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1 FRANCISCO PAULO DE CRESCENZO MARINO INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO Trecho adaptado para uso dos alunos 2010 2 5. O PROCESSO INTERPRETATIVO EM GERAL. O processo interpretativo, em geral, responde ao problema epistemológico do entender1. A interpretação é a ação cujo êxito ou evento útil é o entendimento. Independentemente de suas diferentes aplicações, precisamente na medida em que responde ao problema do entender, o processo interpretativo é único e idêntico em seus elementos fundamentais. Essa unicidade permitiu a BETTI cunhar uma teoria geral da interpretação, bem como elaborar quatro cânones hermenêuticos (V. ITEM 6). Tal como se dá em qualquer processo cognoscitivo, o processo interpretativo se desenrola entre certos termos (subjetivo e objetivo). Mas, no caso da interpretação, esses termos têm características especiais. 5.1. OBJETO DA INTERPRETAÇÃO. CONCEITO DE FORMA REPRESENTATIVA. Não pode haver interpretação sem a presença de uma forma representativa, que é precisamente o objeto da interpretação. Nessa expressão, a palavra forma é entendida no sentido (amplíssimo) de “relação unitária de elementos sensíveis, idônea a conservar a marca de quem a criou”2. Já a qualificação da forma (representativa), que também é sua função (forma com 1 BETTI, Teoria generale della interpretazione, volume I, cit., pp. 258 e ss. e passim. 2 Este conceito de forma, empregado por BETTI, foi delineado por ADELCHI BARATONO (Il mio paradosso, Filosofi italiani contemporanei, 1947, pp. 24 e ss.; e Arte e poesia, 1945, 175, cfr. 135-36; apud BETTI, Categorie civilistiche dell’interpretazione, Milano: Giuffrè, 1999 (reimpressão da edição de 1948), p. 3, nota 5; Teoria generale della interpretazione, volume I, cit., p. 62, nota 8). BETTI aponta, ademais, as seguintes indicações bibliográficas do conceito de forma representativa: “Conforme ainda SEGOND, Psychologie, n. 68-69; ROLAND-MANUEL, Plaisir de la musique (1947), I, 274 sg.; W. M. URBAN, Language and reality, 121 (que designa as formas representativas como « expressions »). O conceito de forma representativa tem um outro precedente. Um análogo conceito de « representamen » foi elaborado por CH. S. PEIRCE, Collected papers, I (1931). §564: ele escrevia: « assim como ‘representação’ é o caráter de uma coisa, em virtude do qual essa pode estar no lugar de uma outra para produzir um certo processo mental ou pensamento, assim se avança a proposta de designar: a) a coisa dotada de tal caráter, ‘representamen’, b) o processo mental, o seu ‘interpretant’ (vale dizer: a parte subjecti, ‘chave interpretativa’; a parte objecti, ‘incitamento, solicitação’), c) a coisa em cujo lugar essa está, o seu ‘object’ (ou seja, a objetividade ou alteridade, a que o sentido é referido). » Cfr. no mesmo local, ainda §541 em MORRIS, Signs, language, and behavior (1946), 289-90.” (Teoria generale della interpretazione, volume I, cit., p. 62, nota 8). 3 função representativa), deve ser entendida no sentido de que, mediante a forma, um espírito alheio, porém afim ao do intérprete3, manifesta-se a ele, fazendo apelo à sua sensibilidade e inteligência. A forma representativa é, desse modo, uma objetivação do espírito4, isto é, um meio pelo qual a manifestação (em sentido amplo) de um sujeito pode alcançar a sensibilidade e a inteligência alheias, em atenção à exigência de recognoscibilidade que rege a vida social e a comunicação entre as pessoas.5 Na vida em sociedade, a função representativa ou semântica cabe sobretudo à linguagem, quer se trate de linguagem escrita ou composta de sinais expressivos diversos (v.g., imagens e sons).6 A forma representativa, como parece evidente, não se resume à declaração que intencionalmente busca transmitir uma mensagem, mas também compreende, exemplificativamente, produtos de linguagens não articuladas (como a linguagem musical), comportamentos pessoais e gestos.7 3 A afinidade entre o intérprete e o espírito que se manifesta por meio da forma representativa será importante para entender o quarto cânone hermenêutico bettiano. 