam a perspectiva ideológica do autor (o Centro para a Defesa Moral do Capitalismo). A ação do governo é definida em termos negativos, sugerindo a utilização de alguma forma de assédio, coerção ou abuso de poder moral ou legalmente repreensível. Ao mesmo tempo, a escolha dessa palavra indica que a Microsoft está representada como a vítima dessa agressão. Em termos mais gerais, a seleção lexical mostra aqui a forma 11 familiar de apresentação negativa do outro e de autoapresentação positiva. Como parte da macroproposição principal, a escolha do conceito de “perseguição” também contribui para a organização dos sentidos locais no resto do texto. Em termos mais cognitivos, isso significa que a escolha dessa palavra pode influenciar a formação de macronódulos do modelo mental dos leitores desse texto. De similar relevância é o repetido uso da palavra “direitos” no primeiro parágrafo, tipicamente associado com “indivíduo” e “liberdade”, conceitos esses profundamente ideológicos e relacionados com a constituição dos Estados Unidos e com a ideologia predominante nesse país. Com o propósito de poder qualificar a ação legal do governo com o termo absolutamente negativo de “perseguição”, é preciso mostrar que os direitos dos indivíduos estão sendo violados e quais são esses direitos. A ênfase nos direitos possui outras várias funções, como a de associarmos algo bom e legítimo a nós mesmos e à nossa posição, predispondo-nos assim à avaliação negativa do governo norte-americano pela suposta violação desses direitos. Além de polarizar o modelo mental que está sendo construído aqui, esse parágrafo ao mesmo tempo funciona como uma importante premissa na argumentação geral desse texto. Especialmente interessante para a investigação em ACD é o estudo das muitas formas de sentidos implícitos ou indiretos, tais como as implicações, as pressuposições, as alusões, as ambiguidades, etc. Denominamos informação implícita quando a informação pode ser inferida a partir (do sentido) de um texto, sem ter sido explicitamente expressa pelo texto. Em termos teóricos (ver mais adiante), isso significa que a informação implícita é parte de um modelo mental (dos usuários) de um texto, e não do texto em si. Isto é, os sentidos implícitos estão relacionados com as crenças subjacentes, mas não são afirmados de forma aberta, direta, completa ou precisa, por várias razões contextuais, incluindo o bem conhecido objetivo ideológico de atenuar nossas coisas ruins e as coisas boas dos outros. Em nosso texto exemplificativo, existem várias proposições implícitas ou pressupostas, que não foram afirmadas de maneira explícita. Quando os autores dizem que a legislação antitruste se apresenta “sob o pretexto de ‘proteger o público’”, a expressão “sob o pretexto” e as aspas (em ‘proteger o público’) indicam que não é verdade que as leis antitruste protejam o público. Note também que aqui no segundo parágrafo, bem como ao longo do texto, muitas expressões possuem pressupostos ideológicos, como as seguintes: - os competidores têm inveja dos homens de negócio bem-sucedidos - os agentes oficiais são ávidos pelo poder - o mundo dos negócios possui gênios criativos 12 - os impérios empresariais são erguidos com trabalho árduo Além de enfatizar ainda mais a polarização entre o governo e as empresas, os sentidos locais do texto criam desse modo outra polarização entre os competidores invejosos e os brilhantes criadores do mundo empresarial. Observe ainda que a escolha lexical e as metáforas também destacam as seguintes polarizações: invejosos, ávidos pelo poder, arduamente erguidos, controladores, reguladores, reduzidos a escombros – todos esses são conceitos negativos associados aos ‘outros’, ao governo (e a certos homens de negócio), enquanto que ‘nós’ e aquilo que nós protegemos aparecem associados com sucesso, gênios criativos e, por negação (lítotes), com ‘crime’ e ‘tirano’. De novo, tais palavras contribuem não apenas para a polarização geral da estrutura conceptual do texto, mas também para a formação de um modelo de eventos preconceituoso e polarizado, no qual os atores são nitidamente diferenciados em bons e maus. Os dois primeiros parágrafos estão formulados em termos gerais e dizem respeito aos direitos e à sua violação, bem como às leis antitruste. O terceiro parágrafo começa com o movimento funcional de especificação ou exemplo: tudo oque foi dito até então se aplica especificamente ao caso da Microsoft. Do ponto de vista teórico, isso significa que os primeiros parágrafos são mais propriamente expressões de representações sociais (gerais), tais como atitudes e ideologias, enquanto que o terceiro parágrafo descreve o caso em curso (da Microsoft) e, assim, estabelece um modelo mental mais específico baseado nessas representações sociais gerais (ver mais adiante). Dado o viés ideológico dos primeiros parágrafos, resta pouca dúvida de que esse modelo, tal como expresso pelo Centro para a Defesa Moral do Capitalismo, é também ideologicamente tendencioso, e podemos esperar que a polarização geral anteriormente construída seja aplicada aqui – como de fato ocorreu. Note também que a polarização conceitual é frequentemente implementada no texto através de várias formas de hipérboles, como já havíamos constatado na seleção lexical de termos como “crime”, “tiranos”, “gênios”. Essas hipérboles podem inclusive se aproximar de mentiras absurdas, por exemplo, quando se afirma que Bill Gates se vê privado do direito de controlar sua própria empresa. O uso de “dele”, “homens de negócio” e “os homens que têm tornado grande este país” sugerem que especial ou exclusivamente homens, e não mulheres, estão envolvidos no mundo dos negócios e podem daí obter sucesso. Desse modo, além de expressar uma rígida ideologia conservadora neoliberal, o Centro para a Defesa Moral do Capitalismo também professa uma ideologia sexista ao excluir verbalmente as mulheres, contribuindo, portanto, para uma metaideologia conservadora ainda mais global que também controla a ideologia nacionalista expressa de forma característica na autoglorificação dos Estados Unidos (a “grandeza” deste país). Finalmente, entre as muitas outras propriedades semânticas desse texto, podemos também mencionar a importância do que se omite no