4 “Espírito”, neste contexto, será primordialmente espírito humano, muito embora a natureza animal, enquanto constitua “espírito”, poderá ser objeto de uma interpretação situada na fronteira com a “explicação especulativa”. Esta, por sua vez, caracteriza-se pela atribuição de um significado à luz de uma concepção prévia do intérprete, contrariando a regra hermenêutica pela qual o sentido não deve ser introduzido, porém extraído do objeto (sensus non est inferendus, sed efferendus). Nesse sentido, BETTI: “Certamente, no traçar os confins entre espírito e natureza, não há necessidade de identificar o espírito com o humano, já que este pode ser encontrado também na natureza animal. Mas esta, enquanto seja espírito, somente pode ser objeto de uma interpretação adivinhatória, que está no limite entre interpretação e explicação especulativa (Deutung), como se vê nas sugestivas « interpretações » de LEOPARDI, de PASCOLI, de H. FABRE, e de outros naturalistas estudiosos da psicologia animal, como KNOTTERUS-MEYER.” (Teoria generale della interpretazione, volume I, cit., p. 99). 5 BETTI, Teoria generale della interpretazione, volume I, cit., p. 63. 6 BETTI, Teoria generale della interpretazione, volume I, cit., pp. 65 e 66. 7 “Sempre que nos encontramos na presença de formas sensíveis, mediante as quais outro espírito, nelas objetivado, fala ao nosso, apelando à nossa inteligência, entra em movimento a nossa atividade interpretativa, para entender qual o sentido daquelas formas, qual mensagem enviam, que coisa querem dizer. Do vivo e lábil discurso falado ao imóvel documento e monumento, da escritura ao signo convencional, à cifra e ao símbolo artístico, da linguagem articulada, poética, narrativa, dedutiva, à linguagem não articulada, como a figurada e a musical, da declaração ao gesto mudo e ao comportamento pessoal, da fisionomia e da expressão do rosto à linha de conduta e ao estilo do comportamento, tudo quanto do espírito alheio nos alcance, provoca um apelo, uma chamada e uma mensagem à nossa sensibilidade e inteligência para ser entendido.” (BETTI, Teoria generale della interpretazione, volume I, cit., pp. 59 e 60). 4 Não se deve, contudo, confundir (i) o documento, enquanto conjunto de signos materiais que é o suporte ou o instrumento da forma representativa; (ii) a forma representativa em si mesma; e (iii) o conteúdo representado (sentido ou pensamento).8 O caráter objetivo da forma representativa permite, ademais, compreender que o objeto da interpretação nunca é a vontade como tal, mas sempre e somente a forma, mediante a qual a vontade é explicada e atuada; não se interpreta a vontade, mas “aquilo que foi dito e aquilo que foi feito”9. Embora a vontade nunca seja o objeto da interpretação, poderá – assim como o sentido lógico ou o sentido estético – ser aquilo que é extraído do objeto da interpretação, por meio do processo interpretativo. A vontade será, então, o resultado do processo interpretativo, uma meta a ser alcançada com a interpretação.10 Quando se alude à “interpretação da vontade” – e aqui novamente a observação é de BETTI –, “ou se alude ao êxito do processo interpretativo e se usa uma frase imprópria, seja porque se confunde a ação com o evento, seja porque se designa, ao menos para a lei, a vis ac potestas normativa (entidade irredutível ao plano psicológico); ou se refere ao objeto e se adota uma fórmula equívoca, porque, ao invés da vontade, alude elipticamente às suas explicações objetivasna vida social, ou, se por ‘vontade’ se entende em sentido próprio uma pura entidade psicológica interna, induz a pensar que a interpretação possa prescindir de uma forma representativa: o que é um absurdo.”11 5.2. SUJEITOS DA INTERPRETAÇÃO. A interpretação não se esgota, contudo, na relação entre a forma interpretativa e o respectivo intérprete. Ao contrário do que ocorre na “simples situação sinalética ou indutiva”, processo cognoscitivo que se exaure na indução de uma ilação a 8 BETTI, Teoria generale della interpretazione, volume I, cit., p. 108. 9 BETTI, Categorie civilistiche dell’interpretazione, cit., p. 6; Teoria generale della interpretazione, volume I, cit., p. 69. 10 BETTI, Teoria generale della interpretazione, volume I, cit., p. 69. 11 Teoria generale della interpretazione, volume I, cit., p. 70. 5 partir de um objeto, a interpretação (que também é um processo cognoscitivo baseado em signos linguísticos) contém uma dimensão adicional. Qualificada como processo epistemológico, a interpretação busca relacionar dois sujeitos por intermédio de um objeto, não sendo este tomado como puro signo, porém como objetivação de um espírito. A forma representativa atua, portanto, como termo intermediário entre o intérprete e o sujeito cujo espírito se objetivou naquela forma.12 Daí a qualificação do processo interpretativo como triádico: trata-se de “um processo que se desenvolve entre três termos: a) um sujeito, ao qual chega a mensagem do semantema e que é chamado a entendê-lo; b) um objeto, que é «expression», «Gestalt», semantema ou forma representativa, do qual provém a mensagem; c) um outro sujeito, atual ou virtualmente presente, que é fulcro do sentido e fala mediante o objeto. Se, com uma comparação grosseira, mas bastante óbvia, se quisesse figurar o objeto intermédio, que funciona de trâmite entre um e outro sujeito, como um fio condutor ou transmissor, poder-se-ia dizer que neste processo triádico o espírito interpretante sente um outro espírito que lhe «fala» do outro lado do fio: ao passo que na simples situação sinalética o sujeito apenas extrai do objeto uma ilação (de um fato a outro fato) e um estímulo a reagir.”13 Como corolário, a tarefa do intérprete não é um conhecimento qualquer. Aqui, o conhecer é um reconhecer e reconstruir o espírito que, por meio da forma, fala ao espírito pensante; um interiorizar e transpor o conteúdo dessa forma para uma subjetividade diversa daquela originária. 12 BETTI, Teoria generale della interpretazione, volume I, cit., pp. 72, 73, 107 e 205. O autor realiza uma interessante comparação entre a semiótica e a hermenêutica, concluindo: “Esta exposição será talvez suficiente para mostrar – sem necessidade de descer a uma aprofundada crítica do mérito – que a problemática da teoria dos signos, ou semiótica, angloamericana move-se de um interesse essencialmente distinto daquela que informa a teoria hermenêutica. Aquilo que interessa à semiótica é o fenômeno psicológico do comportamento animal, enquanto reage a certas situações sinaléticas com atitudes que exprimem ilações (« interpretações », neste sentido latíssimo) e que estão sujeitas à observação naturalística e a valorações quantitativas. [...] Ao contrário, aquilo que interessa, e sempre interessou desde as origens, à teoria hermenêutica, é propriamente o processo espiritual do entender, com o qual um espírito pensante responde à mensagem de outro espírito, que lhe fala mediante formas representativas. E justamente este diverso interesse orienta a indagação científica, ao invés de na direção ao fenômeno psicológico, em direção ao processo epistemológico mercê do qual o entender é alcançado; a orienta, isto é, em direção ao processo interpretativo: processo que é interrogado com uma problemática essencialmente gnoseológica.” (ob. cit., pp. 95 e 95). 13 BETTI, Teoria generale della interpretazione, volume I, cit., p. 205. 