texto. Dessa forma, sugere-se que o 13 sucesso da Microsoft está baseado no princípio de melhores produtos por um preço inferiores, mas obviamente não se menciona a conhecida prática de associação forçosa de produtos (como Windows e seu navegador de Internet). De forma quase trivial, podemos então formular a regra geral de que as nossas propriedades negativas (ou as daqueles que defendemos) são omitidas ou atenuadas no texto. Observe que, do ponto de vista teórico, a omissão só é uma propriedade relevante do discurso quando é possível mostrar que a informação omitida é parte do modelo mental (o Centro para a Defesa Moral do Capitalismo sem dúvida tem conhecimento das práticas ilegais da Microsoft) ou é parte integrante de um conhecimento mais geral e compartilhado, que é necessário ou que pode ser utilizado para a produção ou compreensão de um texto. Nesse caso, o modelo mental de um leitor crítico pode evidentemente ser diferente daquele que é expresso de modo persuasivo pelo Centro. Agora já temos uma primeira impressão de algumas das diretrizes práticas de base teórica que podem ser utilizadas para decidir que estruturas discursivas devemos estudar entre as centenas existentes. Obviamente isso é apenas um exemplo. A questão é que essa escolha está duplamente vinculada ao contexto: em primeiro lugar, por nossos próprios objetivos (acadêmicos), nossos problemas de investigação e as expectativas de nossos leitores, assim como pela relevância social do nosso projeto de pesquisa; e, em segundo lugar, pela relevância das específicas estruturas discursivas estudadas em seu próprio contexto, tais como os propósitos e as crenças do falante ou dos destinatários, os papéis sociais, as posições e relações entre os participantes, as limitações institucionais e assim por diante. A relevância das estruturas ‘formais’ sutis Além das estruturas semânticas que acabamos de mencionar, os analistas críticos do discurso podem estar mais interessados naquelas estruturas do texto ou da fala que são muito menos conscientemente controladas ou controláveis pelos falantes, como a entonação, as estruturas sintáticas, as estruturas proposicionais, as figuras retóricas, assim como muitas das propriedades da fala espontânea, como a troca de turnos, as retificações, as pausas, a hesitação, etc. De modo geral, essas várias ‘formas’ não expressam diretamente sentidos subjacentes e, portanto, também não expressam crenças; antes, assinalam as propriedades ‘pragmáticas’ de um evento comunicativo, tais como a intenção, o ânimo ou as emoções em curso dos falantes, a sua perspectiva sobre os eventos sobre os quais estão falando, as opiniões sobre os coparticipantes da conversa e, em especial, as preocupações interacionais como a autoapresentação positiva e a formação de uma determinada impressão. Dessa maneira, os 14 homens podem muito bem ser capazes de ocultar opiniões negativas sobre as mulheres, ou os brancos podem dissimular suas impressões negativas sobre os negros, mas indiretamente suas avaliações, sua posição ou sua face e, portanto, sua identidade podem ser indicadas por sutis características estruturais de sua fala. Do mesmo modo como distingui os sentidos locais dos sentidos globais, também faço a distinção entre as formas ou formatos discursivos globais e locais. As formas globais ou superestruturas são esquemas gerais, canônicos e convencionais que consistem em típicas categorias de gênero, como no caso dos argumentos, das histórias e dos artigos jornalísticos. As formas locais são as de (sintaxe dos) períodos e das relações formais entre períodos ou orações ordenados em sequências: ordem, primazia, relações pronominais, voz ativa ou passiva, nominalizações e uma grande quantidade de distintas propriedades formais das orações e das sequências. Das muitas propriedades formais do nosso texto exemplificativo, podemos assim observar o reiterado uso de construções passivas – que tipicamente ocultam os agentes –, como “essa liberdade tem sido atacada” e “os gênios criativos do mundo empresarial (...) vêm sendo tachados de tiranos opressores”. A óbvia função desse uso é que o Centro para a Defesa Moral do Capitalismo pode ser vago em suas acusações através da omissão dos agentes das ações negativas ou por meio da imprecisa identificação desses agentes em termos de ‘leis’. Além dessas e de outras estruturas sintáticas que produzem representações semânticas subjacentes, a mais óbvia estrutura formal que merece a atenção no enfoque da ACD é provavelmente a complexa construção argumentativa na qual as normas e valores gerais, assim como os princípios ideológicos, operam como argumentos de caráter geral, junto com sua aplicação ao caso da Microsoft, levando-nos à conclusão de que a Microsoft deveria ser capaz de fazer o que quisesse com seus produtos. Naturalmente, esse argumento se encontra desfigurado por falácias e omite uma informação vital, a saber: que a Microsoft abusou do seu poder ao impor seus produtos, violando assim o princípio básico da ‘liberdade’ que constitui a ideologia desse texto. Existem muitas outras falácias, tais como o uso ‘autorizado’ da (importância compartilhada da) Constituição dos Estados Unidos para fundamentar argumentos de um pleito empresarial. Do mesmo modo como a polarização semântica e retórica desse texto expressa e contribui para a construção de modelos tendenciosos do caso contra a Microsoft, seu estilo formal é um indicador do seu gênero: uma petição oficial. Esse estilo formal começa com a paráfrase da Declaração da Independência norte-americana, mas também é lexicalmente expressa na própria petição do Centro para a Defesa Moral do Capitalismo, tal como no repetido “Nós defendemos que...”, “sem necessidade de pedir permissão a 15 ninguéme com direito integral” e outras expressões semelhantes, assinalando que se trata de algo parecido com um manifesto sobre o livre mercado. O estudo global e local do sentido e da forma do discurso, que brevemente ilustramos acima, pode ainda ser muito mais detalhado e sofisticado, e apenas as limitações de espaço me impedem de delongar-me neste ponto. No entanto, a relevância de um estudo desse tipo (também) nos projetos de ACD já deveria atualmente ser clara, em especial como parte de uma explicação sistemática de como o discurso ideológico representa ‘nós’ versus ‘eles’. Dessa maneira, os falantes ou escritores podem enfatizar nossas coisas boas topicalizando os sentidos positivos, usando itens lexicais positivos nas autodescrições, proporcionando muitos detalhes sobre as boas ações e poucos detalhes sobre as más ações, valendo-se de hipérboles e metáforas positivas, deixando implícitas nossas propriedades negativas ou atenuando nossa agência de atos negativos através de orações passivas e nominalizações. Como veremos a seguir, esses aspectos formais e semânticos do discurso dominante não apenas expressam e exercem poder, mas também são adaptados para a construção dos desejados modelos mentais e representações sociais, isto é, propõem-se a influenciar, manipular e controlar a mente. Modelos contextuais Tal como argumentado anteriormente, os objetivos críticos da ACD apenas podem ser realizados se as estruturas do discurso estiverem relacionadas às estruturas dos contextos locais e globais. Na minha análise acima descrita, elaborei algumas observações informais acerca dos modelos mentais, das ideologias, das situações, dos propósitos e dos grupos sociais e instituições, mas obviamente essas noções necessitam ser definidas mediante teorias explícitas. O restante deste capítulo apresenta alguns breves fragmentos dessas teorias e ilustra seus princípios através de uma análise mais ampla e mais relevante acerca de alguns trechos do nosso texto exemplificativo. Embora tenhamos muitas teorias sobre fala e texto, não existe nada semelhante a uma teoria explícita sobre contexto. De fato, não há sequer uma monografia sobre contexto. Estou trabalhando em alguns fragmentos dessa teoria, da qual apresento aqui um breve resumo. Uma vez que já estabeleci a distinção entre estruturas locais e globais dentro do discurso, também posso distinguir contextos locais de contextos globais. Os contextos globais são definidos pelas estruturas sociais, políticas, culturais e históricas nas quais tem lugar um evento comunicativo. Na ACD, os contextos globais constituem com frequência a derradeira lógica crítica e explicativa do discurso e de sua análise. 16 O contexto local é normalmente definido em termos das propriedades da situação imediata e interacional na qual tem lugar o evento comunicativo. Algumas propriedades dessa situação são o seu domínio geral (política, empresa), a sua ação geral (legislação, propaganda), os participantes em diversos papéis sociais e comunicativos (como ocorre, em nosso exemplo, com o Centro para a Defesa Moral do Capitalismo), assim como as suas intenções, objetivos, conhecimentos, normas e outras crenças. Considera-se que tais contextos limitam as propriedades do texto e da fala. Isto é, tudo o que dizemos e como dizemos depende de quem está falando com quem, quando, onde e com que propósitos. Minha teoria do contexto reconhece que essa análise das propriedades cognitivas e sociais dos eventos comunicativos é relevante, mas define os contextos (locais) em termos cognitivos, ou seja, como uma forma de modelo mental de uma situação comunicativa, isto é, como um modelo contextual. Isso possibilita a existência não só de interpretações subjetivas das situações sociais, mas também de diferenças entre os usuários da língua em uma mesma situação, permitindo também que existam modelos estrategicamente incompletos e, em geral, uma flexível adaptação do discurso à situação social. Em outras palavras, minha teoria de contexto não define as diversas propriedades da situação local que controlam e restringem a fala e o texto; antes, dedica-se a analisar os modos como os usuários da língua interpretam ou definem essas propriedades em seus modelos contextuais mentais. Por exemplo, a idade, o gênero social ou a profissão, assim como os objetivos ou os conhecimentos dos participantes com frequência influenciam a fala e o texto, mas tão-somente se tais elementos estiverem definidos – e ainda segundo o modo como estejam definidos – no modelo contextual do falante ou do escritor. Os modelos contextuais nos permitem explicar o que é relevante à situação social para os participantes da conversação. Em outras palavras, uma teoria do contexto estabelece uma teoria da relevância. Os modelos contextuais também podem ser vistos como casos específicos do tipo de modelos mentais pessoais e subjetivos que as pessoas constroem a partir de suas diversas experiências diárias, desde o momento em que levantam de manhã até a hora de irem para a cama à noite. Os eventos comunicativos são apenas um tipo mais evidente desses ‘modelos de experiência cotidiana’. Os modelos contextuais possuem o mesmo status cognitivo e a mesma estrutura esquemática de outros modelos mentais, aos quais iremos voltar mais adiante. Por ora, é importante salientar apenas que os modelos contextuais são as representações mentais que controlam muitas das propriedades de produção e compreensão dos discursos, tais como o gênero textual, a escolha de tópicos, os sentidos locais e a coerência, por um lado, como 17 também os atos de fala, o estilo e a retórica, por outro. De fato, o estilo pode ser definido como o conjunto de propriedades formais do discurso que são uma função dos modelos contextuais, como a lexicalização, a ordem das palavras e a entonação. No nosso exemplo de petição, o contexto que define o evento comunicativo é bastante óbvio. O domínio social geral desse texto é o da empresa ou do mercado, e as ações gerais são as que defendem a liberdade da empresa e a proteção da atividade empresarial contra a interferência do governo. O cenário local do evento comunicativo é a Internet. O papel comunicativo do participante é o de falante/escritor, autor ou criador. Seu papel interacional é o de defensor da Microsoft e de opositor do governo, enquanto que o seu papel societário e econômico é o de uma organização advogando a liberdade de mercado. O outro participante – o destinatário – é explicitamente mencionado no início do texto com a expressão “Colegas americanos”, procurando salientar pragmaticamente a unidade dos países do Ocidente dos quais o Centro afirma ser o defensor. É interessante observar que, embora o conteúdo da petição seja dirigido aos “colegas americanos”, a proposta