6 Entretanto, a noção de forma representativa não deve conduzir à conclusão de que as formas são “invólucros” ou “embalagens” cuja troca opera uma transmissão e recepção do pensamento encerrado nas formas. Ao contrário, o que se recebe é somente um estímulo cujo escopo é suscitar, no outro, idéias correspondentes àquelas de quem fala, um incitamento para vibrar em harmonia com tal estímulo.14 O ponto delicado do processo interpretativo está precisamente nessa transposição, da qual nasce a antinomia entre duas exigências, às quais a interpretação deve igualmente obedecer. A primeira delas é de objetividade, isto é, de subordinação à forma representativa (objeto da interpretação). A reprodução – o repensar – deve ser ao máximo fiel ao valor expressivo da forma representativa. Afinal, o sentido que deve ser extraído caracteriza-se pela alteridade em relação ao sujeito intérprete. A segunda exigência diz respeito à inexorável subjetividade do intérprete. O repensar, o reproduzir são feitos de fora para dentro, como qualquer coisa que se torna própria do intérprete, que é por ele apropriada, de que ele se apossa (e, embora esse algo seja tornado próprio do intérprete, como parte de seu mundo de representações e de conceitos, é sempre objetivo e alheio a ele; poder-se-ia dizer que é algo objetivo “tornado subjetivo”). Dessa antinomia de exigências, brota a dialética do processo interpretativo, sobre a qual BETTI constrói as categorias interpretativas a seguir expostas. 6. OS QUATRO CÂNONES HERMENÊUTICOS DE EMILIO BETTI. No âmbito da teoria geral da interpretação, BETTI delineou quatro critérios metodológicos15 cuja observância garante o controle do desenvolvimento e do resultado 14 BETTI, Teoria generale della interpretazione, volume I, cit., p. 64. 15 Estes critérios encontram-se no capítulo III da Teoria generale della interpretazione, dedicado à “metodologia hermenêutica”. 7 do processo interpretativo, e, por essa via, uma relativa objetividade do entendimento. São os chamados cânones hermenêuticos16. Os cânones bettianos constam de uma aula inaugural do curso de Direito Civil, proferida por BETTI em 15 de maio de 1948 na Università degli Studi di Roma “La Sapienza”. Inicialmente publicada na Rivista italiana per le scienze giuridiche (1948, n.º 55, pp. 34 a 92), esta conferência foi também publicada como separata, sob o título Le categorie civilistiche dell’interpretazione17, integrando ainda, posteriormente, a obra Interpretazione della legge e degli atti giuridici.18 O título em questão é criticado por GIUSEPPE BENEDETTI, para quem o artigo contém muito pouco de civilístico, destinando-se, ao contrário, a fixar com grande lucidez as categorias gerais da interpretação.19 A explicação para o caráter geral das categorias ou cânones hermenêuticos formulados nos é dada, no entanto, pelo próprio BETTI: “No campo do direito, o território mais fértil de questões interpretativas tem sido, desde antigamente, o do Direito Civil. O que não é sem uma profunda razão. Em nenhum outro setor, em verdade, é tão férvida a interpenetração de relações entre sujeitos de direito postos em plano de recíproca paridade. [...] Os peculiares caracteres deste território explicam também o fato de que, precisamente no Direito Civil, foram descobertos pela primeira vez, isto é, encontraram aquilo que com Jhering [Geist, 7.ª ed., II, 338] chamaremos o seu ponto de “emersão” histórica, cânones hermenêuticos fundamentais, os quais, elaborados primeiramente como categorias civilísticas neste ramo do direito, foram seguidamente reconhecidos como idôneos a governar a interpretação também em outros ramos, e, mais justamente, foram recentemente atribuídos à teoria geral da interpretação.”20Examinemos, então, estas categorias interpretativas. 16 O exposto a seguir encontra-se principalmente em duas obras de BETTI: Le categorie civilistiche dell’interpretazione, cit.; e Teoria generale della interpretazione, volume I, cit., pp. 304 e ss. 17 Le categorie civilistiche dell’interpretazione, Milano: Giuffrè, 1999 (reimpressão da edição de 1948). 18 Interpretazione della legge e degli atti giuridici, cit., pp. 3 a 56. 19 “L’interpretazione dell’atto di autonomia privata tra teoria generale e dogmatica nel pensiero di E. Betti. Un paradosso”, L’ermeneutica giuridica di Emilio Betti (aos cuidados de VITTORIO FROSINI e FRANCESCO RICCOBONO), Milano: Giuffrè, 1994, p. 17. 