da petição em si está endereçada a importantes destinatários finais: o juiz, os membros do Congresso, a Procuradora-Geral e o Presidente dos Estados Unidos. A ação comunicativa concreta é a de publicar um texto na Internet convencendo os leitores a assinar a petição. Essa ação está sendo realizada por meio de atos de fala que acusam o governo e defendem a Microsoft. As (complexas) estruturas mentais que definem a dimensão cognitiva do contexto são constituídas pelas diversas ideologias analisadas acima, bem como pelas atitudes e opiniões mais específicas (sobre a ação legal do governo contra a Microsoft) que vemos explicitadas ao longo do texto. Embora expresse a coparticipação do grupo ao se dirigir aos “colegas americanos”, a estrutura persuasiva do texto pressupõe ser possível que nem todos os americanos tenham a mesma opinião sobre as práticas da Microsoft. Por fim,o texto só é significativo para os seus leitores porque não apenas pressupõe uma grande quantidade de senso comum e de conhecimento geral partilhado acerca, por exemplo, da Declaração da Independência dos Estados Unidos, da Microsoft, das leis antitruste e assim por diante, mas pressupõe também um conhecimento específico (baseado em modelos) acerca do atual pleito judicial contra a Microsoft. A aspecto importante a destacar é que, do começo ao fim, o texto se adapta a esse modelo contextual subjetivamente construído da situação comunicativa em curso, por exemplo, tal como se segue: É possível compreender todos os sentidos do texto dentro do conjunto mais amplo de três domínios: a empresa, a justiça e o governo. O gênero e o ato de fala da petição constituem uma forma de implementar a defesa geral do livre mercado, que é o objetivo global do Centro para a Defesa Moral do 18 Capitalismo. A ação do governo é definida como uma violação aos nossos direitos e, portanto, apresenta-se como condição suficiente para o sucesso do gênero e do ato de fala de uma petição. O tema geral expressa semanticamente a razão para o ato de fala e o gênero dessa específica petição: os direitos da Microsoft foram violados. A estrutura argumentativa está organizada de maneira que possa sustentar do melhor modo possível a função comunicativa desse texto como forma de persuasão. A polarização das opiniões em todos os níveis desse texto expressa as atitudes e a ideologia do Centro, e tenta influenciar as dos leitores – que são seus destinatários finais. A seleção lexical é adequada para o gênero de uma petição formal e pública. O texto pressupõe a existência não só de um conhecimento geral do que são as empresas, as leis, os governos, etc., mas também de um conhecimento específico do pleito contra a Microsoft. No entanto, o texto não expressa nem pressupõe um conhecimento capaz de contradizer o que foi argumentado (por exemplo, o conhecimento das práticas ilegais da Microsoft). Por que os modelos contextuais são tão importantes? Os modelos contextuais revelam- se cruciais porque constituem a interface entre a informação mental (o conhecimento, etc.) acerca de um evento e os sentidos efetivos que estão sendo construídos no discurso. Não é necessário expressar no discurso tudo o que sabemos ou acreditamos, seja sobre um acontecimento concreto, uma coisa ou uma pessoa, seja sobre algo de caráter mais geral, ou porque é algo irrelevante ou porque é algo redundante. Desse modo, os modelos contextuais nos apresentam as limitações as quais permitem que os usuários da língua realizem seleções situadamente mais relevantes das informações que os indivíduos possuem, construindo com elas os sentidos a serem expressos na conversação. Como já vimos, essas limitações ‘pragmáticas’ de comunicação não se expressam tanto através dos sentidos, e sim, mais frequentemente, através de várias estruturas. Por exemplo, a diferença de status ou de posição entre os falantes, se representada no modelo contextual, pode controlar a seleção de pronomes e de diversos outros dispositivos estilísticos. Dessa forma, os modelos contextuais são aquelas representações da memória (episódica) que operam como um controle geral de um evento comunicativo. Em qualquer tipo de investigação da ACD que vincule o texto a alguma situação social, é importante compreender que, por mais abrangente que seja a situação social ou política, é possível que tal situação não ‘alcance’ ou não exerça nenhum impacto sobre o 19 discurso, simplesmente porque o falante pode considerá-la irrelevante ou mesmo ignorar a relevância da informação na construção do modelo contextual. Além disso, é preciso dispensar atenção especial às mudanças que os falantes introduzem em seus discursos em razão, por exemplo, das estratégias de polidez ou de outras formas de persuasão. Modelos de eventos Os usuários da língua constroem modelos mentais não apenas da situação em que interagem, mas também dos eventos ou situações sobre os quais falam ou escrevem. Nos parágrafos anteriores, tivemos que usar diversas vezes a noção de modelo mental para explicar as várias propriedades dos sentidos dos discursos. Dessa maneira, a coerência local e global do discurso é definida não só em termos das relações funcionais entre suas proposições (tais como a generalização, a especificação, o exemplo, a explicação), mas também, e de maneira especial, por meio das relações dos ‘fatos’ referidos através dessas proposições, tais como as relações de causa e consequência. Contudo, de um ponto de vista psicológico, não é esse o modo como a coerência deveria ser definida. Não são os fatos que definem a coerência; antes, a coerência se define pelas formas como os fatos são definidos ou interpretados pelos usuários da língua em seus modelos mentais acerca desses fatos. Essas interpretações são pessoais, subjetivas, tendenciosas, incompletas ou totalmente imaginárias. Em outras palavras, os discursos são interpretados como sendo coerentes com relação aos modelos mentais que os usuários possuem acerca dos eventos ou dos fatos a que se faz referência. Assim, em nosso exemplo, não é o pleito contra a Microsoft nem as ações do governo que constituem a base (referencial) semântica do texto da petição, e sim as formas (obviamente tendenciosas) como o Centro representa tanto o seu pleito quanto o governo, em seu