20 Categorie civilistiche dell’interpretazione, cit., pp. 10 e 11. 8 6.1. AUTONOMIA HERMENÊUTICA. Dos quatro cânones, os dois primeiros referem-se à forma representativa, ao passo que os dois últimos ao intérprete. O primeiro cânone atinente ao objeto da interpretação é o cânone da autonomia hermenêutica, ou da imanência do critério hermenêutico. Sendo a forma representativa, por sua própria essência, uma objetivação do espírito, uma manifestação do pensamento alheio, ela logicamente deve ser entendida e interpretada de acordo com aquele espírito que nela é objetivado, à luz daquele pensamento que nela é manifestado, e não em vista de outro espírito ou pensamento, ou, o que é pior, como se se tratasse de forma “nua”, despida de função representativa. Em outras palavras, sensus non est inferendus, sed efferendus, isto é, o sentido não deve ser indevida e sub-repticiamente introduzido pelo intérprete, porém extraído da forma representativa. Essa deve ser entendida em sua autonomia, conforme sua própria lei de formação, sua interior necessidade, coerência e racionalidade. A forma representativa deve ser apreciada à luz da exigência que buscou satisfazer para o seu autor, e não de acordo com sua idoneidade para servir a um escopo extrínseco, deduzido de fora pelo intérprete. A consciência desse cânone fundamental aflora já nas palavras de CELSO (Cels. 26 dig., D. 1, 3, 17: ao interpretar a lei, não se deve atender à letra nua, mas sim à sua vis ac potestas21; e Cels. 19 dig., D. 33, 10, 7, 222). 21 “Scire leges non hoc est verba earum tenere, sed vim ac potestatem.” Na tradução de CARLOS MAXIMILIANO: “Saber as leis não é conhecer-lhes as palavras, porém a sua força e poder.” (Hermenêutica e aplicação do direito, 18.ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 34). 22 “Servius fatetur sententiam eius qui legaverit aspici oportere, in quam rationem ea solitus sit referre: verum si ea, de quibus non ambigeretur, quin in alieno genere essent, ut puta escarium argentum aut paenulas et togas, supellectili quis adscribere solitus sit, non idcirco existimari oportere supellectili legata ea quoque contineri: non enim ex opinionibus singulorum, sed ex communi usu nomina exaudiri debere. Id Tubero parum sibi liquere ait: nam quorsum nomina, inquit, nisi ut demonstrarent voluntatem dicentis? Equidem non arbitror quemquam dicere, quod non sentiret, ut maxime nomine usus sit, quo id appellari solet: nam vocis ministerio utimur: ceterum nemo existimandus est dixisse, quod non mente agitaverit. Sed etsi magnopere me Tuberonis et ratio et auctoritas movet, non tamen a Servio dissentio non videri quemquam dixisse, cuius non suo nomine usus sit. Nam etsi prior atque potentior est quam vox mens 9 6.2. TOTALIDADE E COERÊNCIA DA CONSIDERAÇÃO HERMENÊUTICA. O segundo cânone hermenêutico objetivo é o da totalidade e coerência da consideração hermenêutica. Deve-se ter presente a correlação existente entre as partes constitutivas de qualquer manifestação do pensamento e a referência ao todo do qual fazem parte. Essa correlação torna possível a recíproca iluminação de significado entre o todo e seus elementos constitutivos (entender a unidade do todo por meio das partes e entender o valor das partes por meio da unidade do todo). O processo interpretativo se desenvolve mediante uma progressiva contextualização das partes no todo. Há uma gradual progressão na direção da compreensão. Parte-se dos elementos singulares em direção aos núcleos nos quais eles se organizam, e finalmente alcança-se o todo. A compreensão, inicialmente provisória, vai-se aperfeiçoando, corrigindo-se e integrando-se, de modo que só ao final do processo os elementos resultam representados com contornos precisos23,24. dicentis, tamen nemo sine voce dixisse existimatur: nisi forte et eos, qui loqui non possunt, conato ipso et sono quodam ‘inarticulata voce’ dicere