modelo mental acerca desses eventos. É esse modelo mental dos eventos sobre os quais se fala ou se escreve que constitui a base para a produção e compreensão de um discurso, especialmente de seu sentido. Isto é, sob o controle do modelo contextual (veja acima), são selecionadas aquelas proposições do modelo de evento que sejam interessantes para o evento comunicativo em curso – por exemplo, aquelas proposições que os destinatários ainda não conhecem. Em outras palavras, o sentido de um discurso, comparado ao seu modelo mental, é por definição incompleto: os falantes ou escritores não precisam incluir todas aquelas proposições que os destinatários já 20 conhecem ou que podem inferir por si mesmos. Os modelos mentais apresentam todas as crenças pessoalmente relevantes sobre um evento, ou seja, tanto o conhecimento quanto as opiniões (e provavelmente também as emoções). No caso de um óbvio discurso de opinião, como no caso do nosso exemplo, o que se expressa de maneira relevante são as opiniões dos escritores, por exemplo, sobre o pleito contra a Microsoft e sobre o governo. Ao mesmo tempo, a petição objetiva influenciar os (pontos de vista presentes nos) modelos mentais do Presidente ou dos políticos sobre o pleito contra a Microsoft. Desse modo, um dos aspectos da persuasão pode ser definido como o controle discursivo dos modelos mentais preferidos. Mais adiante, veremos que também existe um definição mais ampla de persuasão em termos de controle das representações sociais, como o conhecimento, as atitudes e as ideologias. Os modelos contextuais e os modelos de eventos são representações mentais da memória episódica, isto é, da parte da memória de longo prazo na qual as pessoas armazenam seus conhecimentos e opiniões acerca dos episódios que vivenciaram ou sobre os quais leram ou ouviram. Os modelos mentais consistem provavelmente em uma representação esquemática das dimensões individual e socialmente relevantes dos eventos, tais como o cenário, os participantes (em vários papéis), as ações, e assim por diante. Grosso modo, podemos dizer que os modelos contextuais controlam a parte ‘pragmática’ do discurso e que os modelos de evento controlam a parte ‘semântica’. Compreenderum discurso significa basicamente ser capaz de construir um modelo para esse discurso. E, na produção, é o modelo mental de eventos e de situação que constitui o ponto de partida de todo texto e de toda fala. Dessa forma, o que normalmente recordamos de um discurso não é tanto o seu sentido, mas principalmente o modelo mental que construímos durante a compreensão. No entanto, a teoria do modelo de discurso vai muito mais além do que a explicação do sentido e da variação contextualmente controlada do texto e da fala. Os modelos também constituem a interface crucial entre o discurso e a sociedade, entre o pessoal e o social. Sem esses modelos, somos incapazes de explicar e descrever como as estruturas sociais não só influenciam as estruturas discursivas, mas também são afetadas por essas estruturas do discurso. Isso ocorre em virtude de os modelos mentais representarem não apenas as crenças pessoais, como também as (versões normalmente pessoais das) representações sociais, tais como o conhecimento, as atitudes e as ideologias, que, por sua vez, estão relacionadas com a estrutura de grupos e organizações (veja a seguir). Assim, os modelos mentais dos usuários da 21 língua são a principal interface que teoricamente permite o vínculo entre os grupos sociais, suas representações sociais, os modelos mentais de seus membros e, por fim, o discurso de seus membros. Os modelos mentais explicam como um discurso pode exibir propriedades tanto pessoais quanto sociais, e de fato explicam como é possível que, em uma mesma situação social, cada discurso seja diferente. Do ponto de vista teórico, uma adequada investigação de ACD se concentra nessa complexa série de vínculos. Não existe um vínculo direto entre discurso e sociedade. Cognição social Uma vez que a ACD se interessa pelo poder, pela dominação e pela desigualdade social, os analistas críticos do discurso tendem a se concentrar no estudo de grupos, organizações e instituições. Isso significa que a ACD também necessita dar conta das várias formas de cognição social compartilhadas por essas coletividades sociais: conhecimento, atitudes, ideologias, normas e valores. Embora muitos livros já tenham sido escritos sobre essas ‘representações sociais’, de fato sabemos muito pouco sobre as suas concretas estruturas mentais e sobre o modo como tais estruturas controlam a produção e a compreensão do texto e da fala. Assumo que esse controle adota fundamentalmente duas formas: uma forma direta e uma indireta. Dessa maneira, os elementos ‘conhecimento’ ou ‘atitude’ podem ser expressos diretamente, em sua forma geral ou abstrata, como ocorre, por exemplo, nas orações de caráter genérico típicas do ensino e da propaganda. Assim, nosso texto sobre a Microsoft possui várias dessas orações genéricas que expressam formas gerais de conhecimento ou opiniões, tais como “cada indivíduo possui o direito inalienável da busca da felicidade”. A segunda forma por meio da qual se expressam no discurso essas representações socialmente compartilhadas se dá através dos modelos mentais, isto é, através da sua aplicação a um evento ou situação específicos. Nosso texto é um exemplo clássico dessa ‘aplicação’ de proposições gerais a um caso particular, ou seja, a aplicação das normas, valores e ideologias neoliberais ao caso concreto da Microsoft. Quase todas as sentenças do texto são, portanto, ‘exemplos’ específicos das representações compartilhadas pelos neoliberais. 22 Do ponto de vista teórico, isso significa que as representações sociais são ‘particularizadas’ em modelos mentais, e que, com frequência, é através dos modelos mentais que essas representações sociais são expressas no texto e na fala. E, por outro lado, é através dos modelos mentais do discurso cotidiano – como as conversações, as notícias jornalísticas e os livros-texto – que adquirimos nosso conhecimento sobre o mundo, sobre nossas atitudes socialmente compartilhadas e, por fim, sobre nossas ideologias e nossas normas e valores fundamentais. Temos agora uma imagem bastante aproximada do modo como os grupos e os detentores de poder tornam-se capazes de exercer influência sobre o discurso e vice-versa, ou seja, através das representações sociais compartilhadas pelos grupos e dos modelos mentais que, por sua vez, constituem exemplos particulares dessas representações sociais. As teorias aqui implicadas são extraordinariamente complexas e muitos aspectos desse tema ainda permanecem obscuros, mas já possuímos uma imagem geral dos principais componentes e relações envolvidos. Vamos fazer apenas algumas observações gerais acerca das principais formas de representação social ora envolvidas: Conhecimento É importante fazermos uma distinção entre os diferentes tipos de conhecimento, quais sejam: o conhecimento pessoal, o conhecimento grupal e o conhecimento cultural. O conhecimento pessoal é representado em modelos mentais acerca de eventos específicos, pessoais, como explicado anteriormente. O conhecimento grupal é aquele compartilhado por grupos sociais específicos, tais como profissionais, movimentos sociais ou empresas comerciais. Esse conhecimento pode ser tendencioso e ideológico, e não ser reconhecido em absoluto como ‘conhecimento’ por outros grupos, sendo então considerado como mera ‘crença’. Evidentemente, as crenças de alguns grupos exercem maior influência, poder e legitimidade que as de outros grupos, como no caso do discurso científico. O conhecimento cultural é compartilhado por todos os membros competentes de uma sociedade ou cultura, e constitui a base ou o fundamento comum de todos os discursos e práticas sociais. De fato, em princípio todo conhecimento culturalmente compartilhado pode assim ser pressuposto no discurso público. É claro que esse fundamento de conhecimento comum muda constantemente, e o que era uma base comum ontem pode ser hoje uma crença ideológica de grupo (como é o caso da religião cristã), ou vice-versa, como ocorre com grande parte do conhecimento acadêmico. Os discursos são como icebergs em que são expressas apenas algumas formas específicas do conhecimento (contextualmente relevante), e uma grande porção do conhecimento pressuposto é parte da base sociocultural comum compartilhada. 23 Muitas das propriedades do discurso – tais como os tópicos gerais, a coerência local, os pronomes, as metáforas e muitas outras – necessitam de uma definição em termos desse tipo de conhecimento cultural socialmente compartilhado. A organização do conhecimento na memória tem constituído um dos principais desafios teóricos, para os quais muitas propostas vêm sendo formuladas, como por exemplo, em termos de scripts, esquemas, cenários e muitas outras. Essas propostas são relevantes não apenas para a ciência cognitiva, mas também para a ACD, uma vez que essas estruturas de conhecimento (seja diretamente, seja através de modelos) também organizam as estruturas do discurso. Atitudes As atitudes são opiniões socialmente compartilhadas, tais como as opiniões que as pessoas compartilham acerca da imigração, do aborto ou da energia nuclear. Essas atitudes são normalmente complexas, isto é, são compostas por um conjunto de proposições valorativas. Do mesmo modo como o conhecimento geral pode influenciar os modelos mentais, as proposições gerais das atitudes também podem ser ‘particularizadas’ como opiniões pessoais específicas presentes nos modelos mentais, tal como ocorre no caso das opiniões do Centro para a Defesa Moral do Capitalismo sobre o pleito contra a Microsoft. Ideologias Por fim, defino ideologias como as representações sociais básicas dos grupos sociais. As ideologiasse encontram na base do conhecimento e das atitudes de grupos como os socialistas, os neoliberais, os ecologistas, as feministas e também as antifeministas. Todos eles provavelmente possuem uma estrutura esquemática que representa a autoimagem de cada grupo, o que inclui dispositivos de pertença grupal, objetivos, atividades, normas e recursos de cada grupo. As ideologias contêm os princípios básicos que organizam as atitudes compartilhadas pelos membros de um grupo. Dessa maneira, uma ideologia racista pode organizar as atitudes sobre a imigração, a educação e o mercado de trabalho. Em nosso texto, podemos falar que praticamente todas as atitudes gerais sobre a relação entre o Estado e as empresas, tal como exemplificado pelo caso da Microsoft, são organizadas por uma ideologia neoliberal. 24 Discurso e sociedade Serei breve no que diz respeito à terceira dimensão do marco teórico: a relação entre discurso e sociedade. Essa relação é trabalhada com maiores detalhes nos demais trabalhos deste livro. E muitos dos aspectos do discurso e da cognição abordados anteriormente (como o conhecimento e a ideologia) são, ao mesmo tempo, sociais. Sugeri que a sociedade também pode ser analisada em termos mais locais e mais globais, primeiramente no plano da interação e das situações e, em segundo lugar, no plano dos grupos, das organizações sociais, das organizações e das instituições. Estas últimas, que configuram a estrutura social, podem se relacionar com o discurso apenas de duas maneiras: em primeiro lugar, através das representações sociais que os membros da sociedade possuem acerca dessas estruturas sociais; e, em segundo, através da materialização das estruturas sociais (tais como grupos e organizações) por meio dos atores sociais, das interações e das situações no plano local e micro. Em outras palavras, há uma forma cognitiva e uma forma social de relacionar os famosos planos de diferenciação na explicação sobre a estrutura social. Assim, a ACD pode estar interessada em macronoções como poder e dominação, mas seu efetivo objeto de estudo tem lugar no microplano do discurso e das práticas sociais. Deixem- me fazer alguns comentários sobre alguns desses conceitos. Situações sociais Como vimos anteriormente, a estrutura das situações sociais é especialmente relevante para uma teoria do contexto. O discurso é frequentemente definido como um evento comunicativo que ocorre em uma situação social, apresentando cenário, participantes desempenhando diferentes papéis, ações e assim por diante. Também já vimos que essas características situacionais apenas são relevantes para o discurso quando apresentadas através de representações mentais, ou seja, sob a forma