existimamus.” Na tradução italiana de GIOVANNI VIGNALI: “Servio confessa, che si deve guardare al pensiere di colui che negò (sic), in quale categoria sia stato solito riportare quelle cose: ma se quelle cose delle quali dubitar non potevasi che fossero di un altro genere (come un vaso da mangiare in argento, o mantelli e toghe), uno sia stato solito assegnarle alle suppellettili, non perciò bisognava credere, che quelle ancora si contenessero nelle suppellettili legate: giacchè i vocaboli non si dovevano intendere a tenore delle opinioni dei singoli, ma secondo l’uso comune. Tuberone dice, sembrargli ciò meno chiaro: giacchè (ei dice) a che i nomi, se non per dimostrare la volontá di chi parla? In verità non credo, che uno dicesse ciò che non pensa, onde siasi servito specialmente del vocabolo col quale suole nominarsi: poichè usiamo del ministero della voce: del resto non deve credersi che taluno abbia pronunziato ciò che non abbia macchinato nel pensiero. Ma quantunque molto peso mi faccia e la ragione e l’autorità di Tuberone, pure non dissento da Servio, cioè non sembrare che uno abbia detto una cosa del cui vocabolo non siasi servito: giacchè, quantunque il pensiero di chi parla sia antecedente e più potente che la voce, pure non si crede che alcuno abbia parlato senza vocabolo: se pure non crediamo, che coloro i quali parlar non possono, il facciano col conato stesso e con un certo suono, cioè ‘con voce inarticolata’.” (Corpo del diritto, vol. V, (Digesto, vol. IV), Napoli: Achille Morelli, 1857, p. 1361). 23 Categorie civilistiche dell’interpretazione, cit., pp. 12 e 13. Nesse ponto, BETTI reporta-se às lições do teólogo e filósofo alemão FRIEDRICH DANIEL ERNST SCHLEIERMACHER (alguns dos seus textos foram reunidos na obra Hermenêutica – Arte e técnica da interpretação, tradução e apresentação de Celso Reni Braida, 2.ª edição, Petrópolis: Vozes, 2000). 24 Importante notar que a compreensão nunca poderá ser tida como definitiva, como, aliás, o próprio BETTI adverte. 10 O critério da iluminação recíproca entre parte e todo comporta um desenvolvimento ulterior: cada obra expressiva pode e deve ser considerada, por sua vez, como enquadrada em uma totalidade mais ampla. Em uma interpretação de cunho subjetivo ou psicológico, trata-se de contextualizar a forma representativa na vida e personalidade de seu autor. Cada manifestação do autor é vista como um momento espiritual, ligado ao conjunto dos seus demais atos por uma recíproca influência e afinidade. Já em uma interpretação de cunho objetivo ou técnico, trata-se de contextualizar a forma representativa na esfera de espiritualidade à qual a obra pertence, isto é, no conjunto (gênero) de obras de similar conteúdo ao qual a forma representativa pertence, tal como um anel de uma cadeia ideal. Este enquadramento, então, visa a construir uma caracterização morfológica ou técnica daquele tipo ou gênero de produção espiritual, e fundamenta-se no fato de que a obra resolve (aindaque sem a consciência do autor) um problema construtivo próprio daquele tipo ou gênero de produção espiritual25. Os cânones da autonomia e da totalidade, como visto, dizem respeito ao momento da objetividade do sentido a ser extraído no processo interpretativo. Os dois cânones seguintes referem-se à exigência de uma eficiente colaboração por parte do sujeito que interpreta, pertencendo, portanto, ao momento da subjetividade inerente à espontaneidade do entendimento. 6.3. ATUALIDADE DO ENTENDIMENTO. O terceiro cânone hermenêutico (primeiro cânone “subjetivo”) é o da atualidade do entendimento. 25 A distinção do alcance do segundo cânone, conforme se trate de interpretação subjetiva ou objetiva, já se encontrava na Categorie civilistiche dell’interpretazione (p. 15), tendo sido explicitada na Teoria generale della interpretazione (volume I, pp. 313 e 314). 11 Muitas vezes, além da simples tarefa de esclarecimento do objeto interpretado, há necessidade de suprir as suas deficiências e corrigir as suas aplicações, desenvolvendo as suas ulteriores conseqüências coerentes, ou limitando seu alcance, em casos de falta de racionalidade, por meio do que hoje se chama analogia e interpretação extensiva ou restritiva. Deve-se reconhecer, assim, uma tarefa ulterior e essencial ao processo interpretativo, que transcende o mero esclarecimento: a adaptação e adequação do objeto interpretado26. Na base dessa tarefa de adaptação e adequação, encontram-se dois cânones atinentes ao sujeito da interpretação. Consoante o primeiro deles, dito cânone da atualidade do entendimento, o intérprete deve repercorrer em si mesmo o processo criativo, reviver por dentro, na própria atualidade, um pensamento que pertence ao passado, fazê-lo entrar no círculo da própria vida espiritual como um fato da experiência própria, mediante uma espécie de transposição. Privado da própria subjetividade, o intérprete perderia os olhos para ver. Longe de constituir obstáculo à interpretação, a subjetividade do intérprete é condição indispensável de sua possibilidade. O que entra em nossa mente, entra na totalidade orgânica do mundo de representações e de conceitos que carregamos dentro de nós, e torna-se, por uma espécie de assimilação, parte desse mundo, sujeita ao seu desenvolvimento e às suas vicissitudes. É verdade que o intérprete deve apenas pesquisar e entender o sentido de uma manifestação de pensamento alheia e passada, mas esse sentido não é algo que a forma representativa oferece pronto; ao contrário, esse sentido é algo que o intérprete deve reconstruir e reproduzir em si mesmo, com sua sensibilidade e inteligência, com as categorias de sua mente, com o seu intuito e as forças inventivas de sua educação. 26 Fala-se aqui, especificamente, em adaptação e integração da norma jurídica. Não obstante, parece perfeitamente possível estender a lição a qualquer objeto da interpretação. 12 A atividade hermenêutica origina-se e impulsiona-se por um interesse ao entendimento, por um liame que unifica a manifestação de pensamento alheia com um interesse atual da nossa vida presente. Quanto mais vivo e intenso o interesse em entender, maior será o grau de compreensão, e o intérprete vivificará e animará o objeto com sua própria vida e alma, como experiência presente e atual. Não se trata de negar os outros dois cânones (autonomia do objeto e alteridade do objeto em relação ao sujeito), mas de reconhecer a espontaneidade do sujeito, sua totalidade espiritual e a essencial contribuição que as categorias mentais do sujeito e sua espiritualidade trazem (e devem trazer) ao processo interpretativo. Isso explica as mutáveis vicissitudes históricas das concepções interpretativas de um mesmo objeto. 6.4. ADEQUAÇÃO DO ENTENDIMENTO. O quarto cânone bettiano é o da adequação do entendimento. Por sua íntima ligação com o terceiro cânone, devem eles ser tomados em conjunto. A espontaneidade do intérprete é indispensável, mas não deve ser sobreposta e imposta, de fora, ao objeto da interpretação. Não basta, portanto, um interesse em entender. Deve haver uma abertura mental do intérprete, que permita colocá-lo na perspectiva justa, mais favorável para descobrir e entender o sentido. Trata-se de um necessário posicionamento, ético e teórico, do intérprete, que se caracteriza, por um lado, como abnegação, ou seja, despir-se dos próprios preconceitos e hábitos mentais que constituem obstáculos, e, por outro lado, como amplitude e capacidade de horizonte, que gera disposição congenial (conforme à índole, ao gênio do autor da obra) e fraterna para com aquele que é o objeto da interpretação. Assim, de acordo com esse quarto cânone, o intérprete deve esforçar-se em pôr a própria atualidade da vida em íntima adesão e harmonia com o estímulo que vem do objeto. Trata-se de pôr os dois termos do processo (objeto e sujeito) em uníssono, em íntima adesão e harmonia.
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