de modelos contextuais. Em outras palavras, podemos até ter uma teoria das situações sociais para explicar os contextos, mas novamente precisamos da interface cognitiva para transformá-las em ‘estruturas de relevância’ a que chamamos contextos. Em nosso exemplo, para ser possível compreender o texto da petição, é também necessário compreender – e, por conseguinte, construir – a situação comunicativa, apresentando um site da Internet como meio de comunicação, e tanto o Centro quanto o usuário como participantes. Isto é, o ato de fala da petição só pode ser entendido como sendo algo dirigido ao (ou a algum) usuário da Internet que leia esse texto. Do mesmo 25 modo, também só pode ser entendido considerando-se a linguagem e os argumentos persuasivos como sendo dirigidos àquele usuário, mas, ao mesmo tempo, dirigidos aos destinatários finais da petição: o Presidente e os políticos. Ação A ACD está interessada não apenas pelos atos de fala, mas também por muitas outras ações, interações e práticas sociais que são observadas através do discurso ou que representam condições ou consequências do texto e da fala, constituindo uma parte relevante do que defini anteriormente como contexto. Desse modo, uma declaração no Congresso Nacional pode ser composta por afirmações ou acusações contra as políticas do governo, mas várias outras ações sociais e políticas também podem encontrar-se, em diversos planos, significativamente envolvidas, tais como as ações de criticar o governo, estar na oposição, representar os eleitores e legislar. Em outras palavras, para compreender o que está acontecendo no discurso, precisamos construí-lo como uma instância ou como parte de muitas outras formas de ação em diversos planos de análise social e política. Assim, no texto da petição, uma organização solicita que os usuários da Internet assinem a petição, mas o Centro está fazendo muito mais que isso – está defendendo a Microsoft, atacando o governo dos Estados Unidos, persuadindo os usuários da Internet e, por fim, advogando em favor dos princípios empresariais neoliberais. Compreender esse texto, tanto como usuário quanto como analista, significa compreender essas ações e o modo como se relacionam com as estruturas discursivas. Obviamente, como sugerido acima, essas interpretações sociopolíticas requerem a existência de crenças socialmente compartilhadas que não estão expressas de forma explícita, mas pressupostas nesse texto. Atores É possível tecer acerca dos atores observações similares às que tecemos acerca das ações. Os atores são categorias constitutivas das situações sociais e, como partes das situações comunicativas, desempenham vários papéis comunicativos, tais como os vários tipos de falantes, escritores e produtores, bem como os vários tipos de destinatários. Os atores podem ser definidos tanto localmente, como indivíduos, quanto globalmente, em termos de grupos, organizações ou instituições. Em nosso texto ilustrativo, por exemplo, o escritor ou produtor global desse texto da Internet é o Centro para a Defesa Moral do Capitalismo, apesar de, localmente, o texto ter sido 26 escrito provavelmente por um empregado do Centro. De maneira análoga, o texto é endereçado a (qualquer) usuário da Internet, ou seja, a um indivíduo não identificado e, indiretamente, a toda comunidade da Internet e a qualquer pessoa que tenha acesso ao texto. Esses e outros papéis organizam muitos dos aspectos do texto, tais como as formas de se dirigir ao destinatário e de lhe fazer uma solicitação (“Assine a petição”). Note não só que esses atores definem a situação comunicativa, mas também que o discurso ‘citado’ (a petição) possui seus próprios destinatários (o Presidente e assim por diante, e por fim o povo americano). Mais uma vez, um interessante estudo de ACD acerca desse texto deveria analisar as complexas estruturas participativas dos atores sociais e políticos envolvidos (tanto no plano individual quanto no coletivo), e observar, por um lado, como esses atores são situacional ou semanticamente representados ou, por outro lado, de que forma se encontram relacionados à estrutura do discurso. Estruturas sociais Já vimos que as situações locais de interação produzem, manifestam ou materializam estruturas sociais globais. Os participantes falam e ouvem desempenhando o papel de mulheres, mães, advogados, membros de partido político ou executivos de uma empresa. Suas ações, incluindo suas ações discursivas, realizam atos e processos sociais mais amplos, tais como os de legislação, educação, discriminação e dominação, frequentemente no centro de marcos institucionais como os parlamentos, as escolas, as famílias ou os institutos de pesquisa. A ACD está interessada principalmente pelo papel do discurso na constituição e reprodução do poder e do abuso de poder (dominação) e, portanto, está particularmente interessada no estudo detalhado da interfaceentre o local e o global, entre as estruturas do discurso e as estruturas da sociedade. Vimos anteriormente que esses vínculos não são diretos, uma vez que necessitam de uma interface cognitiva e interacional: as representações sociais – incluindo aqui as atitudes e as ideologias – normalmente necessitam ser mediadas por modelos mentais, com o propósito de se manifestarem claramente no discurso; por seu turno, esse discurso só possui efeitos e funções sociais quando contribui para a formação ou confirmação das atitudes sociais e das atitudes. Ademais, a dominação pelo grupo racial branco só pode ser ‘implementada’ quando os membros desse grupo efetivamente se engajam em tais discursos depreciativos que corporificam a discriminação. Desse modo, o racismo ou o sexismo não são meros sistemas abstratos de desigualdade social e dominação; antes, ‘penetram’ profundamente nas formas da vida cotidiana, sobretudo através de crenças, ações e discursos dos membros do grupo. 27 Temos feito observações similares na análise do nosso texto ilustrativo. Com o propósito de compreender e explicar plenamente esse texto (e suas estruturas), necessitamos não apenas detalhar suas condições e consequências cognitivas e contextuais, mas também estudar as estruturas sociais mais amplas nas quais se baseiam, no limite, tais cognições e contextos, e que contribuem, ao mesmo tempo, para a sua manutenção e reprodução. Já vimos acima como, ao longo de todo o texto e em todos os planos, a opinião negativa sobre o governo americano no caso da Microsoft encontra-se vinculada à ideologia neoliberal geral do livre mercado, segundo a qual os ‘empresários’ criativos são os heróis, enquanto o governo (e seu sistema judiciário) são os inimigos, contra cujos ataques o Centro desempenha seu papel específico de ‘defensor’ dos valores capitalistas. Isto é, a ideologia – tal como implementada nos modelos mentais construídos para o caso da Microsoft e tal como expressa mais ou menos diretamente no texto – necessita estar vinculada a grupos sociais, organizações, estruturas e relações de poder. De fato, o texto em questão é, quanto a esse aspecto, apenas uma dentre a miríade de ações (discursivas e de outros tipos) realizadas pela comunidade empresarial em sua luta de poder com o Estado. Só podemos compreender esse texto em sua essência, juntamente com suas estruturas e funções, se alcançarmos o mais alto nível de análise social. Observações finais Esse permanente vínculo de sobe-e-desce e desce-e-sobe do discurso e da interação com as estruturas sociais é o que constitui uma das características mais típicas da ACD. Desse modo, a análise do discurso é, ao mesmo tempo, uma análise cognitiva, social e política, mas se concentra sobretudo no papel que os discursos desempenham, tanto no plano local quanto no global, na sociedade e em suas estruturas. As relações relevantes atuam nos dois sentidos. As estruturas sociais (tais como os grupos e as instituições), do mesmo modo que as relações gerais (tais como o poder) ou que os atos sociais globais (tais como a legislação e a educação), definem as restrições gerais sobre os discursos e as ações locais. Essas restrições podem ser mais ou menos fortes, e vão de normas e obrigações estritas (por exemplo, as formuladas pelo Direito, tais como os atos de juízes ou de membros do Congresso Nacional) a normas mais flexíveis ou ‘brandas’, como as regras de cortesia. Além disso, essas restrições podem afetar propriedades do discurso tão diversas como aquelas relativas aos moves ou movimentos da interação, ao interlocutor que controla a troca de turnos ou inicia uma conversação, aos atos de fala, à seleção de temas, à coerência local, ao estilo lexical ou às figuras de retórica. E, por outro lado, essas estruturas discursivas podem ser interpretadas (ou consideradas) como ações que constituem instâncias 28 ou elementos componentes de atos sociais ou políticos de tão ampla condição global como as políticas de imigração ou as reformas educacionais. É precisamente nesses vínculos que encontramos o ponto crucial para uma análise crítica do discurso. A mera observação e análise da desigualdade social com elevados níveis de abstração é um exercício próprio das ciências sociais; já o mero estudo da gramática discursiva, da semântica, dos atos de fala ou dos movimentos da conversação é tarefa geral de linguistas e de analistas do discurso e da conversação. Os analistas do discurso social e político, por sua vez, estão interessados especificamente na explicação detalhada da relação entre as duas vertentes traçadas acima. Como já observamos na análise parcial do nosso exemplo, a dimensão crítica crucial dessa dimensão sociopolítica é finalmente obtida através dos objetivos específicos dessa investigação, tais como o enfoque no modo como o discurso se encontra implicado na reprodução da dominação. Isso também significa que a ACD requer uma ética explícita. A dominação – definida como abuso de poder – pressupõe uma definição de abuso, como por exemplo, em termos de violação das normas e dos direitos humanos e sociais. Essas definições éticas são formuladas no macronível dos grupos, dos movimentos, das instituições e dos estados-nação, normalmente com relação a seus membros. A ACD está especificamente interessada na dimensão social desses abusos e, portanto, deve expressar em detalhes as condições em que se produzem as violações discursivas aos direitos humanos, que ocorrem, por exemplo, quando os jornais publicam reportagens preconceituosas sobre as minorias, quando os administradores se envolvem com (ou toleram) o sexismo dentro da empresa ou da organização, ou ainda quando os legisladores promulgam normas políticas neoliberais que fazem o rico se tornar cada vez mais rico, e o pobre, cada vez mais pobre. Leituras complementares CALDAS-COULTHARD, C.; COULTHARD, M. (Eds.). 1996. Texts and practices: readings in Critical Discourse Analysis. London, Routledge. Esta é provavelmente a primeira coletânea de artigos que foram publicados com o rótulo de ACD. Apresenta bons artigos que foram escritos por proeminentes acadêmicos de muitos países (incluindo os que se encontram fora da Europa ou da América do Norte) e que abordam tanto o discurso escrito quanto o discurso falado, em diferentes contextos. 29 FOWLER, R.; HODGE, B.; KRESS, G.; TREW, T. 1979. Language and control. London, Routledge and Kegan Paulo. Este é o livro que difundiu o trabalho realizado pela linguística crítica e, assim, pela ACD. É considerado um obra clássica, em conjunto com o estudo de Tony Trew sobre os aspectos sintáticos da descrição negativa dos membros não pertencentes ao grupo (orações ativas versus orações passivas e assim por diante). VAN DIJK, T.A. 1993. Elite discourse and racism. London, Sage. Esta obra resume grande parte do meu trabalho sobre discurso e racismo, realizado na década anterior à publicação do livro, e observando como esse tema é abordado nos meios de comunicação e nos livros didáticos. Em seguida, são acrescentados os resultados de novas pesquisas acerca dos debates parlamentares, do discurso acadêmico e do discurso corporativo, chegando à conclusão de que a mais influente (e mais negada) forma de racismo é o das elites. VAN DIJK, T.A. 1998. Ideology. London, Sage. A primeira parte de um longo projeto sobre ideologia e discurso, no qual é traçado um marco fundamental de uma nova teoria multidisciplinar da ideologia, relacionando cognição, sociedade e discurso. São mostrados exemplos de ideologias racistas. Este livro também apresenta as bases do componente ideológico de uma teoria da ACD